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MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA 55 PARTE II Os Fenômenos no Campo do Vínculo Analítico 4 O Primeiro Contato. A Entrevista Inicial. Os Critérios de Analisabilidade. O Contrato Não existe experiência mais terrível para uma criança – futuro adulto – do que não se sentir entendida, escutada e vista; em contrapartida, nada é mais importante na entre- vista inicial que o paciente saia da sessão com a sensação, em relação ao analista, de que foi compreendido, escutado e de que encontrou um amigo. personalidade possivelmente frágil e temero- sa de um rechaço) ou, em outro extremo, por uma entonação vocal que desperta no terapeu- ta uma sensação de arrogância, de mando- nismo, com um certo desprezo (em um tom categórico: “Eu só posso ir aí na quinta-feira, bem no fim da tarde...”), pode estar comuni- cando que se trata de alguém que esteja se defendendo de suas angústias por intermédio de uma configuração narcisista da personali- dade. Outras vezes, as evidências são de natu- reza paranóide (fazem uma série de pergun- tas, de modo um tanto desconfiado e defensi- vo), depressiva (a tonalidade vocal, às vezes, chega a ser inaudível), extremamente depen- dente (induzem a que outras pessoas façam o primeiro contacto), ou, mesmo à distância, já despertam uma empatia no analista, e assim por diante. Há inúmeras outras possibilidades de uma significativa forma de comunicação, embora algo virtual. A ENTREVISTA INICIAL Independentemente se o tratamento será sob a forma de uma análise clássica, com os seus conhecidos parâmetros mínimos, ou de alguma modalidade de terapia de base psica- nalítica, é necessário que o analista tenha uma idéia razoavelmente clara das condições psí- quicas e pragmáticas que tanto ele quanto o O PRIMEIRO CONTATO DO PACIENTE COM O ANALISTA Comumente, o primeiro contato que um pretendente a tratamento analítico estabelece com o analista é por meio de uma chamada telefônica, ora falando diretamente, ora dei- xando um recado para que a ligação seja retornada. O que cabe consignar é que já aí começa a formação de algum tipo de vínculo, o qual pode vingar ou não. De fato, a forma como o possível paciente utiliza a sua condu- ta, atitude e linguagem podem estar expres- sando uma importante maneira de comunica- ção, portanto, um jeito seu de “ser”, em um nível que extrapola o da linguagem unicamen- te verbal. Assim, se ele vem protelando de longa data esse primeiro contato com o terapeuta que alguém lhe indicou (geralmente algum paci- ente ou ex-paciente desse analista, algum ami- go, médico, familiar, ou por conhecimento pré- vio em determinadas circunstâncias, etc.), pode ser um sinal indicador de que ele ou não está suficientemente bem motivado para uma aná- lise ou já esteja expressando temores próprios de uma caracterologia fóbica ou de uma típica indecisão obsessiva. Da mesma forma, é possível observar quando o provável paciente emprega uma lin- guagem por demais tímida, entrecortada por pedidos de desculpas “por estar atrapalhando” e outras expressões similares (revelando uma 58 DAVID E. ZIMERMAN pretendente à análise possuem antes de enfren- tar uma empreitada dessa envergadura, tendo em vista que provavelmente será longa a du- ração da terapia, possivelmente bastante cus- tosa para as possibilidades econômicas do pa- ciente, sem garantia de sucesso, em uma tra- jetória que, à parte das gratificações, inevita- velmente também passará por períodos difí- ceis, com muitos imprevistos, incertezas e sofri- mentos. Também é útil destacar que no primeiro contato já se instala um estado de, digamos assim, pré-transferência. Isso está de acordo com a palavra “contato”, que em nosso idioma forma-se de “com” (significa “junto com”) + “tato” (trata-se de um ”pele a pele” emocional, que tanto pode evoluir para um rechaço quan- to para uma empatia), ou seja, alude a como, mutuamente, cada um está “sentindo” o ou- tro, não obstante a possibilidade de que o in- tuitivo contato inicial, quer no extremo de uma idealização ou de um certo denegrimento, não se confirme no curso posterior da terapia psicanalítica. Conceituação de entrevista inicial Esta expressão, embora apareça na for- ma singular, não deve significar que se refira, sempre, a uma única entrevista prévia à efetivação do contrato analítico, ainda que, muitas vezes, possa ser assim, porém, em mui- tas outras situações, essa necessária avaliação pode demandar um período mais longo, com um número bem maior de entrevistas prelimi- nares. Em certas circunstâncias, o terapeuta já sabe antecipadamente que não terá condições (por exemplo, por falta de horário disponível) de assumir o compromisso de um