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2 Sumário Capa Rosto Autor Conselhos de pai A primeira tempestade Uma nova experiência Escravo! Liberdade arriscada Mistérios e perigos Brasil Levado pelo destino Mar em fúria Sozinho Nova vida Terremoto Explorando a ilha O tempo passa Surpresa na praia Sinal de perigo Um encontro inesperado Um companheiro Uma nova vida Deus? Um rei e seus súditos Um novo plano Ataque A notícia tão esperada Um mundo diferente Coleção Créditos 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg D aniel Defoe nasceu em 1660 e faleceu em 1731. Foi escritor, jornalista e panfletário político. Sua obra mais famosa é a história do homem náufrago contada em Robinson Crusoé (1719). Publicou centenas de trabalhos e ensaios em publicações periódicas que editava. Era filho de Alice e James Foe (mudou seu nome para Defoe em 1703). Seu pai era um negociante bem sucedido e membro da Companhia de Açougueiros. O puritanismo fanático do pai frequentemente transparece em seus escritos. Eram uma família de “dissidentes”: protestantes não anglicanos. Defoe formou-se na Academia Charles Morton, em Londres. Seu pai queria que ele se dedicasse à religião, mas ele preferiu a política e os negócios, viajando pela Europa. Arriscou-se em diversos empreendimentos, mas se deu muito mal em todos eles e acumulou dívidas que duraram até o final da vida. Em 1684, casou-se com Mary Tuffley, com quem teve dois filhos e cinco filhas. Em 1685, envolveu-se na rebelião contra James II. Enquanto estava escondido numa igreja, notou o nome Robinson Crusoé esculpido numa pedra e guardou-o em sua memória até a criação de seu mais famoso personagem. Apoiando William III, juntou-se ao exército em 1688, conquistando fama de mercenário. De 1695 a 1699, fez a contabilidade dos comerciantes de vidro e depois entrou como sócio numa fábrica de tijolos e telhas, que faliu em 1703. Em 1702, Defoe escreveu seu panfleto mais famoso, sobre a dissidência protestante e a cobiça anglicana, expondo o plano sangrento que pretendia eliminar todos os dissidentes. Por causa disso, foi preso em 1703, mas cumpriu a pena prestando serviços de escritor a Robert Harley, o primeiro Earl de Oxford. Enquanto cumpria a pena, escreveu um poema zombando do regime. O texto se tornou muito popular e era lido em voz alta nas ruas. Era considerado jornalista e escritor diabólico, e publicava sob inúmeros pseudônimos, entre eles “Testemunha”, “T. Taylor” e “Andrew Morton, comerciante”. Para publicar suas críticas políticas, usava o nome “Heliostrapolis, secretário do Imperador da Lua”. Defoe foi o primeiro a escrever histórias em situações tão realísticas que pudessem ser plausíveis. Sua fama como escritor nasceu em abril de 1719, quando publicou Robinson Crusoé. A primeira edição foi publicada por W. Taylor, um editor de livros populares, e não trazia a assinatura do autor. Defoe teve dificuldades em encontrar alguém que quisesse publicar o manuscrito e chegou a receber uma oferta de 10 libras para vendê-lo. O livro foi baseado parcialmente em suas memórias de viagem e na história de William Selkirk, filho de um comerciante escocês, que tomou um navio em 1704 e, durante a viagem, pediu para ser colocado (ou, de acordo com alguns relatos, punido 4 por insubordinação) na ilha de Juan Fernandez, no oceano Pacífico, a centenas de milhas da costa do Chile. A ilha não era habitada e ele ficou ali durante quatro anos e quatro meses, até ser resgatado, em 1709, pelo capitão Woodes Rogers. Selkirk afirmou que a experiência fez dele um “cristão melhor”. Como jornalista, Defoe certamente leu essa história e possivelmente entrevistou Selkirk, que nunca voltou à ilha, ao contrário de Robinson Crusoé, que teve mais duas aventuras. As sequências Outras Aventuras de Robinson Crusoé (1719), que relata sua visita à ilha e a morte de Sexta-Feira pelas mãos dos selvagens, e Reflexões Profundas de Robinson Crusoé (1729) não tiveram tanto sucesso. O narrador em primeira pessoa e as aparentemente genuínas aventuras do protagonista foram inovações que marcaram a história da literatura inglesa e mundial. O relato de um marinheiro náufrago era uma reflexão sobre a necessidade humana de sociedade e o clamor pela liberdade individual. Também mostrava o sonho de um reino privado, uma utopia inventada por uma mente que se julgava autossuficiente, sem amarras políticas, sociais ou religiosas. Esse tema mítico trazido à vida real conquistou vários leitores importantes, entre eles Robert Louis Stevenson e Júlio Verne. Aos 62 anos, Defoe publicou Moll Flanders, outro livro de grande sucesso, que tinha como protagonista uma mulher que, após uma desilusão amorosa, transforma-se numa prostituta ladra que consegue conquistar fama e poder. No final da vida, Defoe deixou de lado as controvérsias políticas e escreveu diversos livros de história e guias de viagem, além de relatos de encontros com o sobrenatural. Defoe morreu em 1731 e é hoje considerado um dos criadores do moderno romance ocidental. 5 N CONSELHOS DE PAI asci no ano de 1632, na cidade de York, de uma boa família. Meu pai tinha um negócio lucrativo quando se casou com minha mãe, de uma respeitável família na região, cujo nome era Robinson. Mas, como é costume na Inglaterra de hoje, somos chamados, e assinamos nossos documentos, Crusoé. Assim me chamavam todos os meus amigos. Eu tinha dois irmãos mais velhos; um deles era tenente coronel de um regimento inglês em Flanders, e foi morto pelos espanhóis. O que aconteceu com meu outro irmão eu nunca soube. Meu pai e minha mãe também nunca souberam o que aconteceu comigo. Sendo o terceiro filho da família e não tendo aprendido nenhum ofício, minha cabeça começou a ficar cheia de ideias muito cedo. Meu pai, que já era bem idoso, tinha me educado bem - tanto quanto se podia educar alguém em casa - e me colocado no caminho da lei. Mas eu não pensava em mais nada a não ser no mar, e essa convicção me colocou diretamente contra meu pai e minha mãe, que tinham certeza de que uma vida de miséria esperava por mim. Meu pai, um homem sábio e sério, me aconselhou sobre minha decisão. Uma manhã, me chamou até seu quarto, onde se encontrava confinado devido à doença e à velhice, e teve uma calorosa conversa comigo sobre esse assunto. Ele me perguntou que razões me levavam a deixar para trás a casa de meu pai e meu país, onde tinha boas chances de fazer fortuna e ter uma vida fácil de prazeres. Ele me disse que eram homens desesperados, ou que buscavam ainda mais fortuna, que escolhiam uma vida de aventuras. Eu não era nem um extremo nem outro: não tinha sido exposto às misérias da vida nem ao luxo que causava inveja. Meu pai disse que o que as pessoas invejavam na vida alheia era a felicidade, e que até mesmo reis já tinham se lamentado pela grandeza de suas posições e desejado encontrar uma posição intermediária entre os que não tinham nada e os que tinham tudo. Até os sábios falavam que a felicidade verdadeira não estava nem na pobreza nem na riqueza. Ele me disse para observar isso e notar que as calamidades da vida sempre eram compartilhadas pelos grandes e pequenos, mas constantemente as evitavam os que estavam entre eles, que deslizavam suavemente pelo mundo, saboreando a doçura da vida sem o gosto amargo do final, e aprendendo com as experiências diárias como aguçar a sensibilidade. Depois disso, me pressionou, da maneira mais afetuosa possível, a não ser imaturo a ponto de me deparar com algumas misérias de que a Providência me poupou ao me fazer nascer naquela família. Não precisava correr atrás de comida e provisões e herdaria o fruto de seu trabalho. Para me desincentivar ainda mais, lembrou-me de meu irmão, que com tanta obstinação buscou a vida militar, apenas para morrer 6 jovem e sem herdeiros. Essa última parte do discurso, que tinha sido até mesmo profética, embora meu pai não soubesse, foi dita entre muitas lágrimas, especialmente quando ele se referiu à morte de meu irmão. Depois ele me disse que seu coração estava tão aflito que preferia parar de falar. Eu fui sinceramente afetado pelaconversa. Como poderia não ser? Resolvi não viajar mais e ficar em casa, como era o desejo de meu pai; mas, infelizmente, alguns poucos dias mudaram minha cabeça e, em algumas semanas, decidi ir para longe e me afastar dele e de suas palavras. Mas não agi impulsivamente. Antes conversei com minha mãe sobre estar decidido a sair pelo mundo, e preferia fazê-lo com o consentimento de meu pai a ir sem ele. Já tinha 18 anos: tarde demais para aprender um ofício; o único remédio era viajar pelo menos uma vez. Se eu voltasse para casa tendo odiado a experiência, prometia despender o tempo que fosse para resgatar o tempo perdido. Minha mãe sabia que não adiantaria falar com meu pai e se surpreendeu com o pedido de consentimento depois da conversa que tive com ele. Aliás, não teria nem mesmo o consentimento dela. Embora ela tivesse se negado a conversar com meu pai, fiquei sabendo depois que ela comentou sobre a conversa que tivemos, e que ele disse: – Esse garoto poderia ser feliz se ficasse em casa; lá fora, terá uma vida miserável. Não posso consentir nisso! 