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1 João Saldanha e a ditadura: a trajetória de ‘João sem medo’ como militante político, jornalista e técnico de futebol durante o regime civil- militar Rayan Mota Brum1 RESUMO: O presente artigo tem por fim analisar a trajetória de João Alves Jobim Saldanha em suas ocupações de maior destaque dentro do cenário nacional brasileiro. Problematizam-se também as particularidades políticas o qual o jornalista estava inserido, tomando como variável importante o fato de ter sido um conhecido comunista ocupando um cargo público durante o regime civil-militar, que teve início em 1964 e seu fim em 1985. Saldanha como figura pública e popular, fora responsável por confrontar o então presidente Médici, gerando assim uma polêmica que revela muito da forma com que ‘sem medo’ encarava o período ditatorial e a forma como o governo em questão se portava. Palavras Chave: Futebol. Ditadura. João Saldanha. Copa do Mundo. ABSTRACT: This article aims to analyze the trajectory of João Alves Jobim Saldanha in his most prominent occupations within the Brazilian national scene. The political particularities in which the journalist was inserted are also problematized, taking as an important variable the fact that he was a well-known communist occupying a public position during the civil-military regime, which began in 1964 and ended in 1985. Saldanha as a public and popular figure, he was responsible for confronting the then president Médici, thus generating a controversy that reveals much of the way in which 'fearlessly' faced the dictatorial period and the way the government in question behaved. Keywords: Football. Dictatorship. João Saldanha. World Cup. 1 Formando pelo Departamento de História e Relações Internacionais – Instituto de Ciências Humanas e Sociais – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Campus Seropédica. Km 07, Zona Rural, BR-465, Seropédica - RJ, 23890000 Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: rayanbrum@hotmail.com Rayan Mota Brum 2 1. Introdução Do que se viveu e se discute, do que se aplica ao fantasioso e ao real, das táticas e pranchetas, das ações e das filosofias, a trajetória de João Alves Jobim Saldanha se destaca dentro de uma análise historiográfica quando se aborda um recorte cronológico com enfoque em um período de intensos conflitos, a ditadura militar (1964-1985). Neste ponto, a utilização das biografias se torna imprescindível, ditando a dinâmica de análise. O estudo das biografias e trajetórias tende a ser árduo, porém, não menos importante que qualquer outro, visto que, através deste modelo de escrita, podem ser construídos heróis ou vilões, portanto, para uma discussão minuciosa acerca de Saldanha, é necessário adentrar este campo de estudo, tentando distinguir o real do fantasioso, mas não descartando o segundo, pois se ali está presente, configura uma intenção do autor. Militante fervoroso do Partido Comunista Brasileiro, e nascido em Alegrete, Rio Grande do Sul, João Saldanha, ou como seria conhecido mais a frente, João Sem-Medo, faz parte de uma teia de conexões dentro do que se analisa toda uma particularidade da história nacional e, como figura pública, conseguiu transitar entre cargos que lhe conferiam certa popularidade, sendo eles o de jornalista e técnico de futebol, dando ênfase em sua passagem conturbada pela seleção brasileira durante as eliminatórias da Copa de 70. A estratégia, dentro deste artigo, gira em torno de se discutir como foi a atuação de Saldanha durante o período em que o Brasil esteve sob tutela de oficiais das forças armadas, além de elucidar também, particularidades referentes a sua forma de pensar e entender a sociedade. Para tal ação historiográfica, inúmeras fontes serão apresentadas, com ênfase, neste ponto, as biografias, que embora por muito tempo omitidas do estudo da história, voltaram a figurar em local de destaque. Enfim, à medida que a história se constituiu como uma disciplina com pretensões científicas, a biografia foi progressivamente exilada de seus domínios, o que não impediu que ela continuasse a ser praticada, em geral por historiadores "menores", ou como matéria-prima para elaboração das grandes sínteses, ou visando à construção de referências identitárias propícias á difusão de uma pedagogia nacionalista, ou, ainda, como forma de atender ao gosto de um público sempre sedento por títulos do tipo "A vida secreta de..." Contudo, tais narrativas normalmente eram menosprezadas pelos historiadores científicos, cada vez mais preocupados com o estrutural e o coletivo. Entretanto, desde a década de 1980, verifica-se uma "redescoberta", a partir de outros referenciais, desse gênero, o qual, ainda nos anos 1990, se 3 impôs, embora não sem ressalvas, como forma legítima de se escrever e de se compreender a História.2 Embora omitidas do estudo da história por anos a fio, a biografia consegue revelar de maneira eficaz pontos que merecem destaque dentro da trajetória da figura que se busca estudar. Após sua inserção no meio historiográfico de maneira menos marginalizada e como fonte plausível para análise, foi possível traçar parâmetros de pesquisa que contemplem a necessidade do historiador. Exemplos de utilização desse gênero literário na história perpassam questões de se entender o uso demasiado de vocábulos na obra, a linha de narrativa do autor, se é uma autobiografia ou não e pormenores referentes à história do biografado. No que diz respeito à maneira de se entender o gênero quando se desloca a ótica para o personagem João Saldanha, foi necessário compreender o que separava o fantasioso do real. Por se tratar de um jornalista reconhecido por se utilizar de aventuras e prosas para relatar suas vivências, o uso de suas biografias abrange uma análise de como era a personalidade de sem-medo, suas rusgas pessoais e também as memórias de sua atuação como técnico, jornalista e militante. Mesmo que alguns desses relatos soem um tanto fantasiosos, ainda assim conseguem reverberar um pouco das ideias do gaúcho e do tempo histórico no qual estava inserido. Sempre destacado pelo jornalismo como um homem de palavras ácidas e irredutível defensor de seus ideais, para que se discuta seus pormenores relacionados a personalidade e atuação, é necessário através de um levantamento histórico, entender como se deu a resistência do partido o qual fez parte por longos anos de sua vida, dentro de um destacamento temporal referente a ditadura militar e poucos anos antes do golpe em si, pois assim, será possível compreender sua atuação não apenas como militante, mas também como técnico e comunicador. Deste modo, este artigo será dividido em três partes. A primeira referente a sua militância terá como enfoque compreender a trajetória de Saldanha como membro do PCB e também a situação em que o partido se encontrava durante os anos pré ditadura militar e durante o regime, dando ênfase a visão do grupo político em relação a como agir frente aos militares. A segunda parte discorrerá acerca de sua experiência como jornalista e cronista, salientando sua popularidade, assim como sua maneira simples de 2 SCHMIDT, Benito Bisso. História e biografia. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: UFRJ, p. 187-205, 2011. 4 se comunicar com o público, característica que chamou atenção da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e que culmina na terceira e última parte do artigo, orientada a argumentar sobre sua breve passagem como técnico da seleção brasileira durante a ditadura, momento este que reflete questões da sociedade brasileira em seus aspectos culturais e políticos. 2. O militante Os conflitos e discussões relacionadosa uma esquerda combatente e comunista e, a uma direita militar em conjunto com um plano econômico de cunho empresarial, nunca cessaram dentro do período conhecido como ditadura militar e, embora o Partido Comunista Brasileiro não fosse um entusiasta da luta armada, ainda assim sofreram com decretos que o obrigaram a agir de maneira precavida, visando a integridade física de seus integrantes. “Após ter jugulado a guerrilha urbana e rural, o poder militar decidiu tomar a mesma providência em relação ao PCB, mesmo ciente de que este partido era infenso à luta armada.” 