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Autoras: Profa. Daniela Emilena Santiago Profa. Marcia Fernanda Viera Rocha Colaboradora: Profa. Amarilis Tudella Estratégias em Serviço Social Professoras conteudistas: Daniela Emilena Santiago / Marcia Fernanda Viera Rocha Daniela Emilena Santiago Assistente social graduada pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Psicologia e em História, ambas pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Doutoranda em História na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis. Exerce também a função de docente e líder junto ao curso de Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP) na modalidade EaD. Marcia Fernanda Vieira Rocha Assistente social graduada pela Universidade Católica de Santos, especialista em Gestão de Recursos Humanos pela Faculdade de Administração e Economia de Curitiba (UniFAE) e especialista em Gestão Estratégica de Projetos pela Universidade Positivo de Curitiba. Mestre em Trabalho, Saúde e Sociedade pela Universidade Tuiuti do Paraná. Atuou como coordenadora de cursos e professora em organizações de ensino no Paraná nas modalidades presencial e EaD. Coordenou o Núcleo de Estágio e Empregabilidade na Faculdade da Indústria Sesi-Senai do Paraná. É coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Paulista (UNIP) de Santos, além de atuar como professora em diversas disciplinas. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) S235a Santiago, Daniela Emilena. Estratégias em Serviço Social / Daniela Emilena Santiago, Marcia Fernanda Vieira Rocha. 2. ed. São Paulo: Editora Sol, 2020. 120 p., il. 1. Instrumentalidade. 2. Estudo socioeconômico. 3. Trabalho com grupo. I. Rocha, Marcia Fernanda Vieira. II. Título. CDU 364 U503.59 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcelo Souza Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dra. Divane Alves da Silva (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Dra. Valéria de Carvalho (UNIP) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Fabrícia Carpinelli Elaine Pires Sumário Estratégias em Serviço Social APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 INSTRUMENTALIDADE E DEMAIS ASPECTOS DA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL .......................................................................................................................................9 1.1 A instrumentalidade no processo de produção capitalista ....................................................9 2 INSTRUMENTALIDADE NO SERVIÇO SOCIAL ........................................................................................ 15 3 INSTRUMENTALIDADE E PROCESSOS DE TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL ............................. 26 4 OS DIFERENTES PROJETOS SOCIETÁRIOS E PROFISSIONAIS E O PROJETO ÉTICO-POLÍTICO DO SERVIÇO SOCIAL ......................................................................................................... 35 Unidade II 5 DIÁRIO DE CAMPO, ESTUDO SOCIAL, ESTUDO SOCIOECONÔMICO ............................................ 48 5.1 Diário de campo .................................................................................................................................... 48 5.2 Entrevista ................................................................................................................................................. 54 5.3 Estudo social e socioeconômico..................................................................................................... 58 6 LAUDO SOCIAL, PARECER SOCIAL, PERÍCIA SOCIAL, RELATÓRIOS, VISITA DOMICILIAR E VISITA INSTITUCIONAL ........................................................................................................ 62 6.1 Laudo social ............................................................................................................................................ 62 6.2 Parecer social e perícia social .......................................................................................................... 64 6.3 Relatórios ................................................................................................................................................. 66 6.4 Visita domiciliar e visita institucional .......................................................................................... 67 Unidade III 7 TRABALHO COM GRUPO E EM COMUNIDADES E A EDUCAÇÃO POPULAR ............................ 76 7.1 O trabalho com grupo ........................................................................................................................ 76 7.2 O trabalho em comunidades e a intervenção em educação popular ............................. 79 7.3 Elaboração de planos, programas e projetos e a questão do orçamento público ................80 8 A SUPERVISÃO DE ESTÁGIO EM SERVIÇO SOCIAL, A PRÁTICA PROFISSIONAL E A DIMENSÃO INVESTIGATIVA ..................................................................................................................... 89 8.1 A prática profissional e a dimensão investigativa ................................................................101 7 APRESENTAÇÃO Olá, aluno! Convidamos você, nesse momento, para um percurso nas questões que envolvem a prática cotidiana dos profissionais desta área. Para darmos início às nossas reflexões, apresentamos a notícia a seguir: “Projeto prepara presos para volta à sociedade após liberdade. Voltada para quem está em regime semiaberto, iniciativa promove dinâmicas com foco no planejamento fora do sistema prisional” (PROJETO..., 2019). Preparar o reeducando para a vida do outro lado das grades é a meta do projeto especial “Preparação para a Liberdade”, desenvolvido no Centro de Detenção Provisória (CDP) ASP Nilton Celestino, de Itapecerica da Serra, e no Centro de Progressão Penitenciária (CPP) de Franco da Rocha. Nas duas unidades, quem está no regime semiaberto passa por dinâmicas de grupo com foco na preparação para a vida fora do sistema prisional. A assistente social do CDP de Itapecerica, Ângela Carvalho de Jesus Silva, comenta o projeto: “A ação considera as perdas ocorridas na fase de reclusão e convida os participantes para a reflexão sobre o passado e planejamento do futuro fora do sistema prisional. Na opinião da responsável, o poder para mudar o foco na vida está dentro de cada pessoa” (PROJETO..., 2019). E prossegue: “A oportunidade de expressar sentimentos é o ponto alto da ação” (PROJETO..., 2019). Já o reeducando E.Y. expressa sua opinião: “É uma forma de diálogo e desabafo das coisas que gostaria de falar e não tinha como se expressar” (PROJETO..., 2019). Já no CPP de Franco da Rocha o projeto foi implantado em 2017 e comporta cinco encontros semanais, envolvendo dezreeducandos por etapa. A diretora de reintegração social da unidade, Célia Minelli, diz que: “São abordados temas como liberdade, laços sociais e familiares, trabalho e cidadania” (PROJETO..., 2019). O programa tem o objetivo de preparar as pessoas que estão próximas a obter progressão de pena para o regime aberto ou livramento condicional para o processo de retomada do convívio social, por meio de oficinas socioeducativas. O preso M.M.S. diz: “A cada dia, descubro que posso e quero ser alguém melhor do que antes” (PROJETO..., 2019). Acabamos de ver como é enfatizada a perspectiva do profissional atuante junto a um espaço de promoção de ressocialização a respeito da intervenção desenvolvida em prol de um segmento específico. Temos um exemplo das muitas possibilidades de ação de nossa categoria. Mas como repensar essa prática diante da amplitude de espaços laborais desse especialista na contemporaneidade? Para isso, é importante uma aproximação referente aos conceitos genéricos que estão presentes na prática do trabalhador desta área, além do avanço na discussão relacionada à metodologia da ação do profissional. Dessa forma, vamos problematizar a respeito de questões genéricas e que estão presentes no cotidiano da prática profissional. Assim, é basal pensarmos nos conceitos de instrumentalidade, nas questões que demarcam o exercício profissional, bem como repensarmos os instrumentos e as técnicas que estão presentes na 8 prática do profissional. Essas colocações oferecerão um embasamento geral a respeito de aspectos do fazer cotidiano do especialista da área e que estão presentes em qualquer dimensão da atuação. Convidamos você para esse percurso teórico, o qual trará muitos exemplos da prática contemporânea de nossa categoria. INTRODUÇÃO A presente disciplina iniciará as discussões sobre a questão da instrumentalidade do serviço social. Primeiramente, serão apresentados o conceito de instrumentalidade, a questão da perspectiva crítica e a instrumentalidade da área, compreendendo tal concepção alinhada à noção de processo de trabalho. Derivando desses conceitos, serão mostrados os diferentes projetos societários existentes na sociedade contemporânea, bem como a vinculação do serviço social a esses projetos. Partindo dessas colocações, passamos às dimensões práticas da profissão, em que são enfocadas as ações profissionais e os procedimentos metodológicos. Na sequência, será abordado um rol amplo de instrumentos de intervenção daqueles que atuam na área, os quais estão presentes no cotidiano e que integram a prática do profissional. Por fim, serão vistos os conceitos que integram a formação profissional, partindo da sistematização e registro da prática profissional, bem como a importância da pesquisa. Além disso, não ficam de fora os aspectos referentes à supervisão de estágio em serviço social, ou seja, há uma ampla discussão proposta que tratará sobre os mais variados fenômenos e eventos relacionados ao exercício da profissão. 