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0 DOCÊNCIA EM SAÚDE BIODIREITO 1 Copyright © Portal Educação 2012 – Portal Educação Todos os direitos reservados R: Sete de setembro, 1686 – Centro – CEP: 79002-130 Telematrículas e Teleatendimento: 0800 707 4520 Internacional: +55 (67) 3303-4520 atendimento@portaleducacao.com.br – Campo Grande-MS Endereço Internet: http://www.portaleducacao.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - Brasil Triagem Organização LTDA ME Bibliotecário responsável: Rodrigo Pereira CRB 1/2167 Portal Educação P842b Biodireito / Portal Educação. - Campo Grande: Portal Educação, 2012. 216p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-286-2 1. Bioética - Direito. 2. Biodireito. I. Portal Educação. II. Título. CDD 174.9574 2 SSUMÁS SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO...................................................................................................................... 7 2 AS TRANSFORMAÇÕES DISCIPLINARES............................................................................. 10 3 CONCEITUANDO ..................................................................................................................... 13 3.1 O que é Ética? ........................................................................................................................... 14 3.2 O que é Moral? .......................................................................................................................... 15 3.3 O que é Direto? ......................................................................................................................... 16 3.3.1 Direito Natural ............................................................................................................................ 17 3.3.2 Direito Costumeiro ..................................................................................................................... 17 3.3.3 Direito Positivo ........................................................................................................................... 18 3.3.4 Direito Objetivo e Subjetivo ....................................................................................................... 18 3.3.5 Direito e Moral ........................................................................................................................... 19 3.4 Saúde, o que é? ........................................................................................................................ 20 4 CAMINHANDO E CRIANDO CAMINHOS NOVOS .................................................................. 22 5 NOVOS TERMOS E SUAS CONTRIBUIÇÕES ........................................................................ 23 5.1 Disciplina ................................................................................................................................... 23 5.2 Os Novos Termos ...................................................................................................................... 24 5.2.1 Multidisciplinaridade .................................................................................................................. 24 5.2.2 Interdisciplinaridade ................................................................................................................... 25 5.2.3 Transdisciplinaridade ................................................................................................................. 26 6 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE ........................................................................................ 27 6.1 Solidariedade na Constituição Federal ..................................................................................... 27 7 HUMANISMO IDEAL, HUMANIDADES E HUMANISMO JURÍDICO ....................................... 29 7.1 Humanismo ............................................................................................................................... 29 7.2 Humanidades ............................................................................................................................ 30 7.3 Humanismo Jurídico .................................................................................................................. 30 3 8 SOBRE A DIGNIDADE HUMANA ............................................................................................ 32 8.1 Os Pensadores .......................................................................................................................... 32 8.2 A dignidade na Constituição da República Federativa do Brasil ................................................ 34 8.3 A Dignidade Como Principio Fundamental ................................................................................ 35 9 PERSONALIDADE.................................................................................................................... 47 9.1 Direitos da Personalidade .......................................................................................................... 37 9.2 Direitos da Personalidade no Código Civil ................................................................................. 39 10 INDIVIDUALISMO, LIBERALISMO E ANARQUISMO ............................................................. 41 11 INTERESSE PUBLICO E BEM COMUM .................................................................................. 42 11.1 Bem Comum .............................................................................................................................. 42 11.2 Interesse Público ....................................................................................................................... 43 12 RESUMO .................................................................................................................................. 44 13 A CIÊNCIA E A ÉTICA .............................................................................................................. 46 14 BIOÉTICA ................................................................................................................................. 48 14.1 Fontes Histórica e Finalidade .................................................................................................... 48 14.2 Princípios Bioéticos ................................................................................................................... 50 14.2.1 Autonomia ................................................................................................................................. 50 14.2.2 Beneficência .............................................................................................................................. 50 14.2.3 Não Maleficência ....................................................................................................................... 51 14.2.4 Justiça ....................................................................................................................................... 51 15 AS NOVIDADES BIOCIENTÍFICAS E AS TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS ............................ 53 16 BIODIREITO .............................................................................................................................. 55 16.1 O Biodireito no Ordenamento Jurídico Brasileiro ....................................................................... 55 16.2 O Direito à Vida na Constituição Federal .................................................................................. 55 16.3 O Respeito à Vida no Código Civil............................................................................................57 16.4 O Respeito à Vida no Código Penal ......................................................................................... 59 16.5 O Direito ao Nascimento ........................................................................................................... 66 4 16.6 A Proteção à Maternidade ........................................................................................................ 67 17 O ABORTO ............................................................................................................................... 71 17.1 A Prática Abortiva Na História Do Mundo .................................................................................. 71 17.2 O Aborto E A Legislação Brasileira............................................................................................ 72 17.3 A Biociência, O Aborto, O Alvará Judicial .................................................................................. 77 17.4 Procedimentos Do SUS ............................................................................................................. 78 17.5 Argumentos A Favor E Argumentos Contra O Aborto ............................................................... 80 17.5.1 Contra o Aborto ......................................................................................................................... 81 17.5.2 A Favor do Aborto..................................................................................................................... 81 18 PLANEJAMENTOS FAMILIARES E ESTERILIZAÇÃO HUMANA ARTIFICIAL ..................... 84 18.1 Planejamento Familiar ............................................................................................................... 