3·. Dentro desta perspectiva, é possível buscar uma análise das ações e particularidades deste grande grupo, que nesta época em questão, se apresentava no cenário nacional de modo imponente, conquistando o posto de segundo maior partido brasileiro, quando se buscava como referência as variáveis, número de membros e popularidade, configurando assim, um enorme partido de massa. Inserido em diversos setores da sociedade, o ‘partidão’ se encontrava em espaços e veículos coletivos, dentre os quais a igreja, o jornal, e os movimentos estudantis. Fundado em 25 de março de 1922, o PCB ou “partidão”, como iria ser conhecido, iniciou sua trajetória anos após a revolução Bolchevique. Inspirado no leninismo e na luta contra as problemáticas econômicas e sociais oriundas do capitalismo, se estabeleceu no Brasil através de ações pontuais, como a aproximação para com as massas, a luta sindical e o embate com as grandes empresas. Embora se encontrasse dentro de um espectro político marcado pela luta armada e confrontos violentos, tal partido não possuía um histórico revolto, mantendo-se assim, até mesmo durante os anos em que as forças armadas estavam na dianteira do país.4 3 BANDERA, Vinicius. "A ditadura caça o pcb: um recorte do período autoritário pós-64." Cadernos Cedem 3.1 (2012): 38-72. 4 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987). 5 Os dias que antecederam o golpe cívico militar decorreram normalmente uma vez que poucas pessoas tinham total ciência dos acontecimentos que viriam em breve, enquanto o jogo político ia se desenrolando, os membros e simpatizantes do PCB estariam fadados a um período de intensa luta e em muito dos momentos, a entrega à clandestinidade por anos a fio, isso quando não desapareciam sem deixar rastros, atitude essa que não era inédita, visto que o grupo político não gozava da simpatia de Getúlio Vargas durante o período em que o mesmo foi chefe de Estado. Essas particularidades, sempre rechaçadas por um temor proveniente do alto escalão, de que ações comunistas prejudicassem o desenvolvimento do governo, justificando-se por uma violência inerente da ideologia, nunca foram postas a prova pelo PCB, que se mantinha distante do uso de armas. 5 Por muitos anos, mais precisamente de 1946 a 1964, o Partido Comunista Brasileiro foi o maior expoente da esquerda dentro do Brasil, muito em detrimento do grande foco em industrialização como marco da era Varguista. Embora tenha tido como fundamento uma arbitrariedade que pudesse controlar de maneira conjunto burgueses e operários, Vargas acabou por gerar um efeito inverso, alçando o trabalhador a um patamar que iria se estabelecer de maneira sólida, tendo como características não só a força de trabalho, mas também a singularidade de um cidadão pensante e organizado. Não apenas movido pelo grande número de operários nas grandes capitais brasileiras, o partido marxista também foi se desenvolvendo de acordo com seus posicionamentos políticos dentro do âmbito nacional na história, ora apoiando presidenciáveis ora os atacando, gerando em certos momentos imbróglios até mesmo dentro da alta cúpula do grupo. Para além do já citado, o partido também foi berço de intelectuais, que ou integravam o partido ou eram simpatizantes da causa, de áreas distintas, cito: Oscar Niemeyer (Arquiteto), Jorge Amado (Escritor) e Saldanha (Jornalista). Essa grande inserção na sociedade ocasionava popularidade e prestígio ao perseguido partido, no que se tem como referência o povo brasileiro.6 Permeado por grandes discussões internas, o PCB chega por volta de 1963 como um dos maiores partidos brasileiros, organizado, forte e com um significativo poder de decisão e influência dentro do cenário político nacional, e como apontado por Gorender, 5 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987). 6 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987). 6 embora tenha tido destaque durante os anos 40, foi apenas na década de 60 que alçou vôo para atingir um local privilegiado nas discussões populares. Naquele ano, o PCB teve o momento de maior poderio em sua história. O período de vida legal 1945 -1947 foi luminescente, assinalado pelos êxitos eleitorais. Mas se tratava de um brilho enganoso, que disfarçava a sustentação fracamente estruturada nas massas operárias e a penetração insignificante no meio camponês... Já no período de 1958 – 1964 converteu- se numa organização com capacidade decisória, apesar da quase ausência de expressão eleitoral, uma vez que não conseguiu recuperar o registro de partido legal.7 A partir deste ponto, a ótica de análise se restringe a observar a atuação do partidão durante os anos de ditadura abordando questões como: A preferência pela oposição não armada, a clandestinidade e os trâmites políticos para que se combatesse o período de represália, além de neste mesmo campo de debate, buscar entender qual era o comportamento dos membros, mais adiante entrando no âmbito da vivência de João Saldanha dentro da militância. Com o avanço dos planos idealizados pela direita militar brasileira, a primeira reação da esquerda foi ir à busca de refúgio, visto que por um grande período de tempo já sofriam com a perseguição, sendo esta direcionada de modo mais contundente aos comunistas. Seguindo uma tática de expurgo, e se apoiando não apenas em discursos que selavam o destino dos marxistas atribuindo-lhes as características de terroristas e inimigos da nação, as forças militares também conseguiam respaldo no grande empresariado, que observava com bons olhos o golpe, principalmente quando tinham como premissa o crescimento econômico individual. Além disso, a atuação empresarial durante o período não se restringiu exclusivamente ao apoio, verificado em iniciativas como a Operação Bandeirantes, mas também no favorecimento aos empresários de forma direcionada ou mediante as políticas estatais e o autoritarismo do regime, do qual as empresas eram muitas vezes beneficiárias. 8 Além desta política, também foi comum a busca por demonizar os sindicatos, “De 1964 a 1970, o Ministério do Trabalho destituiu as diretorias de 563 sindicatos, a 7 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987).p.46 8 CAMPOS, Pedro Henrique Pedreira. Empresariado e ditadura no Brasil: o estado atual da questão e o caso dos empreiteiros de obras públicas. Revista TransVersos, n. 12, 2018. 7 metade deles de trabalhadores da indústria”9.Dentro desta perspectiva, pode se esmiuçar como a luta foi sendo minada pouco a pouco com o Ato Institucional de número 2, extinguindo os partidos políticos, e criando um cenário partidário bilateral, o que facilitava o controle estatal. No decorrer dos acontecimentos, talvez o que tenha confirmado uma amplitude militar e claro, um avanço da direita conservadora e consolidação da ditadura, sem dúvidas diz respeitoao Ato Institucional 5, popularmente conhecido como AI-5. Ainda que atacada de modo severo, a militância de esquerda não foi combatida por completo, alguns por medo cessaram sua luta, para outros, o destino foi o exílio, sendo este, um local que intensificou de certo modo uma produção teórica, mas para uma grande parcela de homens da esquerda, a organização na clandestinidade ditou o ritmo do que seria uma resistência, com algumas ressalvas, como a de Saldanha, o anonimato não fizera parte de sua vida, visto que utilizar-se de sua popularidade com o público seria benéfico para o decorrer do movimento de resiliência. Quando se pensa em uma atitude de defesa, o Partidão agiu para que seus dirigentes fossem transferidos para o exterior, obviamente, de modo forçado, visto que o aparelho de Estado já se apresentava de maneira muito brutal, e mesmo atuando de maneira resguardada e se colocando como um partido pacífico, a indagação que deve ser feita engloba as motivações de se optar pela perseguição e, em muitos casos, o assassinato de membros do comitê central. Tal questionamento é desvelado por Vinicius Bandeira. Quanto à questão colocada, há duas hipóteses que buscam desvendá-la: uma política e outra ideológica. A primeira é de consistência mais frágil e é defendida, por exemplo, por João Falcão e Marco Antônio Coelho. Para Falcão, a repressão decidiu voltar se contra o PCB, sobretudo contra sua direção, pelo motivo deste partido ter se destacado, com “audácia e desenvoltura” no apoio ao MDB nas eleições de 1974 . Marco Antônio por sua vez, considera que foi um texto seu, intitulado “Apertar o cerco” e tornado editorial da Voz Operária, que motivou a que o PCB se tornasse “a bola da vez” (25), pelofato