7 F A PRIMEIRA TEMPESTADE oi quase um ano depois que consegui me libertar, mantendo-me surdo a qualquer proposta de negócio e frequentemente discutindo com meus pais sobre por que eram tão determinados a ir contra minhas inclinações e desejos. Um dia, estava em Hull quando, casualmente, um de meus amigos estava partindo para Londres no navio de seu pai. Sem consultar meu pai nem minha mãe, sem nem ao menos avisá-los, sem considerar circunstâncias ou consequências, numa hora maldita, como Deus sabe, no dia primeiro de setembro de 1651, embarquei no navio que ia para Londres. Acredito que nenhum jovem aventureiro teve tanto azar por tanto tempo quanto eu. O navio acabara de passar ao mar aberto quando o vento soprou forte e as ondas quebraram de maneira assustadora. Nunca tinha visto o mar antes e estava muito mais amedrontado do que enjoado. Comecei a refletir seriamente sobre o que tinha feito, saindo de casa sem avisar, desconsiderando o desejo e pedido de meu pai e abandonando meu dever, e como seria justo se os Céus resolvessem me punir dessa forma. As lágrimas de meu pai e os conselhos de minha mãe estavam nítidos em minha mente, e minha consciência agora me atacava. Enquanto isso, a tempestade aumentava e o mar crescia. A cada onda, esperava ser engolido, e cada vez que o navio balançava, achava que não conseguiríamos nos recuperar. Com essa agonia em mente, jurei a Deus que, se ele me salvasse a vida e eu voltasse mais uma vez a colocar os pés em terra firme, nunca mais deixaria a casa de meu pai e nunca mais embarcaria num navio. Ouviria os conselhos dele sobre levar uma vida sossegada e confortável, nem de altos nem de baixos. Jurei voltar para casa, como o filho pródigo. Esses pensamentos sábios e sóbrios continuavam, assim como a tempestade, e, assim como ela partiu no dia seguinte, os pensamentos também se fizeram menos audíveis. Uma linda paisagem se abriu diante de meus olhos na manhã do dia seguinte: o sol brilhando no mar calmo, a brisa suave, tudo perfeitamente claro. Embora ainda estivesse um pouco enjoado, pensei que aquilo era a coisa mais linda que eu já tinha visto. Dormi bem, à noite, e o enjoo passou. Fiquei feliz, embasbacado pelo mar, tão terrível na noite anterior, tão calmo e agradável tão pouco tempo depois. – Bem, Bob – disse meu amigo, o que tinha me convidado a embarcar. – Como você está depois da tempestade? Ficou com medo, não ficou? – Ora, foi uma tempestade terrível... – Tempestade? Chama aquilo de tempestade? Aquilo não foi nada! Venha, vamos beber! E lá fomos nós e, como dois bons marujos, bebemos até cair. Afoguei minhas resoluções, minhas reflexões, minhas promessas, juras e todo o meu futuro. O mar 8 continuou calmo e todos os meus desejos de partir voltaram. Mas sabia que poderia pagar por ter jurado e não cumprido. Seis dias haviam se passado quando lançamos âncora em nossa primeira parada, Yarmouth. Tivemos que ficar ali por oito dias, por causa do vento contrário, que não nos deixava partir. No oitavo dia, uma terrível tormenta nos alcançou e tivemos que juntar todos os marinheiros para segurar o mastro. Foi quando vi o medo no rosto de todos. Ouvi até mesmo o capitão, quando entrava e saía de sua cabine, repetindo “Senhor, tende piedade de nós!”. Dois navios ao nosso lado tiveram seus mastros quebrados ao meio e afundaram, outros dois perderam a âncora e foram levados ao mar aberto. Apenas os mais leves e menores conseguiram escapar, mas não sem consequências: nosso mastro ficou bem danificado, e tivemos que cortá-lo. Isso fez com que nosso convés ficasse aberto, e o barco, instável. Como jovem marujo, já tinha vivido experiências muito desagradáveis, mas não sabia que o pior ainda estava por vir. Durante a noite, a tempestade ficou ainda mais violenta, e nosso navio, embora fosse resistente, estava muito carregado, e todos os marinheiros rezavam para que ele não afundasse. De madrugada, como se não tivéssemos problemas suficientes, um dos marinheiros veio do porão gritando que havia um vazamento e que a água já estava quase lhe cobrindo a cabeça. Todos deveriam descer e ajudar a esvaziar e consertar o vazamento. Senti meu coração gelar, mas consegui juntar coragem e ajudar os homens. O capitão ordenou que disparassem o canhão como aviso. Levei um susto tão grande que desmaiei. Nessas horas, cada um cuida apenas de sua própria vida, e fui deixado de lado, tido como morto. Levei muito tempo para acordar. Todos trabalhavam, mas parecia inútil: a água no porão subia rapidamente e o navio balançava tanto que afundar parecia a sequência natural. O capitão continuava a disparar os tiros de socorro, e uma pequena embarcação atendeu nosso pedido. Com muito esforço, usando cordas, conseguimos nos aproximar, e todos os homens passaram de um barco para o outro. Pouco depois, vimos que nosso navio tinha perdido a âncora e começava a se afastar para o mar aberto. Estávamos havia apenas quinze minutos em segurança quando vimos nosso navio afundar. Foi uma visão terrível, senti medo e meu coração parecia ter morrido dentro de mim. Uma pequena multidão se formou no cais para assistir à nossa luta contra as ondas. Conseguimos chegar até a terra, e, então, só nos restava encontrar alguém que nos levasse a Londres ou de volta até Hull. 9 S UMA NOVA EXPERIÊNCIA e eu tivesse tido o bom senso de retornar a Hull e voltar para casa, teria sido feliz, e meu pai teria me recebido de braços abertos. A notícia de que o navio onde eu tinha embarcado tinha afundado devia chegar logo, e não havia nenhuma confirmação de que eu não havia me afogado. Mas o destino me fez persistir, e, embora tivesse ouvido os altos gritos da minha razão para que voltasse para casa, não conseguia resistir ao chamado do mar. Era o chamado da minha própria destruição, mas era impossível resistir. Meu companheiro, filho do comandante, encontrou-se comigo alguns dias depois e me apresentou ao seu pai. O velho lobo do mar, já conhecendo a minha história, apressou-se em sugerir que eu reconsiderasse e visse a tempestade e o naufrágio como um aviso. Tinha sido minha primeira viagem, e os Céus me deram a resposta quanto a se deveria ou não continuar no mar. Diante da minha persistência e negativa, ele foi claro: – No meu navio, você não embarca mais. Não ficaria no mesmo navio que você nem por um milhão de libras! E, jovem, esteja certo: se você não voltar para casa, não encontrará nada além de desastres e decepções, até que as palavras de seu pai se cumpram. Depois disso, não nos vimos mais, e eu nem sei para onde ele foi. Quanto a mim, tinha algum dinheiro e decidi voltar a Londres por terra. No caminho, pensaria na trajetória da minha vida, se deveria voltar para casa ou para o mar. Se eu voltasse para casa, pensei que imediatamente seria motivo de chacota dos vizinhos e teria muita vergonha de todos. Não conseguiria encarar meu pai e minha mãe. Se decidisse por uma vida de aventuras, ainda teria que descobrir qual seria omeu caminho. A influência maligna que me afastou do meu pai da primeira vez continuava a me acompanhar, e embarquei num navio que navegaria a costa da África ou, como disseram os marinheiros, seguiria caminho para a Guiné. Nunca embarquei como marinheiro nessas minhas aventuras, pois tinha dinheiro e navegava confortavelmente. Isso foi ainda pior para mim, pois poderia ter aprendido bastante no trabalho e chegado a chefe de convés ou até mesmo capitão. Mas tive a sorte de encontrar bons camaradas em Londres, sendo que um deles já tinha estado na Guiné e pretendia voltar, pois tinha sido muito bem sucedido na viagem e nos negócios. Ouvindo minha conversa sobre a vontade de conhecer o mundo, convidou-me a embarcar com ele, sem nenhuma despesa, como companheiro de aventuras. Aceitei calorosamente a oferta, ficando amigo desse capitão, que era um homem 10 honesto e justo. Gastei cerca de 40 libras nessa aventura, comprando as lembranças exóticas que o capitão indicava a cada parada. Meu dinheiro vinha das correspondências que mantinha com meus familiares, e tenho certeza de que meu pai e minha mãe também contribuíram nessa minha primeira jornada. Essa foi a única viagem bem sucedida de todas as minhas aventuras, graças à integridade e honestidade do meu amigo capitão, com quem também aprendi matemática e as regras da navegação: manter o curso do navio, observar, saber o que tinha que saber como marinheiro. Ele adorava ensinar, e eu adorei aprender. Essa viagem me fez marinheiro e comerciante, e ainda lucrei um pouco de ouro, que em Londres transformou-se em 300 libras. Tudo isso me encheu de entusiasmo. Esse mesmo entusiasmo me levaria à ruína. Mesmo nessa maravilhosa viagem tive alguns infortúnios: estava sempre enjoado e fiquei com febre devido ao calor constante. Meu amigo capitão também não teve muita sorte e morreu assim que chegamos. Mas eu já me considerava um comerciante e navegador, por isso embarquei rapidamente no mesmo navio rumo à Guiné, cujo capitão seria um de nossos companheiros de viagem. Deixei 200 libras com a viúva de meu amigo, que era muito bondosa, e carregava apenas 100 libras para negociar. Entretanto, foi uma viagem ruim para todos. 11 P ESCRAVO! erto das Ilhas Canárias, ou melhor, ao longo da costa da África, fomos surpreendidos numa manhã por um navio pirata turco. Ele nos perseguiu com toda a potência que tinha, e nós içamos todas as velas para tentar fugir. Mas os piratas estavam cada vez mais próximos, e nos preparamos para lutar. Nosso navio tinha doze canhões e dezoito homens. Por volta das três horas da tarde, atiramos contra eles, que se afastaram um pouco, mas logo revidaram com outro tiro. Nenhum de nós ficou ferido e nos preparamos para atirar novamente, quando sessenta piratas pularam em nosso convés. Partimos para o ataque corpo a corpo, atirando e esfaqueando. Mas para encurtar essa parte triste da história, eram duzentos piratas, e três dos nossos foram mortos, oito, feridos, e fomos obrigados a nos render. Fomos levados prisioneiros para Sallee, um porto que pertencia aos mouros. O tratamento que recebi ali não foi tão ruim quanto esperava. Não fui levado à presença do rei, na corte, como os outros, mas fui feito escravo e mantido como o prêmio particular do capitão pirata, já que eu era jovem e capaz de executar suas ordens. Em vista dessa mudança surpreendente de minha situação – de mercador a escravo –, fiquei perplexo; recordava-me a todo instante do discurso profético de meu pai, de quanto eu seria miserável, de quanto estaria sozinho e desesperado. Já considerava que isso nunca ocorreria e agora eu estava ali, à mercê da vontade de Deus, um desobediente sem redenção. Mas, infelizmente, isso era apenas uma pequena parte da miséria que me esperava. Meu novo senhor e mestre me levou para a casa dele. Eu ainda nutria a esperança de voltar ao mar, assim que ele embarcasse novamente, e talvez ver sua embarcação ser tomada por algum navio de guerra espanhol ou