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A metafísica de Plotino - Jean-Marc Narbonne

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2
ÍNDICE
Capa
Rosto
Prefácio à segunda edição francesa
Prefácio
Introdução
A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA DO SER
O SER E O POSSÍVEL
1. Possibilidade “cosmológica”
2. Possibilidade “ontológica”
3. Possibilidade “noológica”
A CONCEPÇÃO PLOTINIANA DO SER
O exemplo do Uno
A liberdade do Uno
O exemplo da matéria
Uma matéria “flexível”
Uma matéria impassível
Nihil negativum versus nihil positivum
1º. O necessitarismo
2º. A des-realização do sensível
NAS ORIGENS DA CONCEPÇÃO PLOTINIANA DO SER
Plotino, ou a transposição estoica do platonismo
A doutrina dos “dois atos”
A ἕξις estoica e sua apropriação plotiniana
“Agir” ou “ser”
HISTÓRIA E METAFÍSICA
METAFÍSICA E POSSIBILIDADE
Conclusões
Apêndices
Apêndice I
Irrealidade da matéria e realidade do mal: acerca de uma objeção possível à
tese do poder absoluto do Uno
Uma matéria engendrada ou não engendrada?
Apêndice II
Henôsis e Ereignis: observações acerca de uma interpretação heideggeriana
do Uno plotiniano
Introdução
O Uno plotiniano segundo R. Schürmann
Ensaio de caracterização do Uno plotiniano
Bibliografia (Principais obras consultadas)
Index locorum
3
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Índice dos autores medievais e modernos
Sobre o autor
Coleção DIDASKALÍA
Ficha catalográfica
Notas
4
5
O
PREFÁCIO À SEGUNDA EDIÇÃO FRANCESA
crescente interesse dos especialistas e dos estudantes pelo pensamento
neoplatônico e por Plotino em particular explica que, alguns anos após sua
aparição, o presente volume seja beneficiado com uma segunda edição. Nosso projeto
inicial era destacar à atenção do público alguns pontos salientes da filosofia de
Plotino, ou aqueles que nos pareciam manifestar melhor que outros sua originalidade
a uma época cujo espírito não mais os reconhece. Na história da transmissão do
platonismo – sempre mais ou menos penetrado de aristotelismo –, Plotino ocupa uma
posição singular não apenas em relação a seus antecessores, que ele ultrapassa por
sua capacidade de síntese e suas audácias especulativas, mas também em relação a
seus sucessores, que em muitos aspectos dele se distanciarão (é o caso do argumento
causa sui desenvolvido acerca do Uno ou da assimilação da matéria ao mal radical).
Mestre mal amado ou mal compreendido, iniciador em parte traído, Plotino lega à
posteridade uma imensa herança, da qual Platão, em seu lugar, recebeu quase todo o
crédito. Mas isso foi evidentemente um ganho para a grande aventura do platonismo,
de peripécias numerosas e variadas, que desdobra suas consequências até hoje.
Algumas das visões expressas neste livro passaram por uma evolução, sob o
impulso de novas pesquisas. Foi assim que, do problema da originalidade de Plotino,
passamos ao problema da especificidade do projeto neoplatônico como tal,
notadamente por oposição à ontologia de tradição aristotélica e à interpretação
proposta por Heidegger.[1] Esta segunda investigação, mais ampla, mas que de modo
algum desmente as principais aquisições da primeira, permite-nos apreciar ainda
melhor o estatuto da intuição mestra de Plotino em relação ao Uno transcendente, a
mesma que, associada à exegese do Parmênides de Platão, alimentará toda a reflexão
posterior da escola neoplatônica.
Decidimos não modificar – à parte as correções cosméticas usuais – o conteúdo da
primeira edição deste livro, que tem sua própria história, e que se defenderá bem – ou
mal – por si só. Acrescentou-se agora um estudo que nos parece auxiliar a melhor
situar o lugar do Uno plotiniano como princípio na história das ideias e nos debates
filosóficos contemporâneos.[2] Pareceu-nos, entretanto, oportuno retornar a um ponto
da exposição primitiva justamente em relação ao argumento causa sui. Ainda hoje
reivindicamos para Plotino a paternidade dessa noção, cujo mérito J.-L. Marion, em
6
reação a este livro e a um estudo que publicamos anteriormente,[3] atribui a
Descartes.[4] O caso, não é preciso reafirmar, é difícil em razão da natureza
complexa do próprio conceito, que implica a existência (para poder se criar) e a não
existência (para ter se criado) simultâneas de uma mesma realidade. Plotino nela
acreditou? Descartes pode nela ter acreditado mais que Plotino? É preciso crer mais
ou menos intensamente em um conceito para dele se fazer um inventor legítimo,
sobretudo quando é precisamente de legitimidade que ele sofre de modo irreparável?
Sempre ocorre que Plotino desenvolve o argumento sobre a causa de si não
simplesmente para refutá-lo, mas para, graças a ela, deixar entrever a incomensurável
potência do Uno, dela forjando o sintagma, na medida em que o Uno é formalmente
afirmado αἴτιον ἑαυτοῦ (VI 8 [39], 14, 41).[5]
Québec, janeiro de 2001.
7
8
E
PREFÁCIO
sta obra não é um livro sobre a filosofia de Plotino, ao menos no sentido
clássico do termo. Não serão encontradas, apresentadas segundo uma ordem
sistemática e dispostas umas em relação às outras, as grandes articulações de sua
filosofia. Partes inteiras de seu sistema não serão abordadas, e muitas figuras de seu
pensamento, negligenciadas. De igual modo, não se trata de um estudo de detalhe,
reservado aos especialistas, visando esclarecer tal ou tal ponto de sua doutrina.
Destinado a um público mais amplo, a todos aqueles que se interessam pela história
do pensamento em geral, tenta destacar a especificidade do pensamento de Plotino.
Visamos a um fim único: demarcar o lugar da reflexão plotiniana na história das
ideias e no desenvolvimento do pensamento grego.
Diferentes facetas de sua filosofia são estudadas e analisadas apenas na medida em
que servem a esse fim. Sem conhecer o detalhe de seu sistema, sem ser derrotado
pelas sutilezas argumentativas e terminológicas do filósofo, o leitor terá uma ideia
daquilo que Plotino tornou possível, daquilo que ele trouxe à história da filosofia.
Tudo aquilo que apresentava um obstáculo à exposição foi, na medida do possível,
deixado de lado. Apesar da complexidade do tema, reduzimos as discussões técnicas
ao mínimo. Todas as passagens gregas[1] ou latinas são traduzidas, assim como, na
maior parte, os comentários em inglês ou alemão.
A ideia deste livro germinou-se progressivamente após nossas investigações sobre
o problema da matéria no pensamento de Plotino. Estávamos tocados pela
onipresença da matéria na estrutura metafísica do sistema plotiniano. Ora, a matéria é
um ser em potência, um δυνάμει ὄν, isto é, algo cuja estrutura ontológica é inacabada,
de todo fixada, e que requer, portanto, a mudança. Sua presença em todos os níveis de
realidade distintos por Plotino revelava, portanto, o caráter evidentemente dinâmico
de seu sistema, o fato de que ele permanece em cada uma de suas partes animado de
uma potência capaz de operar transformações múltiplas nas diferentes regiões do ser.
Esse dinamismo pareceu-nos novo, revelando em Plotino uma concepção de ser
distinta daquela que encontramos em Platão e Aristóteles. Ela permitia supor outro
princípio na base de seu sistema, um poder de ação novo, diferente daquele que a
tradição grega nos havia dado a conhecer até então. Confirmava tal impressão o fato
de que, na outra ponta da estrutura do ser, a matéria sensível conhecia uma espécie de
9
inverso, visto que se encontrava desprovida de qualquer poder, privada de modo
definitivo de qualquer função.
O “ser”, tomado em sentido amplo, era em Plotino aparentemente portador de uma
nova estrutura, testemunhando uma capacidade de transformação e de produção
inusitadas, da qual seria necessário avaliar o estatuto e explicar a origem.
O livro de A. Faust, Der Möglichkeitsgedanke. Systemgeschichtliche
Untersuchungen, forneceu-nos o quadro geral da interpretação que buscamos para
situar a reflexão de Plotino na história do pensamento grego e em seu prolongamento
no seio da escolástica medieval e na tradição do idealismo alemão.
No caminho, o encontro do livro de P. Hadot, Porfírio e Vitorino, foi decisivo.
Dessa obra retomamos a tese mestra da transposição estoica do platonismo. P. Hadot
mostrou a importância dessa transposição para compreender a metafísica porfirianae,
em geral, neoplatônica. Esse modelo se revela de igual modo importante na
elaboração do pensamento de Plotino. Encontramos a peça que faltava em nosso
edifício. Graças a ela, o movimento do pensamento plotiniano podia ser restituído de
modo harmonioso e natural.
O comentário de G. Leroux ao tratado Sobre a liberdade e a vontade do Uno foi
também de grande utilidade na compreensão das origens desse escrito excepcional na
obra de Plotino. Enfim, dois estudos notáveis de J. Whittaker nos permitiram melhor
considerar a evolução de alguns conceitos-chave nas especulações pré-plotinianas.
Nossos amigos L. Brisson e A.-Ph. Segonds contribuíram com suas observações
eruditas para melhorar alguns aspectos do livro e nos auxiliaram na correção da
versão final.
Agradecemos à Université Laval, que nos forneceu excelentes condições de
pesquisa, bem como ao Fundo para a formação de pesquisadores e auxílio à
pesquisa (F.C.A.R.), que nos forneceu uma generosa subvenção.