de o editorial considerar que a vitória do MDB nas eleições de 1974 representava odeclínio do regime, decorrente da “[...] importância da unidade de ação de todas as forças antifascistas”.Marco Antônio tem também outra hipótese, essa mais plausível, segundo a qual a deliberação de se caçar o PCB deu se por influência dos generais “linha 9 9 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987).p.141 8 dura”, buscando, com isso, criar um ambiente de recrudescimento do regime, o que seria um estorvo ao projeto de abertura, o qual eles refutavam.10 Esta dicotomia direita e esquerda apresentava um abrangente embate entre diversos setores da sociedade, e é possível pontuar disputas não apenas nos campos econômico e social, mas também cultural, quando se observa a “brasilidade”. O termo anteriormente citado, que faz bem em reunir inúmeras grandezas, salienta uma que sempre fez parte do confronto político, o poder popular. Quando se observa atividades referentes a questões do povo, o futebol e o jornalismo ganham um espaço de destaque, e estiveram presentes durante toda a duração da repressão militar revelando em inúmeros momentos, a tônica cujo o governo buscava estabelecer sua imagem. A questão da “brasilidade”, a meu ver, é uma categoria fundamental para explicar boa parte da tradição cultural comunista-pecebista. Essa categoria ideológica difusa, disputada à esquerda e à direita desde ao menos os anos 1930, pautou a busca de uma identidade nacional própria que, na visão dos nacionalistas de diversos matizes, deveria temperar os efeitos deletérios do desenvolvimento capitalista. Se para a direita intelectual tratava-se de defender a tradição e a especificidade da nação como aglutinadora da sociedade em torno do Estado nacional autoritário e tutelar (Beired, 1999), para a esquerda, a brasilidade era a afirmação de uma identidade nacional- popular e de um idioma cultural comum a várias classes sociais que pudesse enfrentar o imperialismo e seus aliados internos. 11 Pelo fato do PCB ser contrário a organização de guerrilhas, e do embate com armas para que assim fosse uma saída a represália, essa disputa hegemônica dentro do campo teórico e cultural, era de suma importância, é dentro deste ponto que as grandes figuras se destacam como pilares para uma conquista de apoio da grande massa. As disputas não se resumiam apenas a direita e esquerda simplesmente, isto se responde pelo fato da esquerda, principalmente a brasileira, possuir um caráter fragmentado, por vezes pautado pela diferença de entendimento do momento histórico e também, a desconformidade no que diz respeito a como atuar dentro deste espaço de tempo, gerando, portanto, aqui, muitas siglas como: PCB (Partido Comunista Brasileiro), PCdoB(Partido Comunista do Brasil) e PCdoB AV(Partido Comunista do Brasil Ala Vermelha), o que revela problemáticas estruturais dentro do mesmo espectro político, pois acabavam por enfraquecer a luta por uma unidade de resistência. 10 BANDERA, Vinicius. "A ditadura caça o pcb: um recorte do período autoritário pós-64." Cadernos Cedem 3.1 (2012): 38-72. 11NAPOLITANO, Marcos. No exílio, contra o isolamento: intelectuais comunistas, frentismo e questão democrática nos anos 1970. Estudos Avançados, v. 28, n. 80, p. 41-58, 2014. 9 À exceção da maioria do Comitê Central do PCB, a esquerda considerou a falência do caminho pacífico um fato provado. Seguia-se que a luta armada, não travada contra o golpe de direita, tornava-se imperativa quando os golpistas já tinham o poder nas mãos. Se tal raciocínio se cristalizou em axioma, nem por isso unificou a esquerda, À questão da luta armada se acrescentavam outras, concernetes aos antedecentes partidários e doutrinários, a influências teóricas de origem nacional e internacional, pressões de países socialistas, limitações regionais e etc. O cruzamento destas e outras variáveis explica a proliferação de tantas siglas na esquerda daqueles anos.12 Após a discussão de como foi a atuação do PCB e da esquerda no geral, adentra- se o momento de se entender como foram feitas as ações do personagem o qual este artigo busca esmiuçar características mais concretas, neste ponto, voltando a análise para seus feitos como militante do PCB. Nascido no Rio Grande do Sul, mas carioca de coração, como se autodenominava, Saldanha, desde muito jovem fez parte de disputas políticas, sendo a primeira, herdada pelos pais e, ainda que garoto não conseguisse distinguir muito bem do que se tratava, acabou envolvido na rivalidade entre chimangos e maragatos. Toda a família Saldanha esteve envolvida, de uma forma ou de outra, na beligerância entre chimangos e maragatos. João tinha apenas seis anos quando, com os irmãos mais velhos, Maria e Aristides, andou trazendo armas e munições para os revoltosos, escondendo-as sob a roupa aparentemente inocente de criança. 13 Ainda na juventude, mais precisamente aos 14 anos, Saldanha chega ao Rio de Janeiro. Filho de Gaspar Saldanha, um conhecido apoiador de Getúlio e, agora, dono de um fórum na cidade maravilhosa, este se tornou um homem com um poder financeiro considerável. Ainda que de família rica, João nunca se deixou levar pela condição econômica de seus familiares e, no ano de 1935, se filiou ao PCB, junto de seu irmão. Saldanha, mais à frente, após a morte de seu pai, herdou parte das riquezas do genitor, mas resolveu não utilizá-las, mostrando desapego aos bens materiais e maior ligação a sua ideologia comunista, destinando o dinheiro à luta pela causa que defendia. Devido ao seu comportamento, se pode estabelecer uma crítica acerca de como esta figura histórica era vista por personagens ditos anticomunistas, munido de uma personalidade forte e grande apreço a sua causa, seria inevitável investidas contrárias à Saldanha e ao que representava, assim como, talvez, uma necessidade de retirá-lo de funções de prestígio social.12 GORENDER, Jacob. "Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada."São Paulo: Ática (1987)p.79 13 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia.Rio de Janeiro. Relume Dumará, 1996. p.13 10 Pode parecer uma romântica inverossímil assertiva, como tantas de João Saldanha, mas, pelo menos neste caso, não há como duvidar: o filho do “doutor” Gaspar jamais ligaria a mínima para o dinheiro ( segundo revelação feita em 1990 pelo dirigente comunista João Avelino, com a morte do pai em 1960 João Saldanha deixaria o cartório herdado por conta de Aristides e passaria sua parte às mãos de Álvaro Ventura, tesoureiro do Comitê Central do PCB).14 Os anos de Saldanha na militância começaram cedo, e até mesmo sua escolha de curso optando pela faculdade de direito, já revelava um ponto de destaque de sua personalidade, uma vez que se tratava de um curso que potencializava e habituava discussões políticas. Foi durante estes anos de faculdade, que começara a se aproximar mais ainda de integrantes do partidão, resultando na expulsão da instituição de ensino devido aos posicionamentos de combate a polícia, que durante um período de forte repressão, invadiu o prédio da academia. Disposto a lutar por seus ideais, já na formação se mostrava um militante enfático. No entanto, o acontecimento de maior contundência, nos primeiros anos de Saldanha como militante e membro do PCB, foram na Guerra de Porecatu. O conflito, no norte do Paraná, representou uma disputa entre posseiros e grileiros e foi símbolo de uma das primeiras organizações de trabalhadores rurais da região sul. Neste embate, o PCB foi responsável por mobilizar grandes nomes e através de tentativas de aproximação, apoiaram a causa dos posseiros, Saldanha, neste dado momento, atuava como uma espécie de líder político, prestando assistência a resistência nos setores de organização, arrecadamento e cursos de formação, visando conscientizar os camponeses que buscavam resistir ao avanço dos grileiros, os quais utilizavam de pistoleiros, jagunços e ainda gozavam de um grande apoio vindo do governador. Os Gajardoni buscam aproximar o PCB na luta dos posseiros. Para isso era preciso que o partido conhecesse a situação dos posseiros; Manoel Jacinto vereador de Londrina pelo PCB foi convidado a visitar os posseiros. Foi através desta visita que o vereador enviou um relatório ao Comitê Central do partido, que logo após passa a se envolver diretamente no conflito da região.15 14 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia.Rio de Janeiro. Relume Dumará, 1996. p.17 15 CORREA, Vanessa. Porecatu: uma análise sobre as primeiras organizações camponesas no município de Porecatu e a formação de sindicatos no norte do Paraná (1940-1960). 