84 18.2 O Que Se Entende Por Esterilização Artificial ........................................................................... 86 18.3 Maternidade E Paternidade Responsável ................................................................................. 87 18.4 Direito À Descendência ............................................................................................................. 87 19 RESUMO ................................................................................................................................... 89 20 SAÚDE FÍSICA E MENTAL – EXPRESSÃO DA DIGNIDADE HUMANA ................................ 90 20.1 Direito Constitucional À Saúde .................................................................................................. 90 20.2 O Biopoder: A Medicalização Da Vida E A Judicialização Da Saúde ........................................ 92 20.3 Direito Sanitário ......................................................................................................................... 97 21 O DIREITO À SAUDE MENTAL .............................................................................................. 103 21.1 Tratamento Psiquiátrico E Bioética ........................................................................................... 106 22 IMPLICAÇÕES ÉTICAS E LEGAIS DAS TRANSFUSÕES SANGUÍNEAS ............................ 109 22.1 A Autonomia Da Vontade E A Transfusão De Sangue ............................................................. 113 22.2 O Direito Da Criança E Do Adolescente E O Credo Dos Pais .................................................. 114 22.3 A Primazia Da Maior Relevância .............................................................................................. 116 23 INFECÇÃO HOSPITALAR: PREVENÇÃO E CONTROLE...................................................... 117 24 A ESTÉTICA HUMANA ........................................................................................................... 120 5 25 A IDENTIDADE SEXUAL: TRANSEXUALIDADE ................................................................... 123 26 RESUMO .................................................................................................................................. 126 27 BIODIREITO E BIOTÉCNICAS ................................................................................................ 128 28 TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS E DE TECIDOS ................................................................... 129 28.1 Doação De Órgãos No Direito Brasileiro .................................................................................. 129 28.1.1 Doação de Órgãos Post-Mortem .............................................................................................. 131 28.1.1.1 Morte encefálica - questões éticas ........................................................................................ 135 28.1.2 Doação Intervivos ..................................................................................................................... 138 29 O DIREITO À MORTE DIGNA ................................................................................................. 140 29.1 O Papel Da Bioética E Do Biodireito ......................................................................................... 140 29.2 O Paciente Terminal ................................................................................................................. 141 29.2.1 Cuidados Paliativos ................................................................................................................. 142 29.3 Suicídio Assistido ..................................................................................................................... 142 29.4 Eutanásia .................................................................................................................................. 143 29.5 Distanásia ................................................................................................................................. 144 29.6 Ortotanásia ............................................................................................................................... 144 30 A OBJEÇÃO DE CONSCIÊNCIA ............................................................................................ 146 31 AS QUESTÕES CONTROVERTIDAS, A BIOÉTICA E O BIODIREITO ................................. 147 32 A ÉTICA EM PESQUISA ENVOLVENDO SERES HUMANOS ............................................... 148 32.1 Orientações Internacionais ....................................................................................................... 148 32.2 Orientações No Brasil ............................................................................................................... 149 32.3 Princípios Ético-Jurídicos Das Pesquisas Envolvendo Seres Humanos .................................. 150 33 BIOTECNOLOGIA ................................................................................................................... 153 33.1 Engenharia Genética E Genoma Humano ............................................................................... 153 33.2 A Reprodução Humana Assistida ............................................................................................. 155 33.2.1 Fertilização In Vitro ................................................................................................................... 155 33.2.2 Inseminação Artificial ................................................................................................................ 156 6 34 DOAÇÃO DE OÓCITOS, DE SÊMEN E A CRIOCONSERVAÇÃO ......................................... 157 35 RESPONSABILIDADE CIVIL DO PROFISSIONAL DA SAÚDE ............................................. 160 35.1 Responsabilidade Institucional ................................................................................................. 162 36 OS DIREITOS DO PACIENTE ................................................................................................. 164 37 A BIOÉTICA, O BIODIREITO E A REALIDADE DO SÉCULO XXI .........................................168 38 RESUMO .................................................................................................................................. 169 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 171 7 1 APRESENTAÇÃO O conteúdo deste primeiro módulo tem o propósito de nos situar no ambiente no qual vem sendo construídos os saberes que compõem o Biodireito. Para que tenhamos a dimensão da matéria com que estamos travando, esse contato é importante para sabermos em que contexto ela teve seu nascedouro, quais são suas propostas e qual o caminho que vem traçando. A evolução humana, em um fluxo contínuo, introduz no mundo, juntamente com novos conhecimentos, um novo modo de convívio, exigindo o nascimento de novas regras que venham manter a harmonia e a paz social. O ser humano tem uma inesgotável capacidade de evolução, de transformação e de adaptação. Por essa razão, todo o saber humano, todo o conhecimento está em constante movimentação evolutiva. A matéria objeto de nossos estudos encontra-se em seu nascedouro, está em fase de construção e crescimento, buscando uma identidade própria. Nasceu da necessidade de humanização das relações intersubjetivas. Veio para ajustar o mundo das relações apoiada nos apelos da ética reguladora das relações no mundo da técnica, a Bioética. As bases para a construção do presente estudo estão fundadas em diversos autores de diferentes áreas, todos com reflexões brilhantes e ensinamentos importantes e cujas referências encontram-se ao final dos módulos nos dados bibliográficos. Assim não poderia deixar de ser, já que o Biodireito vem brotando das relações multi e interdisciplinares. Destacamos, entretanto, o trabalho da professora Dra. Maria Helena Diniz em “O Estado Atual do Biodireito”, (2007), escolhido dentre tantos outros de excelente nível como norteador de nossos passos nesse curso, por o considerarmos o mais abrangente dentro da nossa proposta. Bioética e Biodireito surgiram da necessidade de se regular a vida social a partir das inovações científicas na área da saúde. Nascem a posteriori. A ética sai do mundo das idealizações para o mundo das realizações e vem lembrar ao homem seu compromisso com sua própria humanidade. O direito vem regular comportamentos, impor limites, empunhar a bandeira da dignidade humana. O progresso da ciência introduz novas discussões à vida prática, como: legalização da 8 eutanásia; manutenção de doentes terminais em estado vegetativo por anos a fio; doentes mentais e criminosos são esterilizados por práticas de delitos sexuais; mulheres que são mães após a menopausa; reprodução humana assistida e conflitos de paternidade ou maternidade sobre uma mesma criança; geração de crianças com a finalidade exclusiva de doação de tecido medular para outro filho; estoque de embriões humanos excedentes – subprodutos de fertilização in vitro; mapeamento do genoma; abortos eugênicos; diretrizes internacionais para pesquisa com seres humanos, e muitas outras novidades tecnocientíficas que modificaram as ações e decisões dos envolvidos com a ciência médica e biológica. São inúmeras as modificações nas relações humanas advindas da introdução das novas técnicas biomédicas na vida social. Socializou-se o atendimento médico, desaparecendo a figura do médico de família e surgindo outros padrões de conduta nas