português. Se isso acontecesse, eu seria liberto. Mas minhas esperanças logo desapareceram: ele voltou ao mar, mas me deixou encarregado de cuidar de seu pequeno jardim e fazer o trabalho pesado na casa. Quando ele voltava para casa, me fazia dormir na cabine, para cuidar do navio. Nessas noites eu não fazia nada além de planejar minha fuga. Mas não sabia nem por onde começar. Não conhecia ninguém, não conseguia me comunicar com ninguém, não havia um inglês, irlandês ou escocês ou alguém que falasse inglês por ali, a não ser eu mesmo. Por dois anos contentei-me em imaginar a liberdade, mas nunca nem ao menos tentei consegui-la. Mas um dia apresentou-se uma situação favorável que fez renascer em mim o desejo de fuga. Meu patrão, descansando além da hora de costume, costumava nos mandar sair para pescar. Eu e outro escravo íamos, junto a um mouro da corte real, no pequeno bote salva-vidas do grande navio, navegar em águas menos profundas para pescar e sempre nos divertíamos muito. Certa manhã, havia uma névoa tão intensa que a poucos metros da praia já não 12 conseguíamos ver o cais. Trabalhamos o dia todo e a noite toda, mas, pela manhã, vimos que, em vez de navegar em direção à praia, tínhamos ido parar no mar aberto. Remamos com muito esforço, sem parar para pensar no perigo, e conseguimos encontrar nosso caminho de volta. Estávamos esgotados e com muita fome. Depois disso, nosso patrão resolveu que não sairíamos mais sem bússola e provisões. Ele ordenou ao carpinteiro do navio, outro prisioneiro inglês, que construísse uma pequena cabine num bote mais longo, além de um pequeno leme. Instalou, também, uma pequena mesa e um lugar para dormir, onde caberiam três pessoas apertadas. Havia também um armário de bebidas e alimentos. Saíamos com esse bote frequentemente para pescar. Numa ocasião, meu patrão convidou dois ou três mouros da corte para passear e pescar nesse barco. Por conta disso, encheu o pequeno armário com muito mais bebida e comida que de costume, além de três armas carregadas. Enquanto preparava tudo, meu patrão chegou e disse que seus convidados não poderiam vir, mas que eu e o outro escravo deveríamos ir pescar, pois receberia os homens para o jantar naquela noite. Nesse momento, a ideia da fuga me ocorreu imediatamente, já que teria uma pequena embarcação ao meu comando, pronta para partir. Quando meu patrão foi embora, abasteci ainda mais o bote, para a jornada mais longa possível. Não sabia para onde estava indo, só sabia que estava indo para o mais longe possível dali. Tratei de convencer o mouro a levar ainda mais comida a bordo, já que ele tinha concordado comigo que não deveríamos tocar na comida do capitão. Ele providenciou uma cesta grande com pães e biscoitos, além de três jarros de água fresca. Também carreguei as garrafas de bebida do capitão enquanto o mouro estava na praia, além de quase 50 quilos de cera, corda, uma machadinha, um serrote e um martelo, que foram muito úteis mais tarde – especialmente a cera, para fazer velas. Também enganei Moely (esse era o apelido que tinha dado ao mouro, que depois descobri chamar-se Ismael), pedindo que levasse mais munição para as armas que estavam a bordo. Ele levou bastante pólvora e algumas balas. Também recolhi pólvora na cabine mestra do capitão. Com tudo pronto, partimos. Do castelo de meu patrão, dava para ver para onde navegávamos, mas não havia ninguém vigiando. O vento soprava na direção contrária a que eu queria, pois, se soprasse o vento Sul, sabia que poderia chegar à Espanha, ou pelo menos ao porto de Cádiz. Mas estava decidido a desafiar até mesmo o vento e sair daquele lugar horrível, deixando o resto nas mãos do destino. 13 D LIBERDADE ARRISCADA epois de pescarmos por um tempo sem conseguir nada (eu tinha conseguido algumas mordidas, mas não os tirei da água), disse ao mouro que deveríamos ir um pouco mais longe para conseguir o jantar. Ele concordou e, estando no comando do barco, içou as velas enquanto eu manobrava o leme. O barco se afastou quase uma légua adiante. Entreguei oleme ao outro escravo, um garoto, fui em direção ao mouro e, pegando-o de surpresa, consegui empurrá-lo para fora do barco. Ele emergiu imediatamente, pois nadava muito bem, e me chamou, implorando que eu o levasse com ele, que iria por todo o mundo comigo. Ele nadou tanto atrás do barco que teria me alcançado bem depressa, caso o vento estivesse um pouco mais fraco. Eu corri até a cabine e peguei uma das armas: – Eu não quero lhe causar nenhum mal – disse a ele. – Você nada bem e o mar está calmo. Volte até a praia e eu não lhe farei nenhum mal. Se alcançar o barco, serei obrigado a atirar. E atirarei para matar, pois estou decidido a conquistar minha liberdade. Ele então se virou e nadou para a praia; tenho certeza de que chegou são e salvo, pois era um excelente nadador. Eu podia ter recolhido o mouro, mas não podia me dar ao luxo de confiar nele. Quando o mouro sumiu de vista, deparei-me com o garoto, que se chamava Xury, e disse: – Xury, se for leal a mim, farei de você um grande homem. Jure por Maomé, senão terei de atirá-lo no mar. O garoto sorriu e falou com tanta inocência que não consegui desconfiar dele. Ele jurou lealdade e disse que iria pelo mundo comigo. Ainda permaneci, por um pouco, perto dali, já que podia ser visto de longe e ainda podia ser detido se outras embarcações saíssem para me capturar. Mas assim que anoiteceu, mudei meu curso e rumei para o sul e logo depois para o leste. O vento estava fresco e forte, e o mar estava calmo. No dia seguinte já estava a 150 milhas de Sallee, muito além dos domínios do imperador marroquino ou de qualquer outro rei, pois estávamos em outras terras. Estava com tanto medo de ser apanhado novamente pelos mouros ou de ser feito escravo novamente que, mesmo vendo terra, continuava a aproveitar o vento e navegava sem ancorar. Navegamos por cinco dias, e o vento mudou de direção, nos levando mais ao sul. Percebi que, se havia alguém em nosso encalço, também seria prejudicado pela mudança dos ventos e provavelmente desistiria. Com isso em mente, me aventurei a ancorar perto da nascente de um pequeno rio, sem saber onde estava. Não sabia a altitude, a longitude, que país ou nação ou até mesmo que rio era aquele. Também não vi nem queria ver ninguém. A única coisa que queria era água fresca. Chegamos nesse riacho à noitinha, decididos a nadar por ele e descobrir em que país 14 estávamos assim que a noite ficasse mais escura. Estava bem escuro quando começamos a escutar os mais terríveis sons vindos da mata: latidos, rugidos e uivos de criaturas selvagens e desconhecidas. O pobre garoto estava quase morrendo de medo e me implorou para que ficássemos no barco até o amanhecer. – Bem, Xury, haverá homens aqui durante o dia e eles serão tão perigosos quanto leões. – Nós podemos atirar neles! – respondeu, Xury, rindo. – Eles vão sair correndo! Xury conseguia se comunicar comigo de tanto conviver com escravos ingleses. Fiquei contente de ver o garoto tão animado e o presenteei com uma das garrafas do armário do capitão. Afinal, ele tinha me dado um bom conselho, e eu o aceitei. Baixamos nossa pequena âncora e ficamos ali durante a noite. Não dormimos: o desfile de criaturas imensas que vieram beber água, se lavar e refrescar durante a noite nos manteve acordados. Nunca tinha ouvido tantos uivos e rugidos como aqueles. Xury estava morrendo de medo, e eu também. Mas ficamos apavorados quando uma dessas criaturas monstruosas mergulhou e nadou até o nosso barco. Xury achou que era um leão. Ele me implorou para levantarmos âncora e nos afastarmos da praia. Percebi que a criatura nadava rápido demais e estava cada vez mais perto. Corri até a cabine e peguei uma das armas. Atirei contra a criatura (não faço ideia do que poderia ser), que imediatamente recuou e nadou de volta para a praia. É impossível descrever os sons horríveis, os gritos e os uivos pavorosos que foram ouvidos desde a praia até o coração da mata quando disparei a arma. Acredito que as bestas nunca tinham escutado som parecido. Isso me convenceu a não ir para a praia no escuro, mas desembarcar no dia seguinte também era perigoso, pois cair na mão de selvagens era tão ruim quanto cair na mão de feras. A necessidade de água fresca nos obrigaria a aportar mais cedo ou mais tarde, pois não havia mais nenhuma gota a bordo. Quando e onde conseguiríamos água? Xury disse que se eu o deixasse ir até a praia com alguns jarros, ele encontraria água. – Mas por que você deve ir, e não eu mesmo? – perguntei a ele. A resposta que ele me deu fez com que ficássemos ainda mais próximos. – Porque se os selvagens me pegarem, você conseguirá fugir. – Bem, Xury, então iremos nós dois. Se os selvagens vierem, não conseguirão nos dominar e nós atiraremos neles. Então, dei a ele um pedaço de pão e um garrafa de bebida do armário do capitão, como já mencionei antes, e navegamos até a praia, até onde era seguro. Pulamos na água e caminhamos até a terra, com nossas armas e os jarros para água. 15 Deixei o barco para trás, perdendo-o de vista, sem imaginar que os selvagens poderiam vir em canoas pelo riacho. O garoto corria de um lado para o outro e conseguiu caçar um animal que parecia uma lebre, mas tinha pernas bem mais longas. Ficamos muito felizes em poder comer carne. Xury também estava bem feliz, pois tinha encontrado água e nenhum selvagem. Depois, descobrimos que não era necessário ter nos arriscado tanto por água, já que um pouco acima, no riacho onde navegávamos, havia água fresca quando a maré baixava. E assim enchemos nossos jarros e nos refestelamos com a carne. Não vimos nenhum rastro animal nem humano em nosso caminho. Já havia estado nessa costa antes, em outra viagem, e sabia que tanto as Ilhas Canárias quanto o arquipélago de Cabo Verde não estavam tão distantes de nós. Mas não tinha nenhum instrumento para me indicar a distância, ou mesmo medir a longitude e latitude. Se tivesse mais dados, teria conseguido facilmente navegar até uma dessas ilhas. Minha esperança era continuar navegando em direção à rota dos navios ingleses até que um deles pudesse nos resgatar. Pelos meus cálculos, estávamos agora em um país desabitado, a não ser pelas feras. Era um dos países de onde os negros tinham fugido por medo dos mouros, e estes não se interessaram em povoá-lo por não haver ali nada que se pudesse aproveitar. Os mouros apareciam ali apenas para caçar, com um exército de dois ou três mil homens, que se aventuravam atrás dos muitos tigres, leões, leopardos e outras criaturas furiosas. Por cerca de 100 milhas desde a praia, era um país desabitado durante o dia e repleto de uivos e rugidos à noite. Uma ou duas vezes durante o dia, acreditei ter enxergado o Pico do Tenerife, nas Ilhas Canárias, e tentei a todo custo chegar até lá, mas o vento me empurrava na direção contrária, e o mar estava alto demais para minha pequena embarcação. Então, resolvi seguir meu primeiro plano: navegar ao longo da costa. Muitas vezes, fui obrigado a atracar em busca de água, e por dez ou doze dias vivemos racionando nosso alimento. Meu desejo era encontrar algum navio europeu, pois não sabia para onde ir, a não ser tentar o caminho para as ilhas ou perecer entre os africanos. Sabia que todos os navios que partiam da Europa passavam por ali, a caminho da Guiné, do Brasil ou das Índias. Em suma, apostei todas as minhas fichas nesse pedaço do oceano: ou encontraria algum navio ou morreria. 