tratamento analítico, porém pode se mostrar disponível – sempre que o paciente insista, mesmo tendo ficado claro que ele não o atenderá de forma sistemática – para fazer uma entrevista de ava- liação, com o objetivo de traçar uma orienta- ção ou de ter melhores condições para proce- der a um encaminhamento. Neste último caso, em minha experiência pessoal, quando avalio uma pessoa, ao vivo, sinto uma espécie de feeling de que para um tal paciente tal terapeuta deva ser a pessoa mais indicada. Igualmente, é útil estabelecer uma diferença conceitual en- tre “entrevista inicial” e “primeira sessão”. A(s) “entrevista(s) inicial(ais)” antecede(m) o con- trato, enquanto a “primeira sessão” concerne ao fato de que a análise já começou formal- mente. É claro que a duração da entrevista ini- cial depende das circunstâncias que cercam o encaminhamento do paciente, de modo que é muito diferente se ele já tem uma idéia razoa- velmente clara do que consiste uma análise, com a probabilidade de que tenha sido avalia- do por um colega reconhecidamente compe- tente e que já tenha feito uma sondagem e tro- ca de impressões com o analista para quem está encaminhando; ou, então, trata-se de um pa- ciente que não foi avaliado por ninguém, uni- camente quer livrar-se dos sintomas que o ator- mentam e não tem a menor idéia do que é en- frentar uma análise standard. No entanto, em qualquer dos casos, é imprescindível que essa entrevista inicial seja levada a sério e com pro- fundidade, até mesmo pela razão singela e ao mesmo tempo profunda de que tanto o analis- ta quanto o paciente têm o direito de decidir se é com essa pessoa estranha que, reciproca- mente, cada um deles têm à sua frente, dese- jam partilhar um convívio longo, íntimo e imprevisível. Finalidades da entrevista inicial Além dos objetivos mencionados, o pro- pósito fundamental do contato preliminar é de o psicanalista avaliar as condições mentais, emocionais, materiais e circunstanciais da vida do paciente que o buscou; ajuizar os prós e os contras, as vantagens e as desvantagens, os prováveis riscos e os benefícios; o grau e o tipo de psicopatologia, de modo a permitir alguma impressão diagnóstica e prognóstica e reconhe- cer os efeitos contratransferenciais que lhe es- tão sendo despertados. Assim, balanceando todos esses fatores, poder discriminar qual a modalidade de terapia psicológica será a mais indicada para esse paciente e, mais ainda, no caso de a indicação ser uma análise, se ele real- mente sente-se em condições e se, de fato, quer ser o terapeuta desse paciente. Partindo do que foi dito, pode-se depreen- der a importância de que o terapeuta na entre- MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA 59 vista inicial construa uma razoável impressão diagnóstica do paciente, sempre levando em conta que existem diferentes tipos, níveis e perspectivas de diagnóstico clínico, conforme for o “eixo” adotado, de acordo com as moder- nas classificações do DSM-IV-TR (assim; o eixo I refere-se aos aspectos sindrômicos; o eixo II, aos de tipos e transtornos de personalidades; o III, aos transtornos físicos; o eixo IV, aos estres- sores; enquanto o eixo V alude ao nível de fun- cionamento). Uma outra abordagem para a elabora- ção de uma impressãodiagnóstica consiste em considerar, distintamente, entre outros enfo- ques: 1. Nosológico (uma determinada cate- goria clínica). 2. Dinâmico (a lógica do incons- ciente), 3. Evolutiva (cada etapa, com prepon- derância de vazios, carências orais, defesas obsessivas anais, etc., implica alguma adequa- ção técnica específica). 4. Funções do ego (por exemplo, a “capacidade sintética do ego” já é um nível elevado que permite simbolizar si- multaneamente significações opostas e ou con- traditórias). 5. Configurações vinculares (den- tro da família ou fora dela, nos grupos em gerais, etc.). 6. Comunicacional (na atualida- de, esse aspecto adquire uma grande relevân- cia). 7. Corporal (cuidados corporais, auto-ima- gem, presença de hipocondria ou de somatiza- ções...). 