relações médico-paciente (planos, convênios, atendimentos em massa) com o reconhecimento do direito de todo cidadão ser atendido em suas necessidades de saúde. Hoje, a denominada telemedicina propicia a possibilidade de tratamento a distância, por teleconferência (consultas a especialistas de outros países; por meio de fonemed, aparelho que grava a frequência cardíaca do paciente, envia os dados em forma de som e os ruídos tornam-se gráficos, sendo possível efetuar o procedimento a partir de qualquer telefone, ligando para um call-center. Surgem entidades internacionais preocupadas com as questões éticas nascidas a partir da engenharia genética e da embriologia e que editam recomendações acerca dos procedimentos e suas implicações éticas. Multiplicam-se as ofertas de serviços médicos com atuações em diferentes fases da vida. Embriologia, neonatologia, pediatria, obstetrícia, gerontologia, geriatria, cirurgia estética, etc., estabelecendo uma medicalização da vida, a busca frenética pelas últimas novidades, que garantam uma juventude eterna, que afastem os fantasmas da morte. De um lado surgem as multiplicidades de ofertas e, de outro, as dificuldades de acesso. O paciente torna-se cliente, consumidor, ao mesmo tempo quer consumir novos métodos e drogas de última geração, reclama o reconhecimento e respeito a seus direitos fundamentais, à sua autonomia de vontade. Há um clamor mundial pelo respeito à vida de todo ser humano, independentemente de raças, de credo, de poder econômico. Criam-se os Comitês de Ética Hospitalar e os Comitês de Ética em Pesquisa com Seres Humanos com a finalidade de orientar e tutelar os interesses do ser humano, como sujeito, não como objeto, das novidades biotécnicas, das pesquisas e das práticas médicas. A 9 sociedade da pós-modernidade reclama padrões morais a serem compartilhados por pessoas com diferentes moralidades. É necessário reverter a inversão dos valores, retirar a humanidade da apatia e fragmentação ética em razão do caráter pluralista da sociedade mundial. O entrecruzamento da ética com as ciências da vida e o progresso biotecnológico clama por mudanças no modo de agir dos profissionais da saúde e potencializa a bioética, esse novo saber. A bioética nasceu e cresceu, nas últimas três décadas, animada pela biologia molecular e pela biotecnologia aplicadas à medicina. Denúncias de abusos contra a vida humana aproximaram filósofos e teólogos preocupados com a qualidade da vida, com a reprodução, o nascimento, o viver e o morrer. O presente estudo tem por objetivo apresentar àqueles que se interessam pelo tema uma disciplina que vem se construindo constantemente, na qual a formulação teórica vem caminhando lado a lado com o mundo das ações, com o fascínio das descobertas, com as inovações da tecnologia. É um caminho que vem sendo construído durante o caminhar. Não temos pretensões, nem poderíamos ter, de trazer formulações prontas, intocáveis, mas desejamos tão somente apresentar uma matéria que se encontra em seu nascedouro e estimular contribuições daqueles que se interessam pelas reflexões éticas e pela regulação dos comportamentos. Importante destacar que nem todos os assuntos que interessam ao Biodireito serão aqui tratados, pois não seria possível, são inumeráveis, brotam das reflexões, dos saberes múltiplos, das inter-relações das disciplinas. Traremos os aspectos mais comuns da influência das novidades da biotecnologia na vida humana. Muitas vezes teremos que transcrever todo teor de uma lei, no qual estão contidos os valores a serem preservados, clamando por hermenêutica. Apenas as questões ambientais que também desafiam ao Biodireito não estarão contempladas em nosso estudo, pois são de tal abrangência que reclamam dedicação particular. Esperamos que nossas reflexões sejam úteis e proveitosas. Desejamos que nosso caminhar, lado a lado, seja harmonioso e que nossos estudos sejam inovadores e engrandecedores a todos. Vamos, então, aos primeiros passos. 10 2 AS TRANSFORMAÇÕES DISCIPLINARES Tudo o que conhecemos hoje teve sua origem na filosofia, a arte de pensar, e todas as reflexões têm por finalidade a resolução das questões humanas. Todo o saber tem uma só origem, a alma humana, e uma só finalidade que é tornar o espírito humano mais feliz. O homem quer suprir suas necessidades e satisfazer seus desejos.O ser humano é insatisfeito, questionador, buscador e almeja uma felicidade transcendente, uma satisfação constante e, em regra, busca saciar essa sensação de incompletude no mundo ilusório que cria fora de si mesmo. As reflexões que fazemos sobre o mundo estão sempre vinculadas à época e ao ambiente em que vivemos. Os questionamentos que fazemos referem-se à realidade que vemos, queremos encontrar soluções para nossas insatisfações, procuramos transformar o lugar onde estamos a fim de que nos proporcione mais conforto, mais alegria, mais saúde, enfim, para que possamos ter satisfeitas as nossas necessidades, das mais básicas às mais sofisticadas. É também da essência humana o desejo de exercer o domínio sobre o meio e sobre os outros. Toda ação humana interfere inevitavelmente, para o bem ou para o mal, na esfera de domínio de outro ser humano. A satisfação que queremos pode significar a contrariedade para outrem. O domínio pode ser exercido de muitas formas e uma delas é o domínio pelo saber. É inegável que em todas as épocas os pensadores, os construtores de saber, foram detentores de prestígios e de preponderância sobre os demais. Não são poucas as lendas e histórias infantis em que o reino depende dos conhecimentos de alguém que vem de longe, de fora, e é chamado de sábio. Ocorre que nem sempre o conhecimento vem acompanhado da sabedoria. E é justamente a sabedoria na aplicação do conhecimento que fará dele a redenção de toda a sociedade ou a sua subjugação ao domínio de poucos. O desconhecimento é uma das causas de submissão. O desconhecimento, em qualquer área, deixa em nível de inferioridade o desconhecedor daquele assunto. Embora nossas considerações sejam, de certo modo, simplistas, é possível compreender que a mente humana criou um modelo de construção do poder ligado ao domínio do saber. O saber, repetimos, é construção humana e, para ser mais bem compreendido e 11 dominado foi sendo dividido, fatiado, e o ser humano, embora dotado de múltiplas possibilidades de desenvolvimento e expansão, foi voltando o olhar apenas para as partes e perdendo-se da totalidade. Especializamo-nos, interessamo-nos por fatias e desprezamos o todo. Dividimos o mundo e os seres, criamos compartimentos, nomeamos e vamos dando às mesmas explicações diversas de acordo com os interesses que queremos defender. O ser humano foi compartimentado, estudado e compreendido sob vários olhares. O olhar biológico, sociológico, psicológico, antropológico, espiritual. E dentro de cada um desses olhares/saberes há novas divisões e por aí vão sendo criados novos campos de domínio do saber. Presos às minudências acabamos por nos afastar da concepção do todo, da integralidade e do ser biopsicossocioespiritual que somos. Somos inteiros, compostos de partes complementares e interdependentes. O surgimento das especializações, se inevitáveis por um lado, por outro fez com que cada vez mais fôssemos impondo limites ao conhecimento integral em nome de um maior (e ilusório) domínio sobre uma pequeníssima parte. O aprisionamento do saber em uma pequena e única disciplina resulta em um limitado entendimento da vida e como consequência tornam-se mais escassas as possibilidades de harmonia, de partilhamento, de tolerância entre os homens. O resultado é o empobrecimento do conhecimento e das relações humanas. Sendo a vida um movimento constante, o final do século passado trouxe-nos o rompimento de fronteiras, a aproximação de diferenças culturais, a globalização. Tivemos no século XX o despertar para a saúde do corpo e da mente. O século XXI vem nos convocar à união, à aproximação, à conjugação dos saberes, ao partilhamento da vida e para a volta da simplicidade. O mundo globalizou-se. As novas tecnologias diminuem distâncias, criam novas possibilidades de trocas de conhecimento e informações. Permitem diagnósticos, tratamento e cura a distancia. Hoje é possível que nós, em diferentes espaços do planeta, partilhemos nossas ideias, troquemos informações e encontremos juntos novas soluções para questões emergentes. Estamos, nesse exato momento, eu e você, trilhando por um caminho novo. O Biodireito é um saber em formação e crescimento. Aspectos sociológicos, psíquicos, econômicos, permeiam a todo o momento, como não poderia deixar de ser as nossas ponderações. Este trabalho é um convite à abertura da 12 recepção para a visão holística e integral da vida, para a integralização dos saberes e oferecimento de alguns subsídios para reflexões inovadoras. Mais do que trazer respostas desejamos suscitar perguntas, questões a serem geradas pela inquietação do espírito, por reflexões inovadoras. Desta forma, desejamos que esse nosso encontro e convívio possibilitado pela era tecnológica, pela quebra de paradigmas, pelo desejo unificador, venham a ser proveitosos para todos e que possamos chegar ao final transformados, engrandecidos e verdadeiramente inseridos em um contexto de conjugação dos saberes a que somos convocados pela evolução humana. A Biologia, como toda ciência objetiva, separou-se da filosofia como se possível fosse apartar a vida física da reflexão. A ciência nasce, toma corpo e ganha o mundo a partir de uma primeira reflexão. Todo saber nasce da arte de pensar. É esse atributo que torna o humano diferente dos demais seres do planeta, que lhe outorga a responsabilidade pela vida, pelo cuidado consigo, pelo cuidado com o outro e com o ambiente. As produções humanas precisam ser nominadas. Temos necessidade de dar nomes, de diferençar, faz parte do nosso modo de compreensão do mundo estabelecer diferenças, distanciamentos e aproximações. As novidades técnicas surgidas na área da saúde suscitaram o encontro e a imbricação de matérias multidisciplinares, dando à luz novos olhares sobre a vida e para nominá-las acrescentou-se o prefixo “Bio” aos saberes, às disciplinas, significando tratar-se de novos olhares, ou de olhares conjuntos, às questões que emergiram na área da saúde com consequentes repercussões em todas as áreas da vida social. Temos então a Bioética e o Biodireito. 