9 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Unidade I 1 INSTRUMENTALIDADE E DEMAIS ASPECTOS DA PRÁTICA PROFISSIONAL DO ASSISTENTE SOCIAL 1.1 A instrumentalidade no processo de produção capitalista É interessante salientar que toda a noção de instrumentalidade construída por Iolanda Guerra, a principal autora a discutir esse conceito, aplicando-o ao serviço social, advém da noção marxista de trabalho. Assim, compreende-se que há uma relação entre o conceito de trabalho e a instrumentalidade. Para que seja possível compreender e conhecer essa relação, é preciso partir, inicialmente, do entendimento deste conceito. Assim, Guerra (2010) coloca que, em Marx, o trabalho é originado da necessidade humana de satisfazer as imposições que são geradas após um longo processo de desenvolvimento dos seres humanos. À medida que o homem busca dominar a natureza, e assim obter os elementos de que precisa para sobreviver, realiza um esforço ao qual nomeia-se trabalho, que é entendido como uma relação social de transformação que permite que coisas sejam transformadas pelos indivíduos, para que se tornem úteis ou mudem de utilidade. Ele também se constitui pelo esforço coletivo pela caça comum ao homem primitivo. Mas esse não foi o único formato de trabalho existente na sociedade. Antes, é possível ver que ele vai sendo alterado à medida que os modos de produção também mudam. Na tradição marxista, da qual deriva Guerra (2010), vemos o trabalho como o meio pelo qual o homem busca atender as suas necessidades, mas também como um fenômeno que altera a subjetividade do ser humano e também as suas relações sociais. Assim, voltando ao homem primitivo, foi a necessidade do trabalho, e deste com outros homens, que condicionou a sua subjetividade, surgindo a necessidade de comunicação. O gênero humano passa, então, por um lento processo de desenvolvimento, condicionando o psiquismo humano e aprimorando o homem em prol da fala. No entanto, a fala é apenas um dos muitos aspectos que o gênero humano vai aprimorando a partir do trabalho, o qual está extremamente ligado ao desenvolvimento psíquico. O trabalho também influencia na delimitação das relações sociais do ser humano. Ele impõe uma certa sociabilidade entre os pares, algo que interfere na sua subjetividade e nas redes de relacionamento que são por ele construídas. Sobre o pensamento do homem primitivo nas primeiras relações de trabalho (não relacionadas à noção de capitalismo), podemos inferir que: [...] o homem transforma a natureza e, ao fazê-lo, transforma-se a si mesmo e a outros homens. É esse movimento que consubstancia a sociabilidade humana, esta, constituinte e constitutiva de duas determinações fundamentais: pensamento e linguagem (GUERRA, 2010, p. 102). 10 Unidade I Essa relação posta pelo trabalho, em que seres humanos realizam trocas entre os pares, é presente em todas as relações empregatícias, ou seja, mesmo contemporaneamente, a ocupação que possuímos nos permite a convivência com outros trabalhadores, influenciando a subjetividade e as relações sociais. A compreensão da categoria trabalho evoca ainda compreender que ele só se constitui enquanto tal se composto pelos seguintes aspectos: o trabalho, a matéria-prima e os instrumentos ou meios para tal ação (IAMAMOTO, 2001). Esses elementos congregados e ativados pela força e pela ação do trabalho caracterizam-no em qualquer sociedade. A noção de instrumentalidade, portanto, está vinculada à questão dos instrumentos ou dos meios de trabalho, os quais comportam instrumentos usados para transformar a matéria-prima em um produto, mas são compostos também pelo que Guerra (2000a) denomina condições materiais, ou seja, todas as situações que estão presentes no processo de trabalho. O que cabe aqui sinalizar é que os meios de trabalho incorporam não apenas os instrumentos necessários à transformação do objeto, mas também todas as condições materiais sob as quais o trabalho se realiza (cf. Marx, 1985a:151). Os meios de trabalho são, para Marx, os indicadores do grau de desenvolvimento das forças produtivas e das condições sociais em que o trabalho se processa (GUERRA, 2000a, p.102). Assim, a introdução das máquinas no contexto da produção industrial apresenta grande avanço ao processo produtivo se comparada com a atividade vivenciada no contexto manufatureiro. Por conseguinte, a mudança nesse processo de produção se dá pela introdução de elementos que tendem a potencializá-la. A partir da Revolução Industrial, há uma profunda mudança no processo produtivo, que só é possível, inicialmente, pelo aporte a novas tecnologias como elementos que tendem a torná-lo menos manual. Dessa forma, busca-se cada vez mais instrumentos que facilitem, potencializem o processo do trabalho. Saiba mais Para conhecer um pouco mais os posicionamentos da autora, assista ao vídeo em que ela reflete sobre a categoria profissional, disponível no site funcional do Conselho Regional de Serviço Social de Santa Catarina: CCAS 2016.Cress-SC. [s.d.]. Disponível em: <http://cress-sc.org.br/ ccas-2016/>. Acesso em: 20 ago. 2019. Nesse site você ainda encontrará exposições de Yolanda Guerra e também de Maria Lucia Martinelli, nome importante na categoria. A inserção dos instrumentos ou meios no processo de trabalho só é possível a partir de um processo teleológico pelo qual passa o gênero humano. Compreende-se o processo teleológico como a habilidade do ser humano desenvolver sua capacidade crítica e transformadora. Quando o homem é inserido no 11 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL trabalho, ele tem essa aptidão desenvolvida. É essa condição que permite ao homem a construção de instrumentos, de meios de trabalho. Nesse processo, observa-se a objetivação humana. Quando falamos que o trabalho é um meio para o indivíduo se objetivar, ou, ainda, forma de objetivação humana, dizemos isso justamente pela capacidade emancipatória que está guardada na essência dele e que potencializa o chamado processo teleológico. A partir dessa prévia ideação é que pode-se falar da operatividade, momento em que alteramos de fato os objetos, superando a forma subjetiva como algo se constitui (GUERRA, 2000a). O processo de trabalho, portanto, permite que o indivíduo transforme algo, ou melhor, altere a realidade; assim, ao transformá-la, ele modifica a si mesmo, suas relações sociais e aos outros indivíduos. Dessa forma, a sociedade é reproduzida material e socialmente. Para tanto, os instrumentos ou meios são a base para que seja possível ao homem exercer esse domínio da natureza. No caso do trabalho, os instrumentos ou meios também são vitais para que seja possível produzir algo. Assim, Guerra (2000a) coloca que os instrumentos e os meios de trabalho são vitais para o aperfeiçoamento desse processo. A autora indica que a transição do capitalismo manufatureiro para o industrial se caracterizou pela introdução de máquinas no processo produtivo, tornando-o muito mais ágil. Com a introdução de maquinários, no entanto, as relações sociais estabelecidas entre os trabalhadores também acabou sendo alterada. Essa inserção de novas tecnologias é inerente ao trabalho e cada vez mais tem se tornado comum, tendo em vista a busca pelo lucro e pela mais-valia. Saiba mais Vamos conhecer um pouco mais sobre o desenvolvimento capitalista? Propomos que assista ao documentário a seguir: SALVANDO o capitalismo. Dir. Jacob Kornbluth e Sari Gilman. EUA: 2017. 90 minutos. Nele, é possível ver uma análise do capitalismo com base na realidade dos Estados Unidos, mas que nos leva a compreender um pouco das mutações presentes no processo produtivo. Não obstante, é possível questionar o motivo pelo qual trabalhamos e se seria possível deixarmos de exercer tal ação. Ocorre que o trabalho é inerente aos indivíduos, posto que a equação é simples, vivemos e trabalhamos, trabalhamos e vivemos, não cabendo aqui o fim do trabalho vivo (aquele que envolve a força de trabalho), pois necessitamos atender minimamente às carências materiais, tais como comer, beber, dormir, procriar, bem como as necessidades imateriais, referentes ao intelecto, à espiritualidade, ao âmbito das ideias e da consciência. Nas palavras de Marx (2013, p. 255-256): 12 Unidade I Agindo sobre a natureza externa e modificando-a por meio desse movimento, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as potências que nela jazem latentes e submete o jogo de suas forças a seu próprio domínio. Não se trata, aqui, das primeiras formas instintivas, animalescas (tierartig), do trabalho. Um incomensurável intervalo de tempo separa o estágio em que o trabalhador se apresenta no mercado como vendedor de sua própria força de trabalho naquele em que o trabalho humano ainda não se desvencilhou de sua força instintiva. Pressupomos o trabalho numa forma em que ele diz respeito unicamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma abelha envergonha muitos arquitetos com a estrutura de sua colmeia. Porém, o que desde o início distingue o pior arquiteto da melhor abelha é o fato de que o primeiro tem a colmeia em sua mente antes de construí-la com a cera. No final do processo de trabalho, chega-se a um resultado que já estava presente na representação do trabalhador no início do processo, portanto, um resultado que já existia idealmente. Isso não significa que ele se limite a uma alteração de forma do elemento natural; ele realiza nesse último, ao mesmo tempo, seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, o tipo e o modo de sua atividade e ao qual ele tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato isolado. Além do esforço dos órgãos que trabalham, a atividade laboral exige a vontade orientada a um fim, que se manifesta como atenção do trabalhador durante a realização de sua tarefa, e isso tanto mais quanto menos esse trabalho, pelo seu próprio conteúdo e pelo modo de sua execução, atrai o trabalhador, portanto, quanto menos esse último usufruir dele como jogo de suas próprias forças físicas e mentais. A partir da análise deste excerto, é possível compreender, por Marx, a diferença entre o trabalho realizado por seres humanos das ações realizadas pelos demais seres vivos. Enfatiza-se o desenvolvimento da capacidade teleológica, que permite ao ser humano ultrapassar as necessidades mais imediatas de sobrevivência, criando destas necessidades outras, e assim por diante, de modo que, a partir do planejamento e prévia ideação de algo, não apenas concretiza-se o idealizado, mas este é aprimorado segundo novas necessidades. Nesse sentido, evidencia-se a importância do aprofundamento e da formação permanente, considerando que esse debate não é simples de ser feito ou compreendido, principalmente, quando tenta-se compreender o campo do imaterial, pois, quando se afirma a unidade entre material e imaterial em uma sociedade habituada a fragmentar todos os conceitos e conteúdos, deparamo-nos com algo impensável pela forma como é orientada hegemonicamente nossa maneira de pensar. Em contrapartida, quando é feito esse esforço, é possível compreender que, de fato, as coisas não seriam por nós entendidas, reconhecidas e nomeadas se não tivessem uma base material e imaterial. 