16 D MISTÉRIOS E PERIGOS urante esse tempo, a maioria dos lugares por onde passamos estava deserta mas havia alguns negros em algumas praias que paravam para nos ver. Eu queria muito desembarcar nesses lugares, mas Xury sempre insistia que não deveríamos ir. Quando chegava mais perto, eles sempre corriam e desapareciam mata adentro. Não portavam armas, a não ser um deles, que Xury disse portar uma grande lança, que podia ser lançada a uma grande distância se tivessem boa pontaria. Por causa disso, sempre me mantive a uma distância segura, mas tentava me comunicar com sinais, mostrando que queria algo para comer. Numaocasião, pediram que eu chegasse mais perto e ancorasse, pois iriam me trazer um pouco de carne. Baixei minhas velas e vi que dois deles saíram correndo e voltaram rapidamente com dois pedaços de carne seca e um pouco de milho. Não sabíamos o que era aquilo, mas aceitamos. Eles puseram os mantimentos na areia e se afastaram, observando-nos enquanto descíamos do barco, pegávamos as provisões e voltávamos. Fizemos sinais de agradecimento, mas não pudemos dar nada em troca, pois não tínhamos nada de valor para eles. Mas uma excelente oportunidade se ofereceu logo em seguida. Duas grandes criaturas passaram correndo pela praia, aparentemente brigando por algo, o que encheu os nativos de pânico. O homem da lança não atirou, mas todos os outros dispararam pequenas lanças sobre os monstros, o que os fez correr para a água, em direção ao nosso barco. Percebendo o que acontecia, peguei uma das armas e esperei que uma das criaturas chegasse perto o suficiente para que eu não errasse o tiro. De fato, consegui mirar bem e acertei-o bem na cabeça. Ele afundou, mas ainda lutava por sua vida, emergindo diversas vezes e tentando chegar na areia. Mas o ferimento e a luta o mataram antes que conseguisse alcançar a praia. É impossível descrever o espanto que causei nos nativos. Ter conseguido matar um animal tão poderoso, o barulho do tiro e o fogo do disparo quase os mataram de medo. Mas quando viram o cadáver da criatura boiando e os meus gestos para que se aproximassem, tomaram coragem e foram até a praia. Consegui ver onde estava o animal pelo sangue na água e amarrei uma corda para que todos ajudassem a puxá-lo até a praia. Quando o tiramos da água, vimos que era um leopardo, muito bonito, todo pintado. Os negros levantaram as mãos, admirados. A outra criatura nadou até as montanhas, de onde tinham vindo, e, como estava distante, não consegui saber o que era. Os negros tinham a intenção de comer o animal abatido, e eu sinalizei que era um presente meu para eles, o que os deixou muito agradecidos. Logo depois de limpar rapidamente a carne com um pedaço de madeira muito mais afiado que uma faca, me ofereceram um pedaço, que recusei, mas indiquei que aceitaria a pele, que me ofereceram de bom grado, além de mais alguns mantimentos. 17 Em seguida, mostrei a eles que um de meus jarros de água estava vazio. Eles chamaram algumas mulheres, que chegaram carregando grandes jarros de barro queimado cheios de água. Xury trouxe nossos três jarros e enchemos todos com água fresca. As mulheres estavam totalmente nuas, assim como os homens. Nossa despensa estava agora cheia de raízes e milho, além da água. Deixei para trás meus amigos negros e prossegui viagem por mais onze dias sem atracar. Após esse tempo, deparei-me com uma faixa de mar calmo entre dois pedaços de terra. Concluí que havíamos chegado a Cabo Verde. Mas não sabia o que fazer, pois ainda tinha um bom pedaço a navegar e, se algum vento na direção contrária nos pegasse, talvez não conseguiria chegar a nenhuma das duas ilhas em frente. Nesse dilema, entrei na cabine para pensar, quando ouvi Xury gritar: – Mestre, um navio! Um navio! O pobre garoto ficou apavorado, acreditando ser um dos navios do capitão, que tinha saído em nossa captura, mas eu sabia que já tínhamos despistado nossos possíveis perseguidores. Saí da cabine e vi o navio, que era português e estava navegando a costa à procura de negros. Mas vi que estavam rumando ao mar aberto e saí em seu encalço. Mesmo com toda a potência que podia dar, não consegui alcançá-los. Entrei em desespero e dei um tiro de alerta, mas percebi que eles tinham me avistado pelo binóculo e, certamente, deduziram tratar-se de um barco europeu que podia ter pertencido a algum navio perdido. Eles também me disseram posteriormente que viram a fumaça, mas não ouviram o tiro de alerta. Mesmo assim, navegaram até mim e, em 3 horas, me resgataram. Eles me perguntaram quem eu era em português, espanhol e francês, mas não entendi nada. Finalmente, um marinheiro escocês chamou por mim, e eu pude dizer que era inglês e que tinha escapado da escravidão. Eles me convidaram a embarcar e me receberam muito bondosamente, além de recolher todos os meus bens. Fiquei tão comovido com o resgate, pois estava numa situação desesperançosa e miserável, que ofereci tudo o que tinha ao capitão. Mas ele não aceitou. – Eu o salvei pelo mesmo motivo que gostaria de ser salvo. Gostaria que me salvassem caso me encontrasse na mesma situação – o capitão me disse. – Além disso, se eu o deixasse no Brasil, um lugar tão distante de sua pátria, sem os seus bens, tiraria a vida que acabei de salvar. Não, não, senhor Inglês, eu o salvei por caridade e tudo o que é seu o ajudará a comprar a sua passagem de volta para casa. Ele recolheu todos os meus bens em sua cabine e elaborou um inventário, dando ordens aos marujos para que ninguém tocasse no que era meu. Também comprou de mim (eu insisti em lhe dar e ele insistiu em pagar) meu barco e ofereceu dinheiro pelo garoto, Xury. Hesitei muito em aceitar essa proposta, pois não queria vender a 18 liberdade de Xury, que tanto tinha me ajudado a conquistar a minha própria. O capitão, sabendo disso, me fez uma proposta: libertaria Xury em dez anos, se ele concordasse em se converter ao cristianismo. Xury concordou e eu o entreguei ao capitão. Tivemos uma viagem muito agradável até o Brasil e chegamos à Bahia de Todos os Santos vinte dias depois. Agora estava novamente sozinho e tinha que pensar em como ia me virar. O capitão foi muito generoso comigo: comprou a maioria das coisas que eu tinha e estava disposto a vender, como a pele de leopardo, algumas garrafas de bebida, duas armas e um pedaço de cera. O que eu decidi manter comigo, o capitão fez com que me entregassem organizadamente. Assim desembarquei na costa brasileira. 19 O BRASIL capitão tinha me recomendado um amigo em solo brasileiro que tinha um engenho de açúcar. Eu o encontrei e vivi em sua fazenda por um tempo, aprendendo sobre como trabalhavam os fazendeiros e os escravos no processamento de cana-de-açúcar. Vendo como enriqueciam rapidamente, decidi obter uma licença para me estabelecer ali, ao mesmo tempo que tentava reaver o resto do meu dinheiro, que tinha ficado em Londres. Para obter uma espécie de carta de naturalização, comprei o máximo de terras que consegui e fiz o planejamento para o plantio e a produção, que faria assim que recebesse o dinheiro vindo da Inglaterra. Eu tinha um vizinho, seu nome era Wells, um português de Lisboa cujos pais eram ingleses, que estava numa situação muito parecida com a minha. Sua plantação era ao lado da minha, e sempre nos encontrávamos socialmente. Por dois anos, conseguimos plantar apenas algo para comer, pois não tínhamos dinheiro para cana. No terceiro ano, conseguimos plantar tabaco e já nos preparamos para plantar cana no ano seguinte. Mas não tínhamos escravos e precisávamos de mais homens para a produção. Nesse momento me arrependi de ter vendido Xury. Mas não tinha outro jeito a não ser continuar. Tinha chegado ao ponto a que meu pai disse que chegaria, de cansaço e remorso. Poderia estar trabalhando em qualquer lugar da Inglaterra, entre amigos e familiares, em vez de ter percorrido 5000 milhas e agora estar entre selvagens e estranhos, sem ter notícias de ninguém que pudesse querer saber de mim. Assim, sempre olhava para minha condição com o mais terrível remorso. Não tinha ninguém para conversar, a não ser, de vez em quando, esse vizinho. Tudo que podia ser feito, tinha que ser feito com minhas próprias mãos. Estava vivendo como um homem isolado numa ilha deserta. Mas não sabia que tudo isso podia ficar pior e garanto que, se tivesse continuado a trabalhar naquelas condições, estaria agora rico e próspero. Meu amigo capitão português ainda estava abastecendo o navio para a viagem de retorno quando comecei a plantar, e ficou ali por quase três meses. Eu conversei com ele sobre o dinheiro que tinha deixado em Londres e ele me deu este sábio e sincero conselho: – Senhor