8. Manifestações transferenciais e con- tratransferenciais, etc. Um outro objetivo essencial da entrevis- ta inicial é a possibilidade de o analista avaliar a veracidade do paciente, além da qualidade de sua motivação, tanto aquela que ele exter- naliza conscientemente quanto a que está oculta nas dobras de seu inconsciente. Em ou- tras palavras, sem exigir um comprometimen- to absoluto do paciente para a árdua tarefa que o aguarda – até porque os seus, ainda des- conhecidos, fatores inconscientes, alguns de possível natureza fóbica ou sabotadora, tor- nam impossível que ele assuma um compro- misso definitivo –, impõe-se, no entanto, a ne- cessidade mínima de o terapeuta conferir se a sua teoria de tratamento e de cura coincide com a do paciente. De fato, não é nada incomum a possibili- dade de que o analista tenha em mente um projeto terapêutico verdadeiramente psicana- lítico, isto é, que ele esteja voltado para a ob- tenção de verdadeiras mudanças estruturais, de caracterologia, de conduta e do desabro- char de capacidades, enquanto a expectativa do paciente não vá além de uma busca de alí- vio de sintomas, ou de uma “cura mágica”, ou ainda a de contrair um vínculo com o analista pelo qual este, como um mero substituto da mãe simbiótica ou faltante, resolverá todos os seus problemas, sem que ele tenha de fazer o mínimo esforço, e assim por diante. Não obstante a possibilidade de que a impressão transmitida pelo paciente em rela- ção à sua motivação para um tratamento ana- lítico possa parecer espúria, o analista nunca deve perder de vista a probabilidade de que possa se tratar da única maneira que aquele encontrou para, cautelosamente, abrir as por- tas para uma análise, tal como costuma apare- cer em pacientes que estruturaram defesas narcisistas. Em contrapartida, outros pacien- tes, em especial os fortemente histéricos, po- dem dar uma impressão inicial de que estão muito motivados para se analisar, mostram-se colaboradores e encantam o analista com seu verbo fluente e florido. No entanto, diante das primeiras desilusões e decepções, podem de- sistir, muitas vezes de maneira abrupta. Igualmente, o terapeuta deve ter uma cla- ra noção de seus próprios alcances e limitações. Para tanto, deve possuir a condição de reco- nhecer os sentimentos transferenciais e contra- transferenciais que surgiram no curso da en- trevista; a natureza de sua provável angústia; o grau de sua empatia ou rejeição pelo pacien- te; uma sensibilidade para perceber se é com ele que esse paciente está desejando se anali- sar; se ele vai trabalhar de forma confortável diante das combinações feitas, como, por exem- plo, os valores que o paciente pode pagar, os horários esdrúxulos das sessões, que venham a perturbar o seu estilo de viver, etc. Caso con- trário, se o analista não medir adequadamen- te as suas condições de trabalhar com o prová- vel paciente, existirá a possibilidade de que o analista comporte-se na entrevista inicial por uma destas duas formas inadequadas: um ex- cesso de informalismo, que, muitas vezes, está correspondendo a uma necessidade de sedu- zir o paciente ou um excesso de rigidez e her- metismo, que pode estar refletindo um distan- ciamento de natureza fóbica. Também há o risco de que o analista defi- na a sua avaliação por uma única impressão 60 DAVID E. ZIMERMAN dominante: assim, por vezes, o paciente apre- senta-se de uma forma inicial bastante diferen- te do que realmente ele é. Isso pode se dever tanto ao fato de que o paciente quer impressio- nar bem o terapeuta, para ser por ele aceito (bas- tante comum em casos de falso self e de histeri- as), como também para impressionar mal o psi- canalista (por parte daqueles que são portado- res de uma baixa auto-estima, com um forte temor de rejeição, razão pela qual precisam tes- tar se serão aceitos, mesmo portando aquilo que eles julgam ter de feio e de mau). Uma outra finalidade da entrevista inicial consiste na possibilidade de o terapeuta poder observar, e pôr à prova, a forma de como o pa- ciente reage e contata com os assinalamentos ou as eventuais interpretações que lhe sejam feitas; como ele pensa e correlaciona os fatos psíquicos, se demonstra uma capacidade para simbolizar, abstrair, dar acesso ao seu inconsci- ente, e se revela condições para fazer insights. Da mesma forma, igualmente é útil ob- servar a aparência exterior do paciente, incluí- da a forma de como ele está vestido, como saú- da, se ele manifesta algum sinal ou sintoma visível, como é a sua postura corporal, gesticu- lação, movimentação, linguagem empregada e tom de voz ao discursar. Para dar um único e trivial exemplo em relação à linguagem conti- da na vestimenta: em uma entrevista inicial, o paciente, homem por volta dos 30 anos, apa- receu com uma camisa na qual estava estam- pada com letras garrafais a inscrição “Comigo ninguém pode”, que fielmente transmitia sua mensagem não-verbal – que veio a se confir- mar na evolução da análise – de que, ao longo da sua vida, ele erigiu uma couraça caracteroló- gica narcisista, de sorte a defender-se de qual- quer apego afetivo. Igualmente, é necessário avaliarmos a re- alidade exterior do paciente, isto é, as suas con- dições socioeconômicas, o seu entorno famili- ar, a sua posição profissional, o seu projeto de vida próximo e futuro, a existência de fatos particularmente traumáticos, etc. Considero sobremaneira importante