10
11
N
INTRODUÇÃO
ão pretendemos, com o título de A metafísica de Plotino, exumar algum
antecedente plotiniano do debate que deveria nascer em seguida, e que
persiste ainda hoje, acerca do verdadeiro objeto da Metafísica de Aristóteles. Esse
objeto não era tema de dúvida para Plotino nem para os comentadores gregos de
Aristóteles em seu conjunto,[1] e, notadamente, para Alexandre de Afrodísia, do qual,
como sabemos por Porfírio, Plotino fazia ler os comentários em seus cursos.[2]
Nossa intenção é antes exibir, tomando alguns exemplos como apoio, o que
constitui o próprio fundo do ser para Plotino. Em outros termos, tentar mostrar em
que consiste, em última instância, a textura mesma do real. Esse empreendimento é
metafísico no sentido em que requer um dos caracteres tradicionalmente reconhecidos
nesse tipo de investigação, que é a busca das causas do ser propriamente dita, isto é, a
etiologia.[3]
Com isso esperamos demarcar de modo mais preciso o lugar de Plotino na história
do pensamento. A questão, incessantemente retomada, de saber onde terminam o
platonismo e o aristotelismo de Plotino e onde começa o plotinismo propriamente
dito receberá um novo esclarecimento caso seja mostrado, como cremos poder fazer
aqui, o que o ser é em seu fundo, em seu princípio, concebido de modo diferente por
Plotino em relação a Platão ou Aristóteles. E se o fundo, se o princípio, logo, se a
fonte mesma do ser como causa é diferente para ele, com efeito é possível sustentar
que há uma metafísica propriamente plotiniana, ou, caso se prefira, um momento
plotiniano da metafísica na história das ideias.
12
13
P
A CONCEPÇÃO ARISTOTÉLICA DO SER
ode-se, sem dúvida, a fim de melhor ressaltar a posição particular de Plotino,
partir de uma declaração de Aristóteles acerca da substância, na medida em que,
conforme ele próprio afirma, a substância é quase igual ao ser.[1] No último capítulo
do livro Z da Metafísica, consagrado à elucidação do problema da substância,
Aristóteles chama nossa atenção acerca do seguinte:
A substância é um princípio e uma causa: tal deve ser nosso ponto de partida. Ora, perguntar-se o
porquê é sempre questionar por que um atributo pertence a um sujeito. Com efeito, investigar por que
um homem músico é homem músico ou é investigar, como acabamos de dizer, por que o homem é
músico, ou é investigar algo além disso. Ora, investigar por que algo é ele mesmo é nada investigar. É
preciso, com efeito, que o fato, ou a existência de algo, seja já conhecido – por exemplo, que a Lua
sofre eclipse –, mas o fato de que o ser seja ele mesmo é a única razão e a única causa a ser dada em
resposta a qualquer questão do tipo: porque o homem é homem, ou o músico, músico. A menos que
prefiramos responder: é porque cada ser é indivisível em relação a si mesmo, o que não é outra coisa
que afirmar sua unidade; esta é, em sua concisão, uma resposta geral, que se aplica a qualquer coisa
(1041a 9-20, trad. Tricot).
Sublinhamos, nesse extrato, as passagens que apresentam o que poderíamos
chamar de nervo central do argumento. Investigar por que algo é ele mesmo, diz
Aristóteles, é nada investigar. Se, com efeito, investigar algo é investigar por que um
atributo pertence a um sujeito, pode-se perguntar por que este homem é músico, por
que tal animal é homem, mas não se pode perguntar por que tal homem é tal homem,
isto é, por que este homem em ato (como sujeito) é este homem em ato (como
atributo). O reconhecimento mesmo da existência desta substância “homem”
pressupõe o reconhecimento do princípio de identidade, segundo o qual este “homem
é aquilo que ele é”, isto é, segundo o qual A é A. Não se pode, portanto, investigar
por que este homem é este homem assim como não se pode investigar por que A é A.
Eis a razão pela qual Aristóteles sublinha em outro lugar que a existência de uma
substância jamais pode ser demonstrada, mas que é mais objeto de intuição ou de
percepção.[2]
A existência não se postula, ela é um dado,[3] e não se pode demonstrar esse dado
sem ser conduzido a investigar sua causa fora de si mesmo, seu princípio fora dele;
ora, cada ser é uno com sua essência, isto é, com sua quididade.[4] De resto, é isso
que, em outro contexto, conduzirá Aristóteles a enunciar que “nada é anterior a si
14
mesmo”.[5] Em outros termos, não é possível dar conta do caráter A de A sem
separar A de si mesmo, isto é, sem transformar A em não A. Cada substância é para si
mesma sua própria causa, ou ainda, para que aqui não seja introduzido no seio da
substância uma divisão que, precisamente, Aristóteles procura evitar, digamos de
modo mais exato, que cada substância é em si princípio e causa.
A substância, como ser em ato, como atualidade (ἐνέργεια), é, assim, uma
manifestação (ἐνάργεια) do ser, portanto, não pode ser demonstrada. O que é em ato,
com efeito, constitui-se como um cume na estrutura aristotélica do ser, e tanto não há
ato de um ato como substância da substância ou causa da causa. O que existe possui
em si sua razão de ser, ou, mais exatamente, é em si mesmo razão de ser, e não deve,
portanto, prestar contas de sua existência.
Esta é a razão pela qual a questão que pode ser qualificada como metafísica por
excelência: “Por que há o ser e não o nada?”,[6] se é que teve seu sentido reconhecido
por Aristóteles, dele provavelmente não recebeu senão uma resposta lapidar: “Por que
há algo? Por que aquilo que existe é, ou seja, é aquilo que é? – Mas por que aquilo
que é, é o que é em si mesmo?”. Tal questão, que significa, em última instância,
perguntar por sua razão de ser, provavelmente não teria sido tratada por Aristóteles de
modo diferente daquela que pretende demonstrar que a natureza existe, o que é uma
empreitada que ele julgava ridícula, na medida em que tal questão supõe que aquilo
que é em si mais manifesto, mais evidente (φανερός), possa ser estabelecido a partir
daquilo que é menos.[7]
É possível esclarecer ainda de outra maneira a questão aristotélica do ser, desta vez
introduzindo o problema da geração. Aquilo que é produzido, declara Aristóteles –
por exemplo, no sentido daquilo que é engendrado –, produz-se sempre a partir de um
corpo já em ato, de uma realidade já existente, caso contrário viria do nada, isto é, do
vazio. Essa regra segundo a qual há sempre o já-existente-em-ato, não é senão a
formulação positiva do princípio enunciado com frequência de modo negativo,
segundo o qual do nada, nada provém (γένεσις οὔθ’ ἁπλῶς οὐθενός),[8] e que
constitui, como se sabe, um dogma fundamental do pensamento grego.
O Ser, em seu ponto de partida, é sempre ato, positividade, ou, para dizê-lo como
Aristóteles, “um ato é sempre preexistente a outro ato, até que se chegue ao ato do
primeiro motor eterno”,[9] ele mesmo, enquanto primeiro e causa para todo o resto,
não sendo posterior a nenhum outro.
Tendo isso sido estabelecido no que concerne a Aristóteles, trata-se agora de tentar
15
compreender por que Plotino, que, entretanto, retoma tal divisão bipartida da
realidade em ato e em potência, foi conduzido a ultrapassá-laem direção a outra
perspectiva. Constrangido, em certo sentido, a modificá-la até fazê-la dizer aquilo que
de modo algum poderia dizer, isto é, que seu primeiro princípio, o Uno – que em seu
sistema é a realidade em ato por excelência – engendra-se a si mesmo, é causa de si!
Aristóteles havia sublinhado que “nada é anterior a si mesmo”.[10] Investigar por
que algo é ele mesmo, por que algo é aquilo que é, conforme ele declara, é nada
investigar! Ora, na história da filosofia, é a partir de Plotino que se torna legítimo
perguntar acerca do que faz com que algo seja ele mesmo. Em outras palavras,
interrogar acerca do que torna possível a posição mesma da existência, ou, caso se
prefira, a própria existência, visada em sua positividade primeira. Além disso, a
dificuldade é explicar por que, para Plotino, o Uno torna-se causa de si, como “pode”
trazer a si mesmo à existência, de onde provém tal “poder”, tal “possibilidade” nova,
de engendrar-se a si mesmo.
Para compreender a transformação da própria noção de Ser que tal doutrina
pressupõe, é necessário, em primeiro lugar, tentar retraçar o desenvolvimento do
pensamento grego acerca do Ser, em sua relação a um conceito que, nesse trajeto,
exerce um papel fundamental, qual seja: a noção de dýnamis, isto é, de potência ou de
possibilidade. A nova compreensão de potência que emerge como pertencente ao
Uno, na medida em que ele “pode” engendrar-se a si mesmo, em que “pode” trazer a
si mesmo à existência, deve poder igualmente ser comparada àquilo que, na tradição
da qual Plotino é tributário, já aparecia como “considerável”, isto é, como “possível”.
Pode, ainda, ser comparada não apenas com o estado anterior da questão, mas
também à posteridade desse conceito na história de nosso pensamento. É de tal
maneira que a situação de Plotino em relação ao ser, sua compreensão particular do
ser na história do pensamento, poderá ser elucidada.
16
17
E
O SER E O POSSÍVEL
m seu livro acerca do pensamento da “possibilidade” no Ocidente, A. Faust[1]
distinguiu três grandes figuras ou representações do “possível” no decorrer da
história. Uma representação “cosmológica”, uma representação “ontológica” e uma
representação “noológica” do possível. A primeira corresponde ao mundo grego,
notadamente a Aristóteles; a segunda pertence à alta escolástica; a terceira, por fim, à
filosofia de Kant e de Fichte. Examinemos de modo breve cada uma delas.
18
1. Possibilidade “cosmológica”
Nenhum pensamento pode satisfazer-se com a realidade tal como é dada pelos
sentidos, isto é, de modo imediato. Pois “pensar” supõe precisamente não contentar-
se com a realidade tal como ela se apresenta, mas buscar saber o que a torna
possível. O primeiro reflexo disso, registrado nos pré-socráticos, foi buscar o
fundamento da realidade física num elemento primordial também físico. Quer ele seja
a água, o ar ou o fogo, por exemplo, é condição de possibilidade do mundo em sua
rica diversidade. O “cosmologismo” reside, nesse contexto, nisso que emerge da
realidade; sua “possibilidade” é buscada no seio de uma entidade cosmológica, de
modo que a reflexão filosófica permaneça necessariamente “intra-mundana”, de
algum modo vinculada à ordem do cosmos.
O caráter arcaico de tais especulações pré-socráticas manifesta-se naquilo que é
um elemento físico do mundo, que de igual modo deve servir de base explicativa para
todas as outras entidades do mundo. Isso é válido para a água em Tales, para o ar em
Anaxímenes, o fogo em Heráclito, os elementos em Empédocles, mas também para o
infinito de Anaximandro, as homeomerias de Anaxágoras e os átomos de Demócrito.