2017. 11 Dentre os nomes de peso, enviados para o território em questão, Saldanha era tido como destaque. Embora pouco comentada, a guerrilha de Porecatu foi responsável por um marco na história da região, e das discussões acerca de posses de terra, ainda que as notícias e relatos do período tenham sido censurados, a memória de Saldanha permanece viva no acontecimento, e destaca muito da personalidade e seus anseios acerca de reforma agrária, e luta do trabalhador rural. O objetivo do levante de Porecatu era formar uma frente contra os “latifundiários”, inclusive com o apoio da burguesia nacional, a favor de uma reforma agrária radical. Nesse episódio o PCB teve uma atuação direta, destacando-se Manoel Jacinto Corrêa e Flavio Ribeiro como organizadores. Inúmeros personagens da Direção Nacional do PCB foram ao local do conflito devido a sua repercussão, como Gregório Bezerra e João Saldanha. Segundo Izaurino Patriota, o episódio só “não teve divulgação maior, porque a censura não permitiu”. 16 Durante seu período como membro ativo do Partido Comunista, colecionou diversos momentos de atuação dentro de uma grande gama de setores do movimento político, dentre os destaques, a facilidade em transitar para o exterior, utilizando de diplomacia para denunciar crimes da ditadura, no período Vargas e militar. Além disso, sua atuação dentro do jornal do povo e o período como Secretário Geral da União da Juventude Comunista. Embora fosse um personagem reconhecido, nunca deixou de sofrer perseguições mediante sua posição ideológica. Além de uma já consolidada vivência no “partidão”, não se contentava em se acomodar, fazendo viagens para que assim pudesse estudar o Marxismo-Leninismo fora do Brasil, bebendo de inúmeras fontes que guiavam as ações vermelhas no mundo. Ainda que extremamente ligado às causas políticas, mantinha seu lado de amante do futebol bastante vivo até mesmo em sua atuação como militante, sendo responsável por organizar torneios esportivos que, além de compartilhar e promover o lazer disseminavam as ideias comunistas pelo Brasil. Sua vida, de forma geral, nunca se afastou de sua militância. Embora dificulte uma separação em setores de análise, no entanto, como uma grandeza contemplada por este artigo, a militância, vai ser algo visto em todos os aspectos da vida de Saldanha, partindo da premissa que este sempre utilizou de suas ocupações para reivindicar seus 16 PRESTES, Anita Leocadia. Comunistas no Paraná (1945-1964). Rev. Sociol. Polít., Curitiba,v. 17, n. 33, p. 215-219, jun. 2009 12 anseios e ideais, assim, ratifico que neste primeiro momento, o foco esteve em embasar seus primeiros anos de atuação, contextualizando sua figura atrelada ao PCB, e a situação do partido frente à ditadura. Conseguindo conciliar sua vida como militante, em conjunto de suas muitas outras ocupações, Saldanha se tornou uma figura um tanto emblemática em uma área específica, a do jornalismo, mais precisamente o jornalismo esportivo, sendo responsável por crônicas, artigos e colunas, que talvez tenham sido sua maior forma de expressão dentro dos anos em que resistiu ao processo de perseguição aos comunistas e também a própria censura. 3. O jornalista e cronista O jornalismo sempre esteve presente no imaginário brasileiro, em diversos setores da comunicação, seja como mecanismo de entretenimento, informação, ou investigativo. A sua inserção dentro do campo social, não é realizada apenas de maneira espontânea, mas com um ou mais objetivos previamente estudados pelo autor de uma matéria, ou pelo grupo o qual pertence. Dentro dessa ótica de análise, é possível observar o quanto um individuo pode exercer, de diferentes maneiras, uma influência no leitor ou telespectador de acordo com o que produz. Neste ponto, a figura de Saldanha em muito se destaca, visto que, foi autor de crônicas, jornalista esportivo, e para, além disso, um militante da primeira palavra ao ponto final. Trazendo uma tônica de enfrentamento aos seus trabalhos, foi responsável de maneira implícita e explicita, por esmiuçar as problemáticas oriundas de um regime autoritário e violento para com personagens da oposição. O jornalismo só existe como profissão e tem uma função na sociedade, porque trabalha para fornecer à população informação que contribua com o desenvolvimento de sua cidadania. Essa característica constitucional do jornalismo faz com que ele tenha entre os seus fundamentos principais elementos como independência, o compromisso com a verdade, a lealdade com os cidadãos e o dever de apresentar as notícias de forma proporcional, entre outros apontados por Kovach e Rosenstiel.17 As produções literárias e a atuação em diversos setores da comunicação de Saldanha foram ferramentas de luta, assim como não deixavam de revelar seus ideais 17 PERDOMO, Nidiane Saldanha. A função social do jornalismo no mercado de notícias.Trabalhode conclusão de curso. Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Rio Grande do Sul. 2015 13 claramente enviesados para o lado da esquerda comunista, sendo isto, feito de maneira transparente, ainda que na ditadura militar. Entender esta dinâmica contempla entender, mesmo que de maneira não completa, sua vivência como figura de combate a repressão. Saldanha sempre foi um adepto da leitura, e ainda garoto, já se mostrava um desenvolto comunicador, e foi por este caminho, que trilhou toda sua trajetória até conquistar espaço nas grandes mídias brasileiras. O início de sua carreira foi de maneira um tanto tragicômica, em 1945, antes das eleições de Dezembro, o então clandestino PCB conseguiu ser legalizado, e Saldanha, membro e militante do partido, resolveu por estudar História na Europa, mais precisamente Paris. Mal ele sabia que em 1947, o ‘partidão’ retornaria aos anos de marginalização. Aqui, vale destacar o ímpeto do sujeito em ir atrás de uma temática que conseguisse dialogar com seus anseios sociais, e nisso, a História exerce um papel de destaque. Necessário apontar também, o fato de que foi até a França, conhecido berço da escola dos Annales, que na década em questão se mostrava uma forte corrente historiográfica e antro de intelectuais das áreas das ciências humanas, ainda que tal afirmação carregue um forte eurocentrismo, para o recorte cronológico frisado, significava um grande prestígio. É dentro desta viagem em particular, que Saldanha tem seu primeiro contato com uma ocupação que o ajudaria a se tornar um personagem do jornalismo brasileiro. Que tal viajar pela Europa, visitando ruínas de guerra, prisões nazistas, campos de concentração, e depois transformar tudo isso em reportagens para a agência de Aldo? – Como Jornalista? – perguntou Saldanha. – Claro, como jornalista. – Mas eu não entendo nada de jornalismo. Não era preciso, explicou Sandrino. Bastava ver e contar. 18 Seus anos iniciais se resumiram a viagens por territórios arrasados pela guerra, contando suas vivências como correspondente. Foi apenas em 1947 retornando ao Brasil, que começou a exercer sua função em território nacional, um tanto já polida pelo exterior, começando na Folha do Povo, jornal esse, de esquerda e ligado ao PCB. Além da Folha do Povo, seu primeiro jornal, João também fez parte do corpo profissional de outros meios de comunicação, como a Rádio Nacional, a Rádio Guanabara, o Jornal Última Hora, a Revista Esportiva Facit na TV Rio, a TV Globo, assim como a Rádio Globo, a Tupi e o Jornal do Brasil, para que mais a frente, próximo de sua morte, também compusesse a lista de jornalistas da TV Manchete para a cobertura da Copa de 18 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia. Rio de Janeiro Relume Dumará, 1996. p 21 14 1990 em Roma. A partir destas informações, podemos iniciar um estudo acerca de seus artigos, crônicas e claro a visão da imprensa, durante os anos referentes a ditadura militar, período este marcado pela censura. Nos anos de 1949 até 1954, João, viveu na clandestinidade, ainda que não fosse um alvo primário, era um homem condenado a prisão, sendo procurado pela repressão e indiciado a 5 anos de xadrez. Com uma produção escrita que já começava a ganhar proporção, principalmente pelo o que andava relatando na Folha do Povo, ‘sem medo’ já tinha uma inclinação a cutucar tudo que lhe causava incômodo social, e foi com as palavras que acabou mostrando seu lado mais incisivo no momento de obter um impacto favorável a seu pensamento quando se discute política. Saldanha, durante toda sua carreira, foi um homem da esquerda, e através de suas crônicas, manifestava seu lado comunista, ora de modo sutil, ora bastante escancarado, e como sempre fora um contador de histórias, se utilizava da escrita em modelo de prosa, pra que pudesse expor algumas particularidades do Brasil, principalmente em época de censura e forte controle dos militares, em uma dessas muitas histórias contadas, mais especificamente na crônica “O Cristo”, João revela como era difícil no Brasil, durante o governo de Dutra, entrar ou transitar com qualquer objeto que pudesse remeter ao comunismo. Traçando aqui um paralelo com o momento em questão, pode se observar o quanto foi criado no imaginário da população, a ideia de inimigo vermelho, sendo este, um dos pilares da orientação ideológica da ditadura civil- militar brasileira. Mas eu estava com um problema sério, que veio desde a China. Era uma lembrança da viagem, um baita busto do Mao Tsé-Tung. Sei lá. Ainda era o Dutra o governo do Brasil. Dutra tinha manifestado sua formação de direita várias vezes. E com muito vigor. E eu estava achando que o busto não seria bem recebido no Brasil pelas autoridades policiais e aduaneiras. Eu tinha andado metido nas encrencas da UNE e... sei lá. Falei com o Jorge e ele tentou me convencer do contrário19. Uma particularidade destas análises, e do próprio jornalismo, é que para entender a relação de Saldanha com a repressão, é possível não apenas beber de seu material escrito, mas também do escrito por outros jornalistas, e claro, observar de maneira atenta as manchetes de jornal da época, principalmente quando se avalia sua 19 SALDANHA, João. Futebol & outras histórias. São Paulo Editora Record, 1988. 15 breve passagem no cargo de treinador da seleção brasileira, mas isto é assunto para ser discutido mais a frente. Para além do que se utiliza de caneta e papel, a televisão também foi local de destaque para João, visto que aos poucos esse meio de comunicação, ainda novo para o século passado, foi conquistando seu espaço no imaginário do povo brasileiro, e foi nesse momento, que a figura que não se limitava a meias palavras, e com um vocabulário popular, caiu nas graças do telespectador nacional. Foi através deste jogo de vocábulos, os quais iam se tornando entendíveis pela população, que ‘sem medo’ foi se aproximando mais e mais do público, e atuando em diversos meios de comunicação, dando destaque nesse momento a Globo, que embora “favorável” ao regime, possuía inúmeros comunistas contratados. Saldanha conseguiu emplacar termos, explicitar problemáticas, e falar de uma de suas maiores paixões, o futebol, de modo a envolver o cidadão não apenas no esporte, mas em outros aspectos culturais e sociais o qual estava inserido. A expressão “na zona do agrião” é uma gíria do futebol, que se refere à grande área e cuja criação é creditada a João Saldanha. O significado da expressão está relacionado ao cultivo do agrião, uma vez que a hortaliça deve ser plantada num terreno que retém uma grande quantidade de água e no qual as pessoas precisam se mover com cuidado.20 As críticas de Saldanha não se resumiam apenas a denunciar o regime, mas também iam de encontro a tudo que lhe causava certo repúdio, chegando neste tópico, é possível observar certa aversão por parte de João, quando se discute as tentativas de manipulação no futebol, sejam elas de maneira econômica, ou até mesmo a partir da utilização da força, algo corriqueiro, quando se desloca a ótica para um Rio de Janeiro repleto de contraventores, dentre eles, Castor de Andrade, responsável por histórias icônicas no meio futebolístico e fora dele, e por uma em particular com ‘sem medo’ e Manga, então goleiro do Botafogo em 1967. Em uma final de campeonato carioca, disputada entre Botafogo e Bangu, desconfiado de intervenções externas por parte de Castor, João acusou Manga de suborno, nesse entrave, podemos ver muito da personalidade do jornalista, confrontando as ações de um homem de bastante poder no Rio de Janeiro, que era o bicheiro Castor que era responsável por desaparecimentos e mortes portoda Guanabara. 20 Hoje na TV”. In: O Globo, 1966 – 1967 16 O comentarista João Saldanha, com um tiro que atingiu o chão, impediu, segundo alega, que o goleiro Manga o agredisse, na tarde de ontem, na sede do Botafogo, no Mourisco, inconformado que estava o jogador do Botafogo com as insinuações de subôrno feitas pelo radialista domingo passado na televisão. O incidente, considerado sumamente desagradável pelo presidente do clube, desembargador Nei Cidade Palmeiro, ocorreu pouco antes do inicio do Jantar da Vitória do Botafogo, para o qual o comentarista não havia sido convidado, segundo o presidente alvinegro. Depois do jantar, Manga dirigiu- se ao 10° Distrito Policial, onde registrou o fato21 O protagonismo de Saldanha por onde passou, mas principalmente pelo futebol, talvez possa ser atribuído também ao fato de ser um grande defensor do que hoje é conhecido como futebol arte brasileiro, tal maneira de praticar o futebol, se espelhava muito na intensidade do craque do time, e a ele era destinada toda a pompa. João, seria um dos maiores entusiastas dessa questão, e não deixaria de apresentar tal posicionamento em suas colocações públicas. Estilo à parte, muito do êxito de João Saldanha, como colunista de jornal e comentarista de rádio, está numa posição de que ele assumiria em qualquer circunstância: ao craque tudo, ao cartola nada. Se houve na História de nosso futebol algum momento em que o dirigente teve mais razão que o jogador, ou João Saldanha absteve-se de comentá-lo ou descobriu um modo de dizer que pensando bem, o certo era mesmo o craque. 22 A carreira de Saldanha como jornalista, sempre irá se misturar com a sua como técnico, e claro com o futebol, muito pelo fato do jogo das 4 linhas ser uma manifestação popular, tal esporte, por exercer um grande impacto na sociedade, mesmo em momentos de repressão, se transforma em inúmeros ocasiões, em ferramenta de resistência, ou até mesmo de controle, quando se analisa de maneira distinta, pontos de vista antagônicos. Assim como Saldanha se utilizou de sua eloquência e conceito no âmbito esportivo, o governo ditatorial brasileiro também buscou obter sucesso através de massivas campanhas de apoio à seleção e ao futebol em si. Para além do aspecto de figura pública e de instrumento do governo, o futebol também habita o imaginário do cidadão brasileiro, onde o jogador se torna um exemplo de perseverança e ascensão social. O futebol seria entendido como uma das possibilidades do brasileiro sair da posição de mero objeto da ordem para se tornar um sujeito social, "de ninguém se tornar alguém", desta forma, o indivíduo alcança sua ascensão e 21 Correio d Manhã registra o dia em que houve os disparos (Arquivo / Correio da Manhã) 22 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia.Rio de Janeiro. Relume Dumará, 1996. P.58 17 afirmação dentro da sociedade transformando-se em um ator ativo no direito de ordenar o mundo. Inclusive, como nos lembra Luís Cláudio Figueiredo: "(...) a carreira de jogador de futebol é atualmente uma das vias régias para uma passagem das condições de mero indivíduo para a condição de pessoa (..)" O futebol no Brasil não deve ser considerado apenas como uma evasão da vida real, afinal as práticas lúdicas por ele engendradas ultrapassam esses limites invadindo o tempo "sério" da vida. Ele opera conexões estruturais complexas, que abrangem desde as camadas mais humildes da população brasileira até as mais altas.23 Através de toda sua produção na televisão, no rádio e nos jornais, Saldanha conquistou grande apreço da população, nos primeiros anos de ditadura, foi um homem que além de nunca negar ser comunista, obteve papel de destaque e ressoou sua voz por todo Brasil, porém, foi quando se tornou técnico da seleção brasileira, em 1969, que conseguiu conquistar um local deveras importante na sociedade, e que lhe permitia não apenas denunciar os crimes cometidos pelo regime, mas denuncia-los no exterior, como um personagem mundialmente conhecido, o de comandante da seleção. 