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As aventuras de Robinson Crusoé - Daniel Defoe

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2
Sumário
Capa
Rosto
Autor
Conselhos de pai
A primeira tempestade
Uma nova experiência
Escravo!
Liberdade arriscada
Mistérios e perigos
Brasil
Levado pelo destino
Mar em fúria
Sozinho
Nova vida
Terremoto
Explorando a ilha
O tempo passa
Surpresa na praia
Sinal de perigo
Um encontro inesperado
Um companheiro
Uma nova vida
Deus?
Um rei e seus súditos
Um novo plano
Ataque
A notícia tão esperada
Um mundo diferente
Coleção
Créditos
3
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D
 
aniel Defoe nasceu em 1660 e faleceu em 1731. Foi escritor, jornalista e
panfletário político. Sua obra mais famosa é a história do homem náufrago
contada em Robinson Crusoé (1719). Publicou centenas de trabalhos e ensaios em
publicações periódicas que editava.
Era filho de Alice e James Foe (mudou seu nome para Defoe em 1703). Seu pai
era um negociante bem sucedido e membro da Companhia de Açougueiros. O
puritanismo fanático do pai frequentemente transparece em seus escritos. Eram uma
família de “dissidentes”: protestantes não anglicanos.
Defoe formou-se na Academia Charles Morton, em Londres. Seu pai queria que
ele se dedicasse à religião, mas ele preferiu a política e os negócios, viajando pela
Europa. Arriscou-se em diversos empreendimentos, mas se deu muito mal em todos
eles e acumulou dívidas que duraram até o final da vida.
Em 1684, casou-se com Mary Tuffley, com quem teve dois filhos e cinco filhas.
Em 1685, envolveu-se na rebelião contra James II. Enquanto estava escondido
numa igreja, notou o nome Robinson Crusoé esculpido numa pedra e guardou-o em
sua memória até a criação de seu mais famoso personagem. Apoiando William III,
juntou-se ao exército em 1688, conquistando fama de mercenário. De 1695 a 1699,
fez a contabilidade dos comerciantes de vidro e depois entrou como sócio numa
fábrica de tijolos e telhas, que faliu em 1703.
Em 1702, Defoe escreveu seu panfleto mais famoso, sobre a dissidência
protestante e a cobiça anglicana, expondo o plano sangrento que pretendia eliminar
todos os dissidentes. Por causa disso, foi preso em 1703, mas cumpriu a pena
prestando serviços de escritor a Robert Harley, o primeiro Earl de Oxford. Enquanto
cumpria a pena, escreveu um poema zombando do regime. O texto se tornou muito
popular e era lido em voz alta nas ruas.
Era considerado jornalista e escritor diabólico, e publicava sob inúmeros
pseudônimos, entre eles “Testemunha”, “T. Taylor” e “Andrew Morton,
comerciante”. Para publicar suas críticas políticas, usava o nome “Heliostrapolis,
secretário do Imperador da Lua”.
Defoe foi o primeiro a escrever histórias em situações tão realísticas que pudessem
ser plausíveis. Sua fama como escritor nasceu em abril de 1719, quando publicou
Robinson Crusoé. A primeira edição foi publicada por W. Taylor, um editor de livros
populares, e não trazia a assinatura do autor. Defoe teve dificuldades em encontrar
alguém que quisesse publicar o manuscrito e chegou a receber uma oferta de 10 libras
para vendê-lo.
O livro foi baseado parcialmente em suas memórias de viagem e na história de
William Selkirk, filho de um comerciante escocês, que tomou um navio em 1704 e,
durante a viagem, pediu para ser colocado (ou, de acordo com alguns relatos, punido
4
por insubordinação) na ilha de Juan Fernandez, no oceano Pacífico, a centenas de
milhas da costa do Chile. A ilha não era habitada e ele ficou ali durante quatro anos e
quatro meses, até ser resgatado, em 1709, pelo capitão Woodes Rogers. Selkirk
afirmou que a experiência fez dele um “cristão melhor”. Como jornalista, Defoe
certamente leu essa história e possivelmente entrevistou Selkirk, que nunca voltou à
ilha, ao contrário de Robinson Crusoé, que teve mais duas aventuras.
As sequências Outras Aventuras de Robinson Crusoé (1719), que relata sua visita
à ilha e a morte de Sexta-Feira pelas mãos dos selvagens, e Reflexões Profundas de
Robinson Crusoé (1729) não tiveram tanto sucesso.
O narrador em primeira pessoa e as aparentemente genuínas aventuras do
protagonista foram inovações que marcaram a história da literatura inglesa e mundial.
O relato de um marinheiro náufrago era uma reflexão sobre a necessidade humana de
sociedade e o clamor pela liberdade individual. Também mostrava o sonho de um
reino privado, uma utopia inventada por uma mente que se julgava autossuficiente,
sem amarras políticas, sociais ou religiosas. Esse tema mítico trazido à vida real
conquistou vários leitores importantes, entre eles Robert Louis Stevenson e Júlio
Verne.
Aos 62 anos, Defoe publicou Moll Flanders, outro livro de grande sucesso, que
tinha como protagonista uma mulher que, após uma desilusão amorosa, transforma-se
numa prostituta ladra que consegue conquistar fama e poder.
No final da vida, Defoe deixou de lado as controvérsias políticas e escreveu
diversos livros de história e guias de viagem, além de relatos de encontros com o
sobrenatural.
Defoe morreu em 1731 e é hoje considerado um dos criadores do moderno
romance ocidental.
5
N
CONSELHOS DE PAI
asci no ano de 1632, na cidade de York, de uma boa família. Meu pai tinha um
negócio lucrativo quando se casou com minha mãe, de uma respeitável família
na região, cujo nome era Robinson. Mas, como é costume na Inglaterra de hoje,
somos chamados, e assinamos nossos documentos, Crusoé. Assim me chamavam
todos os meus amigos.
Eu tinha dois irmãos mais velhos; um deles era tenente coronel de um regimento
inglês em Flanders, e foi morto pelos espanhóis. O que aconteceu com meu outro
irmão eu nunca soube. Meu pai e minha mãe também nunca souberam o que
aconteceu comigo.
Sendo o terceiro filho da família e não tendo aprendido nenhum ofício, minha
cabeça começou a ficar cheia de ideias muito cedo. Meu pai, que já era bem idoso,
tinha me educado bem - tanto quanto se podia educar alguém em casa - e me
colocado no caminho da lei. Mas eu não pensava em mais nada a não ser no mar, e
essa convicção me colocou diretamente contra meu pai e minha mãe, que tinham
certeza de que uma vida de miséria esperava por mim.
Meu pai, um homem sábio e sério, me aconselhou sobre minha decisão. Uma
manhã, me chamou até seu quarto, onde se encontrava confinado devido à doença e à
velhice, e teve uma calorosa conversa comigo sobre esse assunto. Ele me perguntou
que razões me levavam a deixar para trás a casa de meu pai e meu país, onde tinha
boas chances de fazer fortuna e ter uma vida fácil de prazeres. Ele me disse que eram
homens desesperados, ou que buscavam ainda mais fortuna, que escolhiam uma vida
de aventuras. Eu não era nem um extremo nem outro: não tinha sido exposto às
misérias da vida nem ao luxo que causava inveja. Meu pai disse que o que as pessoas
invejavam na vida alheia era a felicidade, e que até mesmo reis já tinham se
lamentado pela grandeza de suas posições e desejado encontrar uma posição
intermediária entre os que não tinham nada e os que tinham tudo. Até os sábios
falavam que a felicidade verdadeira não estava nem na pobreza nem na riqueza.
Ele me disse para observar isso e notar que as calamidades da vida sempre eram
compartilhadas pelos grandes e pequenos, mas constantemente as evitavam os que
estavam entre eles, que deslizavam suavemente pelo mundo, saboreando a doçura da
vida sem o gosto amargo do final, e aprendendo com as experiências diárias como
aguçar a sensibilidade.
Depois disso, me pressionou, da maneira mais afetuosa possível, a não ser imaturo
a ponto de me deparar com algumas misérias de que a Providência me poupou ao me
fazer nascer naquela família. Não precisava correr atrás de comida e provisões e
herdaria o fruto de seu trabalho. Para me desincentivar ainda mais, lembrou-me de
meu irmão, que com tanta obstinação buscou a vida militar, apenas para morrer
6
jovem e sem herdeiros.
Essa última parte do discurso, que tinha sido até mesmo profética, embora meu pai
não soubesse, foi dita entre muitas lágrimas, especialmente quando ele se referiu à
morte de meu irmão. Depois ele me disse que seu coração estava tão aflito que
preferia parar de falar.
Eu fui sinceramente afetado pelaconversa. Como poderia não ser? Resolvi não
viajar mais e ficar em casa, como era o desejo de meu pai; mas, infelizmente, alguns
poucos dias mudaram minha cabeça e, em algumas semanas, decidi ir para longe e
me afastar dele e de suas palavras. Mas não agi impulsivamente. Antes conversei com
minha mãe sobre estar decidido a sair pelo mundo, e preferia fazê-lo com o
consentimento de meu pai a ir sem ele. Já tinha 18 anos: tarde demais para aprender
um ofício; o único remédio era viajar pelo menos uma vez. Se eu voltasse para casa
tendo odiado a experiência, prometia despender o tempo que fosse para resgatar o
tempo perdido.
Minha mãe sabia que não adiantaria falar com meu pai e se surpreendeu com o
pedido de consentimento depois da conversa que tive com ele. Aliás, não teria nem
mesmo o consentimento dela.
Embora ela tivesse se negado a conversar com meu pai, fiquei sabendo depois que
ela comentou sobre a conversa que tivemos, e que ele disse:
– Esse garoto poderia ser feliz se ficasse em casa; lá fora, terá uma vida miserável.
Não posso consentir nisso!
7
F
A PRIMEIRA TEMPESTADE
oi quase um ano depois que consegui me libertar, mantendo-me surdo a qualquer
proposta de negócio e frequentemente discutindo com meus pais sobre por que
eram tão determinados a ir contra minhas inclinações e desejos. Um dia, estava em
Hull quando, casualmente, um de meus amigos estava partindo para Londres no navio
de seu pai. Sem consultar meu pai nem minha mãe, sem nem ao menos avisá-los, sem
considerar circunstâncias ou consequências, numa hora maldita, como Deus sabe, no
dia primeiro de setembro de 1651, embarquei no navio que ia para Londres.
Acredito que nenhum jovem aventureiro teve tanto azar por tanto tempo quanto
eu. O navio acabara de passar ao mar aberto quando o vento soprou forte e as ondas
quebraram de maneira assustadora. Nunca tinha visto o mar antes e estava muito mais
amedrontado do que enjoado. Comecei a refletir seriamente sobre o que tinha feito,
saindo de casa sem avisar, desconsiderando o desejo e pedido de meu pai e
abandonando meu dever, e como seria justo se os Céus resolvessem me punir dessa
forma. As lágrimas de meu pai e os conselhos de minha mãe estavam nítidos em
minha mente, e minha consciência agora me atacava.
Enquanto isso, a tempestade aumentava e o mar crescia. A cada onda, esperava ser
engolido, e cada vez que o navio balançava, achava que não conseguiríamos nos
recuperar. Com essa agonia em mente, jurei a Deus que, se ele me salvasse a vida e
eu voltasse mais uma vez a colocar os pés em terra firme, nunca mais deixaria a casa
de meu pai e nunca mais embarcaria num navio. Ouviria os conselhos dele sobre
levar uma vida sossegada e confortável, nem de altos nem de baixos. Jurei voltar para
casa, como o filho pródigo.
Esses pensamentos sábios e sóbrios continuavam, assim como a tempestade, e,
assim como ela partiu no dia seguinte, os pensamentos também se fizeram menos
audíveis. Uma linda paisagem se abriu diante de meus olhos na manhã do dia
seguinte: o sol brilhando no mar calmo, a brisa suave, tudo perfeitamente claro.
Embora ainda estivesse um pouco enjoado, pensei que aquilo era a coisa mais linda
que eu já tinha visto.
Dormi bem, à noite, e o enjoo passou. Fiquei feliz, embasbacado pelo mar, tão
terrível na noite anterior, tão calmo e agradável tão pouco tempo depois.
– Bem, Bob – disse meu amigo, o que tinha me convidado a embarcar. – Como
você está depois da tempestade? Ficou com medo, não ficou?
– Ora, foi uma tempestade terrível...
– Tempestade? Chama aquilo de tempestade? Aquilo não foi nada! Venha, vamos
beber!
E lá fomos nós e, como dois bons marujos, bebemos até cair. Afoguei minhas
resoluções, minhas reflexões, minhas promessas, juras e todo o meu futuro. O mar
8
continuou calmo e todos os meus desejos de partir voltaram. Mas sabia que poderia
pagar por ter jurado e não cumprido.
Seis dias haviam se passado quando lançamos âncora em nossa primeira parada,
Yarmouth. Tivemos que ficar ali por oito dias, por causa do vento contrário, que não
nos deixava partir. No oitavo dia, uma terrível tormenta nos alcançou e tivemos que
juntar todos os marinheiros para segurar o mastro. Foi quando vi o medo no rosto de
todos. Ouvi até mesmo o capitão, quando entrava e saía de sua cabine, repetindo
“Senhor, tende piedade de nós!”. Dois navios ao nosso lado tiveram seus mastros
quebrados ao meio e afundaram, outros dois perderam a âncora e foram levados ao
mar aberto. Apenas os mais leves e menores conseguiram escapar, mas não sem
consequências: nosso mastro ficou bem danificado, e tivemos que cortá-lo. Isso fez
com que nosso convés ficasse aberto, e o barco, instável.
Como jovem marujo, já tinha vivido experiências muito desagradáveis, mas não
sabia que o pior ainda estava por vir. Durante a noite, a tempestade ficou ainda mais
violenta, e nosso navio, embora fosse resistente, estava muito carregado, e todos os
marinheiros rezavam para que ele não afundasse. De madrugada, como se não
tivéssemos problemas suficientes, um dos marinheiros veio do porão gritando que
havia um vazamento e que a água já estava quase lhe cobrindo a cabeça. Todos
deveriam descer e ajudar a esvaziar e consertar o vazamento. Senti meu coração
gelar, mas consegui juntar coragem e ajudar os homens. O capitão ordenou que
disparassem o canhão como aviso. Levei um susto tão grande que desmaiei. Nessas
horas, cada um cuida apenas de sua própria vida, e fui deixado de lado, tido como
morto. Levei muito tempo para acordar.
Todos trabalhavam, mas parecia inútil: a água no porão subia rapidamente e o
navio balançava tanto que afundar parecia a sequência natural. O capitão continuava a
disparar os tiros de socorro, e uma pequena embarcação atendeu nosso pedido. Com
muito esforço, usando cordas, conseguimos nos aproximar, e todos os homens
passaram de um barco para o outro.
Pouco depois, vimos que nosso navio tinha perdido a âncora e começava a se
afastar para o mar aberto. Estávamos havia apenas quinze minutos em segurança
quando vimos nosso navio afundar. Foi uma visão terrível, senti medo e meu coração
parecia ter morrido dentro de mim. Uma pequena multidão se formou no cais para
assistir à nossa luta contra as ondas. Conseguimos chegar até a terra, e, então, só nos
restava encontrar alguém que nos levasse a Londres ou de volta até Hull.
9
S
UMA NOVA EXPERIÊNCIA
e eu tivesse tido o bom senso de retornar a Hull e voltar para casa, teria sido
feliz, e meu pai teria me recebido de braços abertos. A notícia de que o navio
onde eu tinha embarcado tinha afundado devia chegar logo, e não havia nenhuma
confirmação de que eu não havia me afogado.
Mas o destino me fez persistir, e, embora tivesse ouvido os altos gritos da minha
razão para que voltasse para casa, não conseguia resistir ao chamado do mar. Era o
chamado da minha própria destruição, mas era impossível resistir.
Meu companheiro, filho do comandante, encontrou-se comigo alguns dias depois
e me apresentou ao seu pai. O velho lobo do mar, já conhecendo a minha história,
apressou-se em sugerir que eu reconsiderasse e visse a tempestade e o naufrágio
como um aviso. Tinha sido minha primeira viagem, e os Céus me deram a resposta
quanto a se deveria ou não continuar no mar. Diante da minha persistência e negativa,
ele foi claro:
– No meu navio, você não embarca mais. Não ficaria no mesmo navio que você
nem por um milhão de libras! E, jovem, esteja certo: se você não voltar para casa, não
encontrará nada além de desastres e decepções, até que as palavras de seu pai se
cumpram.
Depois disso, não nos vimos mais, e eu nem sei para onde ele foi. Quanto a mim,
tinha algum dinheiro e decidi voltar a Londres por terra. No caminho, pensaria na
trajetória da minha vida, se deveria voltar para casa ou para o mar.
Se eu voltasse para casa, pensei que imediatamente seria motivo de chacota dos
vizinhos e teria muita vergonha de todos. Não conseguiria encarar meu pai e minha
mãe. Se decidisse por uma vida de aventuras, ainda teria que descobrir qual seria omeu caminho.
A influência maligna que me afastou do meu pai da primeira vez continuava a me
acompanhar, e embarquei num navio que navegaria a costa da África ou, como
disseram os marinheiros, seguiria caminho para a Guiné.
Nunca embarquei como marinheiro nessas minhas aventuras, pois tinha dinheiro e
navegava confortavelmente. Isso foi ainda pior para mim, pois poderia ter aprendido
bastante no trabalho e chegado a chefe de convés ou até mesmo capitão.
Mas tive a sorte de encontrar bons camaradas em Londres, sendo que um deles já
tinha estado na Guiné e pretendia voltar, pois tinha sido muito bem sucedido na
viagem e nos negócios. Ouvindo minha conversa sobre a vontade de conhecer o
mundo, convidou-me a embarcar com ele, sem nenhuma despesa, como companheiro
de aventuras.
Aceitei calorosamente a oferta, ficando amigo desse capitão, que era um homem
10
honesto e justo. Gastei cerca de 40 libras nessa aventura, comprando as lembranças
exóticas que o capitão indicava a cada parada. Meu dinheiro vinha das
correspondências que mantinha com meus familiares, e tenho certeza de que meu pai
e minha mãe também contribuíram nessa minha primeira jornada.
Essa foi a única viagem bem sucedida de todas as minhas aventuras, graças à
integridade e honestidade do meu amigo capitão, com quem também aprendi
matemática e as regras da navegação: manter o curso do navio, observar, saber o que
tinha que saber como marinheiro. Ele adorava ensinar, e eu adorei aprender. Essa
viagem me fez marinheiro e comerciante, e ainda lucrei um pouco de ouro, que em
Londres transformou-se em 300 libras. Tudo isso me encheu de entusiasmo. Esse
mesmo entusiasmo me levaria à ruína.
Mesmo nessa maravilhosa viagem tive alguns infortúnios: estava sempre enjoado
e fiquei com febre devido ao calor constante. Meu amigo capitão também não teve
muita sorte e morreu assim que chegamos. Mas eu já me considerava um comerciante
e navegador, por isso embarquei rapidamente no mesmo navio rumo à Guiné, cujo
capitão seria um de nossos companheiros de viagem. Deixei 200 libras com a viúva
de meu amigo, que era muito bondosa, e carregava apenas 100 libras para negociar.
Entretanto, foi uma viagem ruim para todos.
11
P
ESCRAVO!
erto das Ilhas Canárias, ou melhor, ao longo da costa da África, fomos
surpreendidos numa manhã por um navio pirata turco. Ele nos perseguiu com
toda a potência que tinha, e nós içamos todas as velas para tentar fugir. Mas os piratas
estavam cada vez mais próximos, e nos preparamos para lutar. Nosso navio tinha
doze canhões e dezoito homens. Por volta das três horas da tarde, atiramos contra
eles, que se afastaram um pouco, mas logo revidaram com outro tiro. Nenhum de nós
ficou ferido e nos preparamos para atirar novamente, quando sessenta piratas pularam
em nosso convés. Partimos para o ataque corpo a corpo, atirando e esfaqueando. Mas
para encurtar essa parte triste da história, eram duzentos piratas, e três dos nossos
foram mortos, oito, feridos, e fomos obrigados a nos render. Fomos levados
prisioneiros para Sallee, um porto que pertencia aos mouros.
O tratamento que recebi ali não foi tão ruim quanto esperava. Não fui levado à
presença do rei, na corte, como os outros, mas fui feito escravo e mantido como o
prêmio particular do capitão pirata, já que eu era jovem e capaz de executar suas
ordens. Em vista dessa mudança surpreendente de minha situação – de mercador a
escravo –, fiquei perplexo; recordava-me a todo instante do discurso profético de meu
pai, de quanto eu seria miserável, de quanto estaria sozinho e desesperado. Já
considerava que isso nunca ocorreria e agora eu estava ali, à mercê da vontade de
Deus, um desobediente sem redenção. Mas, infelizmente, isso era apenas uma
pequena parte da miséria que me esperava.
Meu novo senhor e mestre me levou para a casa dele. Eu ainda nutria a esperança
de voltar ao mar, assim que ele embarcasse novamente, e talvez ver sua embarcação
ser tomada por algum navio de guerra espanhol ou português. Se isso acontecesse, eu
seria liberto. Mas minhas esperanças logo desapareceram: ele voltou ao mar, mas me
deixou encarregado de cuidar de seu pequeno jardim e fazer o trabalho pesado na
casa. Quando ele voltava para casa, me fazia dormir na cabine, para cuidar do navio.
Nessas noites eu não fazia nada além de planejar minha fuga. Mas não sabia nem
por onde começar. Não conhecia ninguém, não conseguia me comunicar com
ninguém, não havia um inglês, irlandês ou escocês ou alguém que falasse inglês por
ali, a não ser eu mesmo.
Por dois anos contentei-me em imaginar a liberdade, mas nunca nem ao menos
tentei consegui-la. Mas um dia apresentou-se uma situação favorável que fez renascer
em mim o desejo de fuga. Meu patrão, descansando além da hora de costume,
costumava nos mandar sair para pescar. Eu e outro escravo íamos, junto a um mouro
da corte real, no pequeno bote salva-vidas do grande navio, navegar em águas menos
profundas para pescar e sempre nos divertíamos muito.
Certa manhã, havia uma névoa tão intensa que a poucos metros da praia já não
12
conseguíamos ver o cais. Trabalhamos o dia todo e a noite toda, mas, pela manhã,
vimos que, em vez de navegar em direção à praia, tínhamos ido parar no mar aberto.
Remamos com muito esforço, sem parar para pensar no perigo, e conseguimos
encontrar nosso caminho de volta. Estávamos esgotados e com muita fome.
Depois disso, nosso patrão resolveu que não sairíamos mais sem bússola e
provisões. Ele ordenou ao carpinteiro do navio, outro prisioneiro inglês, que
construísse uma pequena cabine num bote mais longo, além de um pequeno leme.
Instalou, também, uma pequena mesa e um lugar para dormir, onde caberiam três
pessoas apertadas. Havia também um armário de bebidas e alimentos.
Saíamos com esse bote frequentemente para pescar. Numa ocasião, meu patrão
convidou dois ou três mouros da corte para passear e pescar nesse barco. Por conta
disso, encheu o pequeno armário com muito mais bebida e comida que de costume,
além de três armas carregadas. Enquanto preparava tudo, meu patrão chegou e disse
que seus convidados não poderiam vir, mas que eu e o outro escravo deveríamos ir
pescar, pois receberia os homens para o jantar naquela noite.
Nesse momento, a ideia da fuga me ocorreu imediatamente, já que teria uma
pequena embarcação ao meu comando, pronta para partir. Quando meu patrão foi
embora, abasteci ainda mais o bote, para a jornada mais longa possível. Não sabia
para onde estava indo, só sabia que estava indo para o mais longe possível dali.
Tratei de convencer o mouro a levar ainda mais comida a bordo, já que ele tinha
concordado comigo que não deveríamos tocar na comida do capitão. Ele
providenciou uma cesta grande com pães e biscoitos, além de três jarros de água
fresca. Também carreguei as garrafas de bebida do capitão enquanto o mouro estava
na praia, além de quase 50 quilos de cera, corda, uma machadinha, um serrote e um
martelo, que foram muito úteis mais tarde – especialmente a cera, para fazer velas.
Também enganei Moely (esse era o apelido que tinha dado ao mouro, que depois
descobri chamar-se Ismael), pedindo que levasse mais munição para as armas que
estavam a bordo. Ele levou bastante pólvora e algumas balas. Também recolhi
pólvora na cabine mestra do capitão.
Com tudo pronto, partimos. Do castelo de meu patrão, dava para ver para onde
navegávamos, mas não havia ninguém vigiando. O vento soprava na direção contrária
a que eu queria, pois, se soprasse o vento Sul, sabia que poderia chegar à Espanha, ou
pelo menos ao porto de Cádiz. Mas estava decidido a desafiar até mesmo o vento e
sair daquele lugar horrível, deixando o resto nas mãos do destino.
13
D
LIBERDADE ARRISCADA
epois de pescarmos por um tempo sem conseguir nada (eu tinha conseguido
algumas mordidas, mas não os tirei da água), disse ao mouro que deveríamos ir
um pouco mais longe para conseguir o jantar. Ele concordou e, estando no comando
do barco, içou as velas enquanto eu manobrava o leme. O barco se afastou quase uma
légua adiante. Entreguei oleme ao outro escravo, um garoto, fui em direção ao mouro
e, pegando-o de surpresa, consegui empurrá-lo para fora do barco. Ele emergiu
imediatamente, pois nadava muito bem, e me chamou, implorando que eu o levasse
com ele, que iria por todo o mundo comigo. Ele nadou tanto atrás do barco que teria
me alcançado bem depressa, caso o vento estivesse um pouco mais fraco. Eu corri até
a cabine e peguei uma das armas:
– Eu não quero lhe causar nenhum mal – disse a ele. – Você nada bem e o mar
está calmo. Volte até a praia e eu não lhe farei nenhum mal. Se alcançar o barco, serei
obrigado a atirar. E atirarei para matar, pois estou decidido a conquistar minha
liberdade.
Ele então se virou e nadou para a praia; tenho certeza de que chegou são e salvo,
pois era um excelente nadador. Eu podia ter recolhido o mouro, mas não podia me
dar ao luxo de confiar nele. Quando o mouro sumiu de vista, deparei-me com o
garoto, que se chamava Xury, e disse:
– Xury, se for leal a mim, farei de você um grande homem. Jure por Maomé,
senão terei de atirá-lo no mar.
O garoto sorriu e falou com tanta inocência que não consegui desconfiar dele. Ele
jurou lealdade e disse que iria pelo mundo comigo.
Ainda permaneci, por um pouco, perto dali, já que podia ser visto de longe e ainda
podia ser detido se outras embarcações saíssem para me capturar. Mas assim que
anoiteceu, mudei meu curso e rumei para o sul e logo depois para o leste. O vento
estava fresco e forte, e o mar estava calmo. No dia seguinte já estava a 150 milhas de
Sallee, muito além dos domínios do imperador marroquino ou de qualquer outro rei,
pois estávamos em outras terras.
Estava com tanto medo de ser apanhado novamente pelos mouros ou de ser feito
escravo novamente que, mesmo vendo terra, continuava a aproveitar o vento e
navegava sem ancorar. Navegamos por cinco dias, e o vento mudou de direção, nos
levando mais ao sul. Percebi que, se havia alguém em nosso encalço, também seria
prejudicado pela mudança dos ventos e provavelmente desistiria. Com isso em mente,
me aventurei a ancorar perto da nascente de um pequeno rio, sem saber onde estava.
Não sabia a altitude, a longitude, que país ou nação ou até mesmo que rio era aquele.
Também não vi nem queria ver ninguém. A única coisa que queria era água fresca.
Chegamos nesse riacho à noitinha, decididos a nadar por ele e descobrir em que país
14
estávamos assim que a noite ficasse mais escura.
Estava bem escuro quando começamos a escutar os mais terríveis sons vindos da
mata: latidos, rugidos e uivos de criaturas selvagens e desconhecidas. O pobre garoto
estava quase morrendo de medo e me implorou para que ficássemos no barco até o
amanhecer.
– Bem, Xury, haverá homens aqui durante o dia e eles serão tão perigosos quanto
leões.
– Nós podemos atirar neles! – respondeu, Xury, rindo. – Eles vão sair correndo!
Xury conseguia se comunicar comigo de tanto conviver com escravos ingleses.
Fiquei contente de ver o garoto tão animado e o presenteei com uma das garrafas do
armário do capitão. Afinal, ele tinha me dado um bom conselho, e eu o aceitei.
Baixamos nossa pequena âncora e ficamos ali durante a noite. Não dormimos: o
desfile de criaturas imensas que vieram beber água, se lavar e refrescar durante a
noite nos manteve acordados. Nunca tinha ouvido tantos uivos e rugidos como
aqueles.
Xury estava morrendo de medo, e eu também. Mas ficamos apavorados quando
uma dessas criaturas monstruosas mergulhou e nadou até o nosso barco. Xury achou
que era um leão. Ele me implorou para levantarmos âncora e nos afastarmos da praia.
Percebi que a criatura nadava rápido demais e estava cada vez mais perto. Corri até a
cabine e peguei uma das armas. Atirei contra a criatura (não faço ideia do que poderia
ser), que imediatamente recuou e nadou de volta para a praia.
É impossível descrever os sons horríveis, os gritos e os uivos pavorosos que foram
ouvidos desde a praia até o coração da mata quando disparei a arma. Acredito que as
bestas nunca tinham escutado som parecido. Isso me convenceu a não ir para a praia
no escuro, mas desembarcar no dia seguinte também era perigoso, pois cair na mão
de selvagens era tão ruim quanto cair na mão de feras.
A necessidade de água fresca nos obrigaria a aportar mais cedo ou mais tarde, pois
não havia mais nenhuma gota a bordo. Quando e onde conseguiríamos água? Xury
disse que se eu o deixasse ir até a praia com alguns jarros, ele encontraria água.
– Mas por que você deve ir, e não eu mesmo? – perguntei a ele.
A resposta que ele me deu fez com que ficássemos ainda mais próximos.
– Porque se os selvagens me pegarem, você conseguirá fugir.
– Bem, Xury, então iremos nós dois. Se os selvagens vierem, não conseguirão nos
dominar e nós atiraremos neles.
Então, dei a ele um pedaço de pão e um garrafa de bebida do armário do capitão,
como já mencionei antes, e navegamos até a praia, até onde era seguro. Pulamos na
água e caminhamos até a terra, com nossas armas e os jarros para água.
15
Deixei o barco para trás, perdendo-o de vista, sem imaginar que os selvagens
poderiam vir em canoas pelo riacho. O garoto corria de um lado para o outro e
conseguiu caçar um animal que parecia uma lebre, mas tinha pernas bem mais longas.
Ficamos muito felizes em poder comer carne. Xury também estava bem feliz, pois
tinha encontrado água e nenhum selvagem.
Depois, descobrimos que não era necessário ter nos arriscado tanto por água, já
que um pouco acima, no riacho onde navegávamos, havia água fresca quando a maré
baixava. E assim enchemos nossos jarros e nos refestelamos com a carne. Não vimos
nenhum rastro animal nem humano em nosso caminho.
Já havia estado nessa costa antes, em outra viagem, e sabia que tanto as Ilhas
Canárias quanto o arquipélago de Cabo Verde não estavam tão distantes de nós. Mas
não tinha nenhum instrumento para me indicar a distância, ou mesmo medir a
longitude e latitude. Se tivesse mais dados, teria conseguido facilmente navegar até
uma dessas ilhas. Minha esperança era continuar navegando em direção à rota dos
navios ingleses até que um deles pudesse nos resgatar.
Pelos meus cálculos, estávamos agora em um país desabitado, a não ser pelas
feras. Era um dos países de onde os negros tinham fugido por medo dos mouros, e
estes não se interessaram em povoá-lo por não haver ali nada que se pudesse
aproveitar. Os mouros apareciam ali apenas para caçar, com um exército de dois ou
três mil homens, que se aventuravam atrás dos muitos tigres, leões, leopardos e outras
criaturas furiosas. Por cerca de 100 milhas desde a praia, era um país desabitado
durante o dia e repleto de uivos e rugidos à noite.
Uma ou duas vezes durante o dia, acreditei ter enxergado o Pico do Tenerife, nas
Ilhas Canárias, e tentei a todo custo chegar até lá, mas o vento me empurrava na
direção contrária, e o mar estava alto demais para minha pequena embarcação. Então,
resolvi seguir meu primeiro plano: navegar ao longo da costa.
Muitas vezes, fui obrigado a atracar em busca de água, e por dez ou doze dias
vivemos racionando nosso alimento. Meu desejo era encontrar algum navio europeu,
pois não sabia para onde ir, a não ser tentar o caminho para as ilhas ou perecer entre
os africanos. Sabia que todos os navios que partiam da Europa passavam por ali, a
caminho da Guiné, do Brasil ou das Índias. Em suma, apostei todas as minhas fichas
nesse pedaço do oceano: ou encontraria algum navio ou morreria.
16
D
MISTÉRIOS E PERIGOS
urante esse tempo, a maioria dos lugares por onde passamos estava deserta mas
havia alguns negros em algumas praias que paravam para nos ver. Eu queria
muito desembarcar nesses lugares, mas Xury sempre insistia que não deveríamos ir.
Quando chegava mais perto, eles sempre corriam e desapareciam mata adentro. Não
portavam armas, a não ser um deles, que Xury disse portar uma grande lança, que
podia ser lançada a uma grande distância se tivessem boa pontaria. Por causa disso,
sempre me mantive a uma distância segura, mas tentava me comunicar com sinais,
mostrando que queria algo para comer. Numaocasião, pediram que eu chegasse mais
perto e ancorasse, pois iriam me trazer um pouco de carne. Baixei minhas velas e vi
que dois deles saíram correndo e voltaram rapidamente com dois pedaços de carne
seca e um pouco de milho. Não sabíamos o que era aquilo, mas aceitamos. Eles
puseram os mantimentos na areia e se afastaram, observando-nos enquanto descíamos
do barco, pegávamos as provisões e voltávamos.
Fizemos sinais de agradecimento, mas não pudemos dar nada em troca, pois não
tínhamos nada de valor para eles. Mas uma excelente oportunidade se ofereceu logo
em seguida. Duas grandes criaturas passaram correndo pela praia, aparentemente
brigando por algo, o que encheu os nativos de pânico. O homem da lança não atirou,
mas todos os outros dispararam pequenas lanças sobre os monstros, o que os fez
correr para a água, em direção ao nosso barco. Percebendo o que acontecia, peguei
uma das armas e esperei que uma das criaturas chegasse perto o suficiente para que
eu não errasse o tiro. De fato, consegui mirar bem e acertei-o bem na cabeça. Ele
afundou, mas ainda lutava por sua vida, emergindo diversas vezes e tentando chegar
na areia. Mas o ferimento e a luta o mataram antes que conseguisse alcançar a praia.
É impossível descrever o espanto que causei nos nativos. Ter conseguido matar
um animal tão poderoso, o barulho do tiro e o fogo do disparo quase os mataram de
medo. Mas quando viram o cadáver da criatura boiando e os meus gestos para que se
aproximassem, tomaram coragem e foram até a praia. Consegui ver onde estava o
animal pelo sangue na água e amarrei uma corda para que todos ajudassem a puxá-lo
até a praia. Quando o tiramos da água, vimos que era um leopardo, muito bonito, todo
pintado. Os negros levantaram as mãos, admirados.
A outra criatura nadou até as montanhas, de onde tinham vindo, e, como estava
distante, não consegui saber o que era. Os negros tinham a intenção de comer o
animal abatido, e eu sinalizei que era um presente meu para eles, o que os deixou
muito agradecidos. Logo depois de limpar rapidamente a carne com um pedaço de
madeira muito mais afiado que uma faca, me ofereceram um pedaço, que recusei,
mas indiquei que aceitaria a pele, que me ofereceram de bom grado, além de mais
alguns mantimentos.
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Em seguida, mostrei a eles que um de meus jarros de água estava vazio. Eles
chamaram algumas mulheres, que chegaram carregando grandes jarros de barro
queimado cheios de água. Xury trouxe nossos três jarros e enchemos todos com água
fresca. As mulheres estavam totalmente nuas, assim como os homens.
Nossa despensa estava agora cheia de raízes e milho, além da água. Deixei para
trás meus amigos negros e prossegui viagem por mais onze dias sem atracar. Após
esse tempo, deparei-me com uma faixa de mar calmo entre dois pedaços de terra.
Concluí que havíamos chegado a Cabo Verde. Mas não sabia o que fazer, pois ainda
tinha um bom pedaço a navegar e, se algum vento na direção contrária nos pegasse,
talvez não conseguiria chegar a nenhuma das duas ilhas em frente.
Nesse dilema, entrei na cabine para pensar, quando ouvi Xury gritar:
– Mestre, um navio! Um navio!
O pobre garoto ficou apavorado, acreditando ser um dos navios do capitão, que
tinha saído em nossa captura, mas eu sabia que já tínhamos despistado nossos
possíveis perseguidores. Saí da cabine e vi o navio, que era português e estava
navegando a costa à procura de negros. Mas vi que estavam rumando ao mar aberto e
saí em seu encalço.
Mesmo com toda a potência que podia dar, não consegui alcançá-los. Entrei em
desespero e dei um tiro de alerta, mas percebi que eles tinham me avistado pelo
binóculo e, certamente, deduziram tratar-se de um barco europeu que podia ter
pertencido a algum navio perdido. Eles também me disseram posteriormente que
viram a fumaça, mas não ouviram o tiro de alerta. Mesmo assim, navegaram até mim
e, em 3 horas, me resgataram.
Eles me perguntaram quem eu era em português, espanhol e francês, mas não
entendi nada. Finalmente, um marinheiro escocês chamou por mim, e eu pude dizer
que era inglês e que tinha escapado da escravidão. Eles me convidaram a embarcar e
me receberam muito bondosamente, além de recolher todos os meus bens.
Fiquei tão comovido com o resgate, pois estava numa situação desesperançosa e
miserável, que ofereci tudo o que tinha ao capitão. Mas ele não aceitou.
– Eu o salvei pelo mesmo motivo que gostaria de ser salvo. Gostaria que me
salvassem caso me encontrasse na mesma situação – o capitão me disse. – Além
disso, se eu o deixasse no Brasil, um lugar tão distante de sua pátria, sem os seus
bens, tiraria a vida que acabei de salvar. Não, não, senhor Inglês, eu o salvei por
caridade e tudo o que é seu o ajudará a comprar a sua passagem de volta para casa.
Ele recolheu todos os meus bens em sua cabine e elaborou um inventário, dando
ordens aos marujos para que ninguém tocasse no que era meu. Também comprou de
mim (eu insisti em lhe dar e ele insistiu em pagar) meu barco e ofereceu dinheiro pelo
garoto, Xury. Hesitei muito em aceitar essa proposta, pois não queria vender a
18
liberdade de Xury, que tanto tinha me ajudado a conquistar a minha própria. O
capitão, sabendo disso, me fez uma proposta: libertaria Xury em dez anos, se ele
concordasse em se converter ao cristianismo. Xury concordou e eu o entreguei ao
capitão.
Tivemos uma viagem muito agradável até o Brasil e chegamos à Bahia de Todos
os Santos vinte dias depois. Agora estava novamente sozinho e tinha que pensar em
como ia me virar. O capitão foi muito generoso comigo: comprou a maioria das
coisas que eu tinha e estava disposto a vender, como a pele de leopardo, algumas
garrafas de bebida, duas armas e um pedaço de cera. O que eu decidi manter comigo,
o capitão fez com que me entregassem organizadamente. Assim desembarquei na
costa brasileira.
19
O
BRASIL
capitão tinha me recomendado um amigo em solo brasileiro que tinha um
engenho de açúcar. Eu o encontrei e vivi em sua fazenda por um tempo,
aprendendo sobre como trabalhavam os fazendeiros e os escravos no processamento
de cana-de-açúcar. Vendo como enriqueciam rapidamente, decidi obter uma licença
para me estabelecer ali, ao mesmo tempo que tentava reaver o resto do meu dinheiro,
que tinha ficado em Londres. Para obter uma espécie de carta de naturalização,
comprei o máximo de terras que consegui e fiz o planejamento para o plantio e a
produção, que faria assim que recebesse o dinheiro vindo da Inglaterra.
Eu tinha um vizinho, seu nome era Wells, um português de Lisboa cujos pais eram
ingleses, que estava numa situação muito parecida com a minha. Sua plantação era ao
lado da minha, e sempre nos encontrávamos socialmente. Por dois anos, conseguimos
plantar apenas algo para comer, pois não tínhamos dinheiro para cana. No terceiro
ano, conseguimos plantar tabaco e já nos preparamos para plantar cana no ano
seguinte. Mas não tínhamos escravos e precisávamos de mais homens para a
produção. Nesse momento me arrependi de ter vendido Xury.
Mas não tinha outro jeito a não ser continuar. Tinha chegado ao ponto a que meu
pai disse que chegaria, de cansaço e remorso. Poderia estar trabalhando em qualquer
lugar da Inglaterra, entre amigos e familiares, em vez de ter percorrido 5000 milhas e
agora estar entre selvagens e estranhos, sem ter notícias de ninguém que pudesse
querer saber de mim.
Assim, sempre olhava para minha condição com o mais terrível remorso. Não
tinha ninguém para conversar, a não ser, de vez em quando, esse vizinho. Tudo que
podia ser feito, tinha que ser feito com minhas próprias mãos. Estava vivendo como
um homem isolado numa ilha deserta. Mas não sabia que tudo isso podia ficar pior e
garanto que, se tivesse continuado a trabalhar naquelas condições, estaria agora rico e
próspero.
Meu amigo capitão português ainda estava abastecendo o navio para a viagem de
retorno quando comecei a plantar, e ficou ali por quase três meses. Eu conversei com
ele sobre o dinheiro que tinha deixado em Londres e ele me deu este sábio e sincero
conselho:
– Senhor Inglês– ele sempre me chamava assim. – Se o senhor me fizer uma
procuração, posso contatar a pessoa que está com seu dinheiro em Londres e resgatá-
lo. Mas não pegue todo o seu dinheiro, já que a viagem é longa e insegura. Se o
senhor o perder, perderá apenas metade. E se a primeira metade chegar em segurança,
poderá pedir o resto.
Era um conselho muito perspicaz que aceitei imediatamente. Escrevi a carta para a
viúva de meu amigo, que tinha ficado com meu dinheiro, e relatei a ela todas as
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minhas aventuras, além de descrever a boa índole do capitão português. Escrevi
também a procuração que dava a ele poder sobre meu dinheiro.
O capitão levou a carta e a procuração e, assim que chegou a Lisboa, procurou um
mercador de sua confiança que ia para a Inglaterra e explicou a ele toda a situação. O
mercador foi ao encontro da viúva e não só entregou a ela a carta e a procuração,
como também descreveu em detalhes toda a minha história, que tinha sido contada a
ele pelo capitão português. A viúva ficou tão comovida que entregou meu dinheiro e
um pouco de dinheiro de seu próprio bolso para o capitão, por sua conduta honesta.
O mercador, em Londres, sabendo para quê seria o dinheiro, tomou a liberdade de
comprar vários utensílios agrícolas para me ajudar na plantação, que foram de
extrema utilidade para mim posteriormente.
Quando a carga chegou, acreditei que estava com minha fortuna em mãos,
tamanha a minha felicidade. O capitão usou as cinco libras que tinha recebido da
viúva para me comprar um escravo com um contrato de seis anos. Não aceitou nada
em troca, a não ser um pouco de tabaco de minha própria produção.
E não foi só isso: tudo o que possuía, roupas, lãs, a toalha para mesa de jogos, era
feito na Inglaterra, e por isso tinha muito valor no Brasil. Vendi tudo com muito
lucro. Isso me colocou em grande vantagem em relação ao meu vizinho, pois, com
esse dinheiro, que era praticamente quatro vezes o valor do carregamento vindo da
Inglaterra, comprei um escravo negro e outro europeu, além daquele que o capitão
trouxera de Lisboa.
No ano seguinte, colhi mais tabaco do que imaginava e já comecei a exportar meu
produto para Lisboa. Aumentando minha produção e minha riqueza, minha mente
começou a encher-se de projetos que iam além da minha capacidade, o que,
geralmente, antecede a ruína dos negociantes.
Se eu tivesse continuado nesse mesmo ritmo, receberia em alguns anos a
recompensa que meu pai sonhara para mim: uma vida calma e tranquila, como
deveria ser entre a juventude e a velhice. Mas prestava atenção em outras coisas e
continuaria a me tornar o agente de minha própria miséria. Tudo estava relacionado
ao meu desejo incontrolável de partir pelo mundo.
21
D
LEVADO PELO DESTINO
a mesma forma que deixei para trás meus pais e minha herança, também deixei
para trás a imagem feliz do fazendeiro próspero, para perseguir um desejo
insensato de enriquecer mais rápido do que as forças da natureza.
Já vivia no Brasil havia quatro anos e era um fazendeiro bem-sucedido. Havia
aprendido a falar português e tinha vários amigos - fazendeiros como eu ou os
mercadores do porto de São Salvador - com quem sempre conversava relatando
minhas aventuras na costa da Guiné, onde era fácil encontrar todo o tipo de coisa,
desde dentes de elefante, pó de ouro e grãos, e até negros para o trabalho escravo.
Todos ouviam minhas histórias com muita atenção, especialmente em relação aos
negros, pois só era possível trazê-los com a permissão do rei da Espanha ou do rei
português, e não era um negócio para qualquer um. Havia, assim, pouquíssimos
escravos para muito trabalho.
Aconteceu um dia, na companhia de mercadores e fazendeiros, quando contava
mais uma vez as histórias da Guiné, que três deles me disseram que estavam
pensando muito sobre esse assunto e queriam me fazer uma proposta em segredo.
Disseram que queriam preparar um navio para a Guiné, pois tinham plantações, assim
como eu, e sofriam com a falta de trabalhadores. Não poderiam vender os negros
quando chegassem aqui, então fariam apenas uma viagem, trariam os negros
escondidos e os dividiriam entre as plantações. Propunham que eu os ajudasse nas
negociações entre os negros, podendo ter minha cota de escravos, que seriam
divididos entre os fazendeiros.
Era uma proposta interessante, mas que eu poderia ter recusado, pois ainda
receberia a outra metade do meu dinheiro que estava na Inglaterra e que me serviria
muito bem, a ponto de não precisar de mais nada. Mas, como nasci para ser meu
próprio destruidor, não resisti. Disse que iria se eles providenciassem alguém para
cuidar de minha plantação durante minha ausência. Todos concordaram e começaram
a elaborar os contratos. Fiz um testamento formal, fazendo com que o capitão
português que me salvou a vida fosse o herdeiro universal de todos os meus bens e
terras, para que ele usufruísse de metade de tudo e se encarregasse de transformar a
outra metade em dinheiro, que seria enviado para a Inglaterra.
Tomei todas as medidas possíveis para preservar meus bens e cuidar da minha
plantação. Deveria ter usado metade dessa prudência para preservar o que estava
dando certo e meditar sobre o que deveria ou não deveria fazer. Se tivesse feito isso,
nunca teria deixado para trás um negócio tão próspero por uma viagem tão cheia de
perigos.
Mas eu me apressei e obedeci cegamente aos meus desejos, ao invés da minha
razão. Embarquei no dia 1º de setembro de 1659, o mesmo primeiro de setembro
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maldito da minha primeira viagem, que me afastou para sempre de meus pais em
Hull.
Nosso navio estava carregado com 120 toneladas de carga, seis canhões e catorze
homens, além do capitão, seu assistente e eu. Não levávamos muito além dos objetos
que iríamos trocar por escravos: espelhos, tesouras, vidro, contas e outras coisas.
23
Q
MAR EM FÚRIA
uando partirmos, fazia tempo excelente, apenas quente demais, por toda a costa,
até chegarmos à altura do Cabo de Santo Agostinho e desviarmos até Fernando
de Noronha, onde um violento tornado nos apanhou. A fúria dos ventos durou doze
dias, e nenhum dos homens a bordo esperava escapar daquela tormenta com vida.
Perdemos um homem doente, e um homem e o assistente do capitão foram jogados
ao mar.
Depois do 12º dia, o capitão conseguiu se localizar com dificuldade, e percebemos
que estávamos apenas um pouco acima do rio Amazonas. O navio estava num estado
deplorável, e ele me sugeriu que voltássemos à costa brasileira. Eu fui totalmente
contra isso e insisti que fôssemos até as ilhas do Caribe.
O destino, porém, estava traçado: uma segunda tormenta nos pegou e nos tirou
completamente do rumo. De manhã cedo, do meio do aguaceiro e ventania, um dos
homens gritou:
– Terra à vista!
Saímos da cabine para ver onde no mundo poderíamos estar, quando o navio bateu
num banco de areia e rangeu de tal forma que achamos que ia rachar ao meio e matar
a todos. Corremos até a cabine para nos proteger.
A consternação era geral: não sabíamos onde estávamos, que terra era aquela, se
era uma ilha ou um continente, habitada ou não. Apenas esperávamos que o vento,
que estava muito forte, mas não tanto quanto da primeira vez, não despedaçasse o
navio. Estávamos todos sentados olhando uns para os outros, esperando a morte. Mas
o navio não se despedaçou, e, como por milagre, o vento começou a enfraquecer.
Nesse momento, embora o vento tivesse dado uma trégua, estávamos encalhados
no banco de areia, e nossa situação ainda era extremamente perigosa. Um dos nossos
barcos tinha desaparecido e o outro era bem mais difícil de colocar na água. Mas não
tínhamos escolha, já que o navio poderia se partir em pedaços a qualquer momento e
alguns marinheiros já diziam que o navio estava condenado.
Descemos o barco com muita dificuldade e nós todos, onze homens no total,
embarcamos, entregando nossas vidas às mãos de Deus e ao mar violento, pois
embora a tempestade tivesse se acalmado consideravelmente, as ondas ainda eram
muito maiores do que o normal.
Percebemos nesse momento que o mar destruiria com facilidadenossa pequena
embarcação e que iríamos todos nos afogar. Remamos com nossas próprias mãos,
apressando nossa ruína, em direção à terra. Quanto mais nos aproximávamos, mais
apavorante parecia a praia, pois não tinha como sabermos se era de terra ou de pedras,
ou mesmo se encontraríamos ali águas mais calmas.
24
Já tínhamos conseguido remar por mais de uma légua quando uma onda
gigantesca nos engolfou, destruindo o barco e separando-nos uns dos outros. Foi
apenas o tempo de gritar por Deus, e fomos engolidos pelo mar.
Embora seja um excelente nadador, o desespero era tanto que não consegui vencer
as ondas. A mesma onda que me afundou, me levou até a praia e voltou para o mar,
deixando-me ali na areia, quase morto. Mas sabia que ali não estava seguro, pois as
águas ainda me alcançavam, então reuni todas as forças que ainda me restavam e
levantei-me, buscando abrigo mais longe do mar. Mas isso se provou inútil, já que as
ondas eram como montanhas furiosas atacando o inimigo. A única forma de
sobreviver era respirar fundo e ter fôlego suficiente para me manter na superfície,
indo e voltando ao sabor das ondas.
Meu maior medo era ser tragado novamente de volta ao oceano, já que a mesma
força que me levava para a praia também me puxava rumo às águas profundas e
violentas. Duas vezes mais as ondas me puxaram e me devolveram à praia. Consegui,
depois disso, escalar, entre uma onda e outra, um penhasco, e ficar ali em segurança,
longe do alcance das águas, onde pude descansar sobre a grama da terra firme.
Ali agradeci a Deus, que tinha salvo minha vida quando não havia mais esperança.
Andei pela praia e, percebendo que todos os outros tinham se afogado, ergui as mãos
e agradeci pela minha vida muitas outras vezes. Nunca mais vi aqueles homens, nem
qualquer sinal deles, a não ser três chapéus, um quepe e dois sapatos que não
compunham par.
Olhei para o mar e vi nosso navio lá longe, pequeno perto da vastidão do mar.
Como consegui chegar até a praia, meu Deus, estando tão longe?
25
D
SOZINHO
epois que suspirei de alívio pela minha condição, comecei a olhar em volta para
avaliar em que tipo de lugar tinha vindo parar e o que devia fazer agora. Logo
percebi que estava ensopado e sem roupas secas para me trocar, sem comida nem
água. Também tinha grandes chances de morrer de inanição ou ser devorado por
algum animal selvagem, e não tinha nenhuma arma para me defender. Minhas únicas
posses eram uma faca, um cachimbo e um pouco de tabaco numa caixa. Comecei a
correr em círculos, desesperado, pois a noite já estava caindo e era a hora em que eu
poderia ser abatido por algum animal selvagem.
O jeito foi subir e ficar sentado numa árvore cujo tronco era cheio de espinhos, e,
durante a noite, meditar sobre o tipo de morte que eu teria. Antes disso, andei pela
praia em busca de água fresca, que felizmente consegui achar a alguns passos da
praia. Fiquei feliz por ter encontrado pelo menos isso e, pondo um pouco de tabaco
na boca para enganar a fome, subi na árvore e me ajeitei para não cair se dormisse.
Também cortei um galho para me defender. Mesmo naquelas condições, peguei no
sono e dormi profundamente, já que estava fatigado da minha luta com o oceano.
Quando acordei, o sol já estava alto. O céu estava claro, e a tempestade tinha
desaparecido. O que mais me impressionou foi ver o navio ancorado no banco de
areia, tão alto em relação à água quanto o penhasco que me abrigara. Desejei nadar
até ele, já que ali estavam provisões que me ajudariam a sobreviver.
Um pouco depois do meio-dia, o mar ficou muito calmo e a maré baixa me deixou
andar quase até nosso navio. Fiquei muito abalado ao perceber que, se tivéssemos
continuado dentro dele, estaríamos agora todos vivos e salvos. Essa constatação me
fez chorar.
Decidi nadar até o navio. Tirei minha jaqueta, pois estava muito calor, e pulei na
água. Quando cheguei até o navio, não sabia como conseguiria subir a bordo, pois a
embarcação estava ancorada no banco de areia, muito mais alta do que a água. Dei
duas voltas ao seu redor. Percebi, na segunda volta, uma corda que não tinha visto
antes e, com muita dificuldade, consegui subir a bordo.
O convés estava cheio de água, mas como a proa estava mergulhada na água, a
popa estava seca. Era ali que eram estocadas a comida e as provisões, e tudo estava
intacto. Enchi meus bolsos com biscoitos e ia comendo enquanto fuçava tudo, pois
não tinha tempo a perder. Também encontrei rum na cabine do capitão e dei um
grande gole para me preparar para o que me esperava. Agora, tudo o que eu queria
era um bote para levar comigo para a terra o que era necessário.
Com pedaços de madeira e cordas, construí uma pequena embarcação, que me
serviria de transporte e abrigo. A jangada ficou firme e forte, e comecei a carregá-la
com meus mantimentos e bebidas. Enquanto trabalhava, percebi que a maré começou
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a subir, embora o mar estivesse muito calmo.
Procurei avidamente pela arca do carpinteiro, que era muito mais valiosa para
mim naquele momento do que uma arca de ouro, e consegui encontrá-la. Também
carreguei armas e munição.
Pus a jangada a navegar rumo à terra, procurando um lugar seguro para aportar.
Como imaginava, descobri um pequeno rio que desembocava na praia, mas a corrente
que me levou até ali era um pouco violenta para minha improvisada embarcação, e,
mesmo segurando as caixas e baús com toda a minha força, perdi alguns itens pelo
caminho. Não queria ficar muito longe da praia, pois tinha que estar atento a qualquer
navio que passasse por aquela rota.
Havia uma pequena caverna no lado direito do riacho, e, com muito esforço e
dificuldade, consegui guiar a jangada até lá. Minha carga estaria a salvo ali.
A próxima etapa era explorar o local e encontrar um lugar para me abrigar e
guardar meus mantimentos, algum lugar que estivesse longe da água. Ainda não sabia
onde estava, se era continente ou ilha, se era habitado ou não, se havia animais
perigosos. Havia uma colina bem alta perto de onde eu estava. Decidi pegar uma das
armas e munição e subir ali para olhar em volta. Para minha grande aflição, estava
numa ilha rochosa e não havia nada por perto, a não ser duas outras ilhas bem
menores e um rochedo distante.
Também deduzi que a ilha era desabitada, a não ser pelos animais selvagens, que
ainda não tinha visto. Havia muitas aves, mas não conhecia nenhuma das espécies, e
nem quando as matei para comer consegui descobrir. Aliás, quando dei o primeiro
tiro, foi tamanha a algazarra dos pássaros que acredito que era o primeiro tiro que
ouviam desde a criação do mundo.
Passei o resto do dia descarregando minha carga, sem saber ainda onde ia dormir,
pois temia que algum monstro selvagem me devorasse durante a noite, medo que
mais tarde se mostrou infundado. Ergui uma barricada com os baús para me proteger
durante o sono e para resguardar os mantimentos. Não sabia quanto tempo teria que
racionar a comida, embora já tivesse visto animais parecidos com lebres correndo
pela mata, além dos pássaros, que podiam me servir de alimento.
No dia seguinte, resolvi tirar do navio o máximo que conseguisse, já que temia
que uma segunda tormenta pudesse acabar de vez com a embarcação. Voltei e
resgatei mais ferramentas, armas e munições, roupas e lençóis.
Estava apreensivo quanto às coisas que tinha deixado na praia, mas não havia
nenhum sinal de algum visitante, a não ser um felino, que estava em cima de um dos
baús. Quando ele me viu, correu a uma certa distância e sentou-se um pouco mais
longe, me observando. Tirei minha arma, mas o animal continuava imóvel, olhando-
me nos olhos. Peguei, então, um dos biscoitos e ofereci a ele, que o devorou com
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gosto e olhou-me, aparentemente pedindo mais. Não podia desperdiçar comida, por
isso, agradeci a visita e espantei-o.
Construí uma pequena barraca com a vela que tirei do navio e abriguei ali tudo
que pudesse estragar exposto ao tempo, como os barris de pólvora. Fiz uma porta
com tábuas e encaixei um baú vazio para segurá-las em pé. Com duas armas ao lado
da minha cabeça eoutra ao lado do corpo, pela primeira vez deitei-me como em uma
cama e dormi a noite toda, cansado que estava desde a noite do naufrágio e de todo o
trabalho que tivera naquele dia.
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M
NOVA VIDA
eus dias eram ocupados com a retirada dos mantimentos do navio quando a
maré baixava. Na minha sexta viagem, ainda me surpreendi ao encontrar
açúcar, rum e outras bebidas, além de pão e farinha, que ainda não tinham sido
tocados pela água. Também peguei quanta madeira consegui cortar e transportar do
navio: os mastros, cabos e cordas, que me seriam úteis, além de metais e ferramentas
pesadas. Levava tudo para a praia com a ajuda das correntes marítimas favoráveis.
Já estava havia treze dias naquela praia e tinha feito onze viagens ao navio
encalhado, trazendo para a ilha tudo que um homem sozinho é capaz de carregar. Se
o tempo tivesse continuado firme e claro, acredito que teria conseguido transportar
todo o navio, pedaço por pedaço. Entre os muitos itens que havia coletado para minha
sobrevivência, algo me fez sorrir: havia muito dinheiro a bordo, algumas libras,
outras moedas europeias, algumas moedas brasileiras, ouro e prata. “Para que servem
agora?”, me perguntei, irônico.
No momento em que resgatava o dinheiro, o céu ficou encoberto. Foi o tempo de
conseguir nadar até a praia; o vento aumentou com tamanha intensidade que já era
uma tempestade. Minha pequena barraca provou-se um abrigo seguro, e ali fiquei
durante a tempestade, que durou a noite toda.
Na manhã seguinte, assim que olhei para fora, percebi que o navio tinha
desaparecido. Fiquei um pouco chocado, mas me recompus rapidamente, pois não
tinha cedido à preguiça e trabalhara o quanto pude durante o tempo que tive. Não
havia mais nada, ou havia muito pouco, que restasse ali e pudesse me ser útil. Não
pensei mais no navio, a não ser quando via pequenos pedaços do destroço do
naufrágio, que tinham pouca serventia.
Meus pensamentos agora se concentravam em me proteger de selvagens, se
aparecessem, ou de animais, se houvesse algum na ilha. Decidi que aperfeiçoaria
minha barraca e ainda encontraria uma caverna onde pudesse me abrigar.
Remontei a barraca na parte alta e gramada da ilha, onde poderia avistar algum
navio, pois não havia abandonado a esperança de ser resgatado. Mas, dessa vez,
reforcei todas as defesas, de modo que não pudesse ser invadida nem por homens
nem por animais. Era, em suma, minha fortaleza, e me consumiu dias de trabalho
exaustivo. Escolhi o lugar perfeito, pois havia um grande muro rochoso me
protegendo, o qual preparei como uma caverna, ou melhor, um porão para minha
casa. Ali era minha despensa.
Depois de tudo pronto, passei quinze dias embalando a pólvora dos barris em
pequenas porções para usar nas caçadas. As aves, especialmente, eram muito
importantes na minha alimentação, pois tinha que poupar o pão e os biscoitos o
quanto conseguisse.
29
Com o tempo, fui aperfeiçoando minha casa e instalando regalias, como uma
pequena lareira. Mas minha mente constantemente me atordoava, lembrando-me que
seria ali, naquela solidão e desamparo, que acabariam meus dias. Nessa desolação,
chorava copiosamente e perguntava à Providência por que tinha me poupado, pois
não podia chamar aquilo de vida.
A única forma de não cometer o pecado de pensar em morrer era ocupando
minhas mãos. Ampliava cada vez mais minha barraca, de modo que fosse espaçosa e
confortável, na medida do possível. Construí uma cadeira e uma mesa usando
pedaços de madeira do navio. Ali, sentava e me ocupava em escrever um diário,
relatando tudo que fazia durante o dia. Eis um exemplo de relato:
Set. 30: Depois que fui à praia, em vez de agradecer a Deus por ter me poupado a vida, corri pela areia,
esticando os braços, gritando e chorando até me cansar e deitar, ou melhor, desmaiar, exausto, no chão.
A tinta acabou, e fui forçado a parar de escrever. Sempre subia na colina mais alta
e ficava procurando pelas águas um navio, qualquer navio, que pudesse me resgatar.
Enquanto isso, trabalhava exaustivamente, dedicando-me a reforçar a parede que
segurava minha casa. A chuva às vezes durava semanas. A noite chegava logo, por
volta das sete horas, e eu era obrigado a ir dormir. Tentei fabricar uma lâmpada
rústica usando gordura, mas não tinha o brilho regular de uma vela de cera, como as
que se costumava fabricar na costa da África.
Enquanto trabalhava, encontrei um pequeno saco que certamente continha milho
para as aves que viajaram conosco. Os ratos já tinham dado cabo de tudo, então
joguei as migalhas do lado de fora da barraca e utilizei o saco para guardar pólvora.
Qual não foi minha surpresa quando notei, meses mais tarde, pequenos brotos de
milho nascendo. Sem cuidado nenhum, sem cultivo, naquela terra que parecia
inóspita. Não pensava muito em Deus nessa época, mas não pude deixar de acreditar
que fora ele quem fizera essas sementes germinarem. Isso tocou meu coração e me
fez chorar. E fiquei ainda mais espantado quando percebi, um pouco mais adiante,
pés de arroz, que já tinha visto crescer na África.
Mas foi apenas depois de quatro anos que consegui colher milho suficiente para
um prato, e ainda assim uma porção bem pequena. Cultivava o arroz com o mesmo
cuidado do milho, e também consegui comer pequenas porções cozidas, como
aprendi a fazer.
 
30
N
TERREMOTO
essa mesma época, um evento quase destruiu todo o meu trabalho e minha vida.
Estava dentro da minha barraca, quando senti um abalo e ouvi o barulho de
pedras deslizando. Olhei para cima e percebi que pedras enormes rolavam montanha
abaixo. Abriguei-me junto à parede dos fundos, temendo que minha casa fosse
destruída, e eu, soterrado. Corri para fora e sentei-me num lugar descampado, onde
estaria seguro. Em dez minutos, o chão tremeu tão violentamente que me deixou
zonzo. Pedras gigantescas rolavam como se fossem leves e caíam no mar com ruídos
tão estrondosos que parecia o fim do mundo. O mar estava tão agitado que só pude
concluir que a agitação que sentia estava ainda pior embaixo das águas.
Fiquei assustado e paralisado, mas o barulho das pedras me tirou do torpor.
Quando o terceiro tremor passou, me pus a repetir: “Senhor, tende piedade de mim!”.
Fiquei sentado, desolado, à espera do que ia acontecer a seguir, quando percebi as
nuvens escuras no céu e, em minutos, começou o furacão mais violento que já vi. O
mar ficou instantaneamente coberto de espuma, a maré subiu a ponto de cobrir toda a
areia da praia e as árvores foram arrancadas com suas raízes. Isso durou três horas, e,
pelas duas horas seguintes, o mar acalmou-se. Depois disso, começou a chover
intensamente.
Quando percebi que o furacão e a chuva foram consequência do terremoto que já
havia passado, aventurei-me de volta para a minha barraca. Mas a chuva continuava
tão forte que temi que a construção caísse sobre mim; então ousei abrigar-me em
minha caverna, mesmo com medo de que as pedras caíssem sobre a minha cabeça.
Essa chuva me obrigou a construir um dreno para a água que ficou empossada
dentro da minha fortaleza. Ainda sentia alguns ecos do terremoto, mas não fiquei tão
apavorado. Para levantar meu ânimo, tomei um pequeno gole de rum, que reservava
apenas para ocasiões especiais.
A chuva continuou por toda a noite e por boa parte do dia seguinte. Percebendo
que a ilha era assolada por terremotos, concluí que uma caverna não seria o ideal para
mim. Com isso em mente, nos dois dias seguintes procurei um lugar descampado
onde pudesse construir uma cabana.
Cerca de dez dias mais tarde, quando a maré baixou, percebi algo boiando perto da
praia. Era um barril de pólvora do meu navio, que o furacão tinha levado à praia.