Conforme tal perspectiva, o possível sempre pressupõe o preexistente, em outros
termos, sendo sempre concebido como presente previamente. O real, enquanto dado,
deve encontrar sua fonte não no real de segundo grau, como será o caso em
Aristóteles, mas na realidade segunda, em si anterior ao mundo tal como é percebido
de modo imediato, embora posterior na ordem do conhecimento.[2]
O fato de situar a possibilidade em um elemento preexistente, em uma natureza
preexistente, corresponde ao sentido arcaico do termo dýnamis, desde muito cedo
aproximado do termo natureza, physis. Originalmente, com efeito, a dýnamis[3]
torna-se a expressão da natureza, isto é, do caráter distintivo, logo, específico e
natural, de tal ou tal ser.[4] Na linguagem corrente, dýnamis remetia-se à força física,
à potência superior de tal ou tal indivíduo (e, por extensão, à potência, por exemplo,
de tal exército, de tal país). Todo poder ser no mundo compreende-se desde então
como poder de um ser, como possibilidade específica de uma “natureza” particular
preexistente. Em outras palavras, no pensamento pré-socrático, o possível é
essencialmente um possível segundo a potência (katà dýnamin), isto é, um possível
ligado à potência particular de um ser particular, e não aquilo que poderíamos chamar
de um puro possível, isto é, algo de simplesmente pensável, considerável ou
representável.
19
A reflexão aristotélica marcará um passo decisivo a esse respeito, concebendo pela
primeira vez a possibilidade como um “momento” do ser, e é por isso que Faust nele
vê o pai de toda a especulação europeia acerca do problema da possibilidade.[5] Para
Aristóteles, com efeito, não se deve mais buscar a possibilidade em um ser
preexistente, em uma entidade primeira qualquer, mas é preciso compreendê-la como
um momento constitutivo, embora impessoal e abstrato, do ser enquanto tal. A
imanência da forma na matéria explica que a própria matéria é tanto em potência tal
ser determinado, quanto em ato tal outro ser determinado. Reservatório dos possíveis,
a matéria é na medida em que é habitada pela falta e, na medida em que é tal coisa
determinada em ato, ao mesmo tempo, por antecipação e sob a forma de privação, é
já a coisa contrária ou ainda outra coisa. Acolhedora dos opostos, presença daquilo
que é e anúncio daquilo que ainda não é, a realidade da matéria, com efeito, é o devir.
O possível, segundo Aristóteles, é também alojado no seio do ser tomado como
real secundário, ou melhor, como real de segundo grau. Numa física que recusa a
existência do vazio, o devir é possível apenas pela possibilidade em si, o poder-ser-
outro está inscrito no coração do ser, sob a espécie da falta e da privação.
A noção de possibilidade assim concebida por Aristóteles permanece, contudo, de
tipo cosmológico, como recorda Faust, pois está estritamente vinculada ao devir tal
como se produz no mundo. Na medida em que o devir é orientado, em que (para
tomar o exemplo tipicamente aristotélico) um homem não pode engendrar senão um
homem,[6] e em que a matéria primeira não tem “escolha” senão tornar-se uma ou
outra das quatro qualidades elementares, a possibilidade é em si limitada pela
estrutura ontológica do cosmos.[7] Uma pura possibilidade, apreendida em alguma
espécie de margem do possível real, do possível em que a realização é esperada,
percebida antecipadamente, isto é, cuja realização é realmente possível na ordem da
natureza, não é totalmente ausente da reflexão aristotélica,[8] mas possui, para o
Estagirita, uma importância secundária, e, de qualquer forma, de nenhum modo
constitutiva.[9]
20
2. Possibilidade “ontológica”
A possibilidade toma uma forma puramente ontológica, e não simplesmente
cosmológica, na medida em que o dado, isto é, toda a realidade, o universo em seu
conjunto, é referido, por meio daquilo que é por sua própria possibilidade, a um puro
possível “lógico”, que consiste na simples ausência da contradição interna (“ex sola
habitudine terminorum qui sibi non repugnant”).[10] Um novo conceito de possível é
necessário e deve ser elaborado no momento em que, na perspectiva cristã, o
problema da criação do mundo e da onipotência divina entram em cena. O
fundamento, a possibilidade intrínseca deste mundo, não será mais buscado no mundo
em si mesmo, mas num ser que, transcendente ao mundo, escolhe, com base
unicamente no que é possível, pensável, representável, criar o sertal como ele é, ou
melhor, tal como ele quis que fosse, que é nosso universo atual.
O possível “que não existe segundo uma potência”, para retomar a expressão
técnica aristotélica, não possui apenas uma extensão maior que o realmente possível,
isto é, o possível correspondente a uma potência determinada: ele o funda
literalmente, sendo sua condição de possibilidade! Tão real, quiçá mais real que o
próprio real, é o que se torna esse puro possível, esse possível lógico, do qual Deus
dispõe à sua maneira.
Essa nova concepção do possível que se elabora pouco a pouco ao longo da Idade
Média, como sublinha Faust, corresponde a um processo que pode ser chamado de
des-cosmologização da possibilidade, que exprime, de modo mais amplo, uma des-
contologização das condições metafísicas do ser. O fundamento ainda permanece
ontológico, na medida em que é um ser, Deus, que deve atualizar sua possibilidade na
origem do mundo, mas tal possibilidade não possui em si mesma mais nada de
cosmológico, não sendo mais submetida, por assim dizer, às condições ontológicas
naturais, tais como se apresentam no universo sensível.
Se até São Tomás, como nota Faust,[11] a doutrina da criação não valia senão
como artigo de fé, sendo apenas puro objeto de crença, a passagem do não-ser ao ser
recebe uma justificação essencialmente filosófica desde o momento em que o
“possível em si” (“possibile in se ipsum”), tomado como “coerência dos termos”
(“cohaerentia terminorum”) constituirá para si o único critério autônomo do possível,
ao lado da “possibilidade segundo a potência”, que é tipicamente aristotélica.[12]
É evidentemente tal conceito de possibilidade, vinculado à pura pensabilidade,[13]
que está no fundamento da metafísica de Leibniz, por exemplo, para quem o ser
21
divino escolhe, dentre muitos mundos, o melhor dos mundos possível.[14]
22
3. Possibilidade “noológica”
De uma possibilidade relativa ao mundo, intrínseca ao mundo, como era a
possibilidade cosmológica dos gregos, a uma possibilidade independente do mundo,
extrínseca ao mundo, como é a possibilidade ontológica dos cristãos, passa-se à
possibilidade estranha a qualquer fundamento ontológico, interessando-se tão
somente pelas condições conceituais do ser, tais como podem ser deduzidas da
atividade do sujeito cognoscente. O possível não será mais deduzido nem de uma
estrutura objetiva do mundo, como em Aristóteles, nem de uma possibilidade abstrata
realizada por um ser transcendente, como na escolástica, mas da pura atividade
transcendental do sujeito cognoscente, tal como pode ser encontrada de modo
particular em Kant e Fichte. A questão não será mais “O que torna possível a
realidade atual do mundo?”, ou ainda, “O que torna possível este mundo em si
mesmo, tomado como tal em sua globalidade?”, mas: “O que torna possível o
conhecimento que tenho deste mundo, o fato de que há um mundo para mim?”. À
questão da possibilidade do esse, do fundamento do ser como possível, substitui-se
progressivamente a questão do cognoscibile esse, isto é, do ser como o que pode ser
conhecido, do ser como cognoscibile.
A revolução “copernicana” de Kant realiza-se por não mais se recorrer a qualquer
estrutura dada previamente ou a qualquer ser preexistente para esclarecer a relação
entre o sujeito e seu mundo. É no próprio filosofar, ou, em outros termos, na
atividade sintética própria do sujeito transcendental do conhecimento que deve ser
descoberta a possibilidade de sua referência ao mundo e de qualquer conhecimento
objetivo desse mundo. O dito “subjetivismo” da filosofia transcendental designa o
advento dessa transição desde uma sistemática ontológica, ou cosmo-ontológica, para
uma sistemática puramente noológica.[15]
O puro possível em Aristóteles e, de modo geral, na filosofia grega, limitado e
circunscrito pela perspectiva cosmológica, liberado pela escolástica na perspectiva
ontológica ou onto-teológica em razão da distância mantida entre o dado atual e o
poder divino, novamente se encerrará nos limites decorrentes da capacidade humana
de conhecer.[16] Privado de seu fundamento onto-teológico, a especulação abstrata
em relação ao puro possível, ao possível existente de modo absoluto e não apenas
como potência, tal como se desenvolve na escolástica, deverá necessariamente perder
o essencial de sua distinção, não causando espanto o fato de ter sido julgado de modo
severo por Kant.[17] Daí a observação feita por Faust,[18] segundo a qual o
23
transcendentalismo de Kant ou Fichte representa a apoteose de toda a especulação
ocidental acerca da problemática do possível. Constitui ainda, em certo sentido, seu
termo, na medida em que, pela primeira vez na história das ideias, a ordem do
possível decorre diretamente das exigências internas do próprio sistema filosófico, e
não mais de um princípio transcendente em relação a esse sistema.
24
25
A
A CONCEPÇÃO PLOTINIANA DO SER
quele que considerar a evolução do conceito de possibilidade, tal como
acabamos de esboçar rapidamente, compreende imediatamente a posição de
Plotino na história das ideias e, de modo particular, na história da metafísica.
Plotino inaugura um novo tipo de questionamento acerca do ser, dotado de uma
radicalidade sem igual em toda a história da filosofia grega. Não se trata mais de
saber o que torna possível, por exemplo, a presença de tal ou tal propriedade em
determinado ser, nem aquilo que torna possível, em tal ou tal contexto, a emergência
de tal ou tal natureza, de tal ou tal substância ao lado de outras substâncias. Trata-se,
antes, de compreender por que, em sentido absoluto, há simplesmente o ser, as coisas
que existem.
A formulação plotiniana da questão fundamental da metafísica torna-se, assim, em
sua forma mais geral: “Por que aquilo que é, é, existe?”. É a possibilidade mesma do
ser que está em jogo, e não mais a simples possibilidade dos entes particulares (tendo
já sido admitido que há existência, seres, natureza...). Na medida em que a
possibilidade em Aristóteles, como vimos, era limitada pela estrutura ontológica do
cosmos, em Plotino será o próprio cosmos, em sua existência concreta, que dependerá
do Uno, de seu poder e de sua vontade, do qual será necessário doravante sondar a
possibilidade. Aquilo que antes possuía valor de princípio passa a ser tomado como
principiado, ou, podemos dizer, deve agora corresponder à possibilidade que é a sua,
não apenas agir como princípio, mas ser um princípio.