13 3 CONCEITUANDO Para melhor nos situarmos nas dimensões do nosso assunto principal é imprescindível que assentemos entendimento acerca de alguns conceitos que, certamente, ampliarão a compreensão acerca da disciplina. Sendo o humano um ser curioso, questionador, buscador de soluções, consideramos interessante apresentarmos os termos em forma de questões e sugerimos que antes de ler a definição oferecida responda você mesmo às perguntas, busque dentro de você a resposta e irá se surpreender com a quantidade de saberes que possui. Mas, o que é conceituar? De acordo com a doutrina do Conceitualismo, os conceitos são ideias trazidas para o mundo real com a finalidade de organizar nossos padrões de conhecimento. É, portanto, a objetivação de ideias. Por meio dos conceitos expressamos e unificamos um saber. Conceito é um modo de expressar uma compreensão. Conceituamos a partir de experiências e de intuições. Conceituar é, enfim, formular uma opinião por meio de palavras. Os conceitos que traremos a seguir têm o objetivo de suprir nossas imediatas necessidades de compreensão do surgimento e do valor da disciplina “Biodireito” e do lugar de sua inserção no mundo relacional e seu vínculo com outros saberes. Os objetivos de nosso curso não comportam aprofundamentos acerca de cada área do saber. Aqueles que porventura desejarem maior profundidade conceitual dos termos poderão buscá-la nas obras relacionadas na bibliografia e nos sites que indicamos ao final. Passemos então às conceituações. Primeiro pense, sinta, medite, qual é a conceituação que há dentro de você acerca de cada termo? Podemos aprender somando, acrescendo o novo àquilo que já sabemos, mas muitas vezes é preciso desconstruir nossas velhas convicçõespara tomar parte no novo. 14 3.1 O QUE É ÉTICA? Ética é parte da filosofia que trata de princípios e valores que regem as relações humanas. Faz reflexões acerca do bem e do mal, do certo e do errado, levando em consideração valores gerais e abstratos, e regras universalmente aceitas. Retirando o conceito de ética do mundo das ideias e trazendo para o mundo dos fenômenos, da realidade social, traçaremos aqui uma breve diferenciação entre as regras da ética e as regras da técnica. Ética e Técnica são estabelecedoras de normas, de ditames comportamentais. Entretanto, as normas estabelecidas pela técnica diferem substancialmente das normas ditadas pela ética. As normas técnicas são obtidas após exaustivas observações dos fenômenos e repetitivas experimentações. Conclui-se assim que para que se obtenha o resultado desejado é preciso que se repitam os mesmos passos sem modificações. A esse guia de procedimentos para se obter um resultado desejado denominamos técnica. Normas técnicas referem-se à atuação do homem no ambiente em que vive e sobre seus fenômenos, no intuito de obter maior proveito das atividades, tais como maior produtividade, maior segurança, maior conforto. A inobservância de uma norma técnica trará consequências indesejáveis, ou pelo menos não levará ao resultado pretendido. O objetivo técnico depende inteiramente de que sejam seguidas, fielmente, as regras prescritas. As normas técnicas para um procedimento cirúrgico, as regras de técnica jurídica para petição em juízo, as regras para uma edificação, são exemplos de regras técnicas que devem ser rigorosamente observadas sob pena de não se atingir ao objetivo almejado. As normas éticas estabelecem as regras de convívio entre as pessoas. Estabelecem comportamentos individuais adequados ao bem-estar coletivo. São universais. Integram o indivíduo ao grupo social. Enquanto as normas técnicas determinam “como fazer” para alcançar um objetivo, as normas éticas nos questionam “para que” comportar-se de tal modo e “por que” se pretende alcançar determinado objetivo. Enfim, enquanto a norma técnica regula o “fazer” para se alcançar um objetivo, a norma ética refere-se ao “ser”, volta-se para a razão, para a consciência humana. 15 Para uma única ação poderemos ter normas técnicas e normas éticas. A manipulação de substâncias agressivas ao ser humano deve obedecer a um rigoroso procedimento técnico e deve ter um fim ético. Também as regras da técnica jurídica não dispensam as normas da ética para que a realização da justiça seja alcançada. A Ética, enquanto estipuladora de valores, estabelecedoras de comportamentos, engloba a Moral e o Direito que também são estipuladores de comportamento. 3.2 O QUE É MORAL? A moral também se refere a valores e impõe regras de convívio sendo, porém, adstrita a uma cultura, a uma sociedade, a um grupo. Enquanto a ética é universal, a moral diz respeito a grupos determinados, em locais específicos. Em certo sentido, falar em moral remete-nos a costumes, valores e normas de certos grupos, de culturas específicas. Enquanto que a ética é geral e abstrata. Quando falamos de moral estamos, geralmente, nos referindo a comportamento de um determinado grupamento que tem um consenso acerca do valor de determinadas condutas que são tidas como boas ou más, certas ou erradas. Podemos falar que há diferentes morais. A moral num país difere da moral de outros países, assim como difere entre grupos sociais dentro de um mesmo espaço geográfico. Assim, por exemplo, atitudes consideradas imorais e reprimidas no Brasil podem ser perfeitamente aceitas em outros países e vice-versa. Aquilo que é comum, habitual, aceito socialmente no Brasil poderá ser considerado imoralidade em um país de cultura mulçumana, por exemplo. Como qualquer regra as normas morais têm sanções para o caso de descumprimento. Aquele que infringe uma regra moral sofre a sanção imposta pelo grupo, com exclusão, afastamento ou sofre mesmo uma sanção interna, padecendo de culpa, de sentimento de inferioridade ou outras afecções psíquicas de caráter íntimo. O infrator de uma regra moral pode sofrer a sanção em sua intimidade com a dor da exclusão do grupo, pelo isolamento social. A moral religiosa, por exemplo, pode fazer com que aquele seguidor de determinada religião que a infringe sinta-se intimamente menor, pecador, 16 mesmo que não haja conhecimento de seus pares acerca da infração que cometeu. A sanção é de foro íntimo, é interna, é a dor de não ter atingido um ideal, de ter ofendido a Deus. 3.3 O QUE É DIRETO? Direito é um fenômeno social, é conjunto de regras dotadas de sanções que regem a conduta do homem em sociedade. Ao contrário da moral, ao direito não interessam as infrações de cunho interno, nem sanções de foro íntimo. Ao direito interessa o comportamento humano em sociedade. Não há direito para o homem solitário vivendo em uma ilha deserta. O direito reclama a existência do outro. Filosoficamente, o fato e o direito estão em oposição. Os fatos impõem-se e não podem ter sua existência afirmada enquanto não ocorrerem. Nascimento e morte, por exemplo, são fatos que se afirmam no momento em que ocorrem. Já o direito é dado, é legitimo, pode não depender de nenhum fator, nenhum acontecimento, podendo ser afirmado a qualquer momento. Como exemplo, temos o direito à vida, que em nosso ordenamento jurídico é inviolável, independentemente de qualquer fator, mas o fator morte é inexorável. Etimologicamente, Direito é aquilo que é reto, que segue sem desvios. Socialmente é aquilo que está conforme a razão, a justiça e a equidade. O ser humano com suas necessidades particulares necessita, em sua rota de evolução, de limites que minimizem os conflitos entre desejos opostos, de regras que o façam, coercitivamente, respeitarem os desejos e as necessidades alheias. A coação é o modo social de se impor comportamentos, de fazer com que se respeitem as regras e se mantenha a ordem geral em equilíbrio com os interesses individuais. Sem coação o direito como regra jurídica, como lei, como norma, como regra de comportamento será inócuo, pois aquele que descumpre a regra e não sofre qualquer penalidade não terá parâmetros para compreender a gravidade de seu gesto e certamente repetirá sua ação. Nenhuma regra de direito terá eficácia se não vier acompanhada de penalidade para o 17 caso de ser descumprida. No direito penal temos as penas, no direito civil temos, por exemplo, as multas, as indenizações, para os casos de descumprimento das regras impostas. O Direito não se concebe fora do contexto social, assim como não se pode compreender grupo social sem regras de comportamento e sem sanções para o seu descumprimento. Todo grupo tem suas regras e suas sanções. Cada família, por exemplo, tem suas normas, muitas vezes tácitas, que são construídas em silêncio, mas que todos trazem no íntimo e sabem que descumprimento e o desacordo serão geradores de atritos. 