Inglês– ele sempre me chamava assim. – Se o senhor me fizer uma procuração, posso contatar a pessoa que está com seu dinheiro em Londres e resgatá- lo. Mas não pegue todo o seu dinheiro, já que a viagem é longa e insegura. Se o senhor o perder, perderá apenas metade. E se a primeira metade chegar em segurança, poderá pedir o resto. Era um conselho muito perspicaz que aceitei imediatamente. Escrevi a carta para a viúva de meu amigo, que tinha ficado com meu dinheiro, e relatei a ela todas as 20 minhas aventuras, além de descrever a boa índole do capitão português. Escrevi também a procuração que dava a ele poder sobre meu dinheiro. O capitão levou a carta e a procuração e, assim que chegou a Lisboa, procurou um mercador de sua confiança que ia para a Inglaterra e explicou a ele toda a situação. O mercador foi ao encontro da viúva e não só entregou a ela a carta e a procuração, como também descreveu em detalhes toda a minha história, que tinha sido contada a ele pelo capitão português. A viúva ficou tão comovida que entregou meu dinheiro e um pouco de dinheiro de seu próprio bolso para o capitão, por sua conduta honesta. O mercador, em Londres, sabendo para quê seria o dinheiro, tomou a liberdade de comprar vários utensílios agrícolas para me ajudar na plantação, que foram de extrema utilidade para mim posteriormente. Quando a carga chegou, acreditei que estava com minha fortuna em mãos, tamanha a minha felicidade. O capitão usou as cinco libras que tinha recebido da viúva para me comprar um escravo com um contrato de seis anos. Não aceitou nada em troca, a não ser um pouco de tabaco de minha própria produção. E não foi só isso: tudo o que possuía, roupas, lãs, a toalha para mesa de jogos, era feito na Inglaterra, e por isso tinha muito valor no Brasil. Vendi tudo com muito lucro. Isso me colocou em grande vantagem em relação ao meu vizinho, pois, com esse dinheiro, que era praticamente quatro vezes o valor do carregamento vindo da Inglaterra, comprei um escravo negro e outro europeu, além daquele que o capitão trouxera de Lisboa. No ano seguinte, colhi mais tabaco do que imaginava e já comecei a exportar meu produto para Lisboa. Aumentando minha produção e minha riqueza, minha mente começou a encher-se de projetos que iam além da minha capacidade, o que, geralmente, antecede a ruína dos negociantes. Se eu tivesse continuado nesse mesmo ritmo, receberia em alguns anos a recompensa que meu pai sonhara para mim: uma vida calma e tranquila, como deveria ser entre a juventude e a velhice. Mas prestava atenção em outras coisas e continuaria a me tornar o agente de minha própria miséria. Tudo estava relacionado ao meu desejo incontrolável de partir pelo mundo. 21 D LEVADO PELO DESTINO a mesma forma que deixei para trás meus pais e minha herança, também deixei para trás a imagem feliz do fazendeiro próspero, para perseguir um desejo insensato de enriquecer mais rápido do que as forças da natureza. Já vivia no Brasil havia quatro anos e era um fazendeiro bem-sucedido. Havia aprendido a falar português e tinha vários amigos - fazendeiros como eu ou os mercadores do porto de São Salvador - com quem sempre conversava relatando minhas aventuras na costa da Guiné, onde era fácil encontrar todo o tipo de coisa, desde dentes de elefante, pó de ouro e grãos, e até negros para o trabalho escravo. Todos ouviam minhas histórias com muita atenção, especialmente em relação aos negros, pois só era possível trazê-los com a permissão do rei da Espanha ou do rei português, e não era um negócio para qualquer um. Havia, assim, pouquíssimos escravos para muito trabalho. Aconteceu um dia, na companhia de mercadores e fazendeiros, quando contava mais uma vez as histórias da Guiné, que três deles me disseram que estavam pensando muito sobre esse assunto e queriam me fazer uma proposta em segredo. Disseram que queriam preparar um navio para a Guiné, pois tinham plantações, assim como eu, e sofriam com a falta de trabalhadores. Não poderiam vender os negros quando chegassem aqui, então fariam apenas uma viagem, trariam os negros escondidos e os dividiriam entre as plantações. Propunham que eu os ajudasse nas negociações entre os negros, podendo ter minha cota de escravos, que seriam divididos entre os fazendeiros. Era uma proposta interessante, mas que eu poderia ter recusado, pois ainda receberia a outra metade do meu dinheiro que estava na Inglaterra e que me serviria muito bem, a ponto de não precisar de mais nada. Mas, como nasci para ser meu próprio destruidor, não resisti. Disse que iria se eles providenciassem alguém para cuidar de minha plantação durante minha ausência. Todos concordaram e começaram a elaborar os contratos. Fiz um testamento formal, fazendo com que o capitão português que me salvou a vida fosse o herdeiro universal de todos os meus bens e terras, para que ele usufruísse de metade de tudo e se encarregasse de transformar a outra metade em dinheiro, que seria enviado para a Inglaterra. Tomei todas as medidas possíveis para preservar meus bens e cuidar da minha plantação. Deveria ter usado metade dessa prudência para preservar o que estava dando certo e meditar sobre o que deveria ou não deveria fazer. Se tivesse feito isso, nunca teria deixado para trás um negócio tão próspero por uma viagem tão cheia de perigos. Mas eu me apressei e obedeci cegamente aos meus desejos, ao invés da minha razão. Embarquei no dia 1º de setembro de 1659, o mesmo primeiro de setembro 22 maldito da minha primeira viagem, que me afastou para sempre de meus pais em Hull. Nosso navio estava carregado com 120 toneladas de carga, seis canhões e catorze homens, além do capitão, seu assistente e eu. Não levávamos muito além dos objetos que iríamos trocar por escravos: espelhos, tesouras, vidro, contas e outras coisas. 23 Q MAR EM FÚRIA uando partirmos, fazia tempo excelente, apenas quente demais, por toda a costa, até chegarmos à altura do Cabo de Santo Agostinho e desviarmos até Fernando de Noronha, onde um violento tornado nos apanhou. A fúria dos ventos durou doze dias, e nenhum dos homens a bordo esperava escapar daquela tormenta com vida. Perdemos um homem doente, e um homem e o assistente do capitão foram jogados ao mar. Depois do 12º dia, o capitão conseguiu se localizar com dificuldade, e percebemos que estávamos apenas um pouco acima do rio Amazonas. O navio estava num estado deplorável, e ele me sugeriu que voltássemos à costa brasileira. Eu fui totalmente contra isso e insisti que fôssemos até as ilhas do Caribe. O destino, porém, estava traçado: uma segunda tormenta nos pegou e nos tirou completamente do rumo. De manhã cedo, do meio do aguaceiro e ventania, um dos homens gritou: – Terra à vista! Saímos da cabine para ver onde no mundo poderíamos estar, quando o navio bateu num banco de areia e rangeu de tal forma que achamos que ia rachar ao meio e matar a todos. Corremos até a cabine para nos proteger. A consternação era geral: não sabíamos onde estávamos, que terra era aquela, se era uma ilha ou um continente, habitada ou não. Apenas esperávamos que o vento, que estava muito forte, mas não tanto quanto da primeira vez, não despedaçasse o navio. Estávamos todos sentados olhando uns para os outros, esperando a morte. Mas o navio não se despedaçou, e, como por milagre, o vento começou a enfraquecer. Nesse momento, embora o vento tivesse dado uma trégua, estávamos encalhados no banco de areia, e nossa situação ainda era extremamente perigosa. Um dos nossos barcos tinha desaparecido e o outro era bem mais difícil de colocar na água. Mas não tínhamos escolha, já que o navio poderia se partir em pedaços a qualquer momento e alguns marinheiros já diziam que o navio estava condenado. Descemos o barco com muita dificuldade e nós todos, onze homens no total, embarcamos, entregando nossas vidas às mãos de Deus e ao mar violento, pois embora a tempestade tivesse se acalmado consideravelmente, as ondas ainda eram muito maiores do que o normal. Percebemos nesse momento que o mar destruiria com facilidadenossa pequena embarcação e que iríamos todos nos afogar. Remamos com nossas próprias mãos, apressando nossa ruína, em direção à terra. Quanto mais nos aproximávamos, mais apavorante parecia a praia, pois não tinha como sabermos se era de terra ou de pedras, ou mesmo se encontraríamos ali águas mais calmas. 24 Já tínhamos conseguido remar por mais de uma légua quando uma onda gigantesca nos engolfou, destruindo o barco e separando-nos uns dos outros. Foi apenas o tempo de gritar por Deus, e fomos engolidos pelo mar. Embora seja um excelente nadador, o desespero era tanto que não consegui vencer as ondas. A mesma onda que me afundou, me levou até a praia e voltou para o mar, deixando-me ali na areia, quase morto. Mas sabia que ali não estava seguro, pois as águas ainda me alcançavam, então reuni todas as forças que ainda me restavam e levantei-me, buscando abrigo mais longe do mar. Mas isso se provou inútil, já que as ondas eram como montanhas furiosas atacando o inimigo. A única forma de sobreviver era respirar fundo e ter fôlego suficiente para me manter na superfície, indo e voltando ao sabor das ondas. Meu maior medo era ser tragado novamente de volta ao oceano, já que a mesma força que me levava para a praia também me puxava rumo às águas profundas e violentas. Duas vezes mais as ondas me puxaram e me devolveram à praia. Consegui, depois disso, escalar, entre uma onda e outra, um penhasco, e ficar ali em segurança, longe do alcance das águas, onde pude descansar sobre a grama da terra firme. Ali agradeci a Deus, que tinha salvo minha vida quando não havia mais esperança. Andei pela praia e, percebendo que todos os outros tinham se afogado, ergui as mãos e agradeci pela minha vida muitas outras vezes. Nunca mais vi aqueles homens, nem qualquer sinal deles, a não ser três chapéus, um quepe e dois sapatos que não compunham par. Olhei para o mar e vi nosso navio lá longe, pequeno perto da vastidão do mar. Como consegui chegar até a praia, meu Deus, estando tão longe? 