Esse novo questionamento aberto por Plotino não supõe apenas uma nova
mentalidade ou uma nova sensibilidade filosófica. Implica uma modificação
profunda do sentido de conceitos desenvolvidos pelas filosofias anteriores. O esforço
para pensar de outro modo conduz ou a um nomear de modo diverso, ou a uma
compreensão diferente daquilo que se nomeia.
É sobretudo sob essa última categoria que se constituem as análises elaboradas por
Plotino, sendo, de qualquer modo, sob esse ângulo que agora as abordaremos. Dois
exemplos particulares, o caso do Uno e da matéria, nos permitirão dar conta do
seguinte fato, novo em relação à perspectiva aristotélica: para Plotino, o ato pode se
abrir em uma potência interna; e a potência, por sua vez, não se realizar em nenhum
ato.
26
O exemplo do Uno
A tese central de Plotino em relação ao Uno, que é o primeiro princípio em sua
filosofia, é que ele é além do ser. Dizer que o Uno é além do ser significa dizer que é
além de tudo, isto é, além de tudo aquilo que é determinado, de tudo aquilo que
possui uma forma ou um caráter particular. Essa tese da transcendência do Uno em
relação ao ser, como se sabe, é uma reminiscência platônica. Platão sustentara que o
Bem é além da essência, ou além do ser, conforme o modo como é traduzida a
palavra ousía na fórmula epékeina tês ousías de República, 509b.[1] Mas aquilo que
em Platão era ainda uma tese excepcional, enunciada de modo fugidio, torna-se a
peça central do pensamento de Plotino, na qual assenta toda a sua filosofia.
O plotinismo pode essencialmente ser considerado como consistindo nesta
separaçãodo Uno em relação a todas as outras coisas, notadamente em relação à
hipóstase do Intelecto, segundo princípio e segunda ordem da realidade no
pensamento de Plotino. Para os pensadores do médio-platonismo, esse segundo
princípio ainda estava vinculado ao primeiro princípio, isto é, ao próprio Uno. Essa
tese em Plotino parecerá banal, guardadas as devidas proporções, em relação a outra
tese radicalmente nova, segundo a qual o Uno engendra-se a si mesmo, é causa de si!
Muito se comenta e se justifica a primeira tese, cuja presença não surpreende quando
consideramos o estado das especulações pré-plotinianas, mas muito menos se
arriscou na justificação da segunda tese, que se circunscreve de modo claro em
relação a tudo aquilo que era até então conhecido. Ora, a transição de um modelo
cosmológico a um modelo ontológico da possibilidade fornece, ao que parece, um
quadro de interpretação apropriado para se compreender essa novidade.
É no tratado VI 8 [39], intitulado Sobre a liberdade e a vontade do Uno, que
aparece pela primeira e única vez a ideia do engendrar-se a si mesmo do Uno. Um
primeiro elemento a ser notado é que esse tratado, desde suas primeiras linhas, é
precisamente dominado pela ideia de potência, pela problemática acerca do
significado de poder (τὸ δύνασθαι). Plotino escreve:
É possível, mesmo em relação aos deuses, questionar acerca daquilo que deles depende, ou é preciso
reservar essa questão aos seres humanos e à suas faculdades fracas e hesitantes, admitindo que os
deuses podem tudo e que não é apenas algo particular que deles depende, mas todas as coisas? Ou é
necessário atribuir ao Uno a onipotência e o fato de todas as coisas serem a partir dele, na medida em
que acerca dos outros deuses deveríamos dizer que certas coisas estão em seu poder, outras não, e em
relação a cada deus aquilo que é o caso a cada vez? Não é necessário empreender essa investigação e
ter a audácia (a temeridade) de realizar essa pesquisa questionando, em relação aos seres primeiros e
ainda em relação Àquele que está no alto, acima de todas as coisas, como se deve compreender o estar
em seu poder, mesmo que tenhamos reconhecido sua onipotência? E ainda é preciso procurar saber o
27
que significa dizer estar em seu poder em relação a que, usando tal expressão, diremos que significa,
de um lado, uma potência, de outro, um ato, e um ato que estaria ainda por vir (VI 8 [39], 1, 1-13, trad.
Leroux).
Trata-se, para Plotino, não apenas de compreender em que consiste, mas também
de avaliar até onde se estende efetivamente o poder divino. Ora, tal investigação,
recordemos, nova, parece ser disposta, em seu desenvolvimento, em três momentos
essenciais, três teses cujo conteúdo não se coaduna facilmente.
Tais teses são:
1º: o exame da potência do Uno não deve nos conduzir a postular, “de um lado, uma potência, de outro,
um ato, isto é, um ato que estaria ainda por vir” (1, 12-13).
2º: que “é impossível que algo se engendre por si mesmo e traga a si mesmo à existência” (7,25-26).
3º: que “é preciso não temer postular um ato primeiro sem substância, mas é preciso postular tal ato,
por assim dizer, assim como sua existência” (20, 9-11).
A segunda dessas teses, inclusive em sua formulação, é tipicamente aristotélica.
Com efeito, dizer que algo não pode se produzir a si próprio implica a consideração
de que “nada é anterior a si mesmo”, como Aristóteles havia afirmado,[2] ou, ainda,
que “investigar por que algo é ele mesmo é nada investigar”,[3] na medida em que
não se pode esperar encontrar, em relação a um ser, a razão mesma daquilo que ele é.
Ora, a intenção última do tratado de Plotino é tentar ultrapassar esse princípio
aristotélico, sem, no entanto, invalidá-lo. É o que enuncia a primeira tese, depois
retomada, conforme sua economia diversa, pela terceira tese.
Primeira tese. O que aqui é enganador é o fato de que Plotino recorre ao
vocabulário aristotélico da potência e do ato, a fim de exprimir uma distinção na
verdade inexistente para Aristóteles, isto é, aquela do ato e do ser em ato. Em Plotino,
as entidades inteligíveis não são apenas em ato, no sentido em que existiriam desde
toda a eternidade e se oporiam aos seres submetidos ao devir, que existem apenas em
potência. Elas são igualmente ato, como efeito ou cristalização de uma potência
produtora ativa, que reside nelas mesmas e que se identifica a elas mesmas.
É no tratado II 5 [25], Sobre o que é em potência e o que é em ato, que Plotino
elabora a distinção a que aqui visamos. Uma primeira diferença em relação ao
ensinamento de Aristóteles é que Plotino toma o ser em potência – por exemplo, o
barro que é a estátua em potência – como desprovido de qualquer potência. “Se
tomamos a potência no sentido de potência produtora”, sublinha Plotino, “o ser em
potência de modo algum é potência, pois a potência, na medida em que é
compreendida como produtora, não pode ser dita em potência”.[4] Em virtude dessa
doutrina de Plotino, a matéria, como ser em potência, é totalmente desprovida de
28
potência. É isso que também lhe permite dizer, um pouco mais adiante, no mesmo
tratado, que “o ser em potência toma seu ser em ato de um outro ser em ato”,[5] isto
é, não o toma, de modo algum, de si mesmo. É possível acrescentar que não é o
próprio ser em potência que se torna em ato, “mas é o ser em potência que existe
previamente e, em seguida, vem a ser em ato”,[6] entendendo com isso que há uma
perfeita descontinuidade, uma franca ruptura entre a ordem da potencialidade (por
exemplo, tal estátua em potência) e a da atualidade (a mesma estátua após ter sido
realizada).[7] A conclusão à qual Plotino chega, enunciada em termos mais claros, é a
seguinte: “É preferível, e mais claro, referir o ser em potência ao ser em ato, e a
potência ao ato”.[8]
A segunda diferença em relação a Aristóteles é que, para Plotino, o ser inteligível
não é simplesmente em ato, tal como é o Deus de Aristóteles, mas é também ato, isto
é, não cabe dizer o que lhe é oposto, mas que no seio mesmo da atualidade repousa a
potência produtora do ato. A verdadeira atualidade é aquela do ser “que toma de si
mesmo o fato de ser eternamente aquilo que é”,[9] em virtude de uma potência que
ele possui em si mesmo e que é seu próprio ato.[10] O ser em ato, segundo Plotino, é
“ato” em razão de uma potência produtora que ele retira de si mesmo. À oposição
tradicional entre ser em potência e ser em ato se superpõe, portanto, a oposição
plotiniana no interior daquilo que existe em ato, da potência e do ato.[11]
Em tais condições, pode-se agora traduzir o enunciado da primeira tese de modo a
“corrigir” o deslizamento semântico inevitável da potência plotiniana à potência
aristotélica. É preciso notar, portanto, que o exame da potência do Uno não deve nos
conduzir a estabelecer, “de um lado, uma atividade produtora (= potência), de outro,
um ato, isto é, um ato que estaria ainda por vir” (VI 8 [39] 1, 12-13).
É neste momento que a aparente oposição entre a primeira e a terceira teses, no
início e no final do tratado 39, começa a revelar uma parte de seu mistério. A
potência do Uno não deve levar à suposição da presença de uma divisão entre
atualidade do Uno, tomado como potência ativa, e outra atualidade, se considerado
como ser sempre já plenamente realizado em ato, conforme o enunciado da primeira
tese. Oposta, a terceira tese afirma “que é preciso não temer estabelecer um ato
primeiro sem substância” (20, 9-10). Ora, sem substância, na terceira tese, equivale a
ato, tomado como a atualidade já realizada da primeira tese. A terceira tese nos
exortaria a não temer o que poderia nos fazer assumir a temeridade (τόλμα) de uma
investigação, conforme enunciado na primeira tese no início do tratado, a propósito
29
da potência, a propósito daquilo que pode o primeiro princípio, o Uno.
É na medida em que, conforme a terceira tese, a possibilidade de um ato sem
substância (ἄνευ οὐσίας) é admitida, preservada, apesar de sua dificuldade, que
Plotino pode afirmar em outras passagens do mesmo tratado39 que o Uno “produz-se
a si mesmo para si mesmo a partir de nada” (7, 53-54), “que se fez a si mesmo” (13,
54-55). Talvez de modo ainda mais forte, que é “causa de si mesmo, por si mesmo, de
si mesmo” (14, 41-42) e que “trouxe a si mesmo à existência” (16, 29, cf. também 14-
15).