3.3.1 Direito Natural Direito Natural é aquele que transcende e orienta o Direito Positivo, também denominado de Direito Filosófico. O Direito que emana da própria natureza humana é um direito ideal, universal, justo. É um sentimento que antecede a qualquer regra positiva. Para a teoria do Direito Natural a natureza é a fonte de onde emanam os princípios inspiradores do Direito Positivo. Os romanos entendiam o direito natural como o direito de todos os homens e animais que se opunha ao direito dos homens. Vem da acepção do direito natural como direito emanado da razão divina, traz a equidade compreendida como a interpretação benigna da lei, como a humanização da interpretação legislativa, como o fundamento da igualdade entre os desiguais como realização da justiça. É um conjunto de normas imutáveis, eternas, expressões da liberdadee da dignidade humana que devem fundamentar o direito positivo civilizado. 3.3.2 Direito Costumeiro Juridicamente, costume é o princípio ou a regra que por sua prática continua com o consentimento social, que adquiriu força de norma de comportamento a ser seguida. O Direito Consuetudinário, ou Costumeiro, é compreendido como o conjunto de regras advindas do 18 costume, de práticas repetidas e aceitas socialmente. 3.3.3 Direito Positivo Direito Positivo é aquele composto de normas em uma determinada época, em um determinado lugar. No dizer de Dourado de Gusmão (2007), citado por Orlando de Almeida Seco, em “Introdução ao Estudo do Direito”: É o direito que depende da vontade humana, seja na forma legislada (lei, estatuto, regulamento, tratado internacional, etc.), seja na forma consuetudinária (costume), em ambas objetivamente estabelecidas (...) razão pela qual o direito positivo seria histórico e válido em determinados ou determináveis espaços geográficos (...) (SECO, 2007). Assim, temos o direito brasileiro, o direito espanhol, o direito argentino, etc. 3.3.4 Direito Objetivo e Subjetivo Quando falamos de “Direito Objetivo” estamos nos referindo às normas vigorantes em um determinando lugar, dirigida a todos, impondo comportamentos e cominando sanções para o descumprimento. O “Direito Subjetivo” é a norma objetiva referida a um sujeito determinado, é a regulação da própria conduta, a faculdade de agir. Temos, por exemplo, em vigor em todo território brasileiro o Código do Consumidor, que são as regras que regulamentam as relações 19 de consumo, é direito objetivo. A partir do momento em que um cliente busca atendimento profissional para a solução de uma questão de saúde estabelece-se entre ele e o profissional uma relação jurídica de consumo, que deve obedecer às regras consignadas naquele código (direito objetivo) e que permitem ao cliente exigir do profissional a prestação do serviço e ao profissional o pagamento do preço ajustado. A estas faculdades de ambos chamamos de direito subjetivo. Podemos afirmar então que direito subjetivo é o direito objetivo que sai do papel e vem para a existência no mundo. 3.3.5 Direito e Moral Direito, então, é o conjunto de regras, emanadas de um poder externo, que regem as condutas sociais. O direito difere da moral, que também dita regras de comportamento, mas que provém da cultura de grupos sociais. Encontramos, muitas vezes, valores morais diferentes dentro de um mesmo território politicamente organizado. Um bom exemplo são as diferentes religiões dentro do território brasileiro e cada qual ditando suas regras morais. Em cada religião há valores morais que diferem das outras. As sanções para a transgressão dos valores morais serão internas, as pessoas podem se sentir culpadas, punidas e, às vezes, podem mesmo ser banidas do convívio com o grupo. As penas para as transgressões morais não são emanadas de poder externo, são de foro íntimo, não atingem a todos indiscriminadamente, mas apenas aos integrantes daquele grupo. 20 3.3.6 Saúde, o que é? A Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS), em seu preâmbulo, define saúde como: “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não consistindo somente da ausência de uma doença ou enfermidade”. Ao nos deparamos com tal afirmação temos a impressão de estar não diante de um conceito, mas de um desafio. É mais do que um conceito, é uma meta a ser alcançada. Se para ser e estar saudável o ser humano deve estar gozando de “bem-estar físico, mental e social” é necessário que nos desfaçamos de velhos conceitos e preconceitos, que permitamos a entrada em nossas vidas, em nossas práticas, de novos paradigmas para ampliarmos nossa compreensão e verificarmos que todos nós, de todas as áreas do conhecimento, estamos implicados na promoção da saúde. O bem-estar, conforme consignado pela OMS, é expressão que nos remete a um estado de ausência de transtornos físicos, psíquicos e sociais. E o que isso quer dizer? Em suma, temos a afirmação de que a saúde não se resume ao corpo físico, ao equilíbrio fisiológico, mas que depende também do equilíbrio emocional, das relações entre os seres, da inclusão social, do equilíbrio socioeconômico. Para falarmos em saúde sob o signo do atual paradigma é necessário olharmos o ser humano de modo integral; um ser biopsicossocioespiritual, para além do corpo físico. É preciso atentar para o ser emocional, o ser de relações pessoais e sociais. Pierre Weil (2002), no Simpósio “O Espírito na Saúde, Integração das Terapias Perenes e Modernas”, que teve as palestras compiladas no livro “O Espírito na Saúde”, assim define: “a saúde verdadeira é um estado no qual se leva em consideração que tudo depende de tudo.” Esta é uma visão holística, a ideia da integralidade que buscamos. Não se pode conceber mais a saúde como ausência de doença. Saúde é muito mais que isso. Estar saudável, ter o domínio de si mesmo e a consciência de suas limitações e de suas incontáveis possibilidades. Ser saudável é ter o conhecimento de seu corpo, é estar consciente de si mesmo, de respeitar seus próprios valores e suas limitações. É tomar posse da sua vida. 21 Saudável é estar disponível para a vida em todas as suas dimensões e suas implicações, seus prazeres e dores, suas alegrias e tristezas, e ser feliz por poder experimentar sentimentos, ter sensações e se saber maior que eles. O ser humano não é a alegria, nem é a tristeza, não é o prazer, e muito menos a dor que sente. O humano é o único ser vivente que aprende com os acontecimentos. Aprende com aquilo que vivencia, que experimenta, aprende também com os acontecimentos que atingem seus semelhantes. É o único ser capaz de transcender, de ir além, de transformar e transformar-se. Saudável é perceber-se como agente participante e transformador da vida. É olhar para o outro e vê-lo como parceiro nessa caminhada. É perceber que tudo o que fazemos é parte de um enorme sistema orgânico e que não é possível caminhar sozinho. 22 4 CAMINHANDO E CRIANDO CAMINHOS NOVOS Após a formulação da ideia por meio dos conceitos resta-nos pensar, transcender ao estabelecido e refletir acerca da ligação que se pode fazer entre aquilo que já conhecemos e o novo que se apresenta. Os acontecimentos atravessam nossas vidas e clamam por definições. Não é possível lidarmos com novos acontecimentos usando velhas formulações. O novo clama por novidade, por revisão do que é velho, por transformações. Seguindo os passos de Hilton Japiassu em “O Sonho Transdisciplinar e as Razões da Filosofia”, buscamos então definições para os meios que temos utilizado para o preenchimento das fissuras do pensamento científico geradas por uma especialização exacerbada que impõe limite à engenhosidade e nega a integralidade humana. O intercâmbio entre as diversas disciplinas e seus diferentes métodos é imprescindível para a construção da almejada integralidade. É preciso que o especialista permita-se ousar, permita-se atravessar a fronteira de seu campo de estudo para interagir com outros aspectos do saber, oferecendo os seus saberes e aceitando conhecimentos diferentes, métodos diversos. A troca entre as diferentes disciplinas, a construção de uma linguagem que perpasse a todos os campos do conhecimento, trará um novo paradigma para a construção de um novo saber mais flexível, mais abrangente, mais integral. É importante que se crie institucionalmente espaços para essa troca entre os especialistas e que estes se permitam ser tocados por uma abordagem diferente daquela a que estão habituados. Tudo o que é novo encontra resistência porque questiona o que já está estabelecido, portanto esse novo caminhar depende de atitude, de perseverança.Depende da ousadia daqueles que já entenderam que a realização do espírito humano reside na expansão e não no aprisionamento e limitação de suas potencialidades. O surgimento do novo traz também a criação de novos termos, novas expressões. Precisamos então defini-los para nos sintonizarmos com as novidades, falarmos a mesma língua. Isso é imprescindível para harmonizar as discussões, principalmente quando estamos falando de novos modos de construção do saber, novas abordagens da vida. Caminhando então para a finalização desse primeiro caminhar, passemos às definições pertinentes. 