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DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020ANO 100 ┆ Nº 33.324 R$ 7,00 É sólido o edifício da jovem democracia brasileira. Vultosamaioria, de 75%, hoje considera essa ame- lhorformadegoverno.Trata-sederecordedesdeque oDatafolha começou apesquisar o tema, em 1989. É sólido e, ainda assim, vemsofrendo ataques sis- temáticos de extremistas identificados com o pre- sidente Jair Bolsonaro, no maior teste de estresse desde a volta de umcivil à Presidência, há 35 anos. Muitos o fazem pormá-fé; outros, por não terem vividooshorroresdamáquinacruelquese instalou com a ditaduramilitar em 1964. Este último grupo faz parte dos 54,2%de jovens nascidos após 1985. Porisso,aFolha lançaaçãoemtrêsfrentes:campa- nhapublicitáriaeespecial jornalísticonestedomin- go(28),quandocomeçaumcursogratuitoparainte- ressados emconhecer a história para não repeti-la. A iniciativa serve tambémpara acordar os saudo- sistas de ummundo de fantasia, em que não have- ria corrupçãonemescândalos, a segurançapública seria grande, e a economia,milagrosa. Na vida real, o arbítrio sufocava as instituições, o pensamentolivreeodireitodeexpressá-lo.Atortura erapolíticadeEstado,osadversáriosdesapareciam, osdesmandosficavamocultospelamordaçanosou- tros Poderes e o crescimento econômicodadécada de 1970 acabouem inflaçãodescontrolada edívida. Acensuracalavaaimprensa,queapoiouonovore- gimenumprimeiromomento,casodestaFolha,que errou. Este jornal viu-se rapidamente engalfinhado pelonovosistemadepoder,perdendoacapacidade de reagir antesmesmodepercebê-lo. Sónadécadaseguinteachoumeiosdeempreender umcombate,mesmoque velado e sutil, à ditadura. E,nosanos 1980, liderouna imprensaomovimento das Diretas Já, firmando-se como defensor intran- sigentedademocracia edas liberdades individuais. Os homens não são sempre virtuosos; pensando nisso, os reformadoresdoOcidentemodernocons- truíramumsistemadePoderesautônomoseharmô- nicos,quefuncionamcomofreiosaoautoritarismo. Umsistema emque o poder popular se faz repre- sentar por eleições livres e é exercido dentro dos parâmetros da lei máxima. A Constituição de 1988, não isenta dedefeitos, teve o grandemérito de reu- nirasociedadeemtornodesseconsensoiluminista. Com ela, a discussão sobre o melhor sistema de governo parecia relegada a segundo plano. A agen- da pública deveria estar ocupada por redução da desigualdade, crescimento econômico e educação. No entanto, urge voltar ao tema, e a Folha busca inspiraçãonoseupapelhistóriconasDiretasJápara resgataracoramarelacomosímbolodademocracia. Assim, as vitrines das edições dominicais trarão umafaixadessacorcomosdizeres#UseAmarelope- la Democracia, e o slogan da Folha desde 1961, UM JORNALASERVIÇODOBRASIL, passa temporaria- menteparaUMJORNALASERVIÇODADEMOCRA- CIA até as próximas eleições presidenciais. EDITORIAL Democracia, nuncamenos ISSN 1414-5723 9 771414 572018 33324 AUDIÊNCIA/MÊS PÁGINAS VISTAS 340.339.921 VISITANTES ÚNICOS 54.958.699 #UseAmarelo pela Democracia dapopulação achaquea democracia é sempre melhordo quequalquer outra forma degoverno, dizDatafolha Lives Acompanhe, a partir de amanhã, série de discussões sobre o regimemilitar Curso online Oscar Pilagallo explica o que foi a ditadura para quem não viveu o período Campanha Em todas as telas Com filme exibido em TVs emídias sociais, Folhamuda slogan para “Um Jornal a Serviço da Democracia” Apoio à democracia bate recorde diante do riscoBolsonaro Pesquisa Datafolhamostra que 75% dos brasileiros preferem atual regime; em especial, Folha explica o que foi a ditadura Nova pesquisa Datafolha mostraque78%dapopula- çãonãoconcordacomopre- sidenteJairBolsonaroquan- doeledizquenãohouvedi- taduranoBrasil.Outros75% rejeitammaisumaaventura autoritáriacomoadoperío- dode 1964a 1985, índicere- corde na série histórica do instituto sobre o tema. Aditaduraentregouopo- der de forma pacífica, mas sóapós intensapressãopo- pular,queéresgatadaagora poriniciativasemdefesada democracia.Antes,castrou osdemaisPoderes,adotoua torturaeoassassinatocomo políticasdeEstadoecensu- routudoquequestionasseo preceito de “Brasil grande”. No momento em que se avolumamameaçasdeBol- sonaroedeseguidorescon- tra Congresso e STF e em que70%dosbrasileirosnão haviamnascidooueramcri- ançasnoregimemilitar,es- pecialdaFolhacontaoque foi a ditadura, o traumaeo atrasoqueelaprovocouno país. Oquefoiaditadurap. 1a12 As recentes declarações do trineto de dom Pedro 2º, Bertrand deOrleans e Bragança, para quem no Brasilnãoexistemdiferen- ças raciais, ilustram bem acenanacional. OpiniãoA2 O governo já liberou ao menosR$398bilhõespara combateraCovid-19.Des- se total, 86% foram para salvar a atividade econô- mica.Aáreadasaúdeficou com 13%. MercadoA15 e A16 Economia fica com 86% da verba federal ao vírus Ana Cristina Rosa A pele que habito De volta à escola Atoleiro argentino Sobreplanoparaaretoma- dadasaulasemSãoPaulo. Acerca depiora da epide- miaedacriseeconômica. EDITORIAISA2 Anunciantes globais abandonam Facebook e forçammedidas contra discurso de ódio A18 Ministro da Educação copiou quatro trechos de outras dissertações emmestrado B5 UM J O R NA L A S E RV I Ç O D A D EMO C R A C I A . a eee saúde coronavírus B2 DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 Numa das muitas elegias so- bre o passado lendário que fazem do romance de fanta- sia “O Senhor dos Anéis” uma leitura inesquecível, o elfo Le- golas dá voz às pedras. Ao passar por uma região que um dia foi habitada por grandes arquitetos de seu po- vo, Legolas diz que é como se asprópriasrochasali falassem dos antigos habitantes: “Fun- do nos escavaram, belas nos edificaram;maseles se foram”. O lamento rochoso seria im- provável na maior parte da Amazônia, já que paredões de pedra são escassos por lá, mas o chão amazônico tam- bémtemmemóriasprofundas de seus primeiros habitantes. São lembranças gravadas na própria composição quí- mica do solo, em sua fertili- dade e nas árvores que cres- cemnele, conforme têmmos- trado vários estudos ao lon- go dos anos. Refiro-me ao que se costu- machamar popularmente de “terra preta de índio”, um tipo de solo escuro (comooapelido indica), rico emmatéria orgâ- nica e certosminerais que cos- tumadestoarda terraaverme- lhada eacidificadaque carac- teriza amaior parte da Ama- zônia brasileira. Segundo algumas estima- tivas, até 3% do território amazônico corresponderia às manchas de terra preta existentes hoje, o que só pa- rece poucoquando se esquece do tamanho colossal da regi- ão; na verdade, émuita coisa. Tudo indicaque a terra pre- ta começou a se formar com mais intensidade na maior parte da bacia amazônica nos primeiros séculos da Era Cristã, numa espécie de re- lação simbiótica com os as- sentamentos indígenas, cada vez mais numerosos e popu- losos nessa época. (Esqueça a ideia da Amazônia pré-co- lonial “vazia”: calcula-se que, nomomento do contato com os europeus, havia quase 10 milhões de pessoas vivendo na região.) Aoqueparece, diversos pro- cessos de manejo ambiental foram intensificandoa forma- çãodesse tipode solo. Descar- te de fezes humanas e de car- caças de animais estão entre eles, assim como o de frag- mentos de cerâmica,mas tal- vez o mais importante tenha sido a queima parcial e con- trolada de restos vegetais, o que encheu o solo de um tipo de carvão que ajuda a reter os nutrientes no solo. Aalquimia resultante dessa combinaçãode fatores foi tão poderosa que até hoje popu- lações ribeirinhas daAmazô- nia, e atémoradores de cida- des, usam a terra preta para turbinar suas hortas. Eumnovoestudo indicaque até a composição de espécies de árvores da floresta parece ter sido influenciada por es- se solo produzido pela ação humana. Na pesquisa, publicada na revista Global Ecology and Biogeography, EdmarAlmei- da de Oliveira e Ben Hur Ma- rimon-Junior, da Universida- dedoEstadodeMatoGrosso, junto com colegas da Univer- sidade de Exeter (Reino Uni- do), estudaramtrechosde ter- rapreta emvárias localidades dos territóriosmato-grossen- se eparaense. Avaliaramonú- mero de espécies e as carac- terísticas das plantas na vi- zinhança do solo “artificial”e em áreas de mata sem ter- ra preta no entorno, bem co- mo os detalhes do solo pro- priamente dito. A equipe comprovouque as manchas de terra preta são mais férteis que os solos na- turais próximos e verificoudi- ferençasnacomposiçãode es- pécies:mais árvores com fru- tos comestíveis, como jatobá e taperebá, no solo escuro. Is- so provavelmente vale para outras regiões da Amazônia, umafloresta cuja riqueza, em grandeparte, é a de um imen- so pomar indígena. (PS: o trecho de “O Senhor dos Anéis” foi traduzido por meu colega Ronald Kyrmse.) Terra preta, criada artificialmente há séculos, mudou diversidade da floresta - Reinaldo José Lopes Jornalista especializado em biologia e arqueologia, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral” Amemória do chão amazônico |dom. Reinaldo JoséLopes,MarceloLeite |seg. PaolaMinoprio |qua. EsperKallas | -Fernando TadeuMoraes sãopaulo Depoisdedécadas silenciadapelaondaproibici- onista, a pesquisa com subs- tâncias psicodélicas vem co- nhecendoumrenascimento, impulsionadaporresultados promissoresnotratamentode transtornosmentais. No Brasil, um número pe- queno—mascrescente—de pesquisadores se dedica ao tema. A esse grupo perten- ce o neurocientista Eduardo Schenberg,queliderouopri- meiroestudocomMDMApa- ratratamentodeestressepós- traumáticorealizadonopaís. OMDMA,princípioativodo ecstasy,estáemviasdesetor- naraprimeiradrogapsicodéli- caareceberalicençaderemé- dionosEUA,naformadeadju- vanteemterapiaparaestresse pós-traumático.Asubstância encontra-senaúltimafasede testesclínicos,comresultados atéagorapromissores. A mudança de paradigma tem como um de seus prin- cipaispropulsoresotrabalho desenvolvidopelaAssociação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos (Maps, na sigla eminglês),organizaçãoame- ricanaquecriouevemdisse- minando o protocolo para o uso terapêuticodoMDMA. Foi esse protocolo que Schenberg,do InstitutoPha- neros, aplicou pela primeira vez em pacientes brasileiros —ecujosresultadosserãopu- blicadosembrevenaRevista Brasileira de Psiquiatria. Opesquisador tomoucon- tato com essa terapia por volta de 2014, quando fazia pós-doutorado na Inglater- ra, num curso oferecido pe- laMaps. “No curso pude ver a coisa em ação, as sessões comospacientes.Aquilome impressionoumuitoedecidi aplicar no Brasil”, diz. Asdificuldades,contudo,fo- rammaioresdoqueimagina- va. Apósbusca frustradapor verbas públicas e privadas, o pesquisadoroptouporfinan- ciamentocoletivonainternet. MasametadeR$50milsófoi batidafaltandodoisdiaspara ofim.AMapscontribuiucom mais R$ 50mil. Depois,pelaimportaçãodo MDMA, fornecido pela asso- ciação americana. A agência de fármacos e alimentos dos EUAdemoroumais de cinco mesesparaautorizaraexpor- tação.Aautorizaçãobrasilei- ra, à época, expirava em seis meses.