Essa última formulação relativa à existência (ὑπόστασις), feita em VI 8 [39] 16,
29, nos conduz à terceira tese já enunciada: “É preciso não temer estabelecer um ato
primeiro sem substância, mas é preciso postular esse ato, por assim dizer, como sua
existência (ὑπόστασιν)”. Trata-se sempre de um mesmo conceito: ὑπόστασις,
existência. O Uno traz-se a si mesmo à existência por meio de um ato pré-substancial
que o constitui como existente, isto é, como subsistente, como substância existente.
[12]
Vê-se a distância que separa Plotino de Aristóteles quando, algumas linhas mais
adiante, Plotino acrescenta que “o ato é mais perfeito que a substância” (20, 14), e
quando observa que, no Uno, o ato não é submetido à substância (20, 17-18),
concepção esta que é completamente estranha tanto ao espírito quanto à letra de
Aristóteles, para quem o mais excelente dos atos, o ato puro, que representa Deus, é
imediatamente, e por isso mesmo, substância.[13]
Tal potência-produtora-ativa-primeira, quase desencarnada, “des-
substancializada” – ou, ainda, pré-substancial –, é, portanto, algo que se situa aquém
da posição da existência, sendo a existência tomada mais como o efeito imediato
daquela e constrangido por aquela potência produtora primeira. O Uno, insiste
Plotino, é como “ele quer ser” (16, 22) e, na medida em que não é escravo de
nenhuma substância, nem mesmo a sua própria, é “pura liberdade” (20, 18).
Pura liberdade, vontade, tais palavras ressoam evidentemente curiosas em relação
ao vocabulário ordinariamente usado em grego antigo para designar um princípio. Se
em Plotino ainda não significam tudo o que parecem anunciar, sua simples presença
já testemunha, entretanto, a impossibilidade de enunciar em termos clássicos uma
concepção que Plotino entende, entretanto, como ainda puramente clássica. Pois o
que há de paradoxal aqui[14] é tal liberdade: o domínio do Uno sobre si mesmo, na
concepção de Plotino, não é senão a expressão da necessidade do Uno, e até mesmo a
própria necessidade. Necessidade que não possui nada de pessoal, que não
30
testemunha qualquer “decisão”, qualquer “iniciativa” própria do Uno.
É possível, então, perguntar o que motivou Plotino a formular tal necessidade e
empregar a linguagem paradoxal da liberdade e da vontade. Responder a essa questão
requer, todavia, um exame mais aprofundado das circunstâncias particulares de
redação deste tratado, para as quais é preciso que agora nos voltemos.
31
A liberdade do Uno
Por que a liberdade do Uno é proclamada precisamente no tratado VI 8 [39] e não
em outro? Eis o que é difícil estabelecer com precisão.
A temeridade da investigação à qual Plotino nos convida no primeiro capítulo do
tratado 39 faz aparentemente eco ao enunciado de uma tese, mais precisamente de um
discurso ou de um raciocínio qualificado por ele como “temerário” (τολμηρός) e
vindo de outro lugar, isto é, “considerado a partir de uma posição diferente” daquela
do próprio Plotino. Essa posição pode ser a de outra escola ou simplesmente de outra
corrente de pensamento em relação àquela a que ele próprio se filia.
Qualquer que seja sua origem, tal discurso adverso afirma que “na medida em que
a natureza do Bem é por acaso (ὡς τυχοῦσα) aquela que é, na medida em que não é
soberana (κυρία) em relação à sua própria essência, que tal essência não é aquilo que
é por si mesma (παρ᾽ αὐτῆς), então ela não possui nem liberdade nem
autodeterminação, considerando que ela faz ou não faz aquilo a que é constrangida
(ἠωάνκασται) a fazer ou não fazer”.[15]
A natureza do Bem, do Uno, segundo essa tese, existe por acaso na medida em que
ela não existe por si mesma (παρ᾽ αὐτῆς), isto é, não é plenamente responsável,
senhora (κυρία) daquilo que é. Não é difícil imaginar que a nova teologia do Uno,
proposta no tratado 39, seja uma tentativa de resposta a este “discurso temerário”
denunciado por Plotino como absurdo e que pode ter tomado como uma provocação.
Esse “discurso temerário” possui a particularidade de afirmar o caráter casual do
Uno, sua não-liberdade, de acordo com uma oposição que impede previamente
qualquer refúgio no campo da necessidade. Aquilo que se produz por acaso, isto é, de
uma maneira ou de outra, não se opõe apenas àquilo que produz de modo necessário,
ou seja, invariavelmente, mas também àquilo que se produz por nossa determinação,
aquilo que depende de nós.[16] Opor pura e simplesmente a necessidade do Uno a
seu caráter “casual” deixaria, portanto, intacto o prejuízo de sua dependência ou de
sua sujeição. Em outras palavras, na medida em que a existência do Uno é declarada
necessária e não resultado do acaso, seria retirado da ordem do contingente e perderia
simultaneamente o privilégio da liberdade a ela é estritamente vinculada.
Ora, Plotino não estava interessado em um tipo de necessidade que transformasse
o Uno em uma espécie de escravo, tanto quanto por uma liberdade que o tornasse
contingente, isto é, cambiante, sujeito à indeterminação. Devendo, portanto,
simultaneamente retirar da liberdade do Uno qualquer ideia de mutabilidade e de sua
32
necessidade qualquer ideia de constrangimento, sua teologia somente poderia propor
uma problemática da livre-necessidade do Uno. De modo simultâneo, nega que o Uno
seja contingente, porque é livre, e que seja constrangido, porque é necessário.
O “discurso temerário” conduz Plotino a pretender fundar aquilo que é e que não
carece de fundamento, isto é, a ascender da existência, da realidade fundamental e
primeira do Uno, à condição de possibilidade mesma desse Uno. Ora, como primeiro,
o Uno não poderia encontrar sua possibilidade em qualquer entidade anterior a ela.
Seria, então, necessário, em um gesto perfeitamente anti-aristotélico, encontrar no
próprio Uno a razão daquilo que ele era. O Uno, portanto, não é sequer escravo da
necessidade que ele comunica a todas as coisas na medida em que, nele, a
necessidade emana da livre vontade que ele possui de ser aquilo que é.
O Uno é uno, mas em tal unidade em ato, a potência ativa do Uno é como a causa
de um ato que não está por vir, mas é sempre já plenamente realizado. A causa do
Uno não reside, de modo algum, em algo de anterior, mas numa instância que, nele,
não é de nenhuma maneira distinta dele. Aquilo que é necessário para todas as outras
realidades, denomina-se, no caso do Uno, liberdade, sendo possível repetir a
afirmação de Plotino “que é preciso não temer estabelecer um ato primeiro sem
substância, mas pensar esse ato mesmo, por assim dizer, como sua existência” (VI 8
[39], 20, 9-11).
Como agora já foi possível perceber, a oposição entre potência e ato posta no seio
daquilo que é em ato, permite a Plotino desdobrar o Uno sobre si mesmo a fim de
nele descobrir toda fonte daquilo que é. Na medida em que é causa de si, o Uno se
opõe ao acaso de todos os lados, ou seja, sendo simultaneamente necessário e livre:
necessário, na medida em que é senhor de todas as coisas; livre, na medida em que é
senhor de si mesmo.
Potência sem substância, o Uno plotiniano marca uma primeira emancipação da
possibilidade interna do ser. Sua liberdade está ainda vinculada ao mundo; sua
potência ainda está ligada de modo indissolúvel à existência do ser em ato. Contudo,
a ordem do mundo e o ato do Uno devem agora ser relacionados a uma potência
primeira, encontrando seu fundamento em uma liberdade original. A liberdade,
entretanto, aqui é ainda essencialmente restritiva, unidimensional; não é ainda
(embora a prepare) o verdadeiramente plural, como será o caso na tradição cristã.[17]
Se é aquilo que quer ser, o Uno não possui, na verdade, a possibilidade de “querer”
senão aquilo que é, ou ser aquilo que ele próprio é.
Não é possível haver hesitação acerca desse ponto. Plotino pergunta, no último33
capítulo do tratado VI 8 [39] se o Uno poderia fazer-se diferente daquilo que é,
respondendo que “ali a potência não significa o poder dos contrários, mas uma
potência inquebrantável e imóvel, que é a maior possível” (21, 1-5). A resposta de
Plotino não permite qualquer dúvida a esse respeito; a liberdade do Uno é uma
liberdade de necessidade, não uma liberdade de espontaneidade (libertas
spontaneitatis), na medida em que a realidade do mundo é seu fato, a encarnação de
seu querer e de sua atividade para si, e não uma liberdade de indiferença (libertas
indifferentiae), pois seu querer se exerce aquém de toda alternativa, aquém de
qualquer outra escolha possível.[18] Aquilo contra o que Plotino se insurge é ao fato
de que se possa “retirar do Uno o poder de fazer o bem, porque ele não poderia fazer
o mal” (21, 2-3). A liberdade divina, portanto, permanece essencialmente
unidirecional e unidimensional.
A possibilidade passa, portanto, efetivamente com Plotino, do estado cosmológico
ao estado ontológico, mas tal estado “ontológico” do possível permanece ainda
vinculado à existência de nosso cosmos. Essa nova possibilidade aberta pelo Uno de
fundar o ser, na verdade, não é o fundamento possível senão de um único ser.
34
O exemplo da matéria
Antes de tentar explicar como essa metafísica da vontade aplicada ao Uno, por
mais limitada que seja, pode emergir em Plotino, e qual é a contribuição eventual do
“discurso temerário” na elaboração dessa metafísica, será útil examinar o lugar da
matéria na concepção plotiniana da possibilidade.
Vimos anteriormente que certa potência de tipo ativo se “emancipava” do ser, que
o ser em ato do Uno abria-se a alguma forma de interior, sobre uma potência interna
fundadora. Trata-se, agora, de ver como certa potência, desta vez de tipo negativo,
pode não se desdobrar em nenhum ato, isto é, em nenhuma espécie de presença.