25 D SOZINHO epois que suspirei de alívio pela minha condição, comecei a olhar em volta para avaliar em que tipo de lugar tinha vindo parar e o que devia fazer agora. Logo percebi que estava ensopado e sem roupas secas para me trocar, sem comida nem água. Também tinha grandes chances de morrer de inanição ou ser devorado por algum animal selvagem, e não tinha nenhuma arma para me defender. Minhas únicas posses eram uma faca, um cachimbo e um pouco de tabaco numa caixa. Comecei a correr em círculos, desesperado, pois a noite já estava caindo e era a hora em que eu poderia ser abatido por algum animal selvagem. O jeito foi subir e ficar sentado numa árvore cujo tronco era cheio de espinhos, e, durante a noite, meditar sobre o tipo de morte que eu teria. Antes disso, andei pela praia em busca de água fresca, que felizmente consegui achar a alguns passos da praia. Fiquei feliz por ter encontrado pelo menos isso e, pondo um pouco de tabaco na boca para enganar a fome, subi na árvore e me ajeitei para não cair se dormisse. Também cortei um galho para me defender. Mesmo naquelas condições, peguei no sono e dormi profundamente, já que estava fatigado da minha luta com o oceano. Quando acordei, o sol já estava alto. O céu estava claro, e a tempestade tinha desaparecido. O que mais me impressionou foi ver o navio ancorado no banco de areia, tão alto em relação à água quanto o penhasco que me abrigara. Desejei nadar até ele, já que ali estavam provisões que me ajudariam a sobreviver. Um pouco depois do meio-dia, o mar ficou muito calmo e a maré baixa me deixou andar quase até nosso navio. Fiquei muito abalado ao perceber que, se tivéssemos continuado dentro dele, estaríamos agora todos vivos e salvos. Essa constatação me fez chorar. Decidi nadar até o navio. Tirei minha jaqueta, pois estava muito calor, e pulei na água. Quando cheguei até o navio, não sabia como conseguiria subir a bordo, pois a embarcação estava ancorada no banco de areia, muito mais alta do que a água. Dei duas voltas ao seu redor. Percebi, na segunda volta, uma corda que não tinha visto antes e, com muita dificuldade, consegui subir a bordo. O convés estava cheio de água, mas como a proa estava mergulhada na água, a popa estava seca. Era ali que eram estocadas a comida e as provisões, e tudo estava intacto. Enchi meus bolsos com biscoitos e ia comendo enquanto fuçava tudo, pois não tinha tempo a perder. Também encontrei rum na cabine do capitão e dei um grande gole para me preparar para o que me esperava. Agora, tudo o que eu queria era um bote para levar comigo para a terra o que era necessário. Com pedaços de madeira e cordas, construí uma pequena embarcação, que me serviria de transporte e abrigo. A jangada ficou firme e forte, e comecei a carregá-la com meus mantimentos e bebidas. Enquanto trabalhava, percebi que a maré começou 26 a subir, embora o mar estivesse muito calmo. Procurei avidamente pela arca do carpinteiro, que era muito mais valiosa para mim naquele momento do que uma arca de ouro, e consegui encontrá-la. Também carreguei armas e munição. Pus a jangada a navegar rumo à terra, procurando um lugar seguro para aportar. Como imaginava, descobri um pequeno rio que desembocava na praia, mas a corrente que me levou até ali era um pouco violenta para minha improvisada embarcação, e, mesmo segurando as caixas e baús com toda a minha força, perdi alguns itens pelo caminho. Não queria ficar muito longe da praia, pois tinha que estar atento a qualquer navio que passasse por aquela rota. Havia uma pequena caverna no lado direito do riacho, e, com muito esforço e dificuldade, consegui guiar a jangada até lá. Minha carga estaria a salvo ali. A próxima etapa era explorar o local e encontrar um lugar para me abrigar e guardar meus mantimentos, algum lugar que estivesse longe da água. Ainda não sabia onde estava, se era continente ou ilha, se era habitado ou não, se havia animais perigosos. Havia uma colina bem alta perto de onde eu estava. Decidi pegar uma das armas e munição e subir ali para olhar em volta. Para minha grande aflição, estava numa ilha rochosa e não havia nada por perto, a não ser duas outras ilhas bem menores e um rochedo distante. Também deduzi que a ilha era desabitada, a não ser pelos animais selvagens, que ainda não tinha visto. Havia muitas aves, mas não conhecia nenhuma das espécies, e nem quando as matei para comer consegui descobrir. Aliás, quando dei o primeiro tiro, foi tamanha a algazarra dos pássaros que acredito que era o primeiro tiro que ouviam desde a criação do mundo. Passei o resto do dia descarregando minha carga, sem saber ainda onde ia dormir, pois temia que algum monstro selvagem me devorasse durante a noite, medo que mais tarde se mostrou infundado. Ergui uma barricada com os baús para me proteger durante o sono e para resguardar os mantimentos. Não sabia quanto tempo teria que racionar a comida, embora já tivesse visto animais parecidos com lebres correndo pela mata, além dos pássaros, que podiam me servir de alimento. No dia seguinte, resolvi tirar do navio o máximo que conseguisse, já que temia que uma segunda tormenta pudesse acabar de vez com a embarcação. Voltei e resgatei mais ferramentas, armas e munições, roupas e lençóis. Estava apreensivo quanto às coisas que tinha deixado na praia, mas não havia nenhum sinal de algum visitante, a não ser um felino, que estava em cima de um dos baús. Quando ele me viu, correu a uma certa distância e sentou-se um pouco mais longe, me observando. Tirei minha arma, mas o animal continuava imóvel, olhando- me nos olhos. Peguei, então, um dos biscoitos e ofereci a ele, que o devorou com 27 gosto e olhou-me, aparentemente pedindo mais. Não podia desperdiçar comida, por isso, agradeci a visita e espantei-o. Construí uma pequena barraca com a vela que tirei do navio e abriguei ali tudo que pudesse estragar exposto ao tempo, como os barris de pólvora. Fiz uma porta com tábuas e encaixei um baú vazio para segurá-las em pé. Com duas armas ao lado da minha cabeça eoutra ao lado do corpo, pela primeira vez deitei-me como em uma cama e dormi a noite toda, cansado que estava desde a noite do naufrágio e de todo o trabalho que tivera naquele dia. 28 M NOVA VIDA eus dias eram ocupados com a retirada dos mantimentos do navio quando a maré baixava. Na minha sexta viagem, ainda me surpreendi ao encontrar açúcar, rum e outras bebidas, além de pão e farinha, que ainda não tinham sido tocados pela água. Também peguei quanta madeira consegui cortar e transportar do navio: os mastros, cabos e cordas, que me seriam úteis, além de metais e ferramentas pesadas. Levava tudo para a praia com a ajuda das correntes marítimas favoráveis. Já estava havia treze dias naquela praia e tinha feito onze viagens ao navio encalhado, trazendo para a ilha tudo que um homem sozinho é capaz de carregar. Se o tempo tivesse continuado firme e claro, acredito que teria conseguido transportar todo o navio, pedaço por pedaço. Entre os muitos itens que havia coletado para minha sobrevivência, algo me fez sorrir: havia muito dinheiro a bordo, algumas libras, outras moedas europeias, algumas moedas brasileiras, ouro e prata. “Para que servem agora?”, me perguntei, irônico. No momento em que resgatava o dinheiro, o céu ficou encoberto. Foi o tempo de conseguir nadar até a praia; o vento aumentou com tamanha intensidade que já era uma tempestade. Minha pequena barraca provou-se um abrigo seguro, e ali fiquei durante a tempestade, que durou a noite toda. Na manhã seguinte, assim que olhei para fora, percebi que o navio tinha desaparecido. Fiquei um pouco chocado, mas me recompus rapidamente, pois não tinha cedido à preguiça e trabalhara o quanto pude durante o tempo que tive. Não havia mais nada, ou havia muito pouco, que restasse ali e pudesse me ser útil. Não pensei mais no navio, a não ser quando via pequenos pedaços do destroço do naufrágio, que tinham pouca serventia. Meus pensamentos agora se concentravam em me proteger de selvagens, se aparecessem, ou de animais, se houvesse algum na ilha. Decidi que aperfeiçoaria minha barraca e ainda encontraria uma caverna onde pudesse me abrigar. Remontei a barraca na parte alta e gramada da ilha, onde poderia avistar algum navio, pois não havia abandonado a esperança de ser resgatado. Mas, dessa vez, reforcei todas as defesas, de modo que não pudesse ser invadida nem por homens nem por animais. Era, em suma, minha fortaleza, e me consumiu dias de trabalho exaustivo. Escolhi o lugar perfeito, pois havia um grande muro rochoso me protegendo, o qual preparei como uma caverna, ou melhor, um porão para minha casa. Ali era minha despensa. Depois de tudo pronto, passei quinze dias embalando a pólvora dos barris em pequenas porções para usar nas caçadas. As aves, especialmente, eram muito importantes na minha alimentação, pois tinha que poupar o pão e os biscoitos o quanto conseguisse. 