“Sócomaajudadead- vogados, e por meio de um mandadodesegurança,con- seguimosconcluiroprocesso.” Osquatropesquisadoresdi- retamenteenvolvidosnoteste passaramporcapacitaçãonos EUA, onde se submeteram a sessõescomMDMA.“Foifun- damentalpassarporessaex- periência,poiselanospermi- tiureconhecermelhorosefei- tos, alémdenos darmais se- gurança”, diz BrunoRasmus- sen,médicoda equipe. Dos60voluntáriosbrasilei- ros,apenas3cumpriramosri- gorososcritériosparaentrar no ensaio—pessoas comes- tresse pós-traumático grave, saudáveis, e que não haviam respondido a nenhum trata- mento.Antesdoexperimen- to, que mistura psicoterapia com uso do MDMA, passa- ram por três encontros, nos quais os terapeutas, Alvaro e Dora Jardim, buscaramesta- belecer vínculo emocional, explicar efeitos da substân- cia e tirar dúvidas. Veio então a primeira ses- são comMDMA—de um to- tal de três. Após receberem a substância, os pacientes ti- veram seus sinais vitais mo- nitorados a cada meia hora. Cerca de duas horas depois, umanovadose,de50%ainici- al,eraoferecida,paramanter osefeitos—aceitaportodos. Na sessão, explica Dora, o TestenoBrasil trata estresse pós-traumático comMDMA Princípio ativo do ecstasy deve ser 1º psicodélico liberado nos EUA para terapia -Cristina Camargo são paulo Nascida na antiga aldeia Kapot, em 1930, a an- ciãindígenaBekwyjkàMetuk- tire conheceuocaciqueRao- ni quandoos dois erammui- to jovens e tinhamum longo caminhopela frente. Esposa e conselheira do lí- der indígenareconhecidoin- ternacionalmente, ela viveu aoladodeleporoitodécadas. Tiveramoitofilhoseconstru- íramumahistóriade lutape- losdireitosdospovos indíge- nas doBrasil. Bekwyjkàmorreu no dia 23 de junho,naaldeiaMetuktire, noMatoGrosso,apóssofreraci- dentevascularencefálico.Aos 90anos, ela estava comasaú- dedebilitada.Segundoumadas netas,aanciãnãofoiremovida paraumhospitalpormedoda pandemiadocoronavírus. “Meuavôestáarrasadope- laperdadesuacompanheira, conselheiraematriarca”,disse a netaMayalúTxucarramãe. Raoni descrevia Bekwyjkà comoumaestrelaquedesceu na terra. “Então pude ver que elaeraaindamaislinda,essaé aminhaestrela”,dizia. A morte foi lamentada pe- la presidente da Apib (Arti- culaçãodosPovos Indígenas do Brasil), Sonia Guajajara. “São muitas fontes de sabe- doria que estão nos deixan- do, levando nossa originali- dade, cultura e aprendizado. Minha solidariedadee imen- sopesar.” Protagonista de lutas em defesadospovos indígenase daAmazônia, Raoni voltou a assumirnosúltimosanosali- nhadefrentedamobilização. Noanopassado,percorreu países para denunciar o des- matamento da Amazônia e em janeiro convocou encon- trohistóricodelíderesdepo- vos dafloresta. Lutou pelos direitos dos índios comRaoni BEKWYJKÀMETUKTIRE (1930-2020) coluna.obituario@grupofolha.com.brMORTES Procure o Serviço Funerário Municipal de São Paulo: tel. (11) 3396-3800 e central 156; prefeitura.sp.gov.br/servicofunerario. Anúncio pago na Folha: tel. (11) 3224-4000. Seg. a sex.: 10h às 20h. Sáb. e dom.: 12h às 17h. Aviso gratuito na seção: folha.com/mortes até as 18h para publicação no dia seguinte (19h de sexta para publicação aos domingos) ou pelo telefone (11) 3224- 3305 das 16h às 18h em dias úteis. Informe um número de telefone para checagem das informações. voluntário deve ficar o mais introspectivo possível, a fim deentrar emcontatocomas próprias emoções. Assim, fi- cavanumapoltrona,numam- bientedepouca luzemúsica tranquila, com tapa-olho e fonedeouvido à disposição. “Nossopapeleradarapoio, seminterferir,paraqueeleex- pressasseasemoçõeseviven- ciasse as sensações que fos- sem surgindo. É isso que faz o paciente trazer o trauma à consciênciae,assim,elaborá- lo e integrá-lo”, contaAlvaro. Emgeral, apessoatrauma- tizadaencontra-senumesta- dodepetrificaçãoemocional e desconfiança profunda. O MDMA quebra esse escudo. “Dopontodevistaneuroquí- mico,asubstânciabloqueiaa comunicaçãocomaamígda- la, regiãodo cérebro respon- sável pelomedo, e libera oci- tocina, hormônio que ajuda a criar vínculo interpessoal. O paciente ganha confiança e perde o medo das pessoas ao redor, que se tornam, en- tão, ideais para ele se abrir e desabafar”, diz Bruno. Todosapresentarammelho- raexpressiva.Nopiordosca- sos, a redução dos sintomas foi de cerca de 30%; no me- lhor, o paciente saiu curado. Foi o que aconteceu com Rafael (nome fictício). Devi- doaumabusosexualsofrido quandocriançaeaumassalto àmão armada quando já era mais velho, Rafael desenvol- veu fobia social. “Eu evitava sairdecasa,socializar.Morria de medo de ser ridiculariza- do”.Eletambémdesenvolveu tosseconstante. “Fuiavários médicos,masnenhumconse- guiu interrompê-la.” Duranteasessão,eleconta, muitos sentimentos vieram à tona. “Eu senti raiva, tossi muito. Na última sessão, ti- ve uma sensação física mui- to fortederenascimento,co- moseestivesserealmentesa- indodo canal vaginal.” Depois do tratamento, a mudança foi grande. A tos- se de décadas simplesmente sumiu,eelepassouatermais segurançatantonavidasoci- al como no trabalho. “Passei a sentir que aminha vida es- tavaboa.Podeparecerbobo, maseunãosentia issoantes.” Embora o experimento te- nha tido um número peque- nodeparticipantes,osresul- tados estão em linha comos maiores estudos do gênero. Dentrepossíveisaplicações dotratamento,Schenbergdes- tacaumaquedevesercadavezmaisnecessárianomomento atual.“Estoumuitointeressa- doemcriarumprotocolocom MDMA para profissionais de saúdeenvolvidosnalutacon- tra a Covid-19 e que ficaram traumatizados com o que vi- ramnoshospitais.” Governo anuncia parceria que prevê produção de vacina contra Covid-19 -Thiago Resende brasília OMinistériodaSaú- deanunciounestesábado(27) umaparceriacomafarmacêu- tica britânica AstraZeneca e com a Universidade Oxford, no Reino Unido, para desen- volvimentoeproduçãodeva- cina contra a Covid-19. Inici- almente,estãoprevistas30,4 milhões dedoses. Nessafaseinicial,serãodois lotesdeinsumosetransferên- cia de tecnologia: umemde- zembro de 2020 e outro em janeiro de 2021. Ogovernoreconhecequea vacina ainda não é conside- rada segura nem eficaz, mas participará do seu desenvol- vimento. Se comprovada a segurança e eficácia, o Brasil deverá produzir mais 70mi- lhões dedoses. Com 100milhõesdedoses, esperadasseaparceriaavan- çar,seriapossívelvacinarqua- semetadedapopulação. Os custos da fase inicial, segundo o governo, são de US$ 127milhões (R$ 695mi- lhões), incluídososcustosde transferênciadatecnologiae doprocessoprodutivoparaFi- ocruz, estimados emUS$ 30 milhões (R$ 165 milhões). A população que faz parte do grupode riscodonovocoro- navírus terá prioridade para a vacinaçãonesta etapa. Nasegundafase,das70mi- lhões de doses, o custo esti- madoédeUS$2,30pordose. Comisso,aexpectativaéque oBrasilgasteUS$161milhões. Para ser concluído, o acor- do, contudo, ainda depende de umprocesso legal entre a FiocruzeAstraZeneca.Ogo- vernoinformouquequerpar- ticipardeconsórciointernaci- onalparadesenvolveredistri- buir a potencial vacina. Repórter da CNN Brasil é assaltada ao vivo em SP sãopaulo Duranteumacober- tura sobre as chuvas em São Paulo,nestesábado(27),are- pórterBrunaMacedo,daCNN Brasil foi vítima de um assal- to. Umhomem apareceu em frente à câmera e levou seus dois celulares. Ela teve sua imagemcortadaenãovoltou aoarnoprogramaCNNSába- do.OapresentadoRafaelCo- lomboanunciou, logoemse- guida,oquehaviaacontecido edissequeacolegadeemisso- rapassavabemefoi levadade voltaparaaredação.Deacor- docomoapresentador,oho- memvisto nas imagens esta- va comuma faca. Arnaldo Correia deMedeiros, secretário de Vigilância em Saúde, ao anunciar parceria Carolina Antunes/PR . a eee coronavírus saúde DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 B5 Primeira festa pós-quarente- na. O anfitrião, ansioso, pas- sa de roda em roda entreten- do os convidados. Ao lado da janelaavista, sozinho, umdes- conhecido. —Oi, tudobem?Você é o...? —Novo Normal. — Não acredito! Você é o Novo Normal?! — Eumesmo. — Rapaz! Você chegou, fi- nalmente! Faz um ano que só falam de você! Ah, o Novo Normal vai ser assim, oNovo Normal vai ser assado! Posso te dar um abraço? O Novo Normal recua. — Ah, claro! Contágio, né? Óbvio! Gente, gente! Vem cá! Esse aqui é o Novo Normal! Umameiadúziaseaproxima, uns estendemasmãos, outros já se espichampra umbeijo. — Péra, pessoal, o Novo Normal é sem abraço, beijo ou aperto de mão, certo, No- vo? Pode chamar de Novo? —PrefiroNovoNormal, pra não confundir comopartido. Uma convidada o olha, curiosa. —Nãosei por que,mas con- fesso que eu te esperava bai- xo, gordinho e careca. — Muita gente me imagi- na assim. Acho que é o no- me, né? Novo Normal, mui- to “o”, lembra ovo... Mas du- rante a quarentena o pesso- al comeumuito, o Novo Nor- mal é alto. —Escuta, cê aceita umabe- bida? Uma comida? — Obrigado, eu engordei 7 kgdurante aquarentena ebe- bi demais. Os hábitos do No- voNormal agora são comida saudável e zero álcool. Umaconvidadaabandona, discretamente, a taçade vinho sobre uma mesa. Um convi- dado dispensa uma empada num vaso de pacová. Um ou- tro puxa papo. — Falamais de você. O No- vo Normal gosta de sair? De ir no cinema? No teatro? Em show? —Não.Nadadisso rola com o Novo Normal. Com a qua- rentena, as relações à distân- cia se estabelecerampraficar. Uma convidada, decepcio- nada, toma a dianteira: —Eaquela previsão de que oCarnaval pós-quarentena ia ser tão louco que faria Sodo- ma e Gomorra ficarem pare- cendo Aparecida do Norte? — Deu chabu. O Novo Nor- mal é saudável, cauteloso, pre- cavido. O carnaval pós pan- demia será pelo Zoom.Quem quiser anotar aí, aliás: www. telecotech.ziriguizoom.med. — Ponto med?! —É.OCarnaval agora é or- ganizado pelo Ministério da Saúde. E o Carnaval de rua, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, porque é todo dentro do Minecraft. — Que horror! Eu tô soltei- ra! Como eu vou arrumar um namorado, assim? — Uma das coisas que a quarentena provou é que to- domundo pode viver sem se- xo, contanto que o Pornhub e o Redtube liberemoacesso. —Vocênão temnamorada? —Presencialmente, não. Deprimido comoNovoNor- mal, o anfitrião sai da roda discretamente e vai tomar uma água na cozinha. Ali en- contra umagalera aglomera- da, morrendo de rir de uma história contada por umgor- dinho, baixinho, careca, uma versão gente finade umGeor- ge Costanza, comuma cerve- ja numamão eumcigarro na outra.Oanfitrião cutucauma amiga por ali: — Quem é o figura?! —Não tá reconhecendo? É oVelhoNormal! Saindodaqui a gente vai pra um caraoquê na Liberdade e vamos termi- nar anoite comendoumabis- teca no Sujinho. Topa? Quatro e meia da manhã, abraçados, todos sobem a Consolação pulando e can- tando: “Ooooo! VelhoNormal voltô ô ô! VelhoNormal voltô ô ô! Velho Normal voltôôôô oooo!”. - Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas” Ele é saudável, cauteloso e precavido Onovo normal Adams Carvalho |dom. AntonioPrata |seg. TabataAmaral, ThiagoAmparo |ter. Vera Iaconelli |qua. IlonaSzabódeCarvalho, JairoMarques |qui. SérgioRodrigues |sex. TatiBernardi |sáb.OscarVilhenaVieira, LuísFranciscoCarvalhoFilho -Constança Rezende brasília |uol Onovoministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli, copiou quatro tre- chos de outras dissertações de mestrado e textos acadê- micos na introdução de seu trabalho de mestrado, apre- sentado em 2008 na Funda- ção Getúlio Vargas do Rio de Janeiro, com o título “Banri- sul:doPROESaoIPOcomgo- vernança corporativa”. Adissertaçãotambémtem trechos idênticos aos de um relatório da CVM (Comissão deValoresMobiliários). Ele escreveu: “Dependen- do da natureza do negócio e dateiadeconstituintesqueo embasam,pode-sedetectara existênciadeburocratas, téc- nicos e outros atores engaja- dosemprojetose ideiasque, paraeles, fazemsentidoepe- los quais lutam, mesmo que aindanãoostenhammateria- lizado,eàsvezes,somentese configurandocomoumame- raagenda,cujaconformação eevoluçãoestásujeitaacódi- gosdeconduta,afontesdepo- der,aocompartilhamentode umalinguagemcomum,aum ambientepropícioàcolabora- ção e a mecanismos de difu- sãodainovaçãotecnológica.” O texto de Kátia e Rezilda diz:“Dependendodanatureza donegócio e da teia de cons- tituintesqueoembasam,po- de-sedetectaraexistênciade burocratas, técnicoseoutros atoresengajadosemprojetos e ideiasque,paraeles, fazem sentido e pelos quais lutam, mesmo que ainda não os te- nhammaterializado, e às ve- zes,somenteseconfigurando comoumameraagenda,cuja conformaçãoeevoluçãoestá sujeitaacódigosdeconduta, afontesdepoder,aocompar- tilhamentodeumalinguagem comum, aumambientepro- pício à colaboração e a me- canismos de difusão da ino- vação entre as comunidades ocupacionais com que se re- lacionam”. Asautorascitaram, inclusi- veaorigemdainformaçãoem outrosautores: “Pelled,2001; Hoffman, 2001”. Namesmapágina,Decotelli diz:“Asobrevivênciadasorga- nizações, na abordagem ins- titucional, depende da capa- cidade de entendimento das regras, crenças, valores e in- teresses criados e consolida- dos num determinado con- texto ambiental, social e cul- tural. A formade interpretar estesaspectos,afimdesepo- sicionarfrenteàspressõesiso- mórficas,sãomelhorexplica- daspelapresençadosesque- masinterpretativos,definidos como‘pressupostosresultan- tes da elaboração e arquiva- mento mental da percepção deobjetosdispostosnareali- dade,queoperamcomoqua- drosdereferência,comparti- lhadosefrequentementeim- plícitos,deeventosecompor- tamentosapresentadospelos agentesorganizacionais em diversas situações’”. O trecho é quase idêntico àspáginas32e33dadisserta- ção demestrado de Júlio Cé- sar de Paiva de 2006, de títu- lo“Institucionalizaçãodaga- rantia do status sanitário na cadeiaprodutivadaavicultu- ra de corte”. “A sobrevivência das orga- nizações, na abordagem ins- titucional, depende da capa- cidadeorganizacionaldeen- tendimentodasregras, cren- ças, valores e interesses cria- doseconsolidadosnumdeter- minado contexto ambiental, tira social e cultural.A forma deinterpretarestesaspectos, a fimde se posicionar frente àspressõesisomórficas,sãoé maisbemmelhorexplicadas pela presença dos esquemas interpretativos,definidosco- mo‘pressupostosresultantes daelaboraçãoearquivamen- MinistrodaEducação copiou trechos deoutrasdissertações emmestrado Trabalho de Carlos Alberto Decotelli também tem partes idênticas às de um relatório da CVM resses fortemente locais. Os representantes do Congres- so Nacional são eleitos pelo voto puramente proporcio- nal. Não há listas partidárias fechadas,oquefazqueoelei- torvoteem‘nomes’enãoem partidos”. Os quatro trechos não são colocados entre aspas, o que é obrigatório em textos aca- dêmicos quando há citações de outros textos. Também não há referência ao autor logoquandoterminaa frase. Ao final do texto, Decotel- li faz referência apenas aos textosdeRossettoeoescrito por Kátia Valéria AraújoMe- loeRezildaRodriguesOlivei- ra,nabibliografia.Osoutros, nem isso. Nestasexta-feira(26),opro- fessorThomasConti,do Ins- per(InstitutodeEnsinoePes- quisa),mostrouqueadisser- tação de Decotelli também temtrechos idênticos aosde umrelatóriodaCVM(Comis- sãodeValoresMobiliário)do mesmoano.Orelatóriotam- bémnãofoicitadoporDeco- tellinemsequerconstadabi- bliografia. De acordo com uma ori- entação do Núcleo de Apoio PedagógicodaFGV,oplágio/ cópia acadêmica viola a Lei 9.610/1998, que regula os di- reitos autorais presentes no CódigoPenal Brasileiro. Segundoomanual, plagiar ecopiaré“reproduzirparcial- menteounaíntegraumtexto ou parte dele produzido por umoumaisautoressemcitar as devidas fontes”. “Se no trabalho solicitado peloprofessorconterumasi- tuaçãocomoacitadaacimao plágio/cópiaparcialestácon- figurado,poisotextofoicopi- ado na íntegra sem a citação entre aspas da devida fonte: FURTADO Celso, Formação EconômicadoBrasil.SãoPau- lo:CompanhiaEditoraNacio- nal, 2001. p.197”, explica. Procuradopelareportagem desdesexta,oministérionão respondeu sobre o assunto. Decotelli tambémnão tem título de doutor pela Univer- sidade de Rosário, na Argen- tina, conforme apresentava em seu currículo e como foi destacadopelopresidenteJa- irBolsonaroaoanunciarono- voministroparaocargo,afir- mou o reitor da instituição, FrancoBartolacci. tomentaldapercepçãodeob- jetos dispostos na realidade, queoperamcomoquadrosde referência,compartilhadose frequentemente implícitos, de eventos e comportamen- tosapresentadospelosagen- tesorganizacionaisemdiver- sas situações’”. Jánapágina20,Decotellici- ta: “Nesta visão, a adaptação organizacionalrefere-seàha- bilidadedosadministradores emreconhecer, interpretare implementar estratégias, de acordocomasnecessidadese mudançaspercebidasnoseu ambiente,deformaaassegu- rarsuasvantagenscompetiti- vas.Comosepodenotar,oes- tudo do processo de adapta- çãoestratégica envolveas vi- sões deterministas do ambi- enteorganizacionaleavolun- taristadaescolhadasestraté- giaspelostomadoresdedeci- sãonas organizações”. Háumtrechoigualnotexto “Teoriainstitucionaledepen- dênciaderecursosnaadapta- çãoorganizacional:umavisão complementar”,deCarlosRi- cardoRossettoeAdrianaMar- quesRossetto, publicadoem janeiro/junho de 2005, pela UniversidadedoValedoItajaí emSantaCatarina (Univali). Na página 24 de seu traba- lho,Decotellicopiatrechoda páginas33e34dissertaçãode mestradoemEconomiadeJu- liedaPuigPereiraPaes,“Cria- çãodeMoedaeCicloPolítico”, publicada em junhode 1996. O ministro escreve: “Este ‘círculo’ econômico-político de perda de poder econômi- coengendrandoumarelativa fragilizaçãopolíticadaUnião, sópôdesermantidoàscustas deumaespecificidadedosis- temapolítico-partidáriobra- sileiro:adegerarrepresentan- tes legislativos federais com interesses fortemente locais em seus estados de origem. Portanto,olastropolítico-ins- titucionalqueproporcionouo projetodosbancosestaduais foireproduzidocomoummo- deloaomesmotempoeconô- mico-político-partidário,con- frontandoespaçosdegestão, poder e autonomia adminis- trativo-financeiraentreoses- tados e aUnião”. Otrabalhoanteriorafirma: “Este ‘círculo’econômico-po- lítico de perda de poder eco- nômicoengendrandoumare- lativa fragilizaçãopolíticada União,queporsuavez,refor- çaafragilidadefinanceira,só pôdesermantidoàscustasde umaespecificidadedosistema político-partidáriobrasileiro: a de gerar representantes le- gislativos federais com inte- Onovoministro da Educação, Carlos Alberto Decotelli Marcello Casal Jr./Agência Brasil . oquefoiaditadura a eeeDOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 1 nde você viu nomundo uma dita- dura entregar para a oposição de forma pacífica o governo? Só no Brasil, então não houve ditadura”, disse Jair Bolsonaro em 27 demarço do ano passado numaentrevista à TVBandeirantes. Opresidenteestáerrado,comoaFolhamos- tra nas páginas seguintes. Não é só opinião deste jornal, aliás, mas a de 78% dos entre- vistados pelo Datafolha, em uma nova pes- quisa sobre o tema. Umnúmerosemelhante,de75%,rejeitauma nova aventura autoritária como a do perío- dode 1964a 1985. Éumrecordena sériehis- tóricadoinstituto,atingidonomomentoem queseavolumamameaçasdopresidenteede seus seguidores contraoCongresso eoSTF. É verdade que a ditadura entregou o po- der de forma pacífica, como afirma Bolso- naro, mas apenas após intensa pressão po- pular,nummovimentoqueéresgatadoago- ra por iniciativas emdefesa dademocracia. Antes, elacastrouosdemaisPoderes,ado- tou a tortura e o assassinato comopolíticas de Estado e censurou tudo que questionas- seospreceitosdo“Brasilgrande”.Suastaxas