13 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Lembrete Todos os elementos e fenômenos, incluindo o trabalho, possuem uma base material e imaterial Assim, refletir sobre o trabalho nos impele a pensar em objeto e matéria-prima, em instrumentos ou meios, no resultado ou produto e no seu processo. É preciso ainda considerar que o trabalho influencia as relações sociais e subjetivas do homem, e, além disso, que ele comporta uma dimensão histórico-cultural. Assim, o que é trabalho, o que pode ser considerado como tal, muda de algo com os meios de produção utilizados em uma dada sociedade. Temos trabalho nas sociedades primitivas, bem como na capitalista. A forma de compreendê-lo é que muda em cada uma dessas sociedades. Segundo Guerra (2000a), na fase da manufatura, primeira fase do desenvolvimento do capitalismo, era o capitalista que definia o que seria produzido. Porém, neste momento, os trabalhadores eram em menor número e participavam de todo o processo de produção, até o final. Nesse período, o trabalhador cede ao proprietário dos meios de produção o conhecimento técnico e suas habilidades. Com o desenvolvimento da industrialização e a concentração de um grande número de trabalhadores em um mesmo espaço, temos a intensificação das atividades. Esse aumento do trabalho acontece a fim de que o capitalista consiga alcançar a mais-valia. Nesse sentido, o trabalho torna o trabalhador cada vez mais alienado, ele executa suas funções independentes e nem sempre tem noção do resultado final de sua ação. Tanto o trabalho na manufatura, quanto o na industrialização produzem valor. E também possuem valor. No entanto, no capitalismo, é a inserção dos maquinários que possibilita a extração da mais-valia. Por conseguinte, cada trabalho,em sociedades específicas, possui características e especificidades que o definem. A partir do capitalismo, de acordo com Guerra (2000a), o racionalismo condicionou todo o processo de produção. Esse conceito de racionalismo, ou mesmo racionalidade formal-abstrata, como nomeado pela autora, corresponde ao período em que o discurso científico passa a ser considerado como o mais relevante para condicionar a organização do trabalho. A racionalidade e o saber científico são considerados os únicos aspectos importantes. Correspondem à compreensão de que os trabalhadores precisam deter esse saber científico racional, e apenas esse conhecimento será suficiente para dar conta das demandas apresentadas no trabalho. Por conseguinte, aquele trabalhador que não conseguir fazer uso desse saber é tido como prejudicial à organização laboral. Da mesma maneira, as reivindicações dos trabalhadores são consideradas como entraves para a plena expansão de seu saber científico no trabalho. O trabalhador que reivindica seus direitos é apresentado como aquele que não detém o saber necessário à execução de suas funções. O racionalismo, ou a racionalidade formal-abstrata, é incorporado ao processo de produção em meados dos anos 1930 sob influência do taylorismo. De acordo com Taylor, a produção deveria acontecer por meio da distribuição de tarefas aos trabalhadores. Isso permite ao capitalista realizar o controle da produção e das atividades desenvolvidas pelos trabalhadores. Para que cada empregado desempenhe corretamente suas funções, é basal o conhecimento científico, racional. Isso minaria a 14 Unidade I resistência dos trabalhadores ao processo de exploração, uma vez que o profissional acaba cooptando essa perspectiva de entender o trabalho. Portanto, aquele que não usa de forma plena seu saber científico é compreendido como incapaz de produzir. Guerra (2000a) nos diz ainda que o taylorismo incorpora medidas assistenciais destinadas aos trabalhadores, algo como um benefício indireto para aqueles com maior rendimento e atenção aos parâmetros das empresas. O trabalhador competente, que domina as técnicas de produção, é considerado um corresponsável pelo desenvolvimento econômico do país; assim, todos devem colaborar, oferecendo todo seu saber para a produção. Saiba mais Para conhecer um pouco mais sobre as questões que envolvem o processo produtivo, em diferentes configurações, indicamos assistir aos filmes a seguir: DAENS, um grito de justiça. Dir. Stijn Coninx. Bélgica: 1992. 138 minutos. EU, Daniel Blake. Dir. Ken Loach. Reino Unido: 2016. 100 minutos. A partir de então, há a ênfase aos processos de gestão científica, apresentados como alternativas eficientes para potencializar o processo de produção. De certa forma, tem-se a consolidação do saber científico como resposta a outros fenômenos sociais, como a gestão das expressões da questão social. Outrossim, para todos os problemas sociais, também espera-se que a administração científica seja suficiente para saná-los. Não há problema que não possa ser resolvido. Basta apenas um pouco de conhecimento. Ou seja, esse tipo de análise da realidade: “[...] pressupõe que as tensões possam ser controladas e manipuladas com a mesma destreza com a qual se domina os fenômenos da natureza” (GUERRA, 2000a, p.129-130). Porém, mesmo atualmente, o saber científico ainda é apresentado como única alternativa para a solução dos mais variados problemas sociais existentes, assim como para sanar todas as questões relacionadas ao processo de produção, além de ser apontado como a base para a superação das dificuldades econômicas pelas quais passam os mais variados países. Como esses conceitos vistos anteriormente têm impactos na intervenção profissional? Pode-se dizer que é cobrado do especialista um pleno domínio científico? Sim, é exigida certa racionalidade, domínio do saber, da utilização de saberes e técnicas que permitam ao profissional desenvolver uma prática capaz de atender às demandas que são apresentadas. A dimensão instrumental está presente em qualquer processo de trabalho, mesmo que existam mutações na forma com que ele se organiza ao longo dos anos. Assim, os instrumentos de trabalho vão sendo alterado diante das mudanças apresentadas na reorganização do processo produtivo. Cada vez mais busca-se aprimorar os instrumentos de trabalho, visando conferir melhor qualidade ao que é produzido. 15 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL 2 INSTRUMENTALIDADE NO SERVIÇO SOCIAL Neste momento, passa-se à discussão a respeito do conceito de instrumentalidade e de sua influência junto à categoria profissional. Como salienta Guerra (2010), a questão instrumental é essencialmente uma determinação sócio-histórica. Isso significa que os instrumentos e técnicas, assim como a bagagem a qual recorre-se, têm influência do momento histórico em que estamos inseridos. Também há predomínio de aspectos além do controle do profissional, como a questão econômica, política e situação social. Voltar o olhar ao passado é importante para conhecer as diferentes configurações postas aos instrumentais e à prática profissional como um todo. A burocratização do trabalho do serviço social a partir de exigências postas para a atuação profissional da categoria advém do processo de institucionalização das ações profissionais, mais precisamente, com a vertente do serviço social moderno, que ganha forte representatividade entre os assistentes sociais durante o período de ditadura civil-militar, pós-golpe de 1964. Vanguarda essa que perdurou até meados da década de 1970 e teve ruptura a partir do Congresso da Virada, em 1979, tendo em vista as influências do movimento de Reconceituação da Profissão Latino-Americano. Cabe aqui alguns esclarecimentos, retomando e aprofundando a questão dos efeitos do Golpe de 64 no Brasil e a interface com o serviço social, para que seja possível entender o processo de institucionalização do assistente social, pois é exatamente nesse contexto que reside a gênese da demanda por instrumentalizar pessoas a partir de uma forma de pensar fragmentada em prol do ajustamento dos atendidos à sociedade de forma harmônica, sendo o Estado chamado à responsabilidade como agente regulador do bem-estar de todos. Paulo Netto (2015) embasa histórica e criticamente sobre esse processo na cena brasileira chamando-o de ciclo autocrático burguês. Período entre 1964 e 1982 de ditadura civil militar brasileira, compreendido por ascensão, ápice e declínio, este último em meados de 1979. Esse processo consistiu na tomada do Estado ditatorial pela hegemonia burguesa em detrimento dos latifundiários, que a partir de pactos conseguiram perpetuar alguns aspectos de seu projeto coletivo. A racionalidade burguesa, fortalecida pela burguesia internacional, coloca suas pautas na agenda do Estado sob o escopo do desenvolvimento do país, impulsionando o ciclo de industrialização pesada do país em um curto prazo. Esse momento também ficou conhecido como “milagre brasileiro”, pois foram realmente alcançados níveis de acúmulo inéditos para o país. Essa reforma foi feita a galope, justificada por certo risco do socialismo atingir grandes proporções. Sendo assim, foi feita muito mais uma contrarreforma do Estado do que uma reforma propriamente dita, pois antes mesmo de qualquer reforma ser proposta, a burguesia se antecipa e realiza o seu projeto coletivo (PAULO NETTO; BRAZ, 2011) . Não obstante, conforme os interesses burgueses eram atendidos, em contrapartida, as pautas da classe trabalhadora eram cada vez mais negligenciadas, fato que gerou o acirramento da questão social. Nesse contexto é que uma nova demanda de espaço sócio-ocupacional surge para o serviço social. Houve o aumento da disponibilização de postos de trabalho nos serviços estatais, os Institutos de Previdência. Esse fato levou a categoria ao questionamento acerca de seu fazer profissional. 