23 5 NOVOS TERMOS E SUAS CONCEITUAÇÕES Palavras são representações simbólicas de ideias. A cada nova criação ressignificamos vocábulos antigos e criamos novos. Enfim, é por meio das palavras e suas significações que colocamos no mundo os saberes, que difundimos os conceitos. Atualmente sentimos que não é possível lidar com as recentes transformações e necessidades sem a ampliação do conhecimento e a conjugação dos saberes. Cada fenômeno da vida é imensuravelmente maior do que qualquer saber compartimentado, especializado. O que queremos dizer é que o aprofundamento de cada questão não poderá solucionar por si só as questões humanas, pois estas não estão confinadas em um único modo de saber. Aproveitando as reflexões e conceituações de Hilton Japiassu, examinaremos os termos que vêm sendo utilizados atualmente no mundo acadêmico e que pretendem explicar o modo como vem sendo construída a interação entre as diferentes disciplinas do mundo da ciência. 5.1 DISCIPLINA Você deve estar se perguntando por que razão o termo “disciplina”, um velho conhecido, está incluído no item que trata de conceituação de novos termos. Expliquemos. É justamente por ser um termo utilizado tão comumente e com significações diferentes que entendemos ser pertinente conceituá-lo de acordo com a significação desejável para a composição das novas expressões das quais falaremos a seguir. Para fins dos nossos estudos é importante que tenhamos em mente a ideia de disciplina como a reunião de conhecimentos, formando uma especialidade a ser estudada. 24 Referimo-nos à disciplina científica, mais abrangente do que a disciplina escolar. 5.2 OS NOVOS TERMOS Os termos que passaremos a definir referem-se não exatamente a disciplinas, mas a movimentos que vem acontecendo no mundo acadêmico. Não há conceitos prontos, fechados, mas ao contrário, estão em formação e é possível que se encontre no futuro outras definições melhores articuladas. Multidisciplinaridade, Interdisciplinaridade e Transdisciplinaridade são acontecimentos aos quais vamos tentando definir, conceituar, à medida que vão se dando no mundo dos fatos. São movimentos que partem do particular para o geral e visam à resolução das questões do cotidiano. 5.2.1 Multidisciplinaridade Um estudo, uma pesquisa multidisciplinar acontece quando várias pessoas, pesquisadores, estudiosos, profissionais de diferentes especialidades emitem seus pontos de vista acerca de um único objeto. Multidisciplinaridade é o exame, avaliação e definição de um único objeto sob diversos olhares de diferentes disciplinas. Cada especialista, neste caso, faz suas próprias observações considerando seus saberes, sem estabelecer contato com os saberes diferentes do seu. Não há, neste caso, articulações entre os diferentes pontos de vista acerca do mesmo assunto. Imaginemos vários profissionais, com especialidades diferentes, sendo chamados a emitirem parecer acerca de um mesmo paciente. Viria o cardiologista, o dermatologista, o nutricionista, o psicólogo, por exemplo, e cada um emitiria seu parecer com base em seus 25 próprios conhecimentos, sem fazer qualquer contato com os outros profissionais e seus saberes. Ou, ainda, que vários advogados, juristas, especialistas em direito tributário, direito do trabalho, direito econômico sejam chamados a opinar acerca de uma determinada ocorrência e deixem seus pareceres sem se comunicarem uns com os outros. Não há no trabalho multidisciplinar qualquer intenção de se estabelecer relações diretas e integrativas entre as diversas disciplinas. O que se pretende com a reunião das diferentes especialidades é que cada especialista emita um ponto de vista único, a partir de seus saberes particularizados. 5.2.2 Interdisciplinaridade O trabalho interdisciplinar é articulado entre especialidades distintas com o estabelecimento de diálogo entre seus saberes. A interdisciplinaridade busca, diante do objeto de observação e estudo, estabelecer pontos comuns entre as diferentes disciplinas, seus métodos, suas regras, procurando sintetizá-los para a aplicação concreta. Busca-se o ponto de contato, o entrelaçamento entre as diferentes disciplinas. É interdisciplinar, por exemplo, o estudo realizado no ponto onde se dá o encontro entre a psicologia, a sociologia e o direito. Para o saber interdisciplinar a hegemonia de uma disciplina é desprezada em prol da construção de uma síntese entre as diferentes proposições. A prática interdisciplinar tem por objetivo solucionar as questões concretas que nos afligem no dia a dia. O que se quer é fazer nascer uma nova abordagem das questões do cotidiano. O trabalho interdisciplinar flexibiliza os velhos modelos de exame dos fenômenos da realidade. O movimento interdisciplinar tem seu foco no objeto a ser estudado, na solução das questões reais, objetivas e não na defesa de posições ortodoxas, nas pretensões de ser o detentor da verdade, nas posições acadêmicas. Pode acontecer que das investigações conjuntas e da busca pelo ponto comum das diferentes disciplinas surja outra disciplina, embora não seja este o objetivo primário, gerada pela 26 interdisciplinaridade, como por exemplo, a bioquímica. 5.2.3 Transdisciplinaridade O estudo transdisciplinar atravessa o campo das disciplinas, estabelecendo-se no âmbito do conhecimento indiviso. A transdisciplinaridade conjuga e transcende aos diversos campos cognitivos com vistas à produção de um novo saber, à construção de novo paradigma que permita a interação das diferentes expressões do conhecimento. O saber transdisciplinar não despreza o conhecimento disciplinar, aproveita-o, expande-o, trazendo-o para o mundo dos fatos, da realidade. A visão transdisciplinar é ampla, globalizante, inclusiva, não despreza saberes, ao contrário, percebe no diferente a oportunidade de crescimento. Não há qualquer pretensão de fazer nascer uma nova disciplina, mas de integralizar a visão de mundo. A transdisciplinaridade permite que coexistam saberes distintos, prescindindo de formas instituídas. Constitui um novo campo onde coexistem as ciências humanas e as ciências da natureza, sem hierarquias. Busca o saber no interior da cultura, nas construções filosóficas e científicas. Todos partilham o mesmo espaço. Reúne em torno do mesmo objeto diversos segmentos sociais com seus saberes distintos. O homem de dentro e de fora se expressa livre e harmonicamente. Não há intenção de criar novas disciplinas, nem novos termos, ou uma nova técnica, mas de ir além do que já está posto e lançar um olhar unificado, sem hegemonia, sem hierarquia, mas harmônico, completo, integral. E a razão de tal fenômeno está no afastamento que se dá entre o saber e a realidade. Seja qual for a origem do saber, científico ou filosófico, para que sobreviva ao mundo da pós-modernidade é necessário que seja aplicável à realidade comum, que seja palpável por todos os mortais. Não se pode permanecer perscrutando o que está além sem se olhar para o que está acontecendo ao redor. 27 6 O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE Podemos falar de solidariedade sob pontos de vista diferentes, mas o resultado será sempre semelhante. A solidariedade acontece quandoo homem toma consciência da interdependência que há entre ele e seus semelhantes. Decorre das obrigações recíprocas que temos uns com os outros. Quanto menos racional, mecanizado é o ato solidário, quanto mais dotado de verdade, de gentileza, maior será a liberdade de cada um. O sentido da solidariedade na biologia é de uma interdependência orgânica. Reciprocamente há uma dependência sistemática, na micro ou na macrobiologia. A solidariedade é mais do que um envolvimento emocional com a causa. A solidariedade pressupõe ações modificativas da situação que gera a dor para outrem. 6.1 SOLIDARIEDADE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL O art. 3º, inciso I, da Constituição Federal, norma programática, traça as metas que deverão nortear as políticas públicas do Estado brasileiro: TÍTULO I Dos Princípios Fundamentais Art. 3º - Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- construir uma sociedade livre, justa e solidária. (CF/88, art. 3º, inciso I). 28 Ao constitucionalizar metas, tais como erradicação da pobreza e marginalização, redução das desigualdades, o legislador constituinte consagrou o princípio da solidariedade, alçando-a o nível de fundamentação das relações intersubjetivas na sociedade. Tirou-a do plano da transcendência e trouxe-a para o mundo dos acontecimentos, para o concreto. Assim, foi consagrada no mundo jurídico a necessidade da colaboração intersubjetiva. O coletivo e o individual interagindo. O bem de um interligado ao bem do outro, vinculado ao bem do conjunto. É o prestígio da colaboração à frente da obrigação. 29 7 HUMANISMO IDEAL, HUMANIDADES E HUMANISMO JURÍDICO Usarmos o vocábulo humanidade com diversos sentidos. Usamos a palavra para designar o conjunto dos seres humanos, mas também para designar atributos positivos. Costumamos qualificar as ações com a expressão humanidade. “Agir com humanidade” dá a ideia de uma ação eivada de bondade, de delicadeza, de justiça. “Tratamento desumano” é aquele onde não há respeito à dignidade da pessoa. 7.1 HUMANISMO O movimento humanista nascido no fim da Idade Média teve como escopo principal a demonstração da grandeza humana, da dignidade do ser humano. Movimento de confiança na razão e no espírito crítico. O termo ‘humanismo’ alargou-se e ganhou novas significações. Filosoficamente, humanismo significa a doutrina que tem o ser humano como centro de suas reflexões e, como consequência, o humanismo pretende encontrar os meios para as realizações humanas. Para a filosofia humanista o homem é o centro de tudo. Todas as atitudes devem ter como parâmetro a dignidade do homem. Na atualidade o humanismo vê o homem como construtor de si mesmo. Não há dúvidas de que a evolução humana tem origem no próprio homem. O homem é criador de si mesmo. 