expressivasdecrescimentofomentarames- cândalos de corrupção, avançaram sobre a Amazôniaesemearamahiperinflação,oen- dividamento e a desigualdade. Éimportante,portanto,queos70%debra- sileirosquenãohaviamnascido,ouqueeram criançasnoregimemilitar, tenhamaconsci- ência de que houve ditadura, e que eventu- aisavançospontuaisnãosuperamotrauma eo atraso queprovocounopaís. %%%%%%% #UseAmarelo pela Democracia oquefoiaditadura a eeeDOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 1 “O A MÁQUINA POLÍTICA • A MÁQUINA DA CORRUPÇÃO • A MÁQUINA DA REPRESSÃO • A MÁQUINA DA CENSURA E DA PROPAGANDA • A MÁQUINA ECONÔMICA • A MÁQUINA QUE AVANÇOU SOBRE A FLORESTA dapopulaçãoachaqueademocracia é sempremelhordoquequalquer outra formadegoverno,dizDatafolha Opinião sobre a democracia Em% Tanto faz se o governo é uma democracia ou uma ditadura Em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático A democracia é sempre melhor que qualquer outra forma de governo do . a eee oque foi a ditadura 2 DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 DATAFOLHA Oapoio dobrasilei- ro à democracia cresceu em meio ao agravamentoda cri- sepolíticadogovernoJairBol- sonaro, e atingiu omaior ín- diceda sériehistóricadoDa- tafolha. Segundooinstituto,75%dos entrevistados consideram o regime democrático o mais adequado,enquanto10%afir- mamqueaditaduraéaceitá- vel emalgumas ocasiões. Foramouvidas2.016pesso- asnosdias23e24,portelefo- ne.Amargemdeerroédedois pontos paramais oumenos. Em dezembro, na mais re- cente oportunidade em que oDatafolha fez amesmaper- gunta,62%apoiavamademo- craciaeumnúmerosemelhan- teaodeagora,12%,aditadura. A migração pró-democra- ciaocorreuentreaquelespara quemtantofazoregime:ocon- tingentecaiude22%para12%. No período, houve um re- crudescimento da crise no Brasil, com enfrentamento direto de Bolsonaro com o Apoio ademocracia sobe ebate recorde emmeio a ameaçasdeBolsonaro Pesquisa Datafolha mostra que 75% dos entrevistados preferem atual regime, enquanto apenas 10% veem ditadura como aceitável -Igor Gielow são paulo Congresso e o Supremo Tri- bunal Federal. Insatisfeitocom decisões queodesagradaram,opresi- dente apoiou atos pedindoo fechamento de outros Pode- res e insinuou o uso das For- ças Armadas emseu favor. Oapoioatualàdemocracia éomaiordesde1989,quando oDatafolhacomeçouaaferir o dado. Omaiordesapreçoaoregi- meocorreuemoutroanotur- bulento, 1992, seteanosapós oBrasildeixaraditadurami- litar iniciada em 1964. O país estava emcrise eco- nômicaeopresidenteFernan- doCollorenfrentavaumpro- cesso de impeachment. Lá,emfevereirohouveome- norapoioàdemocraciadasé- rie, 42%. Em setembro, com Collor afastado do cargo, foi registradoo ápice da susten- taçãodaditadura, 23%. O sentimento democrático crescecomograudeinstrução ecommaiorrenda,passando de66%,entrequemtemoen- sino fundamental, a 91%, en- treoscomformaçãosuperior. O apoio é de 69% entre os mais pobres (menos de 2 sa- lários mínimos), chegando a 87%entreaquelescomrenda superiora10saláriosmínimos. Ele é umpoucomais frágil entre quem considera o go- vernoBolsonarobomouóti- mo (68%)eentremoradores do Sul (69%). Osapoiadoresdopresiden- tetambémperfazemumgru- pomaiordeaceitaçãodeum regime totalitário: 15%. JáosquerejeitamBolsona- rotendemaapoiarmaisade- mocracia (85%), assimcomo habitantesdoSudeste(80%). SegundooDatafolha, opa- ís está dividido entre quem vêriscodeinstalaçãodeuma ditadura(46%)eaquelesque descartam isso (49%). Apesardapioradoclimapo- lítico,otemoréomesmoper- cebido emdezembro. Achamquehámaiorchan- cedeumaaventuraautoritá- ria jovens (55%), quem rejei- ta Bolsonaro (56%) e os que acham uma ditadura aceitá- vel (58%). Jáaquelesquemaisdescar- tamoperigo sãoosmais ins- truídos (58%),apoiadoresde Bolsonaro(61%)ericos(66%). ODatafolha questionouos brasileiros acerca dos pode- res do Estado sobre a orga- nização da sociedade, maio- res quão mais totalitário é o governo. Os valores aferidos foram majoritariamente democrá- ticos. OfechamentodoCongresso é rejeitado por 78% (59% to- talmente),enquanto18%acei- tama ideia (11%totalmente). JáodoSupremofoidescar- tadopor75%(56%totalmen- te)eapoiadopor20%(14%to- talmente). Como seria previsível, há maior apoio a esses atos en- tre quemaprovaBolsonaro. GostariamdeveroCongres- sofechado29%dequemacha ogovernoótimooubome35% daqueles que dizem confiar nopresidente. Acerca do Supremo, pen- sam omesmo 37% dos apoi- adores e 42% dos que confi- amemBolsonaro. Paraosentrevistados,ogo- verno não pode proibir gre- ves (81%concordamcomes- sapremissa).Tambémdiscor- damdeinterviremsindicatos (64%) ou cassar partidos po- líticos (71%). No campo judicial, os en- trevistados são contra pren- derpessoassemordemdeum juiz(69%)eusartorturapara extrair informaçõesdecrimi- nosos (86%). Acensuraameiosdecomu- nicaçãoérejeitadapor80%e aceita por 18%. A rejeição cai a 64% entre os pró-ditadura, e a aprova- ção sobe a 32% entre os par- tidários deBolsonaro. Sobre as redes sociais, achamqueogovernonãode- veexerceralgumtipodecon- trole 64% dos ouvidos, con- tra 33%que estãode acordo. Atualmente, tramita no Congresso um projeto de lei paracombaterfakenews,mas que vem gerando reação de pessoas que apontam o ris- co de censura. As regiõesSuleNorte/Cen- tro-Oeste, redutosdobolso- narismo, apresentam um pouco mais de viés autori- tário no apoio a itens como proibiçãodepartidos, apoio à tortura e fechamento dos Poderes. Para 78%, regime militar de 1964 foi uma ditadura O Datafolha perguntou aos 2.016 entrevistados em 23 e 24 de junho acerca da natu- rezadoregimemilitar instau- radoem31demarçode 1964. Para 78%, foi umaditadura, enquanto13%nãooveemdesta forma.Já10%dizemnãosaber. Olegadodaditaduraéumte- maconstantenogovernoJair Bolsonaro.Opresidenteésau- dosistadoregime,quedescar- ta comoditatorial, ainda que negueterintençõesgolpistas. Seus apoiadores tendem a concordarmaiscomele.Para 43%dosdefensoresdeBolso- naro, a ditaduradeixoumais coisaspositivasdoquenega- tivasparaopaís,enquantoes- se índicecaia25%napopula- ção emgeral. Para62%dosbrasileirosem geral, o legado de 1964 é ne- gativo.Esseíndiceerade46% em fevereiro de 2014. Osmais ricos também têm uma visão mais favorável do governo dos generais (36%) doqueamédia.Equemrejei- taBolsonaro,menos:12%ape- nasveemmaiscoisaspositivas. Oconhecimentodobrasilei- ro acerca de temas da época cresceu sobBolsonaro. O AI-5 (Ato Institucional nº 5), de 1968, definidor do endurecimento do regime, ganhou o noticiário quando membros do governo relati- vizaramseus efeitos. “PedirumAI-5”viroupauta demovimentosbolsonaristas nasruas.Em2008,apenas18% diziamsaberdoquesetratava a sigla, e agora são 50%. Conhecemmaisoatoaque- lescomcursosuperior(80%) e os que ganhammais de 10 mínimos (90%). Entreoutrostemasdaépo- ca colocadospeloDatafolha, o mais conhecido (62%) é a anistiade1979.Omenos,odi- tomilagre econômico do co- meço dos anos 1970 (30%de conhecimento). AguerrilhadoPCdoBnoAra- guaia,dizimadapeladitadura, éconhecidapor52%.Amorte dojornalistaVladimirHerzog (1975)pelarepressão,por41%. Já a tentativa de atentado por militares contra um co- mício sindical no Riocentro (1981) é conhecida por 39%. $ Pesquisa foi feita por telefone para evitar abordagem A pesquisa telefônica, utilizada neste levantamento, representa o total da população adulta do país. As entrevistas são realizadas por profissionais treinados para abordagens telefônicas e as ligações, feitas para aparelhos celulares, utilizados por cerca de 90% da população. Ométodo telefônico exige questionários rápidos, sem utilização de estímulos visuais, como cartão com nomes de candidatos, por exemplo. Assim, mesmo com a distribuição da amostra seguindo cotas de sexo e idade dentro de cada macrorregião, e da posterior ponderação dos resultados segundo escolaridade, os dados devem ser analisados com alguma cautela por limitar o uso desses instrumentos. Na pesquisa, feita dessa forma para evitar o contato pessoal entre pesquisadores e respondentes, o Datafolha adotou as recomendações técnicas necessárias para que os resultados se aproximem aomáximo do universo que se pretende representar. Todos os profissionais do Datafolha trabalharam em casa, incluídos os entrevistadores, que aplicaram os questionários por meio de central telefônica remota. Foram entrevistados 2.016 brasileiros adultos que têm telefone celular em todas as regiões e os estados do país. A margem de erro é de dois pontos percentuais. Chance de haver uma nova ditadura no Brasil 0 16 32 48 64 jun. 2020 dez. 2019 out. 2018 fev. 2014 Hámuita chance Um pouco de chance Nenhuma chance Não sabe 15 24 51 10 5 21 25 49 Legado da ditadura 0 16 32 48 64 Deixou mais realizações negativas do que realizações positivas Deixou mais realizações positivas do que realizações negativas Não sabe 46 22 32 62 25 13 Houve ditadura no Brasil durante o regimemilitar? Já ouviu falar em… Em% Em% Em% Em% AI-5, Ato Institucional nº 5 NãoSim Não sabe 50 49 35 65 18 82 Guerrilha do Araguaia Milagre brasileiro Assassinato de Vladimir Herzog Lei da Anistia Caso Riocentro Fonte: Pesquisa Datafolha feita com 2.016 brasileiros adultos com telefone celular em todos os estados do país. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos. A coleta de dados aconteceu nos dias 23 e 24 de junho de 2020 78 Houve 13 Não houve 10 Não sabe jun.2020 dez.2019 nov.2018 jun.2020 jun.2020 jun.2020 jun.2020 jun.2020 52 47 30 69 41 58 62 37 39 60 jun. 2020 dez. 2019 out. 2018 fev. 2014 O governo brasileiro deveria ter o direito de: Em% Proibir greve 0 17 34 51 68 jun. 2020 dez. 2019 out. 2018 fev. 2014 nov. 2008 16 14 5 15 47 3 Intervir nos sindicatos 0 17 34 51 68 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014nov.2008 15 6 6 41 14 18 17 0 4 41 23 15 Proibir a existência de algum partido 0 17 34 51 68 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014nov.2008 13 10 56 10 6 6 Censurar jornais, TV e rádio 0 17 34 51 68 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014nov.2008 8 10 5 11 62 4 Fechar o Congresso Nacional 0 17 34 51 68 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014nov.20088 6 6 12 62 7 Prender suspeitos de crimes sem a autorização da Justiça 0 17 34 51 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014 Concorda totalmente Concorda em parte Nem concorda nem discorda Discorda em parte Discorda totalmente Não sabe 10 7 0 22 59 2 15 10 51 0 4 20 10 8 0 16 64 2 11 7 1 20 59 3 15 11 4 12 54 4 17 11 0 20 49 3 Torturar suspeitos para tentar obter confissões ou informações 0 17 34 51 68 jun.2020dez.2019out.2018fev.2014 7 5 0 13 73 2 7 7 4 9 69 4 Controlar o conteúdo das redes sociais 0 17 34 51 jun.2020dez.2019out.2018 19 15 0 16 48 2 24 18 1 11 42 4 Fechar o Supremo Tribunal Federal, o STF Em%, em junho de2020 56 18 14 7 5 Discorda totalmente Discorda em parte Concorda totalmente Concorda em parte Não sabe . a eee oque foi a ditadura DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 3 ANÁLISE -Igor Gielow A ascensão do capitão refor- madodoExército Jair Bolso- naro ao poder fez brilhar os olhos de uma geraçãode ofi- ciais-generais brasileiros. Após33anosforadonúcleo decisóriodopaís,osfardados enxergaramumaoportunida- de de redenção. Em aproximação mediada por generais da reserva que haviam encampado a candi- datura,houve,depoisdopri- meiroturno,abênçãodoAlto- ComandodoExército,princi- palórgãodaestruturamilitar brasileira, a Bolsonaro. O resultado, passado um anoemeiode governode fa- to, éamaiorcriseexistencial recentedasForçasArmadas. “Háumaconfusãoinstituci- onal.Chamaaatençãoogran- denúmerodemilitaresnogo- verno”,dizoprimeirogeneral da reserva que deixou o pri- meiro escalão, Carlos Alber- todosSantosCruz(ex-Secre- taria deGoverno). Emuma “live” do Instituto BrasiliensedeDireitoPúblico nosábado(20),eleclassificou dedesequilibradoopapeldos militares na política. “Há ex- cesso. Issocomeçaadeterio- rar o comportamento.” Hoje, 10 dos 23 ministros do governo vieram da caser- na, incluindoaío interinoda Saúde,generalEduardoPazu- ello. A exemplo do sucessor de Santos Cruz, Luiz Eduar- do Ramos, Pazuello é da ati- va. “Para ir ao governo, todo mundo temde passar para a reserva”,afirmaoex-ministro. Ramos prometeu adiantar sua saída do serviço ativo. Mais próximo militar, histo- ricamente, de Bolsonaro, ele personifica um conflito que remonta ao regimede 1964. A ditadura foi a última de uma série de intervenções militares desde a proclama- çãodaRepública,em1889,um clássico golpe fardado. ARepúblicaVelhaterminou em 1930 comoutrogolpe.Os anos de 1945, com o fim do Estado Novo, e 1954, marca- do pelo suicídio de Getúlio Vargas,tambémveriamações decisivas de alteraçãodopo- dercivilpelasmãosmilitares. Em 1975, o cientista políti- co americano Alfred Stepan (1936-2017), analisou a cor- relação das Forças Armadas comopoder civil noBrasil. Ele traçaa formaçãodoca- ráter de tutela que osmilita- res searrogaramao longoda história.Masestabelecelimi- tes, lembrandoqueduasten- tativas de golpe (1955 e 1961) quenão tiveramapoio legiti- madordeparteexpressivada elite civil fracassaram. Essa leitura salvacionista, de união nacional, é visível nas duasnotas assinadaspe- loministrodaDefesadeBol- sonaro, o general da reserva FernandoAzevedo,acercado golpe de 1964. Aliestáoresumodoquesua geraçãoacredita:omovimen- tomilitar teria sido necessá- rio para deter o alinhamen- to do governo de João Gou- lart (1919-1976) com o então comunismo internacional e teveamplorespaldo interno. Sendopartedeumproces- so histórico, o golpe não de- veria envergonhar os milita- res—torturaseassassinatos, alémdasprogressivasperdas deliberdadescivis,sãoesque- cidas na avaliação. Bolsonaro sempre promo- veuaditadura,enquantoum obscurodeputado,principal- menteseucaráterrepressivo. No poder, envernizou um poucoodiscurso,masseuins- tintoprovocadordecriseen- trePoderesconstantemante- ve a tensão alta entre os far- dados a seu lado. Não são poucos: além dos ministros e altos funcionári- os,háhoje2.900militaresda ativa emprestados para fun- ções civis naEsplanada. A dita ala militar do gover- no, sempre fraturada, bus- cou apresentar-semoderada e tambémmoderadora. Issotevealtosebaixos,dado oembatedelacomaala ideo- lógica representada pelos fi- lhos presidenciais e seus ali- adosno governo,masde for- mageralrepetiuoformatode pretensatuteladopodercivil pelosmilitares. Nãodeumuitocertonaprá- tica,dadoocaráter incontro- láveldeBolsonaro,masacres- cente ocupaçãode cargos vi- tais no Planalto e na Saúde durante a pandemia da Co- vid-19mostra um efeito prá- tico da intenção. AntesdapossedeBolsona- ro, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bô- as, disse em uma entrevista àFolhaquea vitória do capi- tãonãoeraavoltadosmilita- resaopoder,emboratemesse umapolitizaçãodosquartéis. Hojeelaassustaobservado- resnemtantonasForças,mas simnas polícias, emespecial militares,muitas vezes iden- tificadas aobolsonarismo. Isso é umanovidadehistó- rica, dado que nas oportuni- dadesemquehouveconflito envolvendoforçasestaduais, como em 1930, 1932 ou 1961, eramosgovernadoresquere- tinhamoapoio das tropas. A grande quantidade de questõesinternasparaasFor- çaséressaltadaporStepanem seu trabalho. Tendo travado suaúltimagrandeguerraregi- onalnoParaguaihá 150anos, desafiosexternosacabamsen- dosubstituídosportarefasde cunhopolítico. Ograndeperíododeturbu- lênciaetutelade 1945, apósa quedadeGetúlioVargas,atéo golpe de 1964 viu tal espírito intervencionista seexpandir atéoparoxismodaditadura. No primeiro governo mili- tar, do marechal Humberto Castello Branco (1899-1967), foi feitaumareformabuscan- donormalizar tal agitação. Foi determinado um siste- ma pelo qual 25% do efetivo de oficiais-generais, em to- dos osníveis, seria renovado todos os anos. Na outra ponta, foram to- madasmedidasparareduzira politizaçãodosestratosmais baixos da tropa, vistas como vulneráveis ao socialismo. Antes,osfardadosjáhaviam passado pelo processo inter- nodeapagamentodamemó- riadaFEB,aForçaExpedicio- náriaBrasileiraque lutouem 1944 e 1945na Itália. Quandovoltaramaopaís,os comandantesforamespalha- dos de formaanão constitu- irumnúcleopolítico:tinham ido lutar contra o nazifascis- moevoltaramparaaditadu- radoEstadoNovo,queseguia tal orientação. Ainda assim, foi por pressão militar que Vargas deixouo cargo. A reforma dos anos 1960 veiocomdificuldade,etrouxe oconflitoentreCastelloBran- co e seuministro da Guerra, ArthurdaCostaeSilva(1899- 1969), e por fim o último se tornouopresidente doAI-5. Só Castello Branco havia lutado na FEB, entre os pre- sidentesdaditadura.Costae Silva, diz Stepan, “era consi- derado simpático aos dese- josdeumgovernomaismili- tante e autoritário e de uma posiçãomenospró-america- na emais nacionalista”. Ditadura formougeração demilitaresquehoje povoamgoverno federal Uma das bases de sustentação do atual governo, fardados trazem do regime autoritário a mentalidade de que as Forças Armadas são importantes para a união nacional O ato institucional que re- crudesceu a ditadura, em 1968, foiumdivisordeáguas. Osmilitares aferraram-se ao poder de formadefinitiva. É na década de 1970que se forma o núcleo dos generais deBolsonaro,elemesmoum cadetedaturmade1977.Ode- cano deles, Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Ins- titucional), formou-senaAca- demiaMilitardasAgulhasNe- gras em 1969 e sempre abra- çoucausaspolíticasenquanto estava no serviço ativo. Suascríticasàpolítica indi- genista do governo Luiz Iná- cioLuladaSilva (PT) lhecus- taram o Comando da Ama- zônia e, em 2011, foi impedi- do de saudar o golpe de 1964 emsuadespedida à reserva. Deformaparadoxal, foisob Lula(2003-2010)queosmilita- restiveramumgrandeganho dopontode vistamaterial. Projetosestratégicosdear- mamentos, liderançanaMis- são de Paz da ONU no Haiti, aumentodeverbasedeparti- cipaçãonasGLOs(operações degarantiadaleiedaordem) marcaramoperíodo. OsanosFernandoHenrique Cardoso (PSDB, 1995-2002) são, por sua vez, lembrados comdesprezopelooficialato. Consideram que foram re- legadosaosegundoplanoem suas funçõesmilitares, já es- tandoforadapolítica,eacri- açãodoMinistériodaDefesa foivistacomoumasubordina- çãoindesejadaaopodercivil.Sob Dilma Rousseff (PT, 2011-2016), os ruídos políti- coscresceram,devidoprinci- palmenteàComissãodaVer- dade,queapontoucrimesda ditadura,avaliadapelacúpula militar comoumtribunal de um lado só. Comoimpeachmentdape- tista e a chegada de Michel Temer (MDB) para seus dois anos de poder em 2016, o ca- minho para a volta ao prota- gonismo foi aberto. A Defesa foi entregue em 2018paraumgeneraldequa- troestrelas, acabandocomo princípiosimbólicodapasta, eogeneralSérgioEtchegoyen (GSI) assumiu papel vital no aconselhamentodogoverno. O sequestro do estamen- tomilitar pela ritualística do governoBolsonarodesandou nas ameaças veladas de uso das Forças contra outros Po- deres pelo presidente. Emuma“live”dogrupoPer- sonalidades em Foco, em 20 de maio, Heleno rechaçou golpismo. “Não passa [pela cabeça] golpe, intervenção. [Devo is- soaos]nossosinstrutores,va- cinados por toda aquela tra- jetória de militares se intro- metendodeumaformapou- co aconselhável,masmuitas vezesnecessária,napolítica.” Afraseéreveladorapeloseu aposto: “muitas vezes neces- sária”. Heleno é visto comoo mais duro dos generais que migraramparaoPlanaltocom Bolsonaro,massuavisãonão éhegemônica. Coube ao general Azevedo fazeropapeldepivômodera- dordaturmafardada,comum alinhamentograndecomseu ex-subordinadoWalterBraga Netto,ogeneralquecomanda aCasaCivil.Ramos,quetam- bémserviusobocomandodo atualministro, jáestevemais próximodele. O agravamentoda crise trí- plice pela qual passa o Brasil, comaCovid-19 se somandoa uma recessão à vista e à tor- menta política, tem aumen- tadoosruídosentreoserviço ativoeosmilitaresde terno. Stepanapontaqueissoocor- ria já no auge da ditadura. Se estivesse vivo, poderia fazer associações à repulsa dos co- mandantespeloativismosin- dicalistaqueerapreconizado porBolsonaro,ummilitar in- disciplinado. Nastrêsdécadasforadopo- der, as Forças “se afastaram dascrisespolíticas, impeach- ments, casosdecorrupção”e têm“credibilidadealta”entre apopulação,dizSantosCruz. Ogeneral,quepassoupelos dois lados do balcão, resume