que, diante da afir- mativa do paciente de que ele já teve anterio- res experiências de tratamento analítico frus- tras, o analista pesquise as razões da interrup- ção, tendo em vista que ele nos fornecerá sig- nificativas informações daquilo que espera que não sejamos... Enfim, sou dos que acreditam que a en- trevista inicial funciona como uma espécie de trailler de um filme, que posteriormente será exibido na íntegra; isto é, ela permite observar, de forma extremamente condensa- da, o essencial da biografia emocional do paciente e daquilo que vai se desenrolar no campo analítico. Para sintetizar, guardo uma absoluta con- vicção de que o objetivo mais importante da entrevista inicial é o de estabelecer um rapport com o paciente, isto é, o início de uma relação pautada pela construção de um vínculo empático, de uma atmosfera de veracidade e confiabilidade. Dizendo com outras palavras: o ideal a ser atingido é que o paciente saísse da entrevista inicial com a sensação de que “fui entendido, o doutor me ´sacou´ e gostou de mim, está sinceramente interessado e acredita em mim, tal qual eu realmente sou”. CRITÉRIOS DE ANALISABILIDADE E DE ACESSIBILIDADE Conceituação Na entrevista inicial, para avaliar as indi- cações e contra-indicações de uma análise para o paciente que buscou auxílio, é útil diferen- ciar os significados conceituais de analisa- bilidade e de acessibilidade. O primeiro é o cri- tério clássico empregado para a referida indi- cação de análise, o qual se baseia fundamen- talmente nos aspectos do diagnóstico clínico (pacientes psicóticos ou aqueles portadores de uma estrutura altamente regressiva, como borderlines, psicopatas, perversos, etc., eram quase semprerecusados, salvo nos casos de psicanalistas investigadores, como Rosenfeld, Segal, Meltzer e Bion, pioneiros na análise de psicóticos), e prognóstico, como uma antecipa- ção de possíveis riscos e frustrações. Acessibilidade, por sua vez, não valoriza unicamente o grau de patologia manifesta pelo paciente; antes, o interesse maior do analista também não é sobremaneira dirigido para a doença, mas muito mais para a sua “personali- dade total”, notadamente para a reserva de suas capacidades positivas que ainda estão la- tentes, ocultas ou bloqueadas. Em relação ao “diagnóstico” do paciente, a impressão do ana- MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA 61 lista deve ser mais um “diagnóstico psicanalí- tico” do que um diagnóstico puramente clíni- co, rigorosamente enquadrado nos códigos de classificação das doenças mentais, não obstante tal tipo de diagnóstico também deva ser leva- do em consideração. Relativamente a uma pre- visão do “prognóstico”, como fator decisivo na indicação da análise como tratamento de es- colha; na atualidade, a tendência predominan- te é deixar que o prognóstico seja avaliado durante o próprio curso da análise, o que, às vezes, revela grandes surpresas para o analis- ta, tanto de forma positiva quanto negativa. Em resumo, o critério de “acessibilidade” atenta principalmente para a motivação, a disponibi- lidade, a coragem e a capacidade de o pacien- te permitir um acesso ao seu inconsciente, para o analista e para ele mesmo. Este aspecto relativo ao critério de “aces- sibilidade” adquiriu tal relevância na psicaná- lise atual que os analistas estão atentos a um grande contingente de pacientes, uns muito regressivos, outros aparentemente bem-estru- turados psiquicamente, que vêm sendo deno- minados pacientes de difícil acesso, os quais re- querem algumas particularidades técnicas e táticas especiais. Indicações e contra-indicações para análise Assim, à medida que a ciência psicanalí- tica evolui e expande os conhecimentos teóri- cos e técnicos, resta inquestionável o fato de que, cada vez mais, os critérios de contra-indi- cações estejam diminuindo, conforme já foi re- ferido, principalmente em relação à abertura das portas da terapia analítica para pacientes muito regredidos. No entanto, também mui- tos critérios formais sofreram transformações, progressivamente ampliando a abertura para as indicações. Um bom exemplo, é o critério de idade, o qual deixou de ser excludente e é encarado com bastante relativismo, tanto que, desde M. Klein, a psicanálise ficou extensiva às crianças e, além disso, de uns tempos para cá, ela também é praticada com pessoas de ida- de bastante avançada, aliás, com bons resulta- dos. Um outro exemplo pode ser a dúvida que existia quanto à adequação de iniciar uma aná- lise em pleno período crítico de um quadro clí- nico com sintomas emocionais agudos, situacionais, neuróticos ou psicóticos. Hoje, os psicanalistas não receiam enfrentar tais situa- ções com todo o processamento psicanalítico