4. O jornalismo e o futebol em congruência, Saldanha técnico de futebol e a Copa de 70 Como já esmiuçado, devido a grande popularidade de sua figura em território nacional, Saldanha acabou por ser convidado a ser técnico da seleção brasileira, isto em um recorte cronológico em que ainda não existia a sigla CBF (Confederação Brasileira de Futebol), mas sim, CBD (Confederação Brasileira de Desportos). Porém, ainda que pouco conhecida, a primeira passagem de ‘sem medo’ como técnico foi em 1957, no Botafogo, seu time de coração, passagem esta que fora sugerida apenas para “tapar um incêndio”, a demissão de Geninho, conhecido ídolo alvinegro. Homem de personalidade forte, Saldanha duraria quase 3 anos no cargo, mas não sem explicitar seu descontentamento com situações específicas presenciadas em General Severiano. Nas temporadas de 1957 a 1960, João Saldanha foi mesmo o treinador do Botafogo, com um breve hiato em 1958, quando chegou a pensar em desistir de vez: a política do clube, como de qualquer clube, era extremamente apaixonada, por vezes desgastante.24 23 BORGES, Luiz Henrique de Azevedo. Do compexo de vira-latas ao homem genial: o futebol como elemento constitutivo da identidade brasileira nas crônicas de Nelson Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira. 2006. 24 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia.Rio de Janeiro Relume Dumará, 1996.p.47 18 Estes anos como treinador, operaram de maneira a ser um aprendizado para o que viria uma década depois à frente da seleção canarinho, mas para que se possa discutir sua passagem conturbada à frente da seleção, é necessário entender qual era o cenário que lhe aguardava, desde motivação do governo até o descontentamento do público, com a péssima apresentação em 66, e não menos importante, o quanto tal atividade esportiva tinha um papel primordial na condução de uma formação da identidade nacional do brasileiro. Desde a década de 50, o futebol já fazia parte da cultura e sociedade brasileira, afirmando-se de modo contundente nas especificidades de uma nação. Por ser um esporte de massa e de facilidade para a prática, foi se tornando parte do alicerce do “ser brasileiro”, e quando uma atividade chega a este ponto, é nítido que ganha um aspecto ainda maior, o de ferramenta política, sendo mais acentuada, quando se têm por análise, períodos de intensa repressão por parte do Estado. No Brasil, desde a década de 1930, o futebol é considerado um dos pilares dos discursos da identidade nacional, fortemente influenciado pela tradição freyriana da democracia racial. As conquistas nas competições internacionais, especialmente nas Copas do Mundo (FIFA), ampliaram a sinergia entre a sociedade brasileira e a seleção de futebol, fazendo com que ela se tornasse um dos maiores bens simbólicos do País, por vezes capitalizada por políticos de distintas filiações. Devido à grande penetração no imaginário coletivo de argentinos, brasileiros, chilenos e uruguaios, o campo futebolístico passou a encampar as disputas ideológicas entre diversos agentes sociais, servindo também como disseminador das políticas estatais, consolidando uma relação estabelecida pelo “uso político do esporte e o uso da política pelo esporte”. 25 A utilização do futebol de maneira política não é uma particularidade exclusiva do Brasil ditatorial, foi visto também em outros regimes pela América do Sul e pelo mundo. Devido ao grande apreço popular pelo esporte, e claro, as preferências de quem está a frente do poder, não eram apenas as seleções que serviam como mecanismo de exercer controle, maso clubes também. Um exemplo que um tanto se assemelha ao caso brasileiro, é o argentino, onde o governo de cunho militar agiu de maneira a tentar mascarar os crimes cometidos pelo regime, tentando de todas as formas, transparecer uma tônica de modernidade e harmonia durante a Copa de 1978. O trabalho parte do caso da Copa do Mundo de 1978. Jogada na Argentina e vencida pela seleção da casa, foi visada a construção de um imaginário 25 GONÇALVES, Lucas Toledo. O Curioso caso de João Saldanha: representações a partir do documentário memórias do chumbo–o futebol nos tempos do condor. Revista Tempos Gerais, v. 5, n. 1, 2016. 19 coletivo, principalmente para os turistas que chegaram no país para trabalhar no evento. O governo militar da época não poupou esforços e dinheiro para que as instalações onde circularam os profissionais da imprensa internacional fossem as mais modernas da época. Houve um esforço para que os aeroportos, hotéis, estádios e o centro de imprensa impressionassem positivamente os responsáveis por enviar informações para outros países. Também houve a preocupação para que os resultados dentro de campo fossem positivos para a equipe da casa, e que foi acusada da compra de resultados durante o torneio.26 Como foram apresentadas, tais práticas de “controle” de massa não foram exclusividade brasileira, e no caso a ser analisado, o de João Saldanha, a grande tentativa do governo brasileiro era de se aproximar das massas, visto que, o gaúcho de Alegrete, e de linguajar um tanto informal para os moldes da época, gozava do apreço da população, o convite para que assumisse a seleção uniria o útil ao agradável, conseguiriam calar o povo descontente com os resultados, se aproximariam do grande público, e ainda depositariam confiança em um homem um tanto calejado pela experiência no meio futebolístico, porém, o tiro saiu pela culatra, Saldanha, comunista convicto, não ficaria calado de maneira alguma e se utilizaria de seu cargo de destaque para denunciar crimes cometidos pela ditadura civil-militar brasileira. O futebol, agindo como um grande elemento de quebra das relações de hierarquização social, em diversos aspectos sempre funcionou como um catalisador da solidariedade e da união, isto quando se discute a variável seleção. Neste ponto, pode-se afirmar que o esporte age como um apaziguador de disparidades em âmbito nacional e a Copa do Mundo é por excelência, o campo da realização de um confronto entre nações, onde se aflora as particularidades do nacionalismo. A seleção nacional não é apenas uma equipe em busca de um título. É, antes de tudo, a representação de uma identidade, assim como pormenoriza Guterman27. Adentrando esta questão de maneira mais concreta, é possível compreender a motivação do aparelho estatal, principalmente em países onde o esporte das quatro linhas possui uma grande popularidade, em tomar conta e agir de maneira que exista a possibilidade em alguma circunstância específica manipular o rumo midiático esportivo ao seu bel prazer. Vale trazer para ótica de análise neste momento, um trecho da música que embalou a campanha de 70, pois através de sua letra, pode se observar o tom 26 BREITKREITZ, Luciano Anderson. A ditadura e o futebol na América do Sul: a construção de um imaginário coletivo através das copas do mundo de 1970 e 1978. Revista Semina, v. 11, n. 01, 2012. 27 GUTERMAN, Marcos et al. O futebol explica o Brasil: o caso da Copa de 70. São Paulo, 2006. 20 ufanista que a copa conseguia causar, além disso, uma vitória na famosa competição seria responsável por trazer uma roupagem de sucesso para o governo que muito se apossou da poderosa seleção montada em 70, mas que teve o início de sua trajetória nas eliminatórias com Saldanha, sendo inclusive apelidada de “As feras de Saldanha”. Noventa milhões em ação Pra frente Brasil, no meu coração Todos juntos vamos pra frente Brasil Salve a seleção!!! De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo brasil deu a mão! Todos ligados na mesma emoção, tudo é um só coração Todos juntos vamos pra frente Brasil Salve a seleção Todos juntos vamos pra frente Brasil Salve a seleção Gol!28 Nos versos desta letra, alguns pontos são de grande destaque, dentre eles, pode ser citado o “De repente é aquela corrente pra frente, parece que todo Brasil deu a mão”, que deixa bem claro o efeito que uma Copa do Mundo, em conjunto de ações sejam elas estatais ou privadas podem causar no imaginário da população, e outro é o “Salve a seleção”, que consegue ditar uma dinâmica patriota que embasa o ritmo que esta canção foi entoada durante o período de competição internacional. Imagens entoadas em um dos mais representativos ícones da memória futebolística, a música da copa do mundo de 1970, composta por Miguel Gustavo, intitulada “Pra frente Brasil”, na qual a máxima da propaganda ditatorial “Brasil, ame-o ou deixe-o” pode ser aludida nos versos “todos juntos vamos, pra frente Brasil do meu coração”. Quem não estava a favor do Brasil, representado pelo governo, estaria fora dele.29 Após apresentada a contextualização do momento, e claro, as particularidades referentes ao evento dentro de solo nacional, o enfoque passa a ser a trajetória de Saldanha dentro do cargo de grande destaque. De 4 de fevereiro de 1969 até 17 de março de 1970, Saldanha foi técnico da seleção brasileira de futebol e, mesmo atuando por pouco tempo, foi o suficiente para causar um grande alvoroço no antes desmotivado elenco brasileiro. Para que possa se compreender melhor esse período e o que representou um comunista em tal posição, é necessário evidenciar, a situação de 28 GUSTAVO, Miguel. Pra Frente Brasil. Música e letra disponível em: http://www. dicionariompb. com. br/default. asp. 29 GIANORDOLI-NASCIMENTO, Ingrid Faria; MENDES, Bárbara Gonçalves; NAIFF, Denis Giovani Monteiro. “Salve a seleção”: ditadura militar e intervenções políticas no país do futebol. Psicologia e Saber Social, v. 3, n. 1, p. 143-153, 2014. 