16 Unidade I Destarte, há a articulação de diversos âmbitos de encontros da categoriapara estudos, pesquisa e considerações. Essas mobilizações do serviço social geraram documentos que expressam as orientações teóricas que embasaram a atuação profissional em cada época. Em Araxá, existe um serviço social ainda tradicional, definindo a importância de aprofundar a dimensão teórico-metodológica para lidar com as exigências burocráticas institucionais. Teresópolis foi o documento de cristalização do serviço social moderno, pois encontra no positivismo algumas interlocuções que o norteiam para responder às demandas institucionais. O documento de Alto da Boa Vista e Sumaré expressou um retrocesso da profissão, pois propõe a retomada do serviço social tradicional como imprescindível. Sumaré esboça, em última instância, o serviço social tradicional travestido de serviço social moderno. O método de BH é reconhecido por significar grande avanço do serviço social enquanto categoria que inicia seu aprofundamento teórico do marxismo, mas ainda aquém de estudos que de fato pudessem orientá-los com veracidade quanto ao método materialista histórico dialético, visto que, somente na década de 1980, com Maria Lúcia Vilela Iamamoto, é que o marxismo chega ao serviço social brasileiro de forma crítica e fundamentada. As inquietações produzidas pelo acirramento da questão social fazem com que a relação com a ditadura civil-militar comece a perder forças ante os movimentos sociais insurgentes, culminando em mobilizações sociais, fortalecimento de movimentos sociais sindicais, sanitaristas, Movimento dos Sem Terra (MST), entre outros, culminando nas “Diretas Já”. O modo de produção capitalista, consequentemente em sua necessidade de reprodução, ou seja, extrair mais-valia e aumentar a taxa de lucro, vai eliminando a concorrência, chegando à era dos monopólios e oligopólios. O Estado é chamado para realizar medidas econômicas e sociais que requerem instituições e profissionais com formações específicas para atender a estes anseios. Saiba mais Que tal conhecer um pouco mais dessa história da nossa profissão? Recomendamos a leitura do livro: PAULO NETTO, J. Ditadura e serviço social: uma análise do serviço social no Brasil pós-64. São Paulo: Cortez, 2015. Nesse texto, o autor contextualiza historicamente a luta da categoria por entender o seu fazer profissional, além de um rol amplo de aspectos afins. 17 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL É nesse contexto que surge o que é nomeado por Guerra (2000b) como utilidade social da profissão, que é determinada pelas necessidades sociais que clamam por sua existência. Ocorre que, no modo de produção capitalista, essas demandas são apresentadas de formas antagônicas, pois elas são provenientes de classes opostas, surgindo a partir da contradição guardada na relação social de produção, ou no embate entre capital e trabalho. A profissão é norteada por aquilo que a demanda; sendo assim, o assistente social atua como mediador a partir das expressões da questão social sob as quais intervêm. Sua atuação se dá perante a divisão sociotécnica do trabalho, entendendo-se como classe trabalhadora, e tendo nas políticas sociais as mediações imprescindíveis para que a sua atuação profissional possa atingir aspectos concretos, ainda que no imediato. Não obstante, as políticas sociais e os serviços sociais são também entendidos como espaços sócio-ocupacionais para os assistentes sociais. Nesse sentindo, infere-se junto a Guerra (2000a) que as políticas sociais possuem dimensão de reprodução da força de trabalho como respostas estatais às lutas de classes; no entanto, também podem ser entendidas como um conjunto de procedimentos técnico-operativos, os quais são direcionados de forma instrumental, cabendo aos profissionais da área trabalharem as esferas da formulação e a da implementação. O âmbito de inserção do assistente social é, primordialmente, o da implementação. As respostas estatais via políticas sociais se viabilizam de forma segmentada, por meio de políticas setoriais. Notoriamente, essa forma política de pensar atrela-se constitutivamente à racionalidade burguesa, visto que se propõe a atender a população em suas necessidades emergenciais, remetendo ao profissional de serviço social a função de executor de intervenções imediatistas, como se o cidadão tivesse, em vez de um problema proveniente da questão social, um incêndio, cabendo a ele apagar apenas esse fogo, ignorando o fator gerador do incêndio. Inferimos junto a Guerra (2000a, p. 7) que: É nesse sentido que as políticas sociais contribuem para a produção e reprodução material e ideológica da força de trabalho (melhor dizendo, da subjetividade do trabalhador como força de trabalho) e para a reprodução ampliada do capital. Como resultado destas determinações no processo de constituição da profissão, a intencionalidade dos assistentes sociais passa a ser mediada pela própria lógica da institucionalização, pela dinâmica da instauração da profissão e pelas estruturas em que a profissão se insere, as quais, em muitos casos, submetem o profissional, melhor dizendo, os assistentes sociais “passam a desempenhar papéis que lhes são alocados por organismos e instâncias [...]” próprios da ordem burguesa no estágio monopolista (NETTO, 1992: 68), os quais são portadores da lógica do mercado. Assim, o assistente social adquire a condição de trabalhador assalariado com todos os condicionamentos que disso decorre. Por isso é importante, na reflexão do significado sócio-histórico da instrumentalidade como condição de possibilidade do exercício profissional, resgatar a natureza e a configuração das políticas sociais que, como espaços de intervenção 18 Unidade I profissional, atribuem determinadas formas, conteúdos e dinâmicas ao exercício profissional. A partir desses horizontes, a autora orienta ainda acerca de dois movimentos do exercício profissional realizado sob essas condições. No primeiro, temos a constituição de políticas sociais fragmentadas para as quais o profissional é requisitado. Dessa forma, temos uma setorização das ações do serviço social, que passa a direcionar sua intervenção para um público particular e específico. A setorização resulta em intervenções também fragmentadas por parte do assistente social, o qual, cada vez mais, precisa usar instrumentos e técnicas específicos para realizar uma intervenção igualmente particular e específica junto às refrações da questão social. Guerra (2010) nos coloca que essa fragmentação das ações em políticas sociais específicas resultam na decomposição e na fragmentação dos problemas sociais, mas também conduzem a um controle técnico e burocrata das ações dos assistentes sociais. Assim, os profissionais passam a ser orientados a apresentar soluções dentro do espaço laboral para o qual são contratados. Isso confere a ideia de que somente uma boa técnica de intervenção é suficiente para dar conta dos problemas sociais. [...] operacionalização de medidas instrumentais de controle social, o controle de técnicas e tecnologias sociais [...] manipulando racionalmente os problemas sociais, prevenindo e canalizando a eclosão de tensões para os canais institucionalizados estabelecidos oficialmente (GUERRA, 2010, p.135-136) Portanto, de acordo com essa ótica, assentada no racionalismo formal e abstrato, compete ao assistente social, atuante nas políticas sociais, saber usar corretamente recursos, bem como as técnicas que possui, e, somente dessa maneira, será possível controlar e administrar os problemas sociais com os quais se relaciona. Isso impacta diretamente na constituição dos profissionais, que se veem obrigados a dar respostas eficientes às demandas que lhes são apresentadas ou, como sintetiza a autora: [...] previsibilidade e controle dos desequilíbrios funcionais do sistema, racionalização e maximização dos recursos, normatização de procedimentos técnicos, introdução de novas tecnologias, exigências de eficácias e eficiência dos meios (materiais e culturais) destinados à reproduçãoampliada do capital, polivalência nas ações, interdisciplinaridade profissional (GUERRA, 2010, p. 137-138). Obviamente, os assistentes sociais atuantes em políticas sociais precisam conferir respostas às situações que são apresentadas. Afinal, o que confere importância social à profissão é o fato de conseguir atender às demandas. No entanto, é preciso saber que muitas das situações que o assistente social não consegue sanar não provêm de sua incapacidade, mas sim por questões que estão além do seu controle. Guerra (2010), no entanto, nos coloca que, apesar de sermos influenciados por essa racionalidade, sempre precisamos ter em mente que os problemas sociais sob os quais nos debruçamos são gerados pelo desenvolvimento capitalista. Somente dessa maneira podemos dar privilégio à criticidade em desfavor desse excesso da racionalidade que se mostra presente dentro da categoria. 