30 7.2 HUMANIDADES Atualmente usa-se no meio acadêmico o termo “humanidades” para designar os saberes necessários à formação do ser humano, à construção de subjetividades, à incorporação de valores. A finalidade almejada pelas disciplinas denominadas humanas, incluindo as artes, não é a construção nem transmissão de saberes científicos e é justamente neste aspecto que reside a dificuldade acadêmica das “ciências humanas”, pois há a pretensão das ditas “humanidades” e a edificação do ser humano de acordo com um ideal de civilidade. A conquista da consciência de que a cientificidade deve obediência aos valores éticos e respeito à dignidade humana trouxe à bioética e ao biodireito as luzes do humanismo. A justiça está inegável e irremediavelmente vinculada aos progressos científicos. Não se pode vilipendiar a dignidade e a personalidade em nome de quaisquer avanços em nome da ciência. É inconcebível que se fale em progressos científicos em prol da humanidade, que é uma abstração, e se desrespeite ao ser humano que se apresenta concretamente expondo-se aos riscos das pesquisas. A grande conquista da humanidade é a consciência do respeito ao ser humano, seus valores, sua dignidade, sua liberdade. 7.3 HUMANISMO JURÍDICO As concepções do Humanismo influenciam de modo muito positivo as construções jurídicas, dando início ao movimento de Humanismo Jurídico. A ordem jurídica positiva não pode ser contrária aos direitos humanos, que são o conjunto das necessidades básicas de todo ser humano e a garantia de suas satisfações. O Direito Positivo, que se consubstancia nas regras, nas leis internas, não pode se contrapor aos ideais de justiça nem à ética exigida pela dignidade do ser humano. Embora ainda haja no mundo muita resistência, muita luta para a manutenção de 31 privilégios. Embora a força militar e a força econômica ainda sejam armas para impedir mudanças que tragam melhor divisão das riquezas, maior liberdade, menos humilhações, menos preconceito e discriminação, e mais respeito à dignidade, já podemos perceber as mudanças no direito positivo de todos os povos. 32 8 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE HUMANA Conforme temos afirmado desde o início da nossa conversa, estamos tratando de saberes em construção, estamos falando do novo. Assim sendo, a construção do conhecimento vai se dando à medida que os fatos, que as transformações das relações humanas vão acontecendo. Tratar de conhecimento em seu nascedouro é ousar falar daquilo que se transforma e que nos transforma, que nos inquieta, e que está em permanente crescimento e modificação. Devemos ter em mente que o farol que deve nos guiar por todo o caminho do saber é o respeito e a preservação da dignidade do ser humano. O centro de todas as pretensões progressistas deve ser a pessoa e sua dignidade. As novas técnicas devem ter por objetivo a maior interação humana. Devem estar a serviço do bem- estar, da dignidade humana. Não se poderá falar em avanços científicos ou tecnológicos se não estiverem fundados no bem-estar do ser humano, na defesa e manutenção da sua dignidade. Sendo a pessoa humana o centro de todas as atividades, de todos os saberes, passaremos agora às considerações sobre a Dignidade Humana. 8.1 OS PENSADORES Immanuel Kant Kant defendia a possibilidade da convivência harmônica entre a ciência e a moral. Sua principal obra é a “Crítica da Razão Pura” e seu pensamento é o maior influenciador da filosofia contemporânea. Em sua análise dos fundamentos da lei moral, formulou o seguinte princípio: “Age de tal forma que a norma de tua ação possa ser tomada como lei universal”. Para Kant Dignidade tem a seguinte definição: “Aquilo que constitui a condição única, 33 permitindo que algo possua um fim em si, não somente tendo um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor intrínseco, ou seja, uma dignidade.” Quando afirmamos a dignidade do ser humano estamos, portanto, falando de seu valor intrínseco, não de valor relativo. A existência humana tem um valor em si mesmo, sem que precise estar relacionada a nada mais. O nascimento do ser humano já é por si só um fato merecedor do mais profundo respeito e reverência, devendo ser o núcleo de todas as atividades, científicas ou não. Giovanni Pico Della Mirandola Humanista excepcional, considerado na Itália como o mais sábio, belo e rico de sua época. Seus textos têm beleza e leveza ímpares, e datam do século XV, mas possuem uma dimensão atemporal. É corrente o entendimento de que seu pensamento demonstra preocupação com a tecnologia. Hoje é eticamente inconcebível a existência de ordenamentos jurídicos ofensivos à dignidade humana, embora em algumas sociedades as regras jurídicas ainda sejam instrumentos de repressão. Todos os ordenamentos jurídicos de todas as sociedades deveriam se pautar no respeito à dignidade do ser humano. A responsabilidadepelas escolhas que se faz depende da liberdade que se tem para fazê-las. Em novembro de 1975 a ONU, no art. 6º da Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, assim pronunciou-se: Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto materiais, das possíveis consequências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo ou do grupo, em particular em respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual. (ONU, 1975). 34 O Conselho da Europa adotou, em novembro de 1996, a prescrição do art. 2º da Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina que afirma que: “os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência.” 8.2 A DIGNIDADE NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL A Constituição é lei, na qual se fundamentam as regras de organização do Estado, ou seja, uma sociedade politicamente organizada composta de território, povo e soberania. Para nossos propósitos do momento não é necessário aprofundamento acerca da formação do Estado. Importa-nos saber apenas que as regras de convivência dentro da nossa sociedade estão fundadas na Constituição da República. Alexandre de Moraes (2005), citado por Nelson Rosenvald em “A Dignidade Humana e a Boa-Fé no Código Civil”, assim a define: A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (ROSENVALD, 2005). Concluímos então que a dignidade é um atributo inato, natural do ser humano. A pessoa deve, apenas por sua existência e essência, ser respeitada pelo Estado. O poder estatal não pode desconhecer a dignidade da pessoa. A dignidade, sendo um atributo inato, antecede a qualquer direito, constituindo-se como um valor ético. É o núcleo de qualquer direito. A dignidade é um valor da ética. 35 A dignidade não é um valor cultural. É um valor que antecede a qualquer cultura. Antes de se agrupar o homem traz em si a dignidade, ela não lhe é conferida socialmente, pelo contrário, a dignidade social é garantida pelo respeito à dignidade individual. No Título I que trata dos Princípios Fundamentais, ou seja, dos princípios que constituem a base da República, a Constituição Federal consigna a “dignidade da pessoa humana” como um dos pilares do Estado Democrático de Direito, conforme transcrevemos: DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui- se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II- a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV- os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V- o pluralismo político. Parágrafo Único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta constituição. (CF/88, art. 1º, grifo nosso). 8.3 A DIGNIDADE COMO PRINCIPIO FUNDAMENTAL E qual seria então a importância de estar consignada “a dignidade da pessoa humana” 36 dentre os princípios fundamentais da nossa Constituição? Se os princípios fundamentais são as diretrizes do nosso ordenamento jurídico, isto é, se qualquer norma legal deve estar em sintonia com os princípios fundamentais da República democrática, concluímos que qualquer regra de conduta para ter validade em nosso território não poderá ser ofensiva à dignidade da pessoa humana. E mais que isso, o não atendimento a um princípio fundamental é de extrema gravidade, pois significa desrespeito a todo o sistema jurídico, teremos uma insubordinação aos valores socialmente considerados como fundamentais, como imprescindíveis para a existência do Estado Democrático de Direito. A dignidade deve ser o valor que orienta as atividades humanas, inclusive e, principalmente, àquelas que têm existência no mundo jurídico. A inserção da dignidade como fundamento do Estado Democrático de Direito é a garantia de que o sistema normativo do Estado brasileiro estará comprometido com o respeito à dignidade do ser humano. Todo o ordenamento jurídico brasileiro deve respeitar a dignidade da pessoa, que é o começo e fim de todos os objetivos sociais. Nenhuma regra de conduta que ofenda a dignidade deve ter aplicação. O princípio da Dignidade Humana deve ser a base de toda construção normativa social. A pessoa deve ser a razão primeira e última das regras sociais ou institucionais dentro do território nacional. Chamamos a atenção para o seguinte: estamos falando de reconhecimento dos valores humanos, do respeito à dignidade e não podemos evitar a perplexidade ao tratar de tal assunto porque é certo que é o ser humano que olha para seu semelhante como objeto e não como sujeito de direitos. É o mesmo ser humano que reivindica seus direitos, que se entende merecedor de privilégios, como se sua vida, sua dignidade, tivesse mais valor do que a vida e a dignidade de seu semelhante. Por essa razão pensamos que para que se possa compreender verdadeiramente o significado e o valor de cada regra é necessário buscar dentro de si mesmo o valor da dignidade. 