habitual, até porque a maioria dos analistas está se inclinando, na atualidade, a não excluir a possibilidade do eventual emprego de alguns “parâmetros” (conceito de Eissler, 1934), como pode ser o de um possível uso simultâneo de modernos psicofármacos. A propósito, também o diagnóstico clíni- co comporta um acentuado relativismo, tanto que, por exemplo, o diagnóstico de uma “rea- ção esquizofrênica aguda” pode assustar em decorrência do nome alusivo à esquizofrenia e, no entanto, pode ser de excelente prognós- tico psicanalítico, se for bem manejado (como, aliás, acontece com todos os quadros “agu- dos”), enquanto uma “simples” neurose, fóbica, por exemplo, se for de organização crônica, pode resultar em um prognóstico desalentador. Persistem como contra-indicações indis- cutíveis para a análise como escolha prioritária os casos de alguma modalidade de degeneres- cência mental ou aqueles pacientes que não demonstram a condição mínima de abstração e simbolização, bem como também para os que apresentam motivação esdrúxula, além de ou- tras situações afins. Não raramente, os psicanalistas confron- tam-se com situações nas quais a pesagem dos fatores favoráveis e desfavoráveis revelados pela entrevista inicial não foi suficiente para que se definissem convictamente se convém ou não assumir formalmente o compromisso da análise. Nesses casos, apesar de alguns previ- síveis inconvenientes, muitos psicanalistas de- fendem a combinação de uma espécie de “aná- lise de prova”, que consiste em prolongar a en- trevista inicial por um período relativamente mais longo para que só então ambos do par analítico assumam uma posição definitiva quanto à efetivação formal da análise. Um exemplo que me ocorre foi colhido em uma supervisão: a candidata trouxe uma entrevista inicial de um jovem paciente masculino para juntos avaliarmos a adequação da indicação para uma análise formal. Aparentemente, o paciente em avaliação preenchia todos os re- quisitos necessários, porém ele despertava na terapeuta um certo desconforto contratrans- ferencial, que ela não conseguia definir com 62 DAVID E. ZIMERMAN clareza, mas parecia que provinha de uma “maneira algo estranha de ele me olhar, acom- panhada de um sutil sorriso, também estra- nho”, dizia a candidata. Sugeri que ela prolon- gasse a entrevista inicial com mais sessões de avaliação, até que tivéssemos uma idéia mais clara do que estava sucedendo, e que, se o des- conforto continuasse, seria útil que ela apon- tasse diretamente se era uma falsa impressão dela ou se ele escondia algo atrás de um sorri- so, algo debochado. Quando a supervisionada fez esse assinalamento, o possível paciente sol- tou uma sonora risada e confessou que estava concomitantemente fazendo terapia com ou- tro analista, que ele dizia as mesmas coisas para ambos, e estava se divertindo em fazer compa- rações entre os dois, para ver qual deles “era o menos louco”. Todos os leitores hão de con- cordar que seria muito frustrante para a ana- lista, em início de formação, contratar formal- mente uma análise nessas condições. Cabe interpretar na entrevista inicial? Este é um aspecto que costuma ser bas- tante controvertido entre os psicanalistas. É consensual que as clássicas interpretações alu- sivas à neurose de transferência devam ser evi- tadas ao máximo; no entanto, penso que aque- las que particularmente denomino “interpre- tações compreensivas” (dizer o suficiente para que o paciente sinta que foi compreendido) não só são permissíveis, mas também necessárias para o estabelecimento de um necessário rapport, de uma necessária “aliança terapêu- tica”. Assim, por exemplo, se o paciente em uma entrevista inicial está relatando queixas generalizadas de que ele está “cansado de ser explorado em sua boa-fé e no seu dinheiro por pessoas que aparentavam ser suas ami- gas e depois o traíram e decepcionaram”, é certo que todos entenderíamos que ele está expressando, embora de forma não-conscien- te, um temor de que, mais cedo ou mais tar- de, a mesma decepção venha a ocorrer com a pessoa do analista, que também está aparen- tando ser uma pessoa amiga, porém... No caso, se o terapeuta fizer uma “interpretação com- preensiva” desse temor inconsciente, mesmo que o paciente possa discordar dela, sentir- se-á muito aliviado e disposto a fazer novas aproximações. É claro que se trata de uma ilus- tração por demais simples; no entanto, inú- meras situações similares poderiam servir de exemplos. O CONTRATO A palavra contrato pode ser decomposta em “con” + “trato”, isto é, ela significa que, além do indispensável acordo manifesto de al- gumas combinações práticas básicas que irão servir de referência à longa jornada da análi- se, há também um acordo