21 Saldanha no regime. Ainda que não tenha sofrido retaliações mais intensas, como a tortura, e talvez tal acontecimento não tenha se consumado devido a suas inúmeras fugas, Saldanha foi figura constante de investigação por parte do órgão repressor, e viu muitos colegas serem mortos e perseguidos. No dia em que “a vaca foi pro brejo”, ele e Mário Lago, seu colega de Rádio Nacional, trataram de se esconder. Não deu. Mário passaria por várias prisões – e mais numerosos convites para se apresentar na DOPS – naquilo que ele chamava de “chateação de um dia sim outro também”. João se virava como podia. No jornal Última Hora, cuja redação ficava perto da praça da Bandeira, teve de fugir pelo telhado.30 Após o início dos anos de repressão, mais precisamente após 1964, ‘sem medo’, preocupado com os militares em seu encalço, não conseguiu se manter em empregos fixos por muito tempo e, transitando pelos nomes da comunicação da época, foi resistindo, ainda que não sem uma tutela que estava por ali sem seu convite, o olho armado da censura. Retornando ao assunto relacionado ao futebol, é visto, durante o ano de 1968, uma grande dificuldade da seleção de se encontrar dentro de campo, colecionando inúmeros resultados negativos, e foi neste momento, após um ano desastroso, que Saldanha assume a função de técnico da amarelinha. Durante os primeiros, ainda que bastante dividida as opiniões, João foi conquistando ao pouco o público, principalmente pelo fato de se mostrar um eloquente entrevistado. Na história de nosso futebol, nenhum técnico de seleção teve tanto apoio: 71% dos torcedores estavamcom ele, segundo pesquisa. Em São Paulo, 68%, e a cada nova aparição sua na televisão, mais gente acreditava no tri, tal qual apontado por João Máximo.31 Os rumos de Saldanha dentro da seleção iriam passar por uma grande mudança após um acontecimento em específico, o falecimento de Costa e Silva. Este episódio, que após digerido pelo alto escalão militar, acabou por culminar na posse de Emilio Garrastazu Médici. Com o apelido de Carrasco Azul e que pelas palavras de Saldanha, seria o maior assassino que o Brasil já vira. Trazendo para luz da avaliação minuciosa da figura maior na época, Médici gozava da aprovação do proletário, e para, além disto, também soube se utilizar do esporte como catapulta para a sua figura pessoal, fato esse, que acabaria indo de encontro com a personalidade de João, o já conhecido comunista, e que após um tempo, já não seria mais visto com bons olhos pelo governo. 30 MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia. Rio de Janeiro Relume Dumará, 1996.p.88 31MÁXIMO, João. João Saldanha: sobre nuvens de fantasia. Rio de Janeiro Relume Dumará, 1996.p 99 22 Médici era bem visto entre os trabalhadores porque, como Lula bem lembra, havia algo próximo do pleno emprego naquela oportunidade. Some-se a isso, no entanto, sua identificação com o futebol, o esporte mais popular do Brasil, e então teremos aí uma pequena pista da combinação de fatores que tornou o governo Médici aquele que melhor soube aproveitar o momento e suas próprias características para atingir um objetivo que qualquer regime de exceção almeja, isto é, criar uma espécie de cumplicidade com a maior parte da população em torno de seus projetos de grandeza32 Após uma transição por motivos maiores, o futebol passa a ser mais discutido dentro dos salões do governo, muito disso refletido no fanatismo de Médici pelo esporte, tal afirmação, aliada a construção de uma identidade nacional conseguiam tornar a figura do ‘carrasco’ em apenas mais um homem brasileiro devoto da maior paixão do povo, o que de maneira previamente discutida, popularizava seu nome dentro do território brasileiro. Dentro do governo, ministros importantes tratavam de dar publicidade a essa característica do presidente, vinculando-a à “brasilidade” de Médici e à sua condição de “homem comum”. Jarbas Passarinho, que ocupava a pasta da Educação, era um dos mais eufóricos: “Todos conhecem seu nacionalíssimo gosto pelo futebol. Dou meu testemunho da emoção com que o presidente assistiu a todos os jogos, torcendo com o entusiasmo do brasileiro normal e do homem comum que o elevado cargo não modificou”33 Esse perfil de figura pública apaixonada por futebol, e o exacerbado trabalho de se utilizar da Copa do Mundo como momento de união maior do povo brasileiro, acabaram por popularizar Médici, e este, já embebido do poder oriundo da repressão, se pôs a dar “pitacos” acerca da convocação, o que acabara por irritar profundamente Saldanha. Para além do já citado, o embate ideológico e a relação de ‘sem medo’ para com as atrocidades cometidas em período militar, foram responsáveis por um desgaste inevitável que fora se acumulando e sendo refletido em derrotas em campo. A partir deste momento, inúmeras histórias figuram no imaginário de torcedores, e brasileiros no geral acerca da demissão de Saldanha. No dia 17 de março de 1970, faltando apenas 78 dias para o início da Copa do Mundo, Saldanha era demitido, sendo uma das principais alegações, os resultados ruins em amistosos, a não convocação de Dario, e a pressão exercida por membros da CBD que possuíam ligação com o regime, porém, a mais plausível se sustenta na sua aberta oposição ao governo repressor de 32 GUTERMAN, Marcos et al. O futebol explica o Brasil: o caso da Copa de 70. São Paulo, 2006 p.56 33GUTERMAN, Marcos et al. O futebol explica o Brasil: o caso da Copa de 70. São Paulo, 2006 p.58 23 Médici, assim como esmiuçado pelo historiador Carlos Eduardo Sarmento em dialogo com Lucio Castro, jornalista e historiador premiado pelo documentário “Memórias de Chumbo, o futebol nos tempos do condor”. É, é claro. Isso é claro, porque ele já é um nome que é colocado sob suspensão muito antes da sua demissão, pelo incomodo que causava, [...] não é essa a discussão apenas, é a independência do João Saldanha. O João Saldanha de alguma forma tinha autonomia para ocupar certos espaços ,rádio... e falar certas coisas que eram extremamente incômodas. Sempre havia uma dúvida sobre até que ponto vai o João Saldanha, ou seja, o João Saldanha é uma figura que enquanto ele teve apoio popular, era muito complicado mexer. Conforme isso vai se desgastando, e vão se criando episódios na imprensa que vão colaborando pra esse desgaste, que viabiliza esse projeto, que é um projeto não só de anular esse personagem, que é um personagem sobre o qual eles efetivamente sabem que não têm controle, como também de uma demonstração de força sobre a CBD .34 Essa busca por demonstração de força, exercida pelo governo na época em questão (1970), dialoga de maneira bem contundente com a particularidade referente ao controle do futebol, e é um ponto muito discutido pela mídia nos anos que viriam em sequência, principalmente quando se buscava indagar Saldanha das motivações que levaram a sua demissão. Em entrevistas com o jornalista, eram constantes as perguntas sobre o famoso caso da Copa de 70, caso esse, que marcaria a vida de ‘sem medo’, e seria responsável também, por revelar muito da sua personalidade. Através da repercussão de sua destituição de cargo e dos pronunciamentos de Saldanha referentes ao acontecido, é possível se utilizar de inúmeras fontes históricas, para que se busque uma compreensão das circunstâncias e variáveis que o caso implica sendo importante observar primeiramente os jornais da época. As manchetes, sendo a primeira forma de contato com as ideias do jornal, retratam a repercussão do momento vivido. 