29 Com o tempo, fui aperfeiçoando minha casa e instalando regalias, como uma pequena lareira. Mas minha mente constantemente me atordoava, lembrando-me que seria ali, naquela solidão e desamparo, que acabariam meus dias. Nessa desolação, chorava copiosamente e perguntava à Providência por que tinha me poupado, pois não podia chamar aquilo de vida. A única forma de não cometer o pecado de pensar em morrer era ocupando minhas mãos. Ampliava cada vez mais minha barraca, de modo que fosse espaçosa e confortável, na medida do possível. Construí uma cadeira e uma mesa usando pedaços de madeira do navio. Ali, sentava e me ocupava em escrever um diário, relatando tudo que fazia durante o dia. Eis um exemplo de relato: Set. 30: Depois que fui à praia, em vez de agradecer a Deus por ter me poupado a vida, corri pela areia, esticando os braços, gritando e chorando até me cansar e deitar, ou melhor, desmaiar, exausto, no chão. A tinta acabou, e fui forçado a parar de escrever. Sempre subia na colina mais alta e ficava procurando pelas águas um navio, qualquer navio, que pudesse me resgatar. Enquanto isso, trabalhava exaustivamente, dedicando-me a reforçar a parede que segurava minha casa. A chuva às vezes durava semanas. A noite chegava logo, por volta das sete horas, e eu era obrigado a ir dormir. Tentei fabricar uma lâmpada rústica usando gordura, mas não tinha o brilho regular de uma vela de cera, como as que se costumava fabricar na costa da África. Enquanto trabalhava, encontrei um pequeno saco que certamente continha milho para as aves que viajaram conosco. Os ratos já tinham dado cabo de tudo, então joguei as migalhas do lado de fora da barraca e utilizei o saco para guardar pólvora. Qual não foi minha surpresa quando notei, meses mais tarde, pequenos brotos de milho nascendo. Sem cuidado nenhum, sem cultivo, naquela terra que parecia inóspita. Não pensava muito em Deus nessa época, mas não pude deixar de acreditar que fora ele quem fizera essas sementes germinarem. Isso tocou meu coração e me fez chorar. E fiquei ainda mais espantado quando percebi, um pouco mais adiante, pés de arroz, que já tinha visto crescer na África. Mas foi apenas depois de quatro anos que consegui colher milho suficiente para um prato, e ainda assim uma porção bem pequena. Cultivava o arroz com o mesmo cuidado do milho, e também consegui comer pequenas porções cozidas, como aprendi a fazer. 30 N TERREMOTO essa mesma época, um evento quase destruiu todo o meu trabalho e minha vida. Estava dentro da minha barraca, quando senti um abalo e ouvi o barulho de pedras deslizando. Olhei para cima e percebi que pedras enormes rolavam montanha abaixo. Abriguei-me junto à parede dos fundos, temendo que minha casa fosse destruída, e eu, soterrado. Corri para fora e sentei-me num lugar descampado, onde estaria seguro. Em dez minutos, o chão tremeu tão violentamente que me deixou zonzo. Pedras gigantescas rolavam como se fossem leves e caíam no mar com ruídos tão estrondosos que parecia o fim do mundo. O mar estava tão agitado que só pude concluir que a agitação que sentia estava ainda pior embaixo das águas. Fiquei assustado e paralisado, mas o barulho das pedras me tirou do torpor. Quando o terceiro tremor passou, me pus a repetir: “Senhor, tende piedade de mim!”. Fiquei sentado, desolado, à espera do que ia acontecer a seguir, quando percebi as nuvens escuras no céu e, em minutos, começou o furacão mais violento que já vi. O mar ficou instantaneamente coberto de espuma, a maré subiu a ponto de cobrir toda a areia da praia e as árvores foram arrancadas com suas raízes. Isso durou três horas, e, pelas duas horas seguintes, o mar acalmou-se. Depois disso, começou a chover intensamente. Quando percebi que o furacão e a chuva foram consequência do terremoto que já havia passado, aventurei-me de volta para a minha barraca. Mas a chuva continuava tão forte que temi que a construção caísse sobre mim; então ousei abrigar-me em minha caverna, mesmo com medo de que as pedras caíssem sobre a minha cabeça. Essa chuva me obrigou a construir um dreno para a água que ficou empossada dentro da minha fortaleza. Ainda sentia alguns ecos do terremoto, mas não fiquei tão apavorado. Para levantar meu ânimo, tomei um pequeno gole de rum, que reservava apenas para ocasiões especiais. A chuva continuou por toda a noite e por boa parte do dia seguinte. Percebendo que a ilha era assolada por terremotos, concluí que uma caverna não seria o ideal para mim. Com isso em mente, nos dois dias seguintes procurei um lugar descampado onde pudesse construir uma cabana. Cerca de dez dias mais tarde, quando a maré baixou, percebi algo boiando perto da praia. Era um barril de pólvora do meu navio, que o furacão tinha levado à praia. Como tinha sido estragado pela água, o pó estava duro como pedra, mas o resgatei mesmo assim e coloquei-o meio enterrado na areia. Continuei a procurar mais destroços e encontrei o casco do navio. A cada dia chegavam mais partes dos destroços, violentamente rasgados pela ira do vento. Tudo isso me distraiu e não continuei em meu projeto de mudança, mas achava importante 31 coletar quantas partesde madeira e destroços eu pudesse, pois sabia que me seriam úteis, mais cedo ou mais tarde. Foi por volta dessa época que caí doente, com muita febre, tremedeira e dores de cabeça. Temi pela minha vida e, pela primeira vez desde a tempestade em Hull, orei, sem saber o que dizer. Minha mente delirava, eu suava e depois tremia. Estava fraco demais para ir atrás de comida ou água. Ficava o dia todo deitado. Dias depois, consegui sair e matar um ganso, que cozinhei e comi. Mas não havia nada para beber. Gritava: “Senhor, tenha piedade de mim!”, e: “Senhor, olhe para mim!”, durante horas, e voltava a dormir. Dormi por dois dias e tive um sonho terrível. No meu sonho, estava sentado no chão, no mesmo lugar onde me sentei durante a tempestade depois do furacão, quando vi um homem descer dos céus numa grande nuvem negra. Ao redor dele, brilhava uma chama de fogo tão brilhante que quase não conseguia abrir os olhos para vê-lo. Sua expressão era tão terrível que não encontraria palavras para descrevê-la. Quando ele pisou no chão, a terra tremeu como um terremoto e o ar pareceu se encher de faíscas fumegantes. Assim que pousou sobre a terra, ele andou até mim, apontando-me uma grande lança. E com uma voz aterrorizante me disse: – Se todas essas coisas não o fizeram se arrepender, você merece morrer – e apontou a lança para me matar. Mesmo depois de acordar e perceber que tinha sido um sonho, não consegui me acalmar. Não me lembrava do que tinha aprendido com meu pai e, desde que o deixei lá na Inglaterra, não tinha em nenhuma ocasião feito uma oração sincera nem agradecido ou temido a Deus. Não imaginava que poderia receber uma punição divina por meu comportamento rebelde, pelos meus pecados e pelo curso iníquo da minha vida. Em nenhum momento pedi a ajuda sincera de Deus durante tempestades ou quando estava perdido na costa da África. Não desejei que Deus dirigisse meus passos ou guiasse meus caminhos para me afastar do perigo. Não agradeci quando fui resgatado ou quando sobrevivi. O milho ter nascido daquele jeito teve um pequeno efeito sobre mim, mas logo me acostumei e parei de pensar naquilo como um ato divino, e atribuí o feito às forças da natureza. O terremoto, que podia julgar como uma manifestação do poder divino, também não me fez mais temente. Lembrei-me das palavras do meu pai e chorei. Lembrei-me do sonho e tremi. “Senhor, ajude-me, por favor! Minha situação é desesperadora!” Essa foi minha primeira oração sincera em muitos anos. Comecei a acreditar, naquele momento, que Deus estava me ouvindo. Enquanto procurava por tabaco no grande baú, encontrei alguns livros, entre eles uma Bíblia. Peguei o tabaco e a Bíblia e sentei-me à mesa. Não tinha nenhuma vontade de abrir o livro, mas provei o tabaco. Era verde e forte e quase me sufocou. 32 Tomei uma dose de rum e fui dormir. Mas antes, li um pequeno trecho que ficou guardado em minha mente entorpecida pelo tabaco e pelo álcool: “Procure-me no dia da tua aflição e eu o libertarei, e tu me glorificarás”. Quando acordei, estava tão bem disposto e alegre que me senti forte para trabalhar. Estava com fome e saí para caçar. Ainda mastiguei o tabaco e tomei a dose de rum nos três dias seguintes, e descobri que era um excelente remédio. Uma semana depois, estava completamente curado. 33 J EXPLORANDO A ILHA á estava havia dez meses nessa ilha infeliz, sem nenhuma esperança de resgate e acreditando piamente que nenhum homem jamais havia pisado ali. Já que minha casa estava acabada e segura, decidi sair para explorar a ilha. Setembro e outubro foram meses muito chuvosos, mas as chuvas de verão eram ainda mais perigosas, com raios e trovoadas que sacudiam o chão. Por isso, tinha que ficar atento. Em julho, mais precisamente dia 15, saí para andar pela ilha. Fui até o riacho que desembocava no mar, decidido a navegá-lo para ir para o interior da ilha. Surpreendentemente, o riacho era calmo, apesar da correnteza, e as águas eram cristalinas e limpas. A atmosfera era fresca e agradável. Pude notar que a margem estava seca em alguns pontos, já que estávamos na estação mais seca. O riacho percorria savanas e planícies cobertas de grama. Fiquei surpreso ao avistar pés graúdos de tabaco crescendo livremente entre plantas desconhecidas e outras familiares, como cana-brava (a versão não cultivada da cana-de-açúcar). Fiquei contente com minhas descobertas nesse dia e voltei para casa imaginando que poderia pesquisar as plantas que não conhecia e descobrir seus gostos e utilidades. Mas mesmo antes de chegar em minha tenda, abandonei essa ideia, pois mesmo quando estava no Brasil não tinha me dedicado ao estudo, e agora não poderia experimentar nada que pudesse me fazer mal, pois estava carente de todo tipo de cuidado. No dia seguinte, dia 16, fiz novamente o mesmo caminho e fui além do que tinha percorrido no dia anterior. O riacho e as planícies deram lugar a uma floresta. Ali, encontrei diversas árvores frutíferas e frutas rasteiras, como melão e uva, cujos vinhedos subiam pelas árvores como trepadeiras. Os cachos estavam fartos e maduros. Fiquei muito feliz, mas não comi muitas uvas, pois me lembrei dos ingleses que perdemos na costa da África que, depois de terem comido até se fartar, caíram com febre e diarréia. Colhi muitas uvas para pendurá-las ao sol e fazer uvas passas para que, quando o tempo de uva passasse, eu ainda tivesse uma boa porção para comer. Passei toda a tarde ali e, pela primeira vez, à noite não voltei para minha casa. Dormi muito bem sob uma árvore e, logo pela manhã, continuei andando até os limites do vale. Depois de percorrer toda a extensão plana, deparei-me com uma fonte de água fresca ao lado de uma montanha. Estava tudo tão verde, tão fresco, tão florido que parecia um jardim cultivado. Passeava por esse lugar delicioso com um prazer secreto misturado aos sentimentos aflitivos da solidão. Era o rei e senhor daquelas terras. Havia milhares de coqueiros, laranjeiras, limoeiros e outras árvores carregadas de frutos. Algumas limas eu usei para fazer um suco fresco e refrescante. Outras