latente que alude a como o analista e o paciente tratar-se-ão reci- procamente. Por essa razão, cabe reiterar, a en- trevista inicial que precede a formalização docompromisso contratual tem a finalidade não unicamente de avaliação, mas também a de uma mútua “apresentação” das características pessoais de cada um e a instalação de uma at- mosfera empática de trabalho. O contrato, portanto, exige uma defini- ção de papéis e funções, centrada na natureza de trabalho consciente (direitos e deveres de cada um, combinação de valores e forma de pagamento, horários, plano de férias, etc.), respectivamente por parte do psicanalista, do analisando e da vincularidade entre ambos, sendo útil considerá-los separadamente, sem- pre levando em conta que, subjacente às com- binações conscientes, existem poderosos e ati- vos fatores inconscientes. Assim, o que se espera por parte do anali- sando? Em primeiro lugar, voltando a enfatizar o que já foi dito, que ele esteja suficientemen- te bem motivado para um trabalho árduo e corajoso; no entanto, o analista deve estar aten- to à possibilidade de que um aparente descaso do paciente pode estar significando uma ma- neira que ele tem de se defender na vida dian- te de difíceis situações novas, e que essa atitu- de, manifesta como se fosse uma escassa moti- vação, pode estar representando a sua forma de “abrir uma porta de entrada” para uma aná- lise de verdade. A recíproca disso também é verdadeira, ou seja, uma motivação aparente- mente plena pode estar encobrindo um ante- cipado rechaço para enfrentar momentos difí- ceis, de sorte que posteriores motivos fúteis poderão servir como racionalizações para aban- donar a análise prematuramente. MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA 63 Em segundo lugar, espera-se que o ana- lisando reflita com seriedade sobre todos os itens das combinações que estão sendo pro- postas para o contrato analítico e que, desse contrato, ele participe ativamente e não de uma forma passiva e de mera submissão ao analista. Não obstante o fato de que o pacien- te tem o direito de se apresentar com todo o seu lado psicótico, narcisista, agressivo (ja- mais a agressão física, é óbvio), mentiroso, atuador, etc. – afinal, é por isso que ele está se submetendo a uma análise –, faz parte do seu papel mostrar, pelo menos, um mínimo de comprometimento em “ser verdadeiro” e que dedique a indispensável parcela de serie- dade a um trabalho tão sério como é o de uma terapia analítica. O que se espera do psicanalista? Espera-se que ele tenha bem claro para si os seguintes aspectos: 1. Qual é a natureza de sua motivação predominante para aceitar tratar analiticamen- te uma certa pessoa: se é por um natural pra- zer profissional, ou prevalece uma oportuni- dade para uma determinada pesquisa; uma necessidade única de prover os ganhos pecu- niários; uma obrigatoriedade devido a uma certa pressão de pessoas amigas ou, no caso de candidatos, unicamente pelo compromisso da obrigação curricular do instituto, ou é um pouco de cada um desses fatores, etc. 2. Ele deve ter definido para si qual é o seu projeto terapêutico, se o mesmo está mais voltado para a obtenção de “benefícios tera- pêuticos” ou de “resultados analíticos”. 3. Diante de um paciente bastante regres- sivo, o analista deve ponderar se ele reúne as condições de conhecimento teórico-técnico, notadamente das primitivas fases do desenvol- vimento emocional primitivo e se está prepa- rado para enfrentar possíveis passagens por situações transferenciais de natureza psicótica. 4. Da mesma forma, ele deve avaliar se preenche aqueles atributos que Bion (1992) denomina “condições necessárias mínimas” e que aludem à empatia, continente, amor às verdades, etc. 5. Partindo da assertiva de que não deve haver uma maneira única, estereotipada e uni- versal de psicanálise, e que uma mesma técni- ca pode – e deve – comportar muitas e diferen- tes táticas de abordagem e estilos pessoais de interpretação, faz parte do papel do analista reconhecer se ele domina o eventual uso de “parâmetros” (diz respeito a possíveis interven- ções do analista que, embora transgridam al- gumas regras analíticas, não alteram a essên- cia do processo analítico). 6. O terapeuta deve estar em condições de reconhecer a natureza de suas contra-resis- tências, contratransferências e possíveis con- tra-actings. 7. Ele deve ter condições de envolver-se afetivamente com seu paciente, sem ficar en- volvido; ser firme sem ser rígido, além de, ao mesmo tempo, ser flexível, sem ser fraco e manipulável. 8. Também entrou em voga, desde Bion (1970), a questão referente a se a análise deve se desvincular de toda pretensão terapêutica, tal como essa é concebida e praticada no cam- po da medicina. 