omomentomilitar atual: “Si- tuaçãocomplexa”. $ Onde estavam os bolsonaristas General AugustoHeleno Concluiu a Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) em 1969. Em 1977, capitão recém- promovido, assumiu o cargo de assessor doministro do Exército, Sylvio Frota General Fernando Azevedo Iniciou a carreira no Exército em 1973, na Academia Militar das Agulhas Negras, no Rio de Janeiro, e fez parte da Brigada de Infantaria Paraquedista General Hamilton Mourão Formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975 Jair Bolsonaro Em 1977, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras General Luiz Eduardo RamosBaptista Pereira No ano de 1979, foi aspirante a Oficial da Arma de Infantaria General Eduardo Pazuello Em 1984, formou-se na Academia Militar das Agulhas Negras, como oficial de intendência (assessor do comandante na administração financeira e na contabilidade) GeneralWalter Souza BragaNetto Entrou na Academia Militar das Agulhas Negras em 1975. Foi aspirante a oficial da arma de Cavalaria, em 1978. Olavo de Carvalho Entre 1966 e 1968, militou no Partido Comunista contra a ditadura militar. Nos anos 1970, atuou como astrólogo. Paulo Guedes De 1974 a 1978 estava fazendo doutorado na Universidade de Chicago (EUA) [ A leitura salvacionista, de união nacional, é visível nas duas notas assinadas peloministro daDefesa de Bolsonaro, o general da reserva Fernando Azevedo, acerca do golpe de 1964 Mourão 1 , Bolsonaro 2 e Heleno 3 no curso de paraquedismo, provavelmente no fimde 1979 Audazes Paraquedistas no Facebook 1 2 3 . a eee Humberto Castello Branco (1964-1967) Um dos líderes do golpe, seu governo criou o SNI, instituiu o bipartidarismo e extinguiu a eleição direta para presidente Arthur da Costa e Silva (1967-1969) Decretou o Ato Institucional número (AI-5), que endureceu a repressão a opositores e a censura JuntaMilitar (de31.ago.1969 a 30.out.1969) Formada pelo almirante Augusto Rademaker, o general Aurélio Lyra Tavares e o brigadeiro Márcio de Souza e Mello, assumiu o poder com o afastamento de Costa e Silva por motivo de doença Emílio Garrastazu Médici (1969-1974) Foi o presidente da fase mais repressiva da ditadura, com tortura e morte de opositores, e também do “milagre econômico” Ernesto Geisel (1974-1979) Articulou a abertura política “lenta, gradual e segura”; em 1977, fechou o Congresso Nacional por meio do “Pacote de Abril” JoãoBaptista Figueiredo (1979-1985) Conduziu a fase final do regime, com a Lei da Anistia e a volta domultipartidarismo; em seu governo ocorreu o atentado do Riocentro 4 DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 oque foi a ditadura A MÁQUINA POLÍTICA A máquina política quesustentouaditadurabra- sileiranãofoiapenasautoritá- riae repressora.Foi também dissimulada. Durante seus 21 anos, o re- gimemilitarcultivouumami- ragemdemocrática. Ao contrário do Chile, não concentroupoderemumúni- co general,mas o dividiu en- tre cinco presidentes (além deumabreve juntamilitar). Diferentemente da Argen- tina, manteve o Congresso abertoporpraticamentetodo operíodoetolerouaexistên- cia de umaoposição formal. “Foi umaditadura emcon- domínio. Mas era ditadura domesmo jeito”, diz o histo- riadorBoris Fausto, estudio- so doperíodomilitar. “Nuncahouveeleição.OAl- toComandodoExército dis- cutia, brigava e votava. Fazia asvezesdepovo”,prossegue. Na teoria, havia respeito a um dos princípios basilares da democracia, o da separa- çãodePoderes.Mas era ape- nas um verniz, diz o profes- sor, porque o Executivo era umPoder armado, e portan- to, superior aos demais. “Havia separação de Pode- rescomsubordinaçãoaoExe- cutivo. Forte subordinação.” Não forampoucas as vezes emqueacondiçãodeprimus inter pares do Executivo se manifestou,entre1964e1985. Seu instrumento principal foram os Atos Institucionais (AIs), dando formatação ju- rídica ao regime.Houve 17. A interferência sobre o Le- gislativo não tardou, come- çandojánodécimodiadogol- pe, 9 de abril de 1964, com o AI-1,quecassou41deputados. Passou pelo AI-5, de 1968, queconsolidouacastraçãodo Congresso,echegouaoPacote deAbril,de1977,comanome- açãodesenadores“biônicos”, escolhidos em colégio eleito- ralcontroladopeloExecutivo. Umdos atos institucionais que tiveram consequências mais duradouras para o ar- cabouço político foi o nº 2, deoutubrode1965,queinsti- tuiuobipartidarismo,fixando aArena(AliançaRenovadora Nacional)comorepresentan- Dissimulada, ditadura militar crioumiragem de separaçãodePoderes Regimemanteve Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal abertos e tolerou oposição, mas cassou deputados emagistrados -Fábio Zanini são paulo tedogovernoeconfinandoa oposiçãoaoMDB(Movimen- toDemocráticoBrasileiro). “Inicialmente, a suposição dosmilitares era adequees- tabelecerumaoposiçãocon- sentida,semelementosmais radicaiscomooscomunistas, atornariamaismaleável,mais controlável.Esseambientege- rou, ao menos no princípio, uma certa imagem positiva no exterior, que interessava aonovo regime”, diz Fausto. Masamanobraserelevaria umtironopéapartir deme- adosdosanos1970,quandoo MDBcresciaeseconsolidava comouma força opositora. Figuras importantesdo re- gime, comoogeneral Golbe- rydoCoutoeSilva,acabariam porconsiderarqueobiparti- darismo tinha sidoumerro. “Omodelodedoispartidos unificou a oposição, ali cabi- amde liberais a conservado- res”, afirmaohistoriador. Issolevouoregimeaautori- zarnovaslegendas,entreelas oPT,nofimdosanos1970,co- moumaestratégiaparatentar fragmentar a oposição. Deputado estadual e sena- dorpeloMDBdoRioGrande doSulduranteaditadura,Pe- droSimonafirmaqueseupar- tido“tinhadetudo”.“Tinhaaté gentedementirinha,caraque era fechado comaditadura”. Ele lembraquehaviaduras e frequentes discussões so- bre até que ponto era o caso departicipardojogopolítico emcondiçõesfarsescas.“Valia apena?Eraaperguntaqueo povão fazia pra nós”, afirma. SegundoSimon,oquemais dividia o partido era a ma- neira de fazer essa oposição consentida. “Luta armada, a maioria era contra, não ape- nas porque tinhamedo,masporque não havia chance de sucesso. Tudo no país era da Arena. A igreja, as instâncias políticas, tudo.” Suaposição,afirma,sempre foiadeaproveitarosespaços disponíveisparapressionaro regimeacederemquatropon- tosfundamentais:eleiçõesdi- retas,Constituinte,fimdator- turaeliberdadedeimprensa. “Eudefendia resistir atéoúl- timoguichêdisponível”, diz. Foi comessaatitudedeen- frentar o regime por dentro, lembraoex-senador,quecres- ceuafiguradeUlyssesGuima- rães, principal expoente do MDB durante praticamente todooperíodo autoritário. “OUlysses foi agrandeper- sonalidadedahistóriadoBra- sil naquele momento. Bateu na mesa, resistiu. Seu único erro foi não ter assumido a Presidência com amorte do Tancredo [Neves], ter deixa- doparao[José]Sarney.Deve- riaterassumidoeconvocado eleições diretas.” A chegada de Simon ao Se- nadoem1978,eleitodemocra- ticamente, ocorreu quase si- multaneamenteànomeação dos colegas biônicos. “OPacotedeAbril foioúlti- mobafodaditadura.Foiuma desgraça. Mas o povo reagiu do nosso lado, foi uma coisa fantástica”, lembra. OJudiciárionãosofreume- nos, sobretudoo Supremo. OmesmoAI-2queinstituiu obipartidarismoinflouoSTF de 11 para 16membros, com os5extrasescolhidosadedo pelo regime. A ideia era dilu- ir vozes opositoras. Nãosatisfeitos,osmilitares, jáanabolizadospeloAI-5,cas- saramtrêsministrosem1969, queconsideravamdeesquer- da:VitorNunesLeal,Hermes Lima eEvandroLins e Silva. Outrosdois,emprotesto,sa- íramporcontaprópria:Gon- çalvesdeOliveira eLafayette deAndrada. Comacorte já “sanitizada” aosolhosdoregime,ascinco vagasabertasnãoforampre- enchidas,eonúmerode11mi- nistros foi restabelecido, ta- manhoqueperduraatéhoje. Como instância de contro- leconstitucionaldeumsiste- maquenãorespeitavadireitos fundamentais, e com a ame- açadecassaçãodeministros sempreporperto, oSTF teve umpapel secundário duran- te a ditadura,muito distante doestrelatodosdiasdehoje. Isso gerava grande frustra- çãonosmembrosmais inde- pendentes da corte, comofi- cou evidente em um episó- dio teatral ocorrido em 1971. Inconformado com a de- cisão do STF de considerar constitucionalacensurapré- via, oministro Adauto Lúcio Cardoso, quehavia sido voto vencido, levantou-senomeio dasessão,pendurousuatoga nacadeiraeabandonouople- náriodotribunal.Emseguida, requereusuaaposentadoria. Ogestocausoucomoçãona imprensa, algo incomumpa- ra uma corte que tinha a dis- crição comomarca. “Naquelaépoca,opoderes- tava realmente concentrado no governomilitar. O STF ti- nhasuascompetênciastotal- mente podadas. Era uma si- tuação de humilhação, mais do que de conflito”, diz o ex- ministrodoSTFFranciscoRe- zek,nomeadoduasvezespa- raacorte,aprimeiradelasna retafinaldoregime,em 1983. Segundo Rezek, o Judiciá- rio só teve algum grau de in- dependênciaentre1964e1968 eapósofimdoAI-5, em 1979. “Por cimadaConstituição, cavalgava o AI-5. Com a edi- çãodesteato,oBrasilpassoua convivercomumaordemins- titucional paralela, que neu- tralizavaporcompletoasga- rantias individuais”, diz. O ato fechou o Congresso porquaseumano,cassouau- toridades,endureceuacensu- ra, abriu as portas para a re- pressãoviolentaesuspendeu o habeas corpus para acusa- ções de cunhopolítico. Tudo,relembraoex-minis- tro,eravistosobaóticadase- gurançanacional,oque limi- tava emmuito os direitos in- dividuais. “A temática da segurança nacional era interpretadado modomaisextensivopossível pelo regime. Isso levou oAli- omarBaleeiro[presidentedo STFentre 1971 e 1973] adizer quenãodavamaispararespi- rardiantedasuperinflaçãodo conceito”, afirmaRezek. Numdiscursofamoso,Bale- eiro reclamouqueatébatom demoçaecigarrodemaconha eram “segurançanacional”. Asuperemendaconstituci- onal de 1969, tão ampla que muitosaconsideramumano- va Constituição, incorporou os princípios do AI-5 à Carta que existia desde 1967. Uma rápidaolhada emseu capítulo sobre direitos e ga- rantias individuais mostra comotaisconceitos,nareali- dade,nãosignificavammuita coisa naprática. O artigo 153 da Carta, por exemplo, faziaumalongade- fesada livremanifestaçãode pensamento e de convicção política oufilosófica,mas in- cluíaumaressalvaquenaprá- ticaanulavatudo.