recolhi para levar para casa e estocar, para me manter durante a estação das chuvas, que eu sabia que se 34 aproximava. Quando cheguei em casa (pensava em minha tenda realmente como minha casa naquele momento), vi que algumas uvas que tinha recolhido acabaram estragando, mas as limas estavam perfeitas. No dia seguinte, voltei ao vale para recolher mais uvas e fiquei muito surpreso ao perceber que as vinhas, tão fartas e perfeitas no dia anterior, estavam todas arruinadas e espalhadas pelo chão. Concluí que aquilo devia ser obra de alguma fera que eu ainda não tinha visto. Recolhi e pendurei os cachos em galhos para que ficassem intactos e já ficassem prontos para a secagem. Quando deixei o vale para trás, admirei a linda paisagem e reconheci que o lugar arenoso e cheio de pedras que escolhi para montar minha habitação era o pedaço mais feio da ilha. Mas era o único lugar perto do mar, de onde poderia vir minha salvação. Portanto, embora pensamentos de montar minha casa naquele paraíso me ocorressem de vez em quando, nunca concretizei a mudança. Estava tão fascinado com esse vale que passava meus dias ali. Fiz uma espécie de cabana com galhos secos, que cerquei com uma forte cerca, e me abrigava ali à noite, às vezes duas ou três noites seguidas. As chuvas chegaram e eu tive que deixar meu pequeno refúgio e voltar para minha casa, onde era mais seguro ficar durante as terríveis tempestades. No começo de agosto, um pouco antes das chuvas, as uvas já tinham secado e eu fiquei feliz com as passas de excelente qualidade. Choveu quase ininterruptamente até meados de outubro, e eu saí pouco de minha tenda. Ocasionalmente, tinha que caçar. Mas racionava a comida para que durasse o máximo possível. Durante esse confinamento, trabalhei muito em minha casa, abrindo uma segunda entrada na lateral. Embora não tivesse porta, não tinha medo de ficar desprotegido, pois, até então, o maior animal que tinha visto pela ilha era um bode. Logo depoisde as chuvas terem cessado, percebi que já estava na ilha havia 365 dias. As estações eram bem definidas para mim, a das chuvas e a seca, e eu aprendi a me preparar para elas. Plantava, caçava e recolhia as frutas no pomar sempre verde do vale. Entre as flores e árvores, capturei um papagaio para ensiná-lo a falar. Alguns anos se passariam antes que ele me chamasse pelo nome, de uma maneira bem familiar. Tinha também um cachorro e um bode, o qual tinha capturado para começar uma criação, pois minha munição não duraria para sempre; mas ele era tão manso que acabou fazendo parte da família. Também encontrei animais que se pareciam com lebres e raposas, embora não como eu os conhecia. Na praia do outro lado da ilha havia uma infinidade de espécies de aves que nunca tinha visto. E inúmeras tartarugas passeavam livremente. Foi na volta dessa jornada que eu me perdi, e vaguei por uma mata fechada por três ou quatro dias sem ver o sol. Tive que andar até a praia e dar toda a volta para poder me localizar. Fiquei tão cansado que foi um alívio deitar na minha cama 35 novamente. 36 A O TEMPO PASSA estação das chuvas chegara novamente ao fim no dia 30 de setembro. Era meu segundo aniversário na ilha. Eu comecei a me sentir feliz com a vida que levava ali, muito mais feliz do que no passado. Não sentia mais o desconforto da solidão, não chorava mais. Meus prazeres vinham de novos pensamentos e da fé. Lia sempre a Bíblia. Um dia, estava muito triste e, quando abri o livro sagrado, me deparei com estas palavras: “Eu nunca, nunca o deixarei, nem me esquecerei de ti”. Senti que aquelas palavras eram para mim. Então tentei começar a ser feliz ali e agradecer a Deus pela minha vida todos os dias. Com essa disposição e mentalidade, comecei meu terceiro ano. Minha rotina era basicamente a mesma: caçar, ler a Bíblia, cozinhar, comer, cuidar da minha plantação, dormir... O calor era insuportável. Quando chovia, eu não conseguia sair de casa. Mas foi nessa época que consegui modelar jarras de argila e, colocando-as ao sol, consegui que secassem e aguentassem até mesmo o calor do fogo. Eram meus primeiros utensílios de cozinha. Não sentia necessidade de mais nada. A natureza me oferecia tudo, e eu só pegava o que poderia usar ou consumir. Aprendi que estocar demais ou matar demais era completamente inútil. Tudo que não estava sendo utilizado apodrecia. Eu aprendi a silenciar meus desejos e simplesmente agradecer a Deus pela comida, olhar o lado confortável da minha situação e não deixar minha mente se entorpecer de desesperança. O lado bom era que eu estava vivo e tinha conseguido providenciar uma habitação segura. Não estava sendo caçado por homens ou animais selvagens. Estava bem. Era uma vida solitária dada pela misericórdia. Refletindo sobre isso, pensava em como Deus tinha sido benevolente comigo, e como eu tinha vivido toda a minha vida até aquele momento de maneira tão inconsequente. Não fiquei mais triste depois desse dia. As provisões que tinha conseguido retirar do navio já estavam praticamente acabadas: a tinta, o pão, os biscoitos e as roupas, que já estavam em farrapos, embora a maior parte do tempo o calor me fizesse vestir apenas uma camiseta. Mas ainda havia baús cheios de camisas e casacos que retirei do navio, além do couro dos animais que tinha abatido para comer. Depois de cinco anos nessas condições, estava resignado e vivendo confortavelmente na vontade de Deus, quando uma coisa extraordinária aconteceu. Durante todo esse tempo, construí uma canoa, que posteriormente se converteu numa embarcação um pouco mais resistente, com mastro e vela, com a qual pretendia navegar até a civilização. De vez em quando me aventurava a navegar, mas nunca me aventurava a ir muito longe do pequeno riacho que desembocava no mar. Um dia, porém, abasteci meu barco com comida, minha arma e um casaco e me 37 propus a dar a volta ao redor da ilha, meu pequeno reino. Na primeira curva, minha descoberta foi um recife de pedras, a mais ou menos duas milhas de distância da praia, e um banco de areia um pouco além. Quando voltei, percebi, do alto da montanha onde costumava subir para ver o mar, que uma forte correnteza me levaria para longe da terra se eu passasse pelo recife. Mesmo assim, num dia de mar muito calmo e com pouco vento, me aventurei a navegar. Foi o pior erro que cometi. Meu barco foi pego pela forte correnteza e quase fui levado a mar aberto, apesar de todos os meus esforços. Foi apenas pela mão de Deus que consegui escapar e acabar na praia, exausto. Caí na areia em sono profundo e fui acordado pelo meu papagaio, chamando meu nome. Agradeci a segunda chance que tive de manter minha vida e por muitos dias sentei e refleti sobre o perigo que tinha passado, e decidi que não voltaria a me arriscar. Era meu sexto ano ali, e convenci-me novamente, estava feliz: tinha me tornado um excelente carpinteiro, tinha conseguido fabricar potes e utensílios, tinha tudo o que precisava para viver. No aniversário de onze anos na ilha, já tinha conseguido montar uma pequena fazenda de criação com um rebanho de mais de quarenta cabras, além de minha plantação. Também aumentei muito minha casa e fortaleza, em segurança e conforto. Minha pequena “família” também se beneficiou do aumento do número de quartos: Poll, o papagaio, o cão, que já estava bem velho, e meus dois gatos. Minha família sempre se sentava unida para comer. Continuava a navegar com meu barco, mas apenas por diversão e em percursos relativamente curtos e seguros. O terror daquele dia em que quase me vi perdido em alto mar demorou a deixar minha lembrança, e, como eu sempre repetia em minha mente, estava feliz e vivo, e não deveria brincar com a dádiva que recebera. 38 U SURPRESA NA PRAIA m dia, com o sol a pino, fui até meu barco e me surpreendi com uma marca de pé humano na areia. Fiquei paralisado, como se tivesse visto um fantasma. Olhei em volta, não havia nada. Não ouvi nada. Procurei por outras pegadas, mas só havia uma. Examinei o rastro: era realmente uma pegada humana, com todos os detalhes dos dedos e calcanhar. E muito menor do que meu próprio pé. Saí correndo para minha fortaleza atordoado e completamente aterrorizado. Não dormi naquela noite e demorei vários dias para tomar coragem e sair novamente. Por dois ou três dias, voltei à praia e não encontrei mais nada. Mesmo assim, me preveni e aumentei a segurança da minha fortaleza, construindo um muro de pedras muito grosso e reforçando portas e cercas. Essa reforma me consumiu dois anos. Estava em busca de outro lugar para montar um posto avançado de provisões - especialmente por causa da pólvora, pois não gostava de deixá-la em casa - quando resolvi explorar a parte oeste da ilha, que ainda não tinha tido curiosidade de vasculhar. Cheguei ao ponto mais alto, olhei o mar e achei que havia um navio muito longe da praia. Não tinha levado meu binóculo, então não pude ter certeza se era apenas uma ilusão provocada pelo sol. Desci a montanha e desisti de tentar me certificar se era real ou não. Assim que desci, percebi que uma pegada humana não era uma coisa tão incomum nessa ilha, como eu tinha imaginado. A Providência Divina tinha me colocado no lado seguro da terra, onde os selvagens não iam. Eles aportavam naquele lado depois de batalhas nas águas, e lá comiam os derrotados, pois eram canibais! Não será possível expressar o horror em minha mente quando me deparei com caveiras, esqueletos e outros ossos humanos. Observei que haviam feito uma fogueira ali, que certamente havia sido usada para assar a carne humana. Fiquei tão aterrorizado ao ver aquilo que vomitei violentamente e, assim que me recompus, corri o mais rápido que podia até a montanha onde tinha estado, para poder encontrar o caminho até minha casa. No caminho, senti que lágrimas brotavam dos meus olhos enquanto agradecia a Deus por não ter tido aquele destino. Os selvagens não iam até a ilha por não encontrar ali o que queriam e não sabiam nada sobre mim. Eu apenas tinha que continuar me escondendo. Por mais
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