35
Uma matéria “flexível”
Retomamos a expressão matéria “flexível” de um estudo em que a matéria
plotiniana era oposta ao receptáculo platônico, justamente concebido como uma
realidade “dura”, isto é, vinculada à extensão matemática.[19] O comentador de
Plotino visava chamar a atenção para o fato indubitável, ainda que pouco notado, de
que a matéria plotiniana era desprovida de grandeza, de extensão espacial. Ela é sem
grandeza (ἀμεγέθης), como repete Plotino com frequência, ou, dito de outro modo, é
um tipo de grandeza que requer um princípio formal de origem inteligível (II 4 [12],
8, 20). Eis por que Plotino a qualifica como dócil (εὐάγωγος), na medida em que ela é
facilmente conduzida para todas as coisas, de modo que também para a grandeza.
Muito mais que sem grandeza, expressão que se presta a confusões, a matéria, mais
precisamente, é aquilo que foi tornado grande (τὸ μεμεγεθυσμένῳ εἶναι: II 4 [12], 8,
11-12), o que é receptivo da extensão (διαστήματός ἐστι δεκτική: II 4 [12], 11, 18-
19).
Plotino mostra-se aparentemente consciente da dificuldade de tal doutrina,
contestando apenas o fato de que, na medida em que ela é perfeitamente dócil, em
que todas as coisas lhe são conferidas pelo princípio inteligível, sua matéria, em
realidade, é um nome vazio (κενὸν ὄνομα: II 4 [12], 12, 22), isto é, algo desprovido
de caráter positivo e cuja contribuição no mundo sensível, portanto, é nula.
Quaisquer que sejam as origens dessa doutrina plotiniana, que são muito
complexas,[20] é de qualquer forma claro que a representação do mundo sensível à
qual chega Plotino é bem diversa tanto daquela de Platão quanto de Aristóteles. Em
Platão, com efeito, o receptáculo é uma realidade espacial, um “material”[21] que
oferece uma localização a qualquer objeto que dele advém. Isso porque Platão fala do
receptáculo, antes de tudo, como um “aquilo-em-que” (ἐν ᾧ) os fenômenos sensíveis
aparecem.[22] Em Aristóteles, a matéria do mundo sensível é exclusivamente o
“aquilo-de-que” (ἐξ οὗ) as realidades sensíveis são constituídas,[23] como, por
exemplo, a madeira da qual se faz uma estátua. Ora, em Plotino, a matéria não é nem
o “aquilo-em-que” os fenômenos sensíveis tomam lugar, pois ela própria recebe sua
extensão de razões inteligíveis, nem o “aquilo-de-que” as realidades sensíveis são
feitas, pois, ainda uma vez, as razões seminais de origem inteligível trazem
absolutamente tudo à matéria.[24]
Em certos momentos, Plotino insiste acerca do fato de que a matéria fornece nada
36
menos que o substrato (ὑποκείμενον) aos seres que agem,[25] mas trata-se ainda de
um substrato “flexível”, perfeitamente “maleável”, e definitivamente estéril (ἄγονος:
II 6 [26] 19, 25), sua “capacidade” se limitando justamente ao fato de ser apto a
receber uma extensão.
Essa “flexibilidade” da matéria, sendo de algum modo fluido o cosmos ao qual ela
fornece a geração, conduz-nos a um primeiro exemplo daquilo que pode significar
uma realidade negativa, algo ao qual, no limite, não seria conferido nenhum caráter
positivo, uma potência de tipo negativo, que não se abriria a nenhuma presença.
37
Uma matéria impassível
Da esterilidade ou da improdutividade da matéria à sua impassibilidade (outra
novidade plotiniana) há apenas um passo, logo superado por Plotino em sua tentativa
de des-realização da matéria, isto é, em seu esforço por reconduzir qualquer traço
positivo do mundo sensível a uma determinação inteligível.
Nessa perspectiva, a matéria não é mais apenas dócil, dúctil, mas é igualmente
impassível (ἀπαθής),[26] isto é, de nenhum modo afetada por aquilo que lhe advém.
Ouçamos Plotino por um momento:
“É preciso retornar à matéria tomada como substrato dos corpos, em seguida às
propriedades que dizemos existir na matéria. Conheceremos por esse exame tanto o
não-ser da matéria quanto sua impassibilidade. É incorpórea, pois o corpo lhe é
posterior, é um composto, e que produz um corpo unindo-se a algo distinto. Se
possui, desse modo, como o ser, o nome de incorpóreo, isso ocorre apenas porque a
matéria, tal como o ser, é diferente do corpo. Ela não é nem alma, nem inteligência,
nem vida, nem forma, nem razão, nem limite (pois ela é ausência de limite), nem
potência (o que ela produz, afinal?); mas, desprovida de todas essas características,
não pode corretamente receber o nome de ser (...); daí, então, as coisas que parecem
advir a ela são apenas um jogo fugidio, e não são, em verdade, senão um fantasma
num fantasma, exatamente como em um espelho, no qual algo aparece somente de
certo modo; em aparência, o espelho está repleto de objetos; ele nada contém, mas
parece tudo conter. ‘Aquilo que entra na matéria e dela sai são imitações dos seres’,
fantasmas que penetram num fantasma sem forma; eles parecem agir sobre ela; mas
nada produzem, são seres sem consistência, frágeis e sem resistência; como a matéria
deles nada possui, eles a atravessam sem fragmentá-la, como se penetrassem na água,
ou como se alguém, por assim dizer, produzisse formas naquilo que chamamos de
vazio”.[27]
O que desde o início surpreende nessa descrição é o fato que a matéria possa
passar do estado de docilidade, que supõe sua permeabilidade às influências
exteriores, ao estado de impassibilidade e de inalterabilidade, que implica, ao
contrário, numa indiferença perfeita, uma impermeabilidade absoluta em relação a
tudo aquilo que não é ela própria. Nesse sentido, Plotino pensará a matéria como
“aquilo que é só, isolado das outras coisas, e absolutamente simples”.[28]
A negatividade da matéria adquire, evidentemente, sentidos diferentes conforme
uma ou outra dessas perspectivas. Na primeira perspectiva, a negatividade da matéria
38
consiste no fato de não ser outra coisa que aquilo que dela se requer, de não ser nada
além daquilo que corresponde às exigências das entidades inteligíveis formais, e,
portanto, de não comportar além de si mesma qualquer traço distintivo. Na segunda
perspectiva, a negatividade da matéria reside mais particularmente no fato de ser algo
diferente daquilo que emerge de uma realidade formal, de ser além daquilo que
comporta uma determinação positiva. A partir disso,a matéria será sempre privada
de positividade, mas obtém, no seio mesmo da negatividade, uma espécie de pseudo-
positividade, ou ainda de para-positividade.
Poderíamos elaborar a seguinte formulação: a matéria instala-se na negatividade;
do nada que era torna-se não-ser positivo.
39
Nihil negativum versus nihil positivum
O fundo “negativo” da matéria, o fato de sua “existência” estar limitada ao não-
ser, de algum modo envolta na realidade negativa do não-ser, pode ser explicitado de
diferentes maneiras. Um olhar sobre sua “flexibilidade”, assim como sobre sua
“impassibilidade”, já nos permitiu perceber em que consiste sua ausência, seu nada.
Em outro contexto, Plotino dirá, por exemplo, que a matéria é uma não-substância
(μὴ οὐσία), isto é, algo de contrário à substância, opondo-se, desse modo, a
Aristóteles, para quem nada é contrário à substância.[29] Mas é na privação que se
fixa mais claramente a negatividade essencial da matéria. O que isso significa?
Digamos, primeiramente, em que consiste a privação para o próprio Aristóteles, o
primeiro a ter elaborado esse conceito. A privação, para Aristóteles, é aquilo que
afeta, aquilo que conhece a própria matéria, na medida em que ela não é plenamente
realizada e que aspira a se tornar algo que ela ainda não é. A privação traduz, desse
modo, a falta inerente à matéria. De tal maneira, adquirirá potencialmente a forma,
mas ainda não a possui, de modo que é possível dizer que ela conhece a privação, que
é afetada pela falta.
Por essa razão, Aristóteles diz que a matéria é um não-ser relativo, ou ainda, um
não-ser por acidente,[30] na medida em que ela não é totalmente realizada, que a
privação, por sua vez, tomada isoladamente por si mesma, não é não-ser relativo, mas
absoluto.[31] É preciso evitar aqui uma confusão. A privação, considerada em si
mesma, é não-ser absoluto, nada puro e simples, mas jamais existe sozinha, é sempre
privação de algo, falta no seio de algo. “Na privação”, escreve o Estagirita, “há uma
natureza subtrativa, na qual a privação é afirmada”.[32]
Uma conhecida passagem da Física é esclarecedora a esse respeito: “Para nós,
diremos também que não há geração que provenha absolutamente do não-ser, o que
não impede que haja a partir do não-ser, ou seja, diríamos, por acidente: a partir da
privação, com efeito, que é em si um não-ser, e sem que ela subsista, algo é
engendrado”.[33] Essa frase permanece, na realidade, incompreensível se não
consideramos o fato de que a geração pode efetivamente ser considerada como
proveniente do não-ser por acidente, ainda que provenha da privação, ela própria
declarada não-ser por si, na medida em que esse não-ser por si, que é a privação,
nunca existe por si, mas sempre em relação a uma matéria. É, de resto, aquilo que
Plotino concede no momento em que pretende explicitar em que consiste a privação
do ponto de vista aristotélico: “A privação é sempre uma outra coisa, e não possui
40
existência por si mesma”.[34]
A privação, em sentido aristotélico, jamais é uma entidade autônoma. É não-ser
por si, mas nunca a encontramos de fato só. A privação é, desse modo, um nihil
privativum, um não-ser por privação, um não-ser relativamente a algo e não,
conforme a terminologia da “metafísica escolar”, um nihil negativum, ou seja, um
puro nada, um nihil brutum.
Tal distinção entre o nihil privativum e o nihil negativum pode nos ajudar a
compreender em que consiste a modificação introduzida por Plotino na concepção
aristotélica – e no sentido clássico – do ser.
Em Baumgarten, e na “metafísica escolar” alemã[35] em geral, a reflexão sobre o
ser, a ontologia, caso se prefira, é de certo modo afiliada a um conceito mais
primitivo, que é o conceito do nada em sentido absoluto, o não-ser puro e simples,
impossível e não representável.[36] A esse conceito de nihil absoluto, por assim
dizer, “inutilizável”,[37] Baumgarten opõe em seguida, como nota J.-F. Courtine,[38]
o non-nihil, isto é, “aquilo-que-não-é-nada”, denominado ainda de aliquid ou Etwas.