37 9 PERSONALIDADE A Personalidade é atributo jurídico para o desempenho dos papéis sociais. Diferentemente da Dignidade, que é um atributo inato do ser humano, a Personalidade é uma atribuição jurídica. Filosoficamente, Personalidade é “o conjunto de qualidades que constituem a pessoa”, conforme De Plácido e Silva, in “Dicionário Jurídico”. Historicamente, temos diferentes modos de atribuição da personalidade ao homem pelo ordenamento jurídico. Na Idade Média o status social era determinante para o reconhecimento jurídico da personalidade. Chegando à Modernidade, e ao liberalismo do século XIX, temos a vinculação do indivíduo ao patrimônio. Para ser “sujeito” de direito, de relações jurídicas era necessário ser proprietário de bens materiais. O humano foi desvalorizado em si mesmo, passando a instrumento do mercado. E sendo a pessoa proprietária de seu próprio corpo, a ideia liberal era de que este era também comercializável. O corpo, sendo de propriedade da pessoa era, de acordo com as concepções da época, coisa dentro do comércio, podendo inclusive ser reivindicado pelo credor em face da inadimplência do devedor. Para o liberalismo não havia preponderância do valor humano em si sobre a prescrição jurídica. Nossa Codificação Civil de 1916 foi contaminada pelo ideário liberal e também não dedicava, como faz o Código Civil de 2002, um capítulo aos Direitos da Personalidade. Tendo a criatura humana um valor em si mesmo, podemos entender que o reconhecimento deste valor é que dá origem aos direitos concedidos pela ordem jurídica. 9.1 DIREITOS DA PERSONALIDADE 38 Francisco Amaral (2005), citado por Nelson Rosenvald in “Dignidade e Boa-Fé no Código Civil”, conceitua os direitos da personalidade como “direitos subjetivos que têm por objetivo os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual.” Quando falamos em direitos à personalidade estamos nos referindo à pessoacomo centro do bem a ser tutelado pela ordem jurídica. Os direitos da personalidade são oponíveis erga omnes (em relação a todos, indistintamente), o quer dizer que devem ser respeitados por quem quer que seja. O limite do direito da personalidade é o direito do outro. É dever de todos o respeito aos direitos da personalidade de outrem e, consequentemente, de abstenção de prática que venha a lesar àqueles direitos. Os Direitos da Personalidade têm caráter extrapatrimonial e são indisponíveis. Significa que além de imensuráveis quantitativamente, não têm valor de mercado e ninguém deles poderá privar-se. Não é possível a expropriação, isto é, a perda dos direitos da personalidade. São direitos inatos. Extinguem-se os direitos da personalidade apenas com a morte do ser humano, embora alguns atributos desses direitos possam ser estendidos após, possibilitando aos descendentes a preservação da memória e da dignidade do morto. Todos têm direito a reivindicar o direito à diferença, à individualidade. Entretanto, necessário se faz para a saúde social que cada um, ao se reconhecer como ser único também reconheça no outro um titular dos mesmos direitos à diferença, merecedor de respeito a seus valores e crenças. Não podemos esquecer que toda coletividade é uma soma de individualidades. A dignidade e a personalidade não podem ser sobrepujadas por quaisquer outros interesses. O interesse pelo coletivo não pode ignorar o individual. O interesse econômico não pode ser um atentado contra a dignidade e a personalidade. Globalização e avanço tecnológico não podem desprezar a solidariedade, massificar o ser humano, tornando-o objeto. E o que é mais estarrecedor é que todos os desrespeitos, todas as violações desses direitos, da dignidade, seja pela busca de lucro, seja em nome do progresso da ciência, são cometidos pela vaidade, pelo egoísmo de seres humanos escondidos atrás de discursos progressistas. O ser humano é, em si mesmo, o maior valor, a razão de existência da sociedade, não pode ser tratada como meio, pois que toda a batalha humana tem por fim tornar melhor a própria vida humana. 39 9.2 DIREITOS DA PERSONALIDADE NO CÓDIGO CIVIL Consagrando os direitos da personalidade e tendo a dignidade como núcleo do direito privado, o Código Civil trata Dos Direitos da Personalidade, do art. 11 ao art. 21. Consagra-se o direito civil como direito da pessoa e não do patrimônio. A pessoa deve preponderar sobre o patrimônio, este só existe em função daquela, e não o contrário. A existência da pessoa independe do patrimônio, cujo valor é atribuído justamente pela pessoa. Não há patrimônio sem a existência da pessoa. Todos têm a faculdade de exercício de seus atributos da personalidade. Todos têm direito à vida, direito ao nome, direito ao corpo, sendo este limitado pelos bons costumes e pela preservação da integridade física. O próprio Estado cuida de proteger a integridade física do indivíduo. A seguir transcreveremos os artigos 11 a 15 do Código Civil: Capítulo II Dos Direitos da Personalidade Art.11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos à personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária. Art.12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei. Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimidade para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau. Art.13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do 40 próprio corpo, quando importar em diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes. Parágrafo único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Art.14. É válida com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte. Parágrafo único. O ato de disposição pode ser revogado a qualquer tempo. Art.15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica. (CÓDIGO CIVIL, art. 11 a 15). 41 10 INDIVIDUALISMO, LIBERALISMO E ANARQUISMO O individualismo, teoria surgida no século XIX, considera que sociedade nada mais é do que a soma de individualidades, sem que se cogite da interação e da colaboração entre seus membros. O cerne da doutrina do individualismo é a defesa de que os direitos individuais devem ser preservados e protegidos pelo Estado. O individualismo é uma forma de liberalismo. Tanto o liberalismo quanto o anarquismo defendem a preservação da liberdade individual diante das pressões sociais. Para o liberalismo o Estado não deve intervir nas relações intersubjetivas, respeitando as vontades individuais. O poder estatal é limitado. O anarquismo prega a liberdade da organização humana em grupos, por acreditar que os homens são essencialmente bons e sociáveis e não precisam do Estado. Em sentido oposto encontramos a teoria do coletivismo, que afirma a despersonalização do indivíduo para dar origem à comunidade, não se falando em direitos da pessoa, visto que esta só existiria em função da sociedade. Nenhuma dessas teorias se sustenta, pois tem visões limitadas e idealistas que não se apoiam na realidade humana. O ser humano não pode viver egoisticamente. As diferenças individuais são complementares. É a relação de troca entre os seres humanos que possibilita a realização de desejos, o suprimento de necessidade, a sobrevivência e um viver digno, material e psicoemocional. 42 11 INTERESSE PÚBLICO E BEM COMUM Por último, mas não menos importante examinaremos o significado das expressões “Bem Comum,” para onde deverão convergir as atividades públicas e particulares, e “Interesse Público”. 11.1 BEM COMUM O homem é um ser social. Os anseios de progresso, de transcendência, só podem ser realizados na presença do outro. O valor intrínseco do ser humano, seu valor em si mesmo, só pode ser reconhecido na vida em sociedade. Ao contrário da ideia da dignidade, que é um atributo, um valor intrínseco do ser humano, o ‘Bem Comum’ é um princípio que só faz sentido na vida em sociedade. Alceu Amoroso Lima, citado por Yves Gandra Martins (2009) em artigo dedicado ao Bem Comum afirma: “A Alma do Bem Comum é a solidariedade. E a solidariedade é o próprio princípio constitutivo de uma sociedade realmente humana”. O Bem Comum é o bem do indivíduo que é parte da comunidade. O bem da comunidade é o bem de cada indivíduo que a compõe. Cada integrante da comunidade deseja o bem desta uma vez que será seu próprio bem. O bem particular almejado é em última análise a felicidade, que mesmo tendo um conceito abstrato/subjetivo tem um significado geral de satisfação de seus anseios, de interesse alcançado. Ao aspecto transcendental do homem interessam os bens espirituais, enquanto sua natureza animal tem exigências de ordem material. Tanto um quanto outro aspecto deve ser alvo de cuidado e atenção, pois o ser humano tem necessidades biopsicossocioespirituais que 43 precisam ser satisfeitas. Os homens unem-se socialmente e organizam a sociedade que compõem em função “bem comum” que pretendem alcançar. E que se distingue do bem particular buscado individualmente por cada um, isoladamente. 11.2 INTERESSE PÚBLICO Quando o bem é almejado pela comunidade temos então o Interesse Público. O interesse público é a relação entre uma determinada sociedade e o Bem Comum que pretende. Cabe aos componentes do grupo social que estão investidos de autoridade a persecução do bem almejado
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