19 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL A forma como é vista a realidade, sua interpretação, nos leva a construir uma representação de nossa prática, uma autoimagem de nossa ação. Obviamente que tendo consciência de nossas ações, precisamos sempre buscar reivindicar melhorias para o público, além de sempre lutar por manter e ampliar condições dignas de trabalho. Isso também nos leva a buscar sempre qualificação permanente, uma vez que são extremamente importantes “[...] informações, conhecimentos e habilidades que o instrumentalize” (GUERRA, 2010, p. 157). Também é necessário que os assistentes sociais estejam vinculados aos parâmetros defendidos pela sua categoria, uma vez que isso é importante para orientar suas ações. Saiba mais Que tal ficar por dentro de todas as discussões da categoria? Isso é extremamente importante para estar atualizado e também para orientar a sua intervenção profissional. Para isso, acompanhe as discussões da categoria que estão disponibilizadas no link a seguir: <http://www.cfess.org.br>. Guerra (2010) indica que a instrumentalidade é composta por níveis. Um desses níveis a ser alcançado consistiria justamente na capacidade de o profissional articular as dimensões técnico-instrumental, teórico-intelectual, ético-política e formativa. Dessa maneira, outro nível possível seria alcançado após essa junção dos vários aspectos, resultando na possibilidade de pôr em prática valores nobres da profissão, conforme disposto na lei que regulamenta a profissão e no Código Profissional de Ética dos Assistentes Sociais. Esses níveis só podem ser alcançados se o profissional buscar ir além da simples razão instrumental. Face ao exposto, a categoria profissional de serviço social atua com autonomia relativa, pois sua função é atrelada a requisitos técnico-instrumentais, burocracias e aspectos de manutenção da ordem burguesa. No sentido em pauta, as inflexões do sistema capitalista junto às políticas sociais trazem condicionantes para a configuração do exercício profissional, assim como outros aspectos presentes na sociedade capitalista. Em contrapartida, cabe-nos afirmar com veemência o horizonte do projeto ético-político da profissão, que visa à emancipação humana, se instrumentalizando, segundo Montaño e Durigueto (2011), a partir do acúmulo teórico redigido pela categoria, também pelos seus órgãos e espaços de regulamentação de categoria profissional, bem como as legislações tanto da profissão quanto as que são necessárias à atuação profissional. Também busca sempre melhor qualificar a sua intervenção visando à efetivação dos direitos sociais do público que atende. Destarte, a prioridade aqui é enfatizar que quando ocorre o reducionismo da profissão a apenas uma de suas dimensões, no caso aqui, da dimensão instrumental, equivocadamente o profissional é direcionado a ser mero executor acrítico dos ditames do modo de produção capitalista, em última instância, permitindo que o mercado de trabalho dite as regras das ações profissionais. http://www.cfess.org.br 20 Unidade I Oportunamente, as ações do serviço social devem ser pautadas por intervenções que priorizem refletir e fomentar as escolhas dos sujeitos, perpassando pelas reflexões críticas, problematizações, direcionadas pela razão ontológica marxista, as quais deverão estar atreladas aos valores éticos, morais e políticos do ser social. A dimensão teórico-metodológica e a ético-política, portanto, se expressam como as mais relevantes para que possamos ultrapassar a aparência/o imediato e atuar com a essência/mediatizado. A pesquisa científica tem trazido grandes contribuições para os trabalhadores de serviço social, pois dispõe de acúmulo de conhecimento proveniente de leituras da questão social. O maior desafio, por conseguinte, consiste em mediatizar as ações, as propostas. Sobre isso Guerra (2000a, p.11) diz que: Se é verdade que a instrumentalidade insere-se no espaço do singular, do cotidiano, do imediato, também o é que ela, ao ser considerada como uma particularidade da profissão, dada por condições objetivas e subjetivas, e como tal sócio-históricas, pode ser concebida como campo de mediação e instância de passagem. Diferente disso, seria tomar a instrumentalidade apenas como singularidade, e como tal, um fim em si mesma, de modo que estaríamos desconhecendo suas possibilidades como particularidade. No cotidiano, como o espaço da instrumentalidade, imperam demandas de natureza instrumental. Nele, a relação meios e fins rompe-se e o que importa é que os indivíduos acionem os elementos necessários para alcançarem seus fins (grifos meus). Conforme Guerra (2000a) esclarece, a instrumentalidade é uma dimensão da atuação profissional exigida por diversos âmbitos do saber e fazer profissional. Isso não a faz mais ou menos importante que outras demandas, mas deve ser reconhecida como uma possibilidade de mediação para que o profissional possa acessar o imediato e, através da utilização de método de análise crítica, ultrapassar o pseudoconcreto que é exposto na aparência dos fenômenos. Saiba mais O texto a seguir aborda a discussão da instrumentalidade, reforçando a necessidade de pensar para além dos instrumentos, de forma crítica e reflexiva. MENEZES, V. de A.; MOURA, E. M. A instrumentalidade do processo de trabalho do serviço social: por uma práxis ascendente à razão instrumental. In: VI SEMINÁRIO CETROS, 2018, Ceará. Anais [...] Ceará: UECE, 2018. 21 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Inferimos, portanto, junto a autora, que a instrumentalidade é particularidade e não singularidade. Sendo assim, ela não é a finalidade da atuação profissional, e sim meio para iniciar as reflexões e análises de profundidade dos casos atendidos. Tratar-se-á aqui da instrumentalidade como uma mediação que permite a passagem das ações meramente instrumentais para o exercício profissional crítico e competente. Como mediação, a instrumentalidade permite também o movimento contrário: que as referências teóricas, explicativas da lógica e da dinâmica da sociedade, possam ser remetidas à compreensão das particularidades do exercício profissional e das singularidades do cotidiano. Aqui, a instrumentalidade, sendo uma particularidade e como tal, campo de mediação, é o espaço no qual a cultura profissional se movimenta. Da cultura profissional os assistentes sociais recolhem e na instrumentalidade constroem os indicativos teórico-práticos de intervenção imediata, o chamado instrumental técnico ou as ditas metodologias de ação. Reconhecer a instrumentalidade como mediação significa tomar o serviço social como totalidade constituída de múltiplas dimensões: técnico-instrumental, teórico-intelectual, ético-política e formativa (GUERRA, 2000a, p.12). A dimensão técnico-instrumental remete ao acúmulo da unidade objetivo-subjetiva da profissão refletido em uma síntese que a concretiza. A dimensão teórico-intelectual é a que compõe o processo de abstração da categoria, que permite desdobrar aspectos teóricos e ético-políticos em ações profissionais. O serviço social não é uma ciência, logo, parafundamentar seus processos mediáticos, necessita acessar diversos conteúdos das ciências sociais, e, a partir desses horizontes, vai construindo cotidianamente e criticamente suas ações. A partir de suas intervenções, vai construindo um coletivo que lhe permite determinado conhecimento acerca da realidade social vivenciada por seus atendimentos, acessando singularidades e particularidades que lhe ofertam uma perspectiva de totalidade no âmbito universal, chegando à essência dos fenômenos, ou apreendendo o movimento do real, que é a própria essência/o real. A cultura profissional nos permite mensurar nossas ações, partindo de objetivos claros, construídos junto aos atendidos que, por meio de avaliação contínua, permitem mudanças e alterações que possibilitam que as intervenções sejam mais assertivas. Ao lançar mão da cultura profissional, o profissional de serviço social recusa a intervenção com foco na instrumentalidade, no imediato, buscando conhecer, desvelar o fenômeno junto ao atendido, utilizando-se de conteúdos teóricos, críticos e projetivos (GUERRA, 2000b). Aliás, a definição apresentada por Guerra (2000b) indica que a instrumentalidade “[...] é uma propriedade e/ou capacidade que a profissão vai adquirindo na medida em que concretiza objetivos” (GUERRA, 2000b, p. 2), ou seja, não pode ser reduzida à dimensão instrumental, ao como fazer. Isso corresponde a compreender que a instrumentalidade é uma condição da profissão que, ao ser exercida, 22 Unidade I visa ao alcance de finalidades profissionais. A instrumentalidade é, portanto, uma forma, um meio de o profissional objetivar sua intervenção por meio de respostas às demandas e necessidades que lhes são apresentadas. Por isso, é necessário destacar ainda que é uma capacidade ou propriedade desenvolvida pelos profissionais, ou seja, não é algo inato. A instrumentalidade constitui o ser social. Faz parte do ser humano, mas é uma capacidade intelectiva, desenvolvida e vinculada à consciência. Está presente no trabalho manual e também no intelectual, sendo uma forma de junção da racionalidade técnica à dimensão instrumental, presente no processo do trabalho. Expressa ainda possibilidades encontradas pelos assistentes sociais de realizar uma junção entre a fundamentação teórica e a prática. Nesse momento, os assistentes sociais conseguem analisar a realidade, intervir sob ela, porém, têm como referência para suas ações a sua fundamentação. Isso