Esse non-nihil, que se opõe ao nihil negativum, já não é algo de existente, mas é nada,
na medida em que há ao menos a possibilidade de ser: “§ 8. O aquilo-que-não-é-nada
é algo (Etwas): o representável, o que não implica contradição, ou seja, aquilo que
não é A nem não-A, é possível”.
Esse non-nihil, que, no fundo, é um possível, “existível”,[39] “algo passível de
existência”, poderíamos dizer, e que é contra-distinto do nihil negativum, é em
Baumgarten, como sublinha Courtine, “o primeiro conceito positivo da ontologia”.
[40] O não-ser absoluto sendo deixado de lado, o non-nihil, isto é, o não-ser relativo,
é o primeiro conceito a partir do qual é possível efetivamente elaborar uma ontologia,
ou seja, um discurso sobre o ser. Como objeto-em-geral (Objekt), esse aliquid ou
non-nihil é sob sua forma determinada uma realidade atual (actuale-wirklich). De
outro lado, em seu estado indeterminado, ele é non-ens, nihil, agora no sentido de
nihil privativum, ou seja, algo de não-atualizado e, entretanto, possível, que
Baumgarten designa igualmente como ein mögliches Nichts.[41]
De modo esquemático, poderíamos representar esse esquema da seguinte maneira:
[42]
Nichts (nihil negativum)
Repugnans
41
OBJEKT
(aliquid, Etwas, non-nihil)
Ens Non-ens (nihil privativum) actuale, wirklich (mere possibile
– ein mögliches Nichts)
O leitor habituado à tradição aristotélica percebe logo a proximidade dessa análise
com o ensinamento peripatético. O Objekt, em seu estado determinado (actuale), e
em seguida indeterminado (mere possibile, nihil privativum), reproduz, com efeito,
inclusive em seu próprio vocabulário, a oposição tradicional aristotélica entre ser em
potência e ser em ato.
Assim como este Objekt, ou este aliquid, a matéria em Aristóteles conhece um
estado determinado, depois um estado indeterminado. Ela é simultaneamente este ser
determinado em ato e indeterminado, ou seja, apenas em potência, tal como outro ser
particular, por hora ainda apenas “possível”. Como ser em potência (δυνάμει ὄν), a
matéria primeira aristotélica está a meio caminho, assim como aquele Objekt, entre o
ser e o não-ser,[43] isto é, se retomarmos a terminologia de Baumgarten, ao mesmo
tempo Ens e Non-ens.
Ao contrário, a matéria equivale, para Plotino, mais precisamente à privação, não é
nada além de privação. A finalidade dos capítulos 14 a 16 do tratado II 4 [12] é
mostrar que a matéria é idêntica à privação, que não é, em si, nada além do que o
infinito. Pondo em jogo, no capítulo 14, a questão de princípio que consiste em saber
“se a matéria é privação, ou se a privação lhe diz respeito”, Plotino conclui, no
capítulo 16, afirmando a identificação dessas duas noções: “A matéria é idêntica à
privação (στερήσει ταὐτόν)”. Citemos todo o capítulo 16, cujo conteúdo é altamente
instrutivo:
— É a matéria idêntica à alteridade?
— Não, mas é idêntica à parte da alteridade que é oposta aos seres que existem em sentido próprio, que
são precisamente as razões. Eis por que também, mesmo não sendo, nesse sentido, ela é algo, e é
idêntica à privação, se a privação é oposição aos seres que existem segundo uma razão.
— Então, a privação será destruída quando lhe advém aquilo de que ela é privação?
— De algum modo; pois o receptáculo de uma disposição não é uma disposição, mas uma privação, e o
receptáculo de um limite não é aquilo que é limitado nem o limite, mas o infinito, e isso na medida em
que ele é infinito. Como, portanto, advindo, o limite destruirá a natureza do infinito e isso quando não é
infinito por acidente? Se fosse infinito segundo a quantidade, ele o destruiria; ora, de fato ele não age
assim, mas, ao contrário, preserva-o em seu ser; pois aquilo que é por natureza, ele o conduz à
42
atualidade e ao acabamento, assim como o não-fecundado, quando é fecundado, e a fêmea, quando ela
é fecundada pelo macho e não perde sua feminilidade, mas torna-se mais feminina, isto é, torna-se
sobretudo aquilo que ela é.
— Isso ocorre também com a matéria, visto que é má, porque participado bem?
— Muito mais, e por essa razão tem dele necessidade; pois ela não o possuía. Com efeito, aquilo que
carece de algo, mas possui outra coisa, poderia sem dúvida ser intermediário entre o bem e o mal, se de
alguma forma mantivesse a igualdade nas duas direções. Mas aquilo que não possui nada porque está
na penúria, ou melhor, porque é penúria, é necessariamente mal. Pois não é verdadeiro que isso seja
penúria de riqueza e não de força, mas ela é penúria de sabedoria, penúria de virtude, de beleza, de
força, de figura, de forma, de qualificação. Como, portanto, não seria sem forma? Como não seria
totalmente feia? Como não seria totalmente má?
Essa matéria, aquela de lá, é ser; pois aquilo que é anterior a ela é além do ser. Mas, aqui, é aquilo que
é anterior à matéria que é ser. Portanto, ela não é em si mesma ser, na medida em que é outra, no plano
daquilo que é aquém do ser.
Como podemos ver nessa passagem, a matéria é, para um neoplatônico, uma
alteridade, uma privação “radical”. Pode parecer curioso que, nesse quadro, Plotino
possa falar de “atualidade” e de “acabamento”, mas trata-se, com efeito, como mostra
o contexto, de uma atualidade negativa, na medida em que, na verdade, a matéria não
é aqui “atualizada” senão porque é remetida a si mesma, ou seja, reenviada à sua
indigência essencial, e que ela é, então, condenada, por assim dizer, ao “aquém” do
ser, isto é, ao não-aparecer ou à inexistência.
Bréhier notou a esse respeito:
A resposta de Plotino é com dificuldade uma resposta, tal o modo como seu pensamento mostra-se
diferente daquele de Aristóteles; a privação, para ele, jamais cessa de ser privação por ter recebido a
forma; o devir não transforma a matéria, como em Aristóteles; a matéria permanece como antes, ou
mais que anteriormente, a pobreza mesma, a indigência, o mal radical que não pode ser melhorado[44].
É preciso, com efeito, insistir, com Bréhier, na diferença fundamental existente
entre a representação plotiniana e a representação aristotélica da matéria.
Tecnicamente, seríamos levados, no caso de Plotino, a falar de uma assimilação do
nihil privativum ao nihil negativum. Na medida em que ela não contribui estritamente
em nada e que não é suscetível a qualquer realização, a qualquer atualização, a ὕλη
plotiniana, na verdade, é um Nichts, um nihil negativum, isto é, definitivamente um
“impossível”. Enquanto para Aristóteles a matéria é um elemento do qual algo é feito
e que ali permanece de modo imanente (ἐνυπάρχειν), algo, portanto, que subsiste ou
que perdura no devir (ὑπομένειν),[45] para Plotino, a matéria é “totalmente separada
do ser e incapaz de se transformar”. É aquilo que “desde a origem não era algo em ato
(...) e assim não se tornou”.[46]
Ao esquema acima proposto, a fim de considerar a inovação plotiniana, seria
preciso acrescentar um traço isolando o Objekt e o Ens do Nichts e do Non-ens, o que
43
resultaria no seguinte:
Nichts (nihil negativum)
Repugnans
OBJEKT
(aliquid, Etwas, non-nihil)
Ens Non-ens
(nihil privativum)
actuale, wirklich (mere possibile
– ein mögliches Nichts)
Nesse esquema, o nihil privativum e o nihil negativum são agora confundidos,
identificados um ao outro; o Objekt está, então, em relação direta, identifica-se
mesmo, com o Ens, isto é, com o ser realizado, com o existente em ato. Ora, as
consequências dessa nova divisão do ser introduzida por Plotino são consideráveis.
Poderíamos dividi-las sob duas rubricas: 1o. o necessitarismo; 2o. a des-realização
do sensível.
44
1º. O necessitarismo
Se o Objekt se identifica doravante com o Ens, se não há nada de representável que
não seja realidade positiva, ser em ato, uma das consequências disso será a
identificação entre real e necessário, isto é, a supressão da contingência. A
identificação do nihil privativum ao nihil negativum – ou, dito de outro modo, do não-
ser relativo ao não-ser puro e simples – resultaria, assim, em suas premissas mesmas,
numa representação necessitarista do mundo. Por quê? Simplesmente porque a
presença do nihil privativum no seio do Objekt, ou, em termos aristotélicos, da
privação no seio da matéria, é aquilo graças a que o acaso, a indeterminação e a
acidentalidade podem advir ao mundo sensível.
Detenhamo-nos por um instante neste problema em Aristóteles, cujo hilemorfismo
determina aqui a especulação plotiniana de modo massivo. O argumento clássico
nesse quadro é aquele mencionado, por exemplo, por A. Mansion quando enuncia:
“Aristóteles reconhece a existência de uma necessidade bruta proveniente da matéria
e independente em si da finalidade, mas, por vezes, conformando-se a ela em seus
efeitos”.[47] O que é essa necessidade bruta? É aquela, responde Mansion, “que se
confunde com a ação imprevisível das causas acidentais, nas quais encarna-se o acaso
entendido em sentido amplo”.[48] A necessidade bruta – a qual se opõe à necessidade
racional que se produz em vista de um fim –, que provém da matéria, portanto, é
igual às causas acidentais, do ponto de vista aristotélico, as quais conduzem ao acaso.
É, portanto, da necessidade bruta, resultante da materialidade, que provém a
contingência no universo aristotélico. O “mundo sublunar, submetido à geração e à
corrupção”, conclui Mansion, “deixa subsistir certa margem de indeterminação”.[49]
A questão seguinte, evidentemente delicada, é saber em que exatamente consiste,
em si mesma, essa indeterminação? Dizer que há indeterminação é admitir que há o
arbitrário, o contingente, o imprevisível, literalmente, o não-determinado, o não
passível de decisão. Logo, é reconhecer, com Aristóteles, que há coisas submetidas ao
acaso, isto é, “coisas suscetíveis de não se produzir nem de modo absoluto, nem
frequente”,[50] opondo-se àquilo que se produz de modo necessário. Ora, Mansion,
que faz tal afirmação juntamente com outros autores,[51] diz, no entanto, que “no
sistema de Aristóteles, o mundo da natureza como um todo está submetido a um
determinismo rigoroso”, ou, ainda, que “o sistema peripatético é determinista no que
concerne ao mundo físico”.[52] O que isso significa?