“Nãoserão toleradas a subversão da or- dem e as publicações e exte- riorizações contrárias à mo- ral e aos bons costumes”, di- zia o texto. Oartigoseguinte,o 154, era ainda mais direto. “O abuso de direito individual ou polí- tico,comopropósitodesub- versãodoregimedemocráti- cooudecorrupção, importa- ráasuspensãodaquelesdirei- tos de dois a dez anos”. Com o fim do AI-5, diz Re- zek, o STF tevemais liberda- de para julgar e passou a ser refúgio para opositores que queriam contestar pontos do regime. “A oposição percebeu es- senovomomentoepassoua reverenciaroSTF.Recorriam comalgumafrequência,mui- to como se faz hoje”. O restabelecimento pleno dosistemadefreiosecontra- pesosrepresentadopelasepa- raçãodePoderesveioapenas com o término da ditadura, em 1985, o que foi consolida- dopelaConstituiçãode 1988. Só então o alicerce demo- crático foi refeito, apesar do que tentam fazer crer atual- mente os apologistas daque- le período. AI-1 De 9.abr.1964, institucionali- zou o golpe e criou um colé- gio eleito- ral para esco- lher o presi- dente; gerou a primeira onda de cassa- ções e suspen- são de direi- tos políticos AI-2 De 27.out.1965, estabeleceu o bipartida- rismo e inflou o STF, que pas- sou de 11 para 16ministros AI-5 De 13.dez.1968, endureceu o regime, com o fechamento do Congresso, cen- sura, cassação demandatos e restrição do habeas corpus Tanques emBrasília no dia 1º de abril de 1964 Jornal do Senado Principais atos insti- tucionais $ Os presidentes militares Lei de Segu- rançaNacional Teve diversas versões, entre 1967 e 1983 (esta última, em vigor até hoje); com formulação genérica, deu poderes ao Estado para agir contra cidadãos que ameacem a ordem, a soberania e as instituições Constituição de 1967 Entrou em vigor em 15.mar.1967 e consolidou todo o arca- bouço jurídico do golpe, incluindo atos institucionais e decretos-lei Emenda constitucional de 1969 Tão abrangente que é consi- derada por muitos uma nova Constitui- ção, endureceu o regime à luz do AI-5 e cen- tralizou ainda mais o poder no Executivo Lei daAnistia Sancionada em 28.ago.1979 após intensa pressão popu- lar, anistiou crimespolíticos cometidos pelo regime e seus opositores desde 1961, o que contribuiu para viabilizar a transição democrática, mas deu origem a um sentimento de impunidade que semantém até hoje Os instru- mentos jurídicos do regime . a eee DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 5 oque foi a ditadura A MÁQUINA DA CORRUPÇÃO “Onegócioélu- crativo sob qualquer aspec- to: a Odebrecht pode cobrir todos os seus gastos e exigir também adicionais. Quanto mais cara a construção,mai- ores os rendimentos para os acionistas.” A afirmação pode soar fa- miliar ao noticiário recente dopaís,masestampavaaspá- ginas daFolhano longínquo ano de 1978, ainda no penúl- timo dos governos do regi- memilitar. Àépoca,ojornalrepercutia reportagemdarevistaalemã DerSpiegelsobresupostas ir- regularidadesemumacordo firmadoentreBrasileAlema- nhaqueviabilizouaconstru- ção das usinas nucleares de Angra.Apublicaçãoeuropeia questionava ligações de mi- nistroscomasempresascon- tratadas, atrasos das obras e o encarecimentodoprojeto. Aliadosdoentãopresiden- teErnestoGeiselrepudiavam oteordasacusaçõesdarevis- ta.E,assimcomoaconteceria 36 anosmais tarde no âmbi- to da Operação Lava Jato, o principalnomedaempreitei- ra foi convocado para depor em uma CPI: Norberto Ode- brecht, fundadordaconstru- tora,falouaosparlamentares emabril de 1979. A comissão parlamentar, criada por causa da reporta- gem,ouviuoutrasdezenasde testemunhas,masteveescas- sas consequências. Regimeagigantouas empreiteiras e foi rico em escândalosfinanceiros Imagem de que períodomilitar foi mais honesto se deveu a falta de transparência e fragilidade de órgãos de controle -Felipe Bächtold são paulo Sehojeomantradesimpa- tizantesdoantigoregimedos generaiséodeque,emquepe- seoautoritarismo,nãohavia corrupçãonaépoca,osarqui- vosdoperíodoeosrelatosdaimprensamostramumasérie de episódios polêmicos en- volvendo altos funcionários eatéagitaçãopolíticaprovo- cadapor revelaçõesqueche- gavamapúblico. Sobretudo nos anos finais do regime, o discurso anti- corrupçãofoiencampadopor opositoresnaesteiradecasos comooLutfalla,desuspeitas naconcessãodeempréstimos àfamíliadamulherdoex-go- vernadorPauloMaluf,eoDel- fin,sobreoabatimentodedí- vidasdeumafinanceira.Atéo uso da expressão “mar de la- ma”, concebida na Presidên- ciadeGetúlioVargas,nosanos 1950, foi reciclado. OpróprioGeiselsemostra- vareservadamentecríticodo ambiente que o circundava. “Só num país como o Brasil na situação atual eu poderia chegar à Presidência”, disse, antes de assumir o cargo, se- gundo conta o livro “A Dita- dura Derrotada”, do jornalis- ta Elio Gaspari. “Como é que se chega aomeunome?Ora, porquefulanoécretino,sicra- noéburro,beltranoésafado! Isso é jeito?” Dez anos antes da CPI so- bre Angra, houve a medida quetalvezsejaoelomais sig- nificativodoperíodo comos tempos daLava Jato. OgovernodopresidenteAr- thur da Costa e Silva decidiu restringiracontrataçãopúbli- cadeconstrutorasestrangei- ras,quetradicionalmenteto- cavamgrandesprojetospelo paísatéentão,comoformade estimular o capital nacional. Adécadaseguinteeoavan- ço econômico do chamado “milagre brasileiro” seriam marcados pelas chamadas obras faraônicas, como a ro- doviaTransamazônicaeahi- drelétrica deTucuruí. Sem a concorrência exter- na, empresas nacionais en- contraram espaço para am- pliar suas operações. A Ode- brecht,antesumaempresade projetosmaismodestos e re- gionais, ganhouprojeçãona- cional.Consolidaramsuaspo- siçõesdegrandesconglome- rados a Andrade Gutierrez e aCamargoCorrêa,todashoje comconfissõesdepagamento depropinaemobraspúblicas. AexpansãodopapeldoEs- tado na economia na época, que inclui a criação de esta- taisedefundospúblicos,tam- bémfoiumadascaracterísti- cas daquele período. “O processo de corrupção de empreiteiros junto ao Es- tado é anterior [ao regime]. Mas durante a ditadura isso se consolida e se maximiza de umamaneira radical”, diz oprofessordehistóriaPedro HenriqueCampos,daUniver- sidade Federal Rural do Rio. Elepesquisouemtesededou- toradoarelaçãoentreasem- preiteiraseaditaduraeescre- veu um livro a respeito, “Es- tranhasCatedrais”. Campos listanaobracasos de oficiais militares que fo- ramnomeadosparagrandes companhiasdopaís,emuma aproximaçãodoempresaria- do como regime. O professor cita como um dos fatores para um “cená- rio ideal para práticas cor- época o Congresso tinha es- sa prerrogativa em denúnci- ascontraparlamentares.Oex- ministrosempreafirmouque nãocometeuirregularidades equenãohouveparticipação deGolbery no empréstimo. Seepisódiosassimjácausa- ramrepercussãoapesardali- mitadaliberdadepolíticaede expressãodaépoca,háainda outrosrelatoscontrovertidos quesórecentementevierama públicoporcausadaliberação de arquivos sobre o regime. Em 2018, um professor da Universidade Federal de São Carlos(SP),JoãoRobertoMar- tins Filho, divulgoupesquisa na qual mostrou que a dita- dura atuou para abafar uma investigaçãodecorrupçãona comprade fragatasdoReino Unidonosanos 1970. Ascon- clusões se basearam em pa- péis confidenciais históricos do governobritânico. Osdocumentosmostraram que, em 1978, o Reino Unido estava disposto a investigar denúnciadesuperfaturamen- tonacompradeequipamen- tos para a construção de na- viosvendidosaoBrasilesuge- riuopagamentodeindeniza- ção. “Éevidentequeelesnão gostariamquemandássemos um time de investigadores e nãoiriamcolaborarcomum, seelefosse”,diziarelatórioda diplomacia britânica. Adespeitodetodoessehis- tórico, alguns fatorespodem tercontribuídoparaqueainda maiscasosdecorrupçãonão tenhamvindoà tonaeparaa difusão da imagemde admi- nistração“honesta”hojealar- deadapor apoiadores do an- tigo regime. O fimdo autoritarismo e a Constituição de 1988 garan- tiramuma série demecanis- mos de controle e de fiscali- zaçãodasociedadesobreva- riadas instânciasdegoverno. Omaior exemplo disso é o Ministério Público, hoje, ao ladodaPolícia Federal, prin- cipalatoremgrandesinvesti- gaçõespelopaís,quetevesua autonomiagarantidanaCar- ta promulgadanaquele ano. Anteriormente,sempoder deapuração,ainstituiçãotra- balhava atrelada aos gover- nos.Nãohavia atuação insti- tucionalizada para áreas co- mo improbidade adminis- trativa e defesa do patrimô- nio público. No plano federal, até 1988, asituaçãosoahoje inusitada: o Ministério Público Federal tinha entre suas atribuições funçõeshojedesempenhadas pelaAdvocacia-GeraldaUni- ão, de defesa pública. Atualmentecorriqueiras,as operações da Polícia Federal só se tornaramparte da roti- naemmeadosdosanos2000, comaampliaçãodosquadros eoaparelhamentodacorpo- ração.Em2001, foicriadatam- bém a Controladoria-Geral daUnião. A evolução tecnológica ga- rantiu ainda ferramentas de transparência, como as pu- blicações de dados governa- mentaise facilidadesnaapu- ração de delitos financeiros, comoocruzamentodeinfor- mações embancos de dados eaampliaçãodacooperação internacionalemcasosdere- cursosmantidosnoexterior. Oscrimesfinanceiros,aliás, um dos delitos mais visados poroperaçõescomoaLavaJa- to, tiveram ummarco com a lei criminalizandoa lavagem dedinheiro, em 1998. O sucesso da investigação iniciadanoParanádevemuito aoutra lei, aindamais recen- te,de2013,queregulamentou colaboraçõespremiadas,além detipificarocrimedeorgani- zação criminosa. “Hoje com a transparên- cia eas investigações, se tem mais noção do tamanho do problema [da corrupção]. Mas o problema já existia, sem amenor sombra de dú- vida.Haviagrandesescânda- losnaépocaeeramabafados. A imprensa nãopodia publi- car.Erabemdiferenteasitua- ção”,dizoprocuradordeJus- tiçaaposentadoRicardoPra- do,deSãoPaulo,quepreside aassociaçãoMinistérioPúbli- coDemocrático. Alguns dos maiores escândalos do período Lutfalla BNDES fez empréstimo à têxtil Lutfalla, da família da mulher de PauloMaluf. Houve suspei- tas de fraudes das garantias apresentadas GeneralElectric Então chefe da GE no Brasil disse que foi pago suborno para a Rede Ferroviária Federal adqui- rir