só é possível porque o profissional operacionaliza, no cotidiano de sua ação, a junção teoria e prática. A autora nos coloca ainda que a instrumentalidade é também uma condição para o reconhecimento da profissão. Nesse sentido, reforça a história da profissão, destacando que o serviço social só foi aceito socialmente como uma profissão à medida que demonstrou condições de dar conta das demandas apresentadas. Para isso, os instrumentos, a instrumentalidade, são importantes para demonstrar que a profissão é socialmente necessária. Em tese, todo trabalho comporta uma instrumentalidade, e é isso que faz com que a ação se torne necessária em uma dada sociedade. Essa instrumentalidade confere ao homem a capacidade de manipular e modificar algo. No caso do serviço social, a intervenção profissional acontece sob os fragmentos da questão social. Melhor dizendo, como sabemos, as intervenções do serviço social que requerem sua instrumentalidade incidem sobre as múltiplas expressões da questão social, que, por sua vez, exigem dos profissionais procedimentos instrumentais. A instrumentalidade, portanto, envolve a conversão de certos objetos em instrumentos que atendam às necessidades encontradas para a transformação das matérias em produtos úteis. Para tanto, deve-se ir além da simples execução das ações. Quando tratamos de práxis, no entanto, há a necessidade de acessar outros aspectos mais profundos, que ultrapassam a esfera da instrumentalidade. Podemos delimitar, por conseguinte, dizendo que trata-se de um processo chamado de trabalho, que envolve ações prático-reflexivas, em unidade, que se direcionam a atingir algum objetivo. Para que isso ocorra, é preciso alcançar determinada condição objetiva-subjetiva. Destarte, o trabalho é uma relação resultante de um indivíduo que transforma a natureza e que, ao transformá-la, ele transforma a si mesmo. Construindo, por consequência, um âmbito material e imaterial, este último, envolvendo a consciência, a linguagem, os valores, a ética, intencionalidades, projetos, propostas; sendo o imaterial algo inseparável do material, que como unidade culmina na práxis. Infere-se, junto à Guerra (2000a), que a práxis é o conjunto de mediações que permitem aos indivíduos objetivar-se em suas ações, sendo o trabalho a principal forma que, dentro dessas condicionalidades (unidade entre subjetividade-objetividade, material-imaterial ou ainda concreto-abstrato), permite ao sujeito atingir e realizar sua teleologia para a práxis. 23 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Guerra (2000a) afirma ainda que a instrumentalidade reside em toda a postura teleológica, possibilitando ao indivíduo manipular, idealizar, modificar e modificar-se, imprimindo às coisas características próprias da humanidade, podendo, assim, utilizar desses meios (ou instrumentos) para atingir os objetivos postos. Cabe aqui explicitar um pouco mais sobre como se dá essa interface entre postura teleológica e instrumentalidade. Os indivíduos trabalham, logo, desenvolvem capacidades; a partir dessas, surgem novas perguntas que os levam a novas necessidades, novas respostas, mais capacidades e assim sucessivamente. Essa interface é uma relação social e, como tal, implica em todas as outras relações sociais, até mesmo nas relações sociais sexuais e outras de ordem interpessoal. Essa questão se explicita na avaliação de nossas formas de pensar, posturas e consciência, as quais são mobilizadas em prol de determinado acúmulo que temos, sendo assim chamados de instrumentos que utilizamos cotidianamente para a reprodução da vida. Portanto, tais relações sociais de produção se expressam no ser social. Assim, para o desenvolvimento do trabalho, é preciso que as relações sociais também sejam desenvolvidas. Nesse momento, as mediações de complexos sociais (tais como a ideologia, a teoria, a filosofia, a política, a arte, a ciência e a técnica) são de extrema importância para orientar o percurso. Esses complexos sociais objetivam dar certa organicidade às relações. Essa relação no modo de produção capitalista (que seria o sistema capitalista) se dá de uma forma diferenciada, que não permite ao indivíduo objetivar-se em totalidade, pois tal objetivação só pode ocorrer em liberdade coletiva, necessitando o ultrapassar da emancipação humana. No tempo do capitalismo, as determinações sócio-históricas levam os indivíduos a serem utilizados como instrumentos de outros indivíduos, ou ainda a força de trabalho como um meio de produção a ser indispensável para a reprodução do sistema que tem por base a extração de mais-valia. O indivíduo é um instrumento; além disso, deve instrumentalizar-se, sendo esta última uma exigência para não tornar-se um expropriado que não serve à racionalidade burguesa. Tal razão cria instituições, práticas sociais, organizações sociais, que nada mais são do que instrumentos de reprodução do capital, pois garantem suas ideias como ideias dominantes (MARX; ENGELS, 2009). Todo cidadão é acometido pelo sonho de acessar determinadas coisas e lugares; aliás, atingir a condição de cidadania pressupõe que os sujeitos detenham o direito de ser iguais aos outros perante a lei. Nesse contexto, a razão burguesa perpassa pelas relações sociais e, paulatinamente, dissemina a sua ideologia de classe. Na relação social celebrada pelo modo de produção capitalista ou, ainda, no sistema capitalista, a transformação societária se dá por meio da exploração do indivíduo por outro, sendo implícito que o trabalhador deverá abdicar de suas necessidadesenquanto pessoa para converter-se em instrumento que possa garantir a necessidade da classe dominante que nos é passada como necessidade de todos, pelo bem de todos (GUERRA, 2010). Isso conforma as relações sociais. Face a essas condições é que, paulatinamente, a ideia de instrumentalidade, que é necessária à transformação da natureza pelo trabalho, vai se fragmentando de tal forma até que exige-se a instrumentalização de pessoas. 24 Unidade I A palavra instrumentalidade tem sido proferida nos mais diversos espaços da categoria. É importante que, desde já, esta seja utilizada como meio para o atingimento de nossa intencionalidade, ou seja, a profissão adquire concretude e visibilidade à medida que concretiza seus objetivos. Ocorre que alguns profissionais têm utilizado essa categoria erroneamente, cobrando certos padrões e usos de manuais para alcançar as respostas do serviço social às demandas institucionais e dos atendidos. A tarefa das páginas a seguir é direcionar foco, portanto, para o desvelar do que seria a instrumentalidade para a categoria profissional de serviço social. Para tanto, é preciso ressaltar que trata-se de uma competência encontrada somente na atuação profissional, que se dá no momento em que modificamos, transformamos e alteramos as condições objetivas e subjetivas da vida dos sujeitos, ou, ainda, nos momentos das intervenções nas relações sociais em determinado contexto de realidade social, que ocorre no âmbito do cotidiano (GUERRA, 2010). A instrumentalidade se realiza, portanto, nos momentos em que as ações se voltam para modificar condições de vida, meios existentes de acesso e garantias para os sujeitos. Nesse sentido, há a tentativa de transformar condições e meios para atingir o objetivo através das intervenções profissionais. O serviço social realiza tais ações, por consequência, a todo o momento em que altera as condições cotidianas profissionais, bem como das classes sociais que solicitam tal intervenção. Ao buscar atingir o objetivo da intervenção profissional, é preciso construir determinadas mediações e apreender mediações postas na realidade, a fim de criar estratégias de transformação do cotidiano (no próprio cotidiano), para que os limites e desafios possam ser superados cotidianamente na atuação do profissional. Lembrete O cotidiano profissional é um âmbito que se constitui em consideração às demandas dos usuários, às demandas institucionais e ao projeto ético-político e Código de Ética da Profissão, ou seja, o posicionamento político do profissional. Considerando tais elementos, dizer que o serviço social é reconhecido por sua instrumentalidade, ou que deveria construir instrumentos padrões e manuais de intervenção que lhe garantissem visibilidade, seria nada mais que um reducionismo das ações profissionais aos meios construídos para atingir os objetivos. Ademais, seria também uma falácia, pois é impossível determinar enquadramentos e formas para “o fazer” profissional do serviço social, considerando que é uma profissão que lida com a categoria realidade (verdade, essencial, o real); destarte, lida com algo dinâmico, mutável, cabendo ao profissional aprofundar-se em sua formação permanente para ultrapassar os limites encontrados, e não realizar ações previamente determinadas, como se a realidade fosse linear, estagnada e imutável. 