34 GONÇALVES, Lucas Toledo.O curioso caso de João Saldanha: representações a partir do documentário memórias do chumbo–o futebol nos tempos do condor. Revista Tempos Gerais, v. 5, n. 1, 2016.p.89 24 Figura 1 – Complô para derrubar João Saldanha Fonte: Última Hora, Rio de Janeiro (4 de Março de 1970) Página 1 A escolha de palavras neste momento revela de maneira implícita como a queda de João foi retratada, quando se observa o vocábulo complô (figura1),tende-se a relacionar com uma traição feita por um grupo de pessoas, e tal palavra vem destacada, e no centro da manchete, o que consegue pontuar de certa maneira, como o jornal entendia o ocorrido, tal destaque não fora utilizado em outros jornais. Essa afirmação se explica no fato de o Última Hora ter sido um reconhecido opositor do golpe, e também revela as ramificações de ideias dentro da imprensa. Além da competição acirrada e o desafio da modernização, na segunda metade dos anos 1960 a grande imprensa teve de lidar com outro grande dilema, o Estado autoritário. Decerto, toda a grande mídia (salvo Última Hora) apoiou a intervenção militar, contribuindo para configurar o notável apoio civil conferido ao Golpe de 1964.35 Outro jornal, que tinha destaque na época era o Folha de S.Paulo, que em sua abordagem optou por uma escolha de palavras diferente, e que já mudava o tom do 35 MOTTA, Rodrigo Patto Sá. A ditadura nas representações verbais e visuais da grande imprensa: 1964-1969. Topoi (Rio J.), Rio de Janeiro , v. 14, n. 26, p. 62-85, June 2013 . 25 acontecimento, deslocando a problemática do assunto para outra área, no caso o futebol. Esboçou,como visto na imagem abaixo (figura 2), uma preocupação com a seleção de um novo treinador, preocupação que tem seu fundamento também no pouco tempo de preparação que a seleção iria ter. Figura 2: Cai Saldanha; e agora quem vem? Fonte: Folha de S.Paulo (18 de março de 1970) Página 1 Após apresentadas duas manchetes de jornal do período em que Saldanha fora demitido, é possível investigar a particularidade do caso através de material posterior ao acontecimento, como as entrevistas concedidas por Saldanha. A visão de Saldanha acerca do que ocorreu, durante as entrevistas, sempre foi bastante clara, devido ao seu histórico e a perseguição mesmo que de maneira indireta, exercida pelo governo o levou a ser demitido, embora inúmeros jornalistas tenham especulado outras motivações, ‘sem medo’ sempre foi enfático em assegurar a sua versão. Durante o programa Roda Viva da Tv Cultura, no dia 25 de março de 1987, o então entrevistado João Saldanha, foi indagado por diversas personalidades acerca de inúmeros acontecimentos de sua vida, e foi em uma dessas perguntas, que pode dar sua versão da história acerca da Copa de 70, destaca-se aqui, o quanto tal história é recheada 26 de misticismo, pois mesmo após 20 anos do acontecido, Saldanha ainda assim era alvo de desconfiança acerca de sua destituição. A pergunta, feita por Adilson Monteiro Alves, ex-presidente do Corinthians e no ano de 87, deputado estadual, reflete a maneira com o que a história foi tomando grandes proporções. Adilson Monteiro Alves: Ô João, por que você não conta... Aproveita pra contar a história real da sua saída da seleção? Porque tem a história do Dario, tem a história do Pelé enxerga ou não enxerga... João Saldanha: O Dario eu disse pro Médici... Eu considero o Médici o maior assassino da história do Brasil, então, vocês não vão dizer que não há de ser muito airoso o que eu posso falar. 36 Neste trecho da entrevista, evidenciam-se dois pontos, a pergunta de Adilson Monteiro, interpelando sobre a real história, indagação essa, que revela o quanto o acontecimento ainda se apresentava de maneira nebulosa, e o segundo ponto, a colocação de Saldanha, expondo que considera Médici o maior assassino da história do Brasil. No governo de Emiliano Garrastazu Médici, de acordo com a CNV (Comissão Nacional da Verdade) 37, foram constatadas 98 mortes por motivação política, isso sem citar as violações dos direitos humanos. Ainda nesta entrevista, Saldanha revela outras particularidades de sua relação com o ex-ditador, pontuando de modo claro e em tom de repulsa, sua compreensão do que o presidente representava o que torna mais compreensível sua demissão, e claro, contempla a pesquisa quando se tem por finalidade buscar um entendimento de sua relação com o regime. João Saldanha: Eu nunca vi ele em pessoa, nunca tive com ele em pessoa, até me recusei a ir num convite que fizeram em Porto Alegre pra um jantar com ele “nós” tava lá por acaso e... sem saber, claro que na porta fosse até barrado, mas eu disse, eu não vou. Pomba! O cara matou amigos meus ô! Eu levei pro México uma pilha de documentos de 3000 e poucos presos 300 e tantos mortos e não sei quantos torturados, então vou compactuar com um sujeito um desse?38 Há de se notar, que a vida de Saldanha foi marcada por polêmicas, e uma das maiores, se não a mais significativa, relacionada à demissão do cargo de treinador de futebol, mexendo com o imaginário, e cercada de pormenores. Tal ato, apresenta uma 36 SALDANHA, João. Entrevista ao Programa Roda Viva. TV Cultura. Maio de 1987 37 . Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2014a. v. III. 38 SALDANHA, João. Entrevista ao Programa Roda Viva. TV Cultura. Maio de 1987 27 gama de assuntos que refletem de modo convincente como era a configuração da ditadura civil militar, quando se tinha por finalidade confrontar quem incomodava seus interesses. Conclusão A trajetória de João Saldanha é extensa e repleta de histórias que conseguem pontuar a ótica do jornalista em relação ao período cujo estava inserido, comunista e de temperamento efervescente, talvez fosse nítido para quem observasse de fora, que ‘sem medo’ seria perseguido em todas as ocupações a que se prontificasse a fazer durante a ditadura. O foco deste artigo foi avaliar a construção de sua figura durante os anos, dando ênfase ao recorte cronológico que compreende as datas 1964 a 1985. Sua vida, desde antes do período acima citado, teve nuances que contribuíram para os moldes de sua personalidade, e conseguiram de maneira eficaz, elucidar a pesquisa. Devido a seu passado “vermelho”, e ao fato de não concordar com inúmeras ações do regime militar, Saldanha, ainda que uma figura popular para os brasileiros devido a seu engajamento e paixão pelo futebol, não conseguiu ser poupado do envolvimento em polêmicas e do extremo controle exercido pelos militares. Analisando as minúcias de sua vivência dentro do futebol e do PCB, foi possível estabelecer ideias acerca de como era sua relação para com o regime, além de elucidar sua vida de maneira abrangente, perpassando por seus papéis e ocupações de jornalista, cronista e técnico, porém, sem excluir sua jornada como militante. Dentro do que se discutiu por sua militância, suas crônicas, relatos, entrevistas e histórias, nunca se separaram de forma contundente do seu lado comunista, e sua visão de mundo, anseios e claro, medos, podem ser observados por toda sua obra, assim como sua clara oposição ao governo militar, deixando explícito em entrevistas posteriores ao regime, e por toda sua vida. O futebol, como fator importante desta análise, também aparece como uma variável de análise necessária, visto que o esporte mais popular no território brasileiro, não se configura apenas como um jogo, mas uma ferramenta politica e social, com capacidade de popularizar governos, desmoralizar profissionais e até mesmo servir de mecanismo para denúncia de crimes cometidos em diversos âmbitos da sociedade. Por fim, todos os atos culminam no específico caso da copa de 70, onde Saldanha, em um claro embate com Médici, acaba por ser demitido, revelando um forte 28 controle militar até mesmo dentro dos esportes. Aqui se destaca a força da história, e toda sua emblemática, que transita entre política e futebol, abrangendo discussões que embora muito discutidas pelo jornalismo, configuram um estudo de memória, trajetória e claro, passado do Brasil, onde a bola, o jornal e os livros se confundem, dialogam em uma harmonia que talvez seja bastante particular do país do futebol. 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