locomotivas em condições rejeitadas pela estatal Fragatas Documentos da inteligência do Reino Unido tratamde uma investigação sobre super- faturamento na compra pelo Brasil de equipamentos para fragatas nos anos 1970. Os papéis afirmamque o governo à época não demonstrou interesse na apuração Capemi Empresa ganhou direito de explorar madeira na área da represa de Tucuruí (PA). O serviço não foi entregue, a subsidiária faliu e houve suspeitas de desvios por ofi- ciaismilitares GrupoDelfin Em 1982, Folha mostrou que o BNH (Banco Nacional de Habitação) aceitou quitar dívida do grupo em troca de terrenos de valormuito abaixo do débito Coroa-Brastel Caixa deu empréstimo que teria como finalidade salvar a corre- tora Laureano, influente no regime. O Coroa-Brastel quebrou e lesoumilhares de investidores ruptas na época” a amplia- ção dos fundos públicos e o aparelhamento empresarial doEstadobrasileiro. A liberação de recursos do BNDES, que virou tema de debates nas campanhas pre- sidenciais deste século, tam- bémdespontouemumepisó- dio polêmico do regime dos fardados. Um dos nomes mais influ- entes do período, o general Golbery do Couto e Silva, foi criticado por pedir financia- mentoaobanco,àépocacha- madodeBNDE,paraamulti- nacional Dow Chemical, cu- ja filial brasileira ele chefiou enquanto esteve fora do go- verno. Na ocasião do lobby, porém,Golbery já atuavaco- moconselheirodeGeisel, de quemseriachefedaCasaCivil. Golbery tambémchegou a ser mencionado em um dos principais escândalos finan- ceirosdaditadura,ocasoCo- roa-Brastel. Curiosamente,o imbróglio teveanosdepoisumadesuas sentençasexpedidasporuma dasestrelasdaLavaJato,o ju- izfluminenseMarceloBretas. Era 1998, quando o magis- trado, iniciante na carreira, condenou a oito anos de pri- são o empresário Assis Paim Cunha,pivôdeumamanobra financeira que respingouem umdosmais conhecidosmi- nistrosdoregimemilitar,Del- fimNetto. Delfim e o ex-ministro da Fazenda Ernane Galvêas fo-ramdenunciados sob acusa- çãodedesvioderecursospú- blicosaoautorizaràspressas liberação de empréstimo da Caixa ao empresário dono dogrupovarejistaefinancei- ro Coroa-Brastel em 1981, de valor equivalente na época a US$ 25milhões. O pano de fundo do repas- se, segundo a acusação do Ministério Público à época, era uma operação de socor- ro a uma corretora influente quebrada,aLaureano.Ogru- po Coroa-Brastel foi liquida- do em 1983, deixando 34mil pequenos investidores lesa- dosporcausadetítulosemiti- dossemlastro(suportefinan- ceiropara cobrir umeventu- al resgate). Paim Cunha morreu em 2008, aos 80 anos, e afirmou atéofimdavidaque foi leva- do a entrar no negócio por- que havia interesse do gene- ralGolberynasalvaçãodacor- retora Laureano. Jáapósofimdoregime,em 1989, a Câmara dos Deputa- dos negou autorização para que o Supremo Tribunal Fe- deralprocessasseDelfim_na Obras da ponte Rio-Niterói em 1971 Folhapress . a eee6 DOMINGO, 28 DE JUNHO DE 2020 oque foi a ditadura A MÁQUINA DA REPRESSÃO Doisdiasapósogol- pede1964,oex-sargentoGre- górioBezerrafoipresonoRe- cife.DirigentedoPCB,ele foi amarradopelopescoçoepu- xadopelasruasdacidade,en- quantoumoficial incentivava a população a linchá-lo. Exibidas naTV local, as ce- nas simbolizaram a inaugu- raçãodeumregimequeado- touarepressãoviolentacomo método.Pesquisadoresretra- tamBezerracomoaprimeira vítimadetorturadoperíodo. Os casos registrados nos meses iniciaisdaditadurafo- ramtratadosporintegrantes dogovernomilitar comoum reflexodo “calor dahora”. Aprática,porém,foiadota- dacomoferramentapara in- terrogarecombateroposito- res,emespecialpersonagens considerados subversivos. Apartirde1968,arepressão violentaformatouumaestru- turadedicadaatortura,mor- tesedesaparecimento_atéo iníciodaabertura,nasegunda metade dos anos 1970. Osnúmerosdarepressãosão pouco precisos, uma vez que aditaduranuncareconheceu essesepisódios.Auditoriasda JustiçaMilitarreceberam6.016 denúnciasde tortura. Engrenagemdeabusos perseguiu,matou, torturou e saiu impune Comissão da Verdade apontou 434mortos e desaparecidos, além de milhares de denúncias; Anistia descartou responsabilizar culpados -Bruno Boghosian brasília terminouinvestigação.Oche- fedogabinetemilitar,Ernes- to Geisel, declarou que a re- pressão violenta ocorria em números reduzidos e havia parado.Ninguémfoipunido. “Quanto mais lenientes eram os comandos, mais se consolidavaessaprática”,diz ahistoriadoraecientistapo- lítica Heloisa Starling. “Não era coisa de loucos, era um método.” Osatosviolentoseramatri- buídosaoficiaisda“linhadu- ra” que atuavanosporõesda ditadura, especialmente nos Dops (Departamentos Esta- duaisdeOrdemPolíticaeSo- cial) das polícias estaduais. O regime estruturou um aparato para executar a re- pressão.OSNI(ServiçoNaci- onaldeInformações),criado em 1964 para coordenar ati- vidades de inteligência, exe- cutava espionagem e moni- torava atividades subversi- vas. As prisões e a tortura fi- cavam principalmente a car- go do CIE (Centro de Infor- maçõesdoExército),de 1967. Numpasso para ampliar a violência, o AI-5, no ano se- guinte, suspendeu a garan- tia de habeas corpus para suspeitos de crimes políti- cos contra a segurançanaci- onal. Facilitou o trabalhode torturadores, que podiam manter inimigos do regime sob custódia. Oentãocoronel JoãoBatis- ta Figueiredo, que seria o úl- timo presidente da ditadura (1979-1985), resumia assimo ato:“Oserrosdarevoluçãofo- ramseacumulandoe, agora, só restou ao governo ‘partir para a ignorância’”. O governo inaugurou tam- bém,em 1969,umnúcleopa- ra coordenar as ações de se- gurança. Criada emSãoPau- lo,aOban(OperaçãoBandei- rante) tinha apoio financei- ro de empresários paulistas. Oaparelhofoiampliadosob ogeneralEmílioMédici(1969- 1974).Em1970,ogovernofun- douosDOIs (Destacamentos deOperaçõesdeInformações) eoCodi(CentrodeOperações deDefesa Interna). ObinômioDOI-Codisimbo- Números da repressão 434 mortos e desaparecidos 191 mortos 210 desaparecidos 33 desaparecidos cujos corpos foram locali- zados poste- riormente 8.300* indígenas mortos 20mil* torturados *Estimativa Fontes: Comissão Nacional da Verdade (2014) e Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (2009). Estimativasfeitasnotercei- ro ProgramaNacional de Di- reitosHumanos,aprovadono governoDilmaRousseff (PT), apontampara 20mil casos. Presosrelataramteremsido pendurados empaus de ara- ra,submetidosachoqueselé- tricos,estrangulamento,ten- tativasdeafogamento,golpes compalmatória, socos, pon- tapéseoutrasagressões.Em alguns casos, a sessão de tor- tura levava àmorte. Em2014,aComissãoNacio- naldaVerdade(CNV)listou191 mortos e o desaparecimento de 210 pessoas. Outros 33 de- saparecidostiveramseuscor- poslocalizadosposteriormen- te,numtotalde434pessoas. Ditaduras que dominaram paísesvizinhossuperaramos dados brasileiros. No Chile (1973-1989), o governo regis- troumaisde3.000mortos. Já na Argentina (1976-1983) fo- ramacimade 30mil vítimas. “Isso é tido, às vezes, como indicação de que a ditadura brasileira teria sido menos feroz ou absoluta. Não é ver- dade.Arazãodessenúmeroé oabsolutocontrolequeogo- verno tinha do processo re- pressivo”, diz o advogadoPe- droDallari, que coordenoua CNVem 2013 e 2014. Quandoosprimeiroscasos detorturaforamregistrados, aindaem1964,acúpuladore- gimeadotouatitudetolerante. Naquele ano, o presidente CasteloBranco(1964-1967)de- lizou o combate repressivo e aprimorouatortura.Haviace- lasquesubmetiamospresosa baixastemperaturasoumúsi- caalta.Osdetidoseramimo- bilizadosnasconhecidas“ca- deirasdodragão”,paraaapli- caçãode choques elétricos. Militante da Ação Popular (AP), a advogada Rita Sipahi foipresaem1971.NoDOI-Co- di paulista, foi agredida, des- pidaerecebeuchoquesnava- gina.Osinterrogadoresqueri- amque ela revelasse a locali- zaçãodeintegrantesdosmo- vimentos de esquerda. Pendurada no pau de ara- ra, ela disse o endereço de- poisdealgunsdias. “Jáestava ficandocomosdedos roxos. 1 O jornalista Vladimir Herzog, morto em uma cela do DOI-Codi, em São Paulo 2 Cena do assassinato de Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, militantes do PCdoB mortos em 1976 Divulgação Enterro do estudante Edson Luiz,morto em 1968 no Rio de Janeiro Arquivo Nacional/Correio da Manhã Os corpos de doismilitantes que participaramda Guerrilha do Araguaia, no Pará, são observados por soldados 1972/Reprodução 1 2 Silvaldo Leung Vieira - 25.out.1975/Jornal do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo Memorial da Democracia O líder comunista Gregório Bezerra, preso no pátio emumquartel em Casa Forte, Recife (PE), em abril de 1964, depois de ter sido torturado e arrastado com cordas no pescoço pelo bairro . a eee $ Mortos, desaparecidos e torturados Gregório Bezerra (torturado, 1964) Ex-sargento do Exército e mi- litante comunista, é con- siderado a primeira vítima de tortura do regime. Em 2 de abril de 1964, foi amar- rado à traseira de um jipe e puxado pe- las ruas do Recife. Depois, foi espancado com uma barra de ferro por um oficial Alfeu deAlcântaraMonteiro (morto, 1964) Tenente-coronel da Aeronáu- tica, é considerado o primei- ro militar morto pela dita- dura. Em 4 de abril de 1964, foi executado com 16 tiros dentro do gabi- nete da 5ª Zona Aérea, em Canoas (RS), por se recusar a dar apoio ao golpe militar CarlosMarighella (morto, 1969) Fundou a Ação Libertado- ra Nacional, que praticava se- questros, atentados e assal- tos a banco. Em 4 de novem- bro de 1969, foi morto numa emboscada coor- denada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury Chael Charles Schreier (torturado emorto, 1969) Integrante da VAR-Palma- res, foi preso em novembro de 1969, aos 23 anos, após con- fronto com o Dops. Transferi- do a um quartel, foi torturado emorto. Militares levaram o cadáver ao hospi- tal, mas os médicos se recusaram a confirmar a versão de que havia chegado vivo. É considera- do o primeiro morto por tortura nos quartéis] Rubens Paiva (desaparecido, 1971) Deputado cassado em 1964. Em 20 de janeiro de 1971, foi le- vado para o DOI-Codi, onde so- freu tortura até morrer. A re- pressão
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