9. Assim, creio que existe um risco de o analista levar exageradamente ao pé da letra a recomendação de Bion de que a mente do ana- lista não fique saturada de desejos de cura (gri- fei a palavra “saturada” porque muitos inter- pretam mal essa recomendação e pensam que ele fez uma apologia da abolição de qualquer tipo e grau de desejo). Nesse caso, o analista corre o risco de suprir um natural desejo de que seu paciente melhore, e, no lugar disso, ele pode adotar uma atitude de distanciamento afetivo. 10. Penso ser muito importante que o analista, por maior que seja a sua demanda de pacientes, trabalhe em condições de conforto físico, emocional e espiritual. Para tanto, é imprescindível ele conhecer os limites de sua resistência física (o número de horas que tra- balha; se os seus horários não interferem com sua vida privada; se não é excessivo o número de pacientes regressivos que lhe provocam um grande desgaste e preocupações...), assim como deve reservar uma parte do seu tempo para prazeres e lazeres. 11. É útil que o terapeuta observe atenta- mente “que perguntas o paciente se faz e que respostas ele se dá” e, da mesma forma, se o ana- lista tiver um claro conhecimento de “com quem” e “como” o seu paciente se relaciona, fica aberto o caminho para ele reconhecer a estrutura bási- ca da personalidade do paciente em avaliação. 64 DAVID E. ZIMERMAN Em relação ao campo analítico vincular, a primeira observação que cabe é a de que a con- temporânea psicanálise vincular implica no fato de que já vai longe a idéia de que cabia ao pa- ciente unicamente a obrigação, de certa forma passiva, de trazer “material”, enquanto ao ana- lista caberia a função única de interpretar ade- quadamente aquele material clínico, a fim de tornar consciente aquilo que estava reprimido no inconsciente. Pelo contrário, hoje tende a ser consensual que ambos, de forma igualmen- te ativa, interajam e se interinfluenciam per- manentemente. Assim, o que se deve esperar é que, no contrato analítico, haja uma suficiente clareza nas combinações feitas, para evitar fu- turos mal-entendidos, por vezes de sérias con- seqüências. Da mesma maneira, ambos devem zelar pela preservação das regras do contrato (embora faça parte do papel do paciente o di- reito de, eventualmente, tentar modificá-las), com as quais eles estão construindo um im- portantíssimo espaço novo, no qual antigas e novas experiências emocionais importantes se- rão reeditadas. Um tópico que persiste polêmico e con- trovertido entre os psicanalistas é quanto ao conteúdo das combinações a serem feitas no contrato, notadamente no que diz respeito às regras técnicas legadas por Freud, as quais con- tinuam ainda plenamente vigentes em sua es- sência, embora bastante transformadas em muitos detalhes, tal como está descrito no pró- ximo capítulo. Na atualidade, alguns psicanalistas ain- da adotam o critério original que regia as com- binações do contrato e, assim, eles impõem, de modo esmiuçado, uma série de recomen- dações; enquanto a tendência da grande mai- oria é simplificar a formulação das combina- ções para um “mínimo indispensável”, ficando no aguardo que as demais situações surjam ao natural no curso do tratamento, sendo que a análise de cada uma delas é que vai definindo as necessárias regras e diretrizes. O critériode “mínimo indispensável”, an- tes mencionado, alude às combinações que devem ser feitas relativamente ao número de sessões semanais, horários, honorários (incluir a possibilidade de reajustes periódicos, além de dar a entender que o paciente está conquis- tando um espaço exclusivamente seu e que, por isso, será o responsável por ele), bem como o plano de férias. Essa orientação contrasta a daqueles outros psicanalistas que argumentam que, quanto mais especificarem as diversas si- tuações de surgimento bastante provável no curso da análise, mais condições terão de con- frontar o futuro analisando com as transgres- sões daquilo que foi combinado. Assim, os analistas que adotam essa últi- ma posição devem combinar detalhes, como, por exemplo, o direito que eles se reservarão de responder ou não às perguntas do pacien- te; atender ou não o pedido de mudança de dias ou horários das sessões; como fica o pa- gamento em caso de doenças ou necessárias viagens do paciente; qual será o dia para pa- gar, e se o fará no começo ou no fim da sessão; se o pagamento pode ser com cheque ou uni- camente com dinheiro-moeda; incluir, ou não, uma cláusula de advertência quanto ao com- promisso de sigilo, ou a obrigação de analisar algum ato importante antes de o paciente efetivá-lo, como uma forma de prevenir o ris- co de actings, e assim por diante, em uma lon- ga série de