45
A dificuldade é de determinar se, segundo Aristóteles, o acaso “é para nós [isto é,
apenas para nós] uma causa essencialmente indeterminada”, como o pensa Mansion,
[53] ou se, como o cremos, isso traz uma “irresolução própria à Natureza”.[54] Esta é
uma indecisão que afeta a estrutura mesma do real. É claro, como observa R. Sorabji,
que há espaço para discussão nesse caso,[55] e seria evidentemente presunçoso
esperar resolver esse problema agora, em poucas linhas.[56]
No que concerne à comparação com Plotino, basta insistir com Mansion e, em
certo sentido, contra o próprio Mansion,[57] que o acaso é contado como uma das
causas, ao lado das coincidências, da existência da matéria cuja presença desviou, em
determinado caso, o curso normal dos fenômenos. Os casos de monstruosidades –
principalmente devidas à matéria[58] – constituem uma exceção no curso ordinário
da natureza[59] e, como fenômenos que não são nem naturais,[60] nem subordinados
a um fim,[61] nem regulares,[62] revelam também o acaso, tomado em sentido largo,
na medida em que participam de uma causalidade acidental. Logo, e com o risco de
nos repetirmos, é preciso insistir no fato de a matéria ser aquilo pelo que advém a
contingência no universo aristotélico; ela é o decorrente, por intermédio da privação,
da indeterminação inerente ao mundo sensível.[63]
Ora, é esse sistema aristotélico que desmorona a partir do momento em que a
privação não habita mais o coração da matéria ao direcionar e, eventualmente, desviar
a realização de tal ou tal forma. Tornar a privação absoluta, ou seja, reconduzir a ela
toda a matéria em si mesma, é deixar a totalidade do mundo sensível, fatos e homens,
entregue à necessidade pura e simples.
Ainda uma vez, a identificação do nihil privativum com o nihil negativum conduz,
em suas premissas mesmas, a uma representação necessitarista do mundo.[64] Se
Plotino pode, aparentemente, subtrair-se a essa consequência, é precisamentena
medida em que, em certos contextos e em alguns momentos, confere à matéria um
papel que contradiz o estatuto de pura e simples privação, tal como o faz em diversos
outros contextos. O melhor exemplo disso, sem dúvida, é o tratado I 8 [51], De onde
provém os males, no qual, em um contexto ético, Plotino confere à matéria – tomada
como puro nada – o poder de interferir no curso natural dos fenômenos, perturbando
as potências da alma e enfraquecendo-as. Plotino chegará ao ponto de dizer que a
matéria “torna-se mestra daquilo que nela é configurado, corrompendo-o e
destruindo-o, justapondo a isso sua própria natureza, contrária à forma”.[65]
Qualquer que seja, em última instância, o valor que atribuamos a essas passagens,
46
fica claro que não podem fazer sentido senão com base em um conceito de matéria já
distinto da privação pura e simples.
47
2º. A des-realização do sensível
Voltando-se à problemática do possível, Aristóteles escreveu em Metafísica, Θ, 4,
1047b 3-6: “Se é verdade que o possível, como dissemos, somente é na medida em
que é realizável, fica claro que não podemos dizer de modo verdadeiro que tal coisa é
possível, mas jamais se realizará, pois daí resultaria a desaparição da noção mesma de
impossibilidade” (trad. Tricot).
O que o Estagirita entende com essa declaração é que um impossível não é
simplesmente um possível que não existe e que não existirá (e, nesse sentido, que é
falso), mas algo que necessariamente não existe e não existirá. O exemplo dado por
Aristóteles nesse quadro é o daquele que pretenderia ser mensurável a relação da
diagonal com o lado do quadrado, ainda que seja medido, “porque nada impede que
algo, capaz de existir ou de devir, não exista, nem que venha a existir” (1047b 8-9). A
esse respeito, a própria noção de impossibilidade pode ser transformada nesse tipo
estranho de possibilidade, isto é, a possibilidade fadada à inatualização![66]
Segue-se que, para Aristóteles, ao contrário, todo possível se realiza no tempo;
logo, é possível somente aquilo que é ou aquilo que será? É o que acreditou poder
concluir um comentador como J. Hintikka,[67] a quem J. Vuillemin, por exemplo,
fazia justamente observar que o texto de Aristóteles em questão “leva-nos somente a
não considerar como semanticamente possível aquilo que, por princípio, é impedido
de passar a ato, quer esse princípio seja uma causa material ou eficiente já dada, quer
seja um princípio lógico. Ele não nos diz, de modo algum, que um possível deverá
ser, mas unicamente que um possível que não será certamente não é um possível
autêntico”.[68]
Essa questão da natureza do possível em Aristóteles é complexa, na medida em
que ele parece defender, em alguns momentos, uma tese próxima daquela implicada
por aquilo que chamamos de princípio de plenitude, segundo o qual todo possível
conhece cedo ou tarde sua realização. Nosso universo, como totalidade estruturada
que se basta a si mesma, não sofreria, por assim dizer, qualquer carência. Mas quer
Aristóteles admita ou não o princípio de plenitude, quer esteja de acordo ou não que
nenhum possível permanece na longa duração não atualizada, de qualquer forma,
aquilo que ele rejeita de modo manifesto é a existência possível de uma possibilidade
em si para sempre impossível.
Esse exemplo poderá, talvez, permitir mensurar toda a distância que separa a
concepção aristotélica da representação plotiniana, na medida em que tal
48
possível/impossível é precisamente aquilo que Plotino entrevê com seu conceito de
matéria: “Desde a origem”, insiste, “a matéria não era algo em ato, sendo distanciada
de todas as coisas, e assim não se tornou”; “a matéria sempre é aquilo que era na
origem – ora, ela era não-ser”.[69] Aquilo cujo ser reside na potencialidade, isto é, no
não-ser-ainda, tal como explica Plotino de uma maneira, não pode ser levado à
atualidade em nenhuma circunstância. Conforme ele conclui: “Por consequência, se
verdadeiramente pretendemos conservar a matéria como indestrutível, devemos
conservá-la como matéria”.[70]
A indestrutibilidade da matéria é dada, assim, por sua incapacidade de poder ser
algo diferente do que ela é, ser que consiste justamente no não-ser-ainda, no fato de,
literalmente, ser um “anúncio”,[71] diferida de modo indefinido daquilo que virá e
que não será, de modo algum, ela própria. Essa é a razão pela qual, do ponto de vista
plotiniano, a matéria é privação pura, pois é “pura não atualização”. Sendo
perfeitamente indestrutível, se assim preferirmos, é também perfeitamente irreal.
A matéria plotiniana não é apenas “impassível”, mas “impossível”, ironizava
Armstrong. O jogo de palavras, por simples que possa parecer, não é menos exato.
Para Plotino, a essência da matéria é não poder existir, é uma essência sem existência,
uma representação sem realização possível, uma potência sem eficiência, logo, um
“aquém” do ser.
Tal concepção conduz diretamente àquilo que denominamos des-realização do
mundo sensível, que não representa mais nada de distinto em relação ao mundo
inteligível. Em uma fórmula lapidar, podemos dizer que a metafísica de Plotino
ignora a alteridade, a diferença, que ela não encontra nenhum Outro ao longo de sua
edificação.[72] A questão que deve ser posta a partir desse ponto, se possível com
maior acuidade, é saber como tal impossível pode subsistir na filosofia de Plotino, em
virtude de que novo “poder” – ou de que nova concepção de poder – essa
“impossibilidade-possibilidade” pode existir, ou, deveríamos dizer, pode sub-existir
em seu sistema.
49
50
N
NAS ORIGENS DA CONCEPÇÃO PLOTINIANA DO
SER
“Em geral, antepor a matéria, que está em potência, a tudo o mais é um
grande absurdo. Pois nem mesmo é possível que o que está em potência
passe a ato se a potência é situada em primeiro lugar”
(VI 1 [42], 26, 1-3).
ossa análise, até agora, concentrou-se na noção de potência em Plotino. Não se
contentando com o ser tomado como aquilo que é, com o ser existente, mas
esforçando-se para ascender até a possibilidade original do ser, por meio da
possibilidade fundadora do Uno, Plotino concebe uma nova figura do possível, o
possível pré-existencial, ou ainda, pré-substancial. A textura mesma da realidade
encontra-se, com isso, transformada de modo radical, na medida em que a totalidade
do real, tudo aquilo que é em sentido próprio, torna-se, por assim dizer, secundário,
remetido a uma possibilidade primeira ainda não ente e, por isso, absolutamente livre.
Em Plotino, o fundo mesmo do ser revela-se algo diferente em relação ao modo como
é concebido por Platão e Aristóteles. Ou melhor, o próprio fato de haver um fundo
para o ser, que o ser possa ser remetido a um fundo distinto de si mesmo apenas por
meio de uma noção é o que constitui uma novidade radical em relação às figuras
clássicas do pensamento grego encarnadas por Platão e Aristóteles.
O pensamento de Plotino inaugura uma nova metafísica, ou ao menos confere um
novo contorno à metafísica, no momento em que ela é dada por uma etiologia em
sentido estrito, ou seja, por uma reflexão acerca da causa mesma do ser. Em
Aristóteles,[1] o ser propriamente dito não tem causa na medida em que, em suas
diversas formas e seus diferentes modos, ele é uma causa. Ao se compreender que
não é possível falar propriamente de um ser causa de si, pois a ideia de causa aplicada
em sentido absoluto exige que se opere um desnivelamento entre o que causa e o
causado[2] no seio mesmo do ser. Em outras palavras, como causado, o ser é
necessariamente um ser secundário. Assim, compreende-se que essa secundarização,
contrária à concepção aristotélica do ser, estará implicada na reflexão plotiniana, na
medida em que ele pode permanecer difícil de ser determinado de modo exato.
O fundo mesmo do ser é diferente em Plotino, como há pouco afirmamos. É
51
possível entender essa formulação de duas maneiras. Fundo pode ser aqui tomado
como a liberdade ou a vontade divina pré-substancial, absolutamente originária e
fundadora personificada pelo Uno. Mas o termo fundo pode ser também

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