25 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Lembrete O cotidiano das classes sociais é permeado pelas relações sociais de produção, valores sociais, relações interpessoais, projetos societários ou, ainda, uma conjuntura que determinará a condição de vida daquele sujeito que nos procura. Por conseguinte, determinará também a formação de sua consciência a partir das suas experiências e relações constituídas. Esse questionamento tem perpassado pelas reflexões de muitos alunos de serviço social e, infelizmente, até mesmo por profissionais da área que se posicionam a favor da reatualização do conservadorismo na profissão, perspectiva burocratizadora, já ultrapassada junto ao serviço social conhecido como moderno que se desenvolve no Brasil entre 1964 e 1979, período conhecido por atender ao modelo econômico do desenvolvimentismo (PAULO NETTO, 2015). Obviamente que a resposta a essa indagação é que, na prática, a teoria não é outra, ou, ainda, na prática, a teoria é a mesma, ou seja, só é possível realizar uma atuação profissional coerente, atingindo os objetivos delimitados, se buscarmos por realizar uma práxis. O próprio questionamento já inviabiliza a interrogação, pois explicita a carência de formação permanente, fazendo com que o sujeito caia no fatalismo ou no messianismo da profissão, utilizando-se de uma atuação pragmática, linear, reprodutivista, de cunho positivista e até mesmo fenomenológico para sustentar a sua carência de profundidade e metodologia de intervenção em prol da transformação social. Para afirmarem que a teoria é utópica, dizem que a prática se revela de outra forma, de modo que a teoria não daria conta das demandas postas na realidade. Os discursos encontrados são os mais diversos, tais como: dizer que na prática nos deparamos com situações que os livros não tratam, não explicam e não trazem receitas; dizer também que é importante termos manuais que nos digam exatamente o que devemos fazer, como não os temos, ficamos sem “instrumentos” para intervir. Nesse sentido, fica exemplificado o entendimento apresentado da chamada “instrumentalidade” por aqueles que ainda não atingiram determinados entendimentos e aprofundamentos das teorias que orientam o cotidiano profissional. Vale ressaltar que não cabe aqui nenhuma fala de culpabilização dos indivíduos que se mobilizam por manuais e respostas prontas, cabe apenas esmiuçar os fatos que levam o profissional a agir contrário a essas propostas. Iniciando pelo fato de que não é possível partir de respostas, ou ainda de respostas prontas, para trabalhar com a dinamicidade do real, bem como com as singularidades e particularidades com as quais nos deparamos. Para sanar tal indagação, faz-se necessário explicitar como ocorrem tais esvaziamentos teóricos na categoria profissional, dando vazão a determinadas afirmativas infundadas. Destarte, é preciso entender 26 Unidade I a relação social nomeada como trabalho, que, para o profissional de serviço social, é o marxismo, teoria vanguardista da categoria; temos que o trabalho é categoria central, sendo assim, fundante e constitutiva para os indivíduos. Para concluir as colocações a respeito da instrumentalidade e da instrumentalidade do serviço social, é apresentado a seguir um quadro com a síntese das colocações até o momento. Quadro 1 – Síntese de conteúdos Trabalho Trabalho do assistente social Envolve matéria-prima Envolve as expressões da questão social Mudança da matéria-prima demanda capacidade reflexiva Intervenção sobre a matéria-prima, buscando minimizar os efeitos da expressão da questão social Instrumentos permitem a alteração de matéria-prima em produto Instrumentalidade (técnica e conhecimento) Instrumentos são necessários em qualquer processo de trabalho Instrumentos são necessários ao fazer profissional, mas também são históricos, estão presentes no cotidiano e também na capacidade reflexiva por parte do profissional Necessita da ação do trabalhador Alicerçado no referencial teórico e no projeto ético-político da categoria 3 INSTRUMENTALIDADE E PROCESSOS DE TRABALHO DO SERVIÇO SOCIAL A noção de instrumentalidade passou a ser trabalhada dentro da categoria por Yolanda Guerra. A produção da autora, com artigos e livros, leva à discussão da categoria para outros níveis, demonstrando a importância do assistente social repensar tanto sua prática quanto a sua fundamentação. Porém, a noção de processo de trabalho e sua aplicação ao serviço social foi inicialmente idealizada por Marilda Vilela Iamamoto, que é também um nome forte dentro da produção teórica do serviço social. Observação Yolanda Guerra é assistentesocial e professora da UFRJ. Marilda Vilela Iamamoto é professora aposentada da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Iamamoto (2001), então, assim como Guerra (2010), parte da noção marxista de processo de trabalho. Aqui, seja bem entendido que a noção de processo de trabalho em Marx não está vinculada às situações processuais. Antes, busca indicar aspectos que estariam presentes em qualquer relação trabalhista. Para Marx, toda relação de trabalho comporta elementos mínimos, básicos, que seriam o trabalho, a própria ação em si, além dos instrumentos ou meios de trabalho e a matéria-prima. O resultado desse processo de trabalho é um produto. No caso, Marx buscava analisar a sociedade capitalista e, a 27 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL partir dessa categoria, teceu a suas contribuições. Guerra (2000a; 2010) também partiu da definição marxista, porém, suas colocações estiveram mais orientadas à questão da instrumentalidade. No caso de Iamamoto (2001), no entanto, a análise esteve mais orientada para a discussão do conceito de processo de trabalho aplicado ao serviço social. Saiba mais Que tal conhecer um pouco mais sobre a perspectiva de Iamamoto? Além dos inúmeros artigos e livros que você pode ler, indicamos também o vídeo a seguir, pois são falas claras sobre conceitos relacionados à prática do assistente social. PALESTRA com a professora Marilda Villela Iamamoto. MClip. [s.d.]. Disponível em: <https://mclip.tv/video/zDOnXgCH_1Y/palestra-com-a- professora-marilda-villela-iamamoto>. Acesso em: 20 ago. 2019. Iamamoto (2001) coloca que, antes de adentrar em uma discussão sobre os elementos que integram o processo de trabalho no serviço social, é preciso compreender a consolidação do serviço social enquanto um trabalho, de fato. Para ela, o que consolidou o serviço social como uma profissão no Brasil foi a necessidade social da ação. Em tese, o serviço social só surge e se consolida como uma profissão (e não como uma caridade) porque apresenta utilidade social. Essa utilidade reside no fato de que esse profissional passa a administrar as expressões da questão social. De tal maneira, compreender o serviço social, inscrito em processos de trabalho, requer, essencialmente, entendê-lo como resultado da sociedade capitalista madura e consolidada. Observação É considerada um marco na consolidação do serviço social enquanto profissão no Brasil a criação das primeiras escolas em São Paulo, no ano de 1936, e no Rio de Janeiro, em 1937. A partir da consolidação do serviço social como profissão, os seus agentes são movidos a identificar modos de atuar diante das demandas que lhes são apresentadas. Os assistentes sociais foram amadurecendo teoricamente e foram constituindo métodos diferentes de intervenção. Isso corresponde ainda a entender que nessa construção da intervenção profissional há também a consolidação de uma imagem da profissão, ou seja, como os profissionais compreendem o seu fazer profissional. A noção de processo de trabalho do assistente social incorpora, assim, a história da profissão e da sociedade em que estamos inseridos e na qual nos movimentamos. 28 Unidade I Assim, tendo tais colocações arroladas, Iamamoto (2001) fortalece a noção de que o serviço social é, sim, um trabalho, e, como trabalhadores, estamos inseridos em processos de trabalho assim como os demais profissionais e as demais categorias laborais. Como seria então um processo de trabalho do serviço social? Lembrete Em Marx, o processo de trabalho é compreendido como composto por meio de matéria-prima, instrumentos de trabalho e o trabalho. Todo trabalho, em Marx, resulta em um produto. Parte-se da noção de matéria-prima, também chamada objeto de intervenção. De acordo com Iamamoto (2001), todo processo de trabalho envolve um objeto sob o qual incide a ação. No nosso caso, os assistentes sociais, nosso objeto ou matéria-prima é a questão social e as suas múltiplas formas de expressão, ou como a autora sintetiza: “A insistência na questão social está em que ela conforma a matéria-prima do trabalho profissional, sendo a prática profissional compreendida como uma especialização do trabalho, partícipe de um processo de trabalho” (IAMAMOTO, 2001, p. 58). A matéria-prima ou o objeto sempre será aquele sob o qual incide a ação do assistente social. Mas aí você pode pensar: e no caso do serviço social, que atua em várias políticas sociais? Como pensar o objeto ou a matéria-prima? A autora coloca que a questão social possui múltiplas formas de expressão, portanto, pode-se encontrar e atuar junto a um rol amplo de configurações que podem ser assumidas pela questão social. Para melhor conhecer essa matéria-prima ou esse objeto, é basal ao assistente social conhecer e analisar a realidade em que atua, para que ela deixe de ser “[...] mero pano de fundo para o exercício profissional, tornando-se condição do mesmo, do conhecimento do objeto junto ao qual incide a ação transformadora ou esse trabalho” (IAMAMOTO, 2001, p. 61). Entender a realidade pressupõe conhecer como os sujeitos reais e concretos vivem a questão social em seu dia a dia. Interessante ressaltar que a questão social não pode ser resumida à pobreza. Aliás, como diria Paulo Netto (2001), a questão social possuía múltiplas formas de expressão, as quais vão sendo alteradas ao longos dos anos. Aliás, o autor destaca que perante as mudanças da sociedade, o que temos são novas configurações à questão social, novas manifestações. Porém, é preciso ressaltar que conhecer essas novas expressões é fundamental para que seja possível compreender melhor o objeto ou a matéria-prima, e que o profissional possa intervir sobre ela. Antes de dar andamento à discussão sobre a matéria-prima, observe a notícia a seguir: 29 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Estudo mostra que adolescentes de faixas carentes estão mais obesos Figura 1 Adolescentes residentes no Brasil, de faixas mais pobres da população, estão mais obesos e ainda sofrem de desnutrição. É o que mostra estudo feito por pesquisadores da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde da Fundação Oswaldo Cruz da Bahia (Cidacs/Fiocruz Bahia). Esta é a primeira vez que uma investigação como essa é feita no Brasil, observando fatores socioeconômicos associados à desnutrição e à obesidade. Para fazer o trabalho, os técnicos utilizaram dados das edições de 2009, a primeira, e da mais recente, de 2015, da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (Pense), desenvolvida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O trabalho investiga doenças crônicas não transmissíveis entre adolescentes escolares brasileiros. O estudo comparou os índices nutricionais de alunos de 13 a 17 anos, separados entre os que apresentam somente sobrepeso ou baixa estatura e aqueles que apresentam as duas condições. Sobrepeso Na visão dos pesquisadores, houve aumento de sobrepeso entre os adolescentes de todos os níveis socioeconômicos e, ao mesmo tempo, também aparece nesses estudantes a desnutrição, revelada pela baixa estatura. Segundo o estudo, os adolescentes de escolas privadas têm maior chance de desenvolver excesso de peso em relação aos estudantes da escola pública, mas ao longo do tempo a diferença se reduziu. Entre 2009 e 2015, o índice de adolescentes com excesso de peso na rede privada, que era 28,7%, permaneceu inalterável, mas a taxa entre os da rede pública aumentou de 19% para 23,1%. 30 Unidade I Dupla carga No estudo, os pesquisadores identificaram que a dupla carga de má nutrição, uma característica de desnutrição e obesidade, simultâneas, atinge menos de 1% dos estudantes. Apesar disso, nem sempre uma melhoria nas condições socioeconômicas vem acompanhada de maior qualidade nutricional. “O indivíduo que tem dupla carga é aquele adolescente que apresenta baixa estatura, um sinônimo de desnutrição crônica e excesso de peso. A dupla carga pode se manifestarde três formas. Tanto em nível individual, que é o caso do nosso estudo, sendo os dois desfechos no mesmo indivíduo. Pode ser também em nível familiar, por exemplo, uma mãe com excesso de peso e um filho com desnutrição, ou em nível comunitário, onde em um mesmo local temos taxas altas tanto de desnutrição quanto de obesidade. No nosso estudo foi bem específico, com adolescente de baixa estatura e excesso de peso”, disse a pesquisadora da UFBA, Júlia Uzêda, em entrevista à Agência Brasil. Em 2009, na análise separada, o grupo que apresentou os dois desfechos de saúde, independentemente de sexo, e diferenciando entre estudantes de escola pública e privada, a simultaneidade aparece em 29 estudantes do ensino particular (0,2%) contra 185 do público (0,4%). Isso significa que a dupla carga é maior entre estudantes da rede pública. Em 2015, a taxa de dupla carga entre os estudantes de escola privada atingiu 0,3% e nos da rede pública permaneceu em 0,4%. As meninas, com 0,4%, ainda são maioria, enquanto entre os meninos ficou em 0,3%. Fatores De acordo com o pesquisador do Cidacs Natanael Silva, embora o estudo não tenha se baseado em classes sociais, há variáveis analisadas que indicaram um crescimento de obesidade, atingindo cada vez mais a população menos favorecida socioeconomicamente. Segundo ele, os alimentos processados podem ser um dos fatores da obesidade, por serem também de preços mais baixos. “Os alimentos processados acabam sendo mais baratos do que qualquer alimento natural e por terem maior aporte calórico, muitas vezes serem vendidos em grandes quantidades, mais baratos e atrativos, chamam bastante a atenção do público mais vulnerável”, disse. Além disso, foram selecionadas informações socioeconômicas de adolescentes, como escolaridade da mãe, raça, sexo e tipo de unidade escolar. Os filhos de mulheres que completaram a educação primária revelaram melhores índices de nutrição, apresentando a metade da taxa de dupla carga do que os estudantes cujas mães não finalizaram essa etapa. 31 ESTRATÉGIAS EM SERVIÇO SOCIAL Júlia Uzêda informou que há estudos comprovando que a desnutrição em período intrauterino provoca mecanismos no corpo que aparecem futuramente na vida da criança, por causa de problemas na absorção de gordura, que resultam na obesidade. “O adolescente é um público vulnerável por todas as mudanças físicas, então, quando o indivíduo tem dupla carga, ele passa a ter riscos tanto de desnutrição quanto de obesidade, por isso o nome de dupla carga”, observou. Políticas Públicas Os pesquisadores defenderam que o estudo serve para ajudar na elaboração de políticas públicas. Para Júlia Uzêda, existem fatores que não foram analisados no estudo, como o consumo alimentar e, principalmente, a qualidade dos alimentos ingeridos, mas as informações encontradas já podem servir para a adoção de medidas com o foco na qualidade da nutrição. “Muitas vezes as políticas públicas são destinadas isoladamente à obesidade ou à desnutrição e acabam tratando um e esquecendo outro. A transição nutricional tem o perfil, que é a diminuição da desnutrição, mas não deixa de existir, enquanto a obesidade e o excesso de peso aumentam. Isso muda o foco das políticas públicas”, disse a pesquisadora. Fonte: Brasil (2019). Na notícia temos uma situação em que a pobreza, a ausência de recursos financeiros para a sobrevivência de um grupo de adolescentes, resulta em problemas de saúde. Por analogia, é lícito pensar a pobreza como questão social? Sim, é lícito. Mas os problemas de saúde decorrentes da má alimentação também podem ser considerados expressões da questão social? Sim, também, assim como alcoolismo, utilização de drogas e outras situações afins que podem ser consideradas também expressões da questão social. Ao assistente social que atua com esse problema social, seria importante o amplo conhecimento sobre ele, visando, assim, ampliar as informações possuídas sobre como as pessoas concretas vivenciam os problemas sociais. A título de exemplo dessas variações das expressões da questão social, existem duas discussões extremamente importantes e que serão apresentadas aqui de forma resumida. Sanchez e Mota (2009) apresentam a utilização da entrevista para intervir junto a aspectos relacionados à saúde da população idosa. No caso, o texto mostra a ação desenvolvida dentro do Sistema Único da Saúde e que visa à internação geriátrica, sendo que a entrevista é apresentada como um meio para qualificar o atendimento a esse público. Via de regra, os idosos que são atendidos pela ação são pertencentes à população de renda regular. Nesse caso, qual seria o objeto do serviço social? A sua matéria-prima seriam os idosos, e a qualificação do atendimento a esse público seria um objetivo do assistente social. Porém, é basal compreender todo o contexto em que o idoso está inserido e vinculado. Essa leitura de realidade é importante tanto para o atendimento ao idoso, para a efetivação dos seus direitos sociais, quanto é necessária para analisar os serviços em que os idosos serão atendidos. 32 Unidade I O segundo exemplo está retratado no texto de Menezes e Silva (2017), um profundo artigo de reflexão sobre a intervenção do serviço social junto à violência homofóbica. O texto apresenta os posicionamentos do conjunto Conselho Federal de Serviço Social (CFESS)/Conselho Regional de Serviço Social (Cress) em favor da defesa dos direitos do público LGBT, e como tal ação é um grande desafio à categoria. Esse exemplo é interessante, posto que, há alguns anos, dados os preconceitos vivenciados na sociedade brasileira, dificilmente esse tipo de público figuraria como objeto de intervenção do serviço social. Em tese, à medida que os direitos do público LGBT vêm sendo conquistados, e que esse público tem se tornado visível na sociedade, também observa-se que têm crescido as manifestações de intolerância por parte de segmentos mais conservadores. Nesse sentido, o artigo apresenta uma possibilidade de intervenção do assistente social, ou seja, um objeto. Com esse exemplo, pretende-se reforçar a variabilidade da possibilidade de ação do assistente social junto às várias expressões da questão social e ainda destacar o seu caráter histórico e social. Há, portanto, várias expressões por parte do objeto de ação. Como dito anteriormente, há objeto e matéria-prima, bem como os instrumentos de trabalho do serviço social. Os instrumentos ou os meios de trabalho do assistente social serão dispositivos que o profissional irá utilizar para produzir transformação na matéria-prima ou em seu objeto de trabalho. Comportam os instrumentos ou meios de trabalho as técnicas que o profissional usa em seu cotidiano, como entrevistas, visitas, dentre outras abordagens afins. Porém, Iamamoto (2001) chama a atenção para que não tenhamos uma visão reducionista dos instrumentos e técnicas como se apenas eles fossem nossos meios de trabalho. Pois bem, sabe o que isso significa? Simplesmente indica que não podemos restringir nossos meios de trabalho ao chamado “arsenal de técnicas” (IAMAMOTO, 2001, p. 61). Veja bem, as técnicas são extremamente importantes ao cotidiano profissional. Saber realizar uma boa entrevista, uma visita domiciliar, uma reunião, são condições imprescindíveis ao assistente social, porém, reduzir os instrumentais à técnicas, restringe-se a compreensão sobre nossos instrumentais. Dessa forma, associados aos instrumentos e às técnicas, deve-se agregar também o conhecimento como um meio de trabalho, as bases teórico-metodológicas que, juntamente com os instrumentos e técnicas, integram os instrumentos, os meios de trabalho. Iamamoto (2001) e Guerra (2010) enfatizam que os instrumentos e as técnicas do assistente social são importantes, mas só ganham conotação crítica, permitindo a leitura da realidade, se houver o aporte à fundamentação teórica. Afinal, não há como o assistente social analisar e conhecer a realidade em que está atuando, conhecer o seu objeto
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