detalhes impostos à medida que aparecerem (permissão ou proibição de fumar durante a sessão; aceitação de presentes; en- contros sociais; forma de cumprimentar (por exemplo, trocando beijos ou não); silêncios, faltas ou atrasos excessivos...). Reitero que, particularmente, entendo que existem algumas, poucas, combinações ex- plícitas que são indispensáveis, e as demais são implícitas ao processo analítico, devendo ser analisadas à medida que surgirem; elas variam de caso para caso, e devem ser encaradas pelo analista da forma menos rígida e mais flexível possível. Um importante ponto do contrato que não encontra uniformidade entre os psicanalistas, inclusive dos que pertencem a uma mesma corrente psicanalítica, é o que diz respeito às combinações de que “a análise deverá ser feita no divã”. Muitos preferem incluir essa condi- ção desde a formalização do contrato, enquan- to muitos outros psicanalistas (entre os quais, me incluo) optam por não aludir de forma di- reta ao uso compulsório do divã, aguardando a oportunidade que, certamente, surgirá no transcurso das sessões, assim possibilitando uma análise mais aprofundada das possíveis dificuldades em deitar ou permanecer senta- do, assim como também para diminuir o risco MANUAL DE TÉCNICA PSICANALÍTICA 65 de o paciente, desde o início, conduzir-se pas- sivamente, cumprindo mandamentos e expec- tativas dos outros, no caso o seu psicanalista. Entendo que o mesmo critério de evitar uma imposição do analista também deve, tan- to quanto possível, prevalecer no ato de com- binar o número de sessões semanais. O ideal seria que analista e paciente, juntos, escutas- sem as mútuas necessidades e possibilidades e chegassem a um consenso, mesmo que tempo- rário, a fim de evitar futuros dissabores. A propósito da forma de o psicanalista propor ou deixar a critério do analisando o uso do divã, é oportuno frisar que a contemporâ- nea psicanálise vincular evita ao máximo as imposições, salvo aquelas absolutamente neces- sárias, antes referidas, preferindo as proposi- ções, ou seja, que o analisando participe ativa- mente das combinações. As contingências socioeconômicas da atu- alidade têm trazido um fator complicador na efetivação do contrato na cláusula que se refe- re à possibilidade de o terapeuta ter um valor de preço único, independentemente se ele for- nece ou não um recibo (este é um outro pro- blema à parte, que merece uma aprofundada reflexão), que o paciente utilizará na sua de- claração do Imposto de Renda, ou ter dois va- lores diferentes, sendo que, não é nada inco- mum, existe a possibilidade de que o analista defina claramente que não costuma emitir re- cibos. Igualmente, varia de um analista para outro a conduta quanto a manutenção de um mesmo valor para todos os seus analisandos, ou se ele se dá o direito de estabelecer valores diferentes de acordo com as circunstâncias pes- soais de cada paciente em particular. O importante, cabe enfatizar, não é tanto o cumprimento fiel de cada uma das cláusulas combinadas, mas, sim, o estado de espírito de como elas foram aceitas por ambos, sem alte- rar um necessário clima de respeito mútuo, e assim começar a pavimentar o caminho para a estruturação de uma indispensável confiança básica. Sem ser necessário esclarecer explici- tamente, deve ficar bastante claro para o psi- canalista e para o analisando – neste último, às custas de muita frustração e sofrimento – o fato de que, embora o vínculo analítico seja uma relação nivelada pelos aspectos humanos de respeito, consideração e partilha de um ob- jetivo comum, na verdade a inter-relação do par analítico obedece a três princípios básicos: 1. Ela não é simétrica (ou seja, os luga- res ocupados e os papéis a serem de- sempenhados são desiguais, assimé- tricos, e obedecem a uma natural hi- erarquia, com direitos, deveres e pri- vilégios distintos). 2. Não é de similaridade (isto é, os dois do par analítico não são iguais, dife- rentemente do que imaginam mui- tos pacientes regressivos, notada- mente os de uma forte organização narcisista, que têm dificuldade em admitir que o terapeuta é uma pes- soa autônoma, tem a sua própria técnica e o seu próprio estilo de tra- balhar, pensar e viver). 3. A relação que o paciente reproduz com o analista é isomórfica (ou seja, na essência, eles se comportam de uma “mesma forma”, como seres humanos que são). No entanto, o conceito de isomorfia não deve ser confundido com a idéia de que o analista será um substituto para uma mãe ou pai, ou ambos, que foram ausentes ou falhos, mas, sim, que ele desempenhará – transitoriamente – as funções de maternagem (ou outras equivalentes) que o paciente carece.
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