Como tinha sido estragado pela água, o pó estava duro como pedra, mas o resgatei
mesmo assim e coloquei-o meio enterrado na areia.
Continuei a procurar mais destroços e encontrei o casco do navio. A cada dia
chegavam mais partes dos destroços, violentamente rasgados pela ira do vento. Tudo
isso me distraiu e não continuei em meu projeto de mudança, mas achava importante
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coletar quantas partesde madeira e destroços eu pudesse, pois sabia que me seriam
úteis, mais cedo ou mais tarde.
Foi por volta dessa época que caí doente, com muita febre, tremedeira e dores de
cabeça. Temi pela minha vida e, pela primeira vez desde a tempestade em Hull, orei,
sem saber o que dizer. Minha mente delirava, eu suava e depois tremia. Estava fraco
demais para ir atrás de comida ou água. Ficava o dia todo deitado. Dias depois,
consegui sair e matar um ganso, que cozinhei e comi. Mas não havia nada para beber.
Gritava: “Senhor, tenha piedade de mim!”, e: “Senhor, olhe para mim!”, durante
horas, e voltava a dormir. Dormi por dois dias e tive um sonho terrível.
No meu sonho, estava sentado no chão, no mesmo lugar onde me sentei durante a
tempestade depois do furacão, quando vi um homem descer dos céus numa grande
nuvem negra. Ao redor dele, brilhava uma chama de fogo tão brilhante que quase não
conseguia abrir os olhos para vê-lo. Sua expressão era tão terrível que não encontraria
palavras para descrevê-la. Quando ele pisou no chão, a terra tremeu como um
terremoto e o ar pareceu se encher de faíscas fumegantes.
Assim que pousou sobre a terra, ele andou até mim, apontando-me uma grande
lança. E com uma voz aterrorizante me disse:
– Se todas essas coisas não o fizeram se arrepender, você merece morrer – e
apontou a lança para me matar.
Mesmo depois de acordar e perceber que tinha sido um sonho, não consegui me
acalmar. Não me lembrava do que tinha aprendido com meu pai e, desde que o deixei
lá na Inglaterra, não tinha em nenhuma ocasião feito uma oração sincera nem
agradecido ou temido a Deus. Não imaginava que poderia receber uma punição
divina por meu comportamento rebelde, pelos meus pecados e pelo curso iníquo da
minha vida. Em nenhum momento pedi a ajuda sincera de Deus durante tempestades
ou quando estava perdido na costa da África. Não desejei que Deus dirigisse meus
passos ou guiasse meus caminhos para me afastar do perigo. Não agradeci quando fui
resgatado ou quando sobrevivi. O milho ter nascido daquele jeito teve um pequeno
efeito sobre mim, mas logo me acostumei e parei de pensar naquilo como um ato
divino, e atribuí o feito às forças da natureza. O terremoto, que podia julgar como
uma manifestação do poder divino, também não me fez mais temente.
Lembrei-me das palavras do meu pai e chorei. Lembrei-me do sonho e tremi.
“Senhor, ajude-me, por favor! Minha situação é desesperadora!” Essa foi minha
primeira oração sincera em muitos anos. Comecei a acreditar, naquele momento, que
Deus estava me ouvindo.
Enquanto procurava por tabaco no grande baú, encontrei alguns livros, entre eles
uma Bíblia. Peguei o tabaco e a Bíblia e sentei-me à mesa. Não tinha nenhuma
vontade de abrir o livro, mas provei o tabaco. Era verde e forte e quase me sufocou.
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Tomei uma dose de rum e fui dormir. Mas antes, li um pequeno trecho que ficou
guardado em minha mente entorpecida pelo tabaco e pelo álcool: “Procure-me no dia
da tua aflição e eu o libertarei, e tu me glorificarás”.
Quando acordei, estava tão bem disposto e alegre que me senti forte para
trabalhar. Estava com fome e saí para caçar. Ainda mastiguei o tabaco e tomei a dose
de rum nos três dias seguintes, e descobri que era um excelente remédio. Uma
semana depois, estava completamente curado.
33
J
EXPLORANDO A ILHA
á estava havia dez meses nessa ilha infeliz, sem nenhuma esperança de resgate e
acreditando piamente que nenhum homem jamais havia pisado ali. Já que minha
casa estava acabada e segura, decidi sair para explorar a ilha. Setembro e outubro
foram meses muito chuvosos, mas as chuvas de verão eram ainda mais perigosas,
com raios e trovoadas que sacudiam o chão. Por isso, tinha que ficar atento. Em
julho, mais precisamente dia 15, saí para andar pela ilha.
Fui até o riacho que desembocava no mar, decidido a navegá-lo para ir para o
interior da ilha. Surpreendentemente, o riacho era calmo, apesar da correnteza, e as
águas eram cristalinas e limpas. A atmosfera era fresca e agradável. Pude notar que a
margem estava seca em alguns pontos, já que estávamos na estação mais seca. O
riacho percorria savanas e planícies cobertas de grama. Fiquei surpreso ao avistar pés
graúdos de tabaco crescendo livremente entre plantas desconhecidas e outras
familiares, como cana-brava (a versão não cultivada da cana-de-açúcar). Fiquei
contente com minhas descobertas nesse dia e voltei para casa imaginando que poderia
pesquisar as plantas que não conhecia e descobrir seus gostos e utilidades. Mas
mesmo antes de chegar em minha tenda, abandonei essa ideia, pois mesmo quando
estava no Brasil não tinha me dedicado ao estudo, e agora não poderia experimentar
nada que pudesse me fazer mal, pois estava carente de todo tipo de cuidado.
No dia seguinte, dia 16, fiz novamente o mesmo caminho e fui além do que tinha
percorrido no dia anterior. O riacho e as planícies deram lugar a uma floresta. Ali,
encontrei diversas árvores frutíferas e frutas rasteiras, como melão e uva, cujos
vinhedos subiam pelas árvores como trepadeiras. Os cachos estavam fartos e
maduros. Fiquei muito feliz, mas não comi muitas uvas, pois me lembrei dos ingleses
que perdemos na costa da África que, depois de terem comido até se fartar, caíram
com febre e diarréia. Colhi muitas uvas para pendurá-las ao sol e fazer uvas passas
para que, quando o tempo de uva passasse, eu ainda tivesse uma boa porção para
comer.
Passei toda a tarde ali e, pela primeira vez, à noite não voltei para minha casa.
Dormi muito bem sob uma árvore e, logo pela manhã, continuei andando até os
limites do vale. Depois de percorrer toda a extensão plana, deparei-me com uma fonte
de água fresca ao lado de uma montanha. Estava tudo tão verde, tão fresco, tão
florido que parecia um jardim cultivado.
Passeava por esse lugar delicioso com um prazer secreto misturado aos
sentimentos aflitivos da solidão. Era o rei e senhor daquelas terras. Havia milhares de
coqueiros, laranjeiras, limoeiros e outras árvores carregadas de frutos. Algumas limas
eu usei para fazer um suco fresco e refrescante. Outras recolhi para levar para casa e
estocar, para me manter durante a estação das chuvas, que eu sabia que se
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aproximava.
Quando cheguei em casa (pensava em minha tenda realmente como minha casa
naquele momento), vi que algumas uvas que tinha recolhido acabaram estragando,
mas as limas estavam perfeitas. No dia seguinte, voltei ao vale para recolher mais
uvas e fiquei muito surpreso ao perceber que as vinhas, tão fartas e perfeitas no dia
anterior, estavam todas arruinadas e espalhadas pelo chão. Concluí que aquilo devia
ser obra de alguma fera que eu ainda não tinha visto.
Recolhi e pendurei os cachos em galhos para que ficassem intactos e já ficassem
prontos para a secagem. Quando deixei o vale para trás, admirei a linda paisagem e
reconheci que o lugar arenoso e cheio de pedras que escolhi para montar minha
habitação era o pedaço mais feio da ilha. Mas era o único lugar perto do mar, de onde
poderia vir minha salvação. Portanto, embora pensamentos de montar minha casa
naquele paraíso me ocorressem de vez em quando, nunca concretizei a mudança.
Estava tão fascinado com esse vale que passava meus dias ali. Fiz uma espécie de
cabana com galhos secos, que cerquei com uma forte cerca, e me abrigava ali à noite,
às vezes duas ou três noites seguidas.
As chuvas chegaram e eu tive que deixar meu pequeno refúgio e voltar para minha
casa, onde era mais seguro ficar durante as terríveis tempestades. No começo de
agosto, um pouco antes das chuvas, as uvas já tinham secado e eu fiquei feliz com as
passas de excelente qualidade. Choveu quase ininterruptamente até meados de
outubro, e eu saí pouco de minha tenda. Ocasionalmente, tinha que caçar. Mas
racionava a comida para que durasse o máximo possível. Durante esse confinamento,
trabalhei muito em minha casa, abrindo uma segunda entrada na lateral. Embora não
tivesse porta, não tinha medo de ficar desprotegido, pois, até então, o maior animal
que tinha visto pela ilha era um bode. Logo depoisde as chuvas terem cessado,
percebi que já estava na ilha havia 365 dias.
As estações eram bem definidas para mim, a das chuvas e a seca, e eu aprendi a
me preparar para elas. Plantava, caçava e recolhia as frutas no pomar sempre verde do
vale. Entre as flores e árvores, capturei um papagaio para ensiná-lo a falar. Alguns
anos se passariam antes que ele me chamasse pelo nome, de uma maneira bem
familiar. Tinha também um cachorro e um bode, o qual tinha capturado para começar
uma criação, pois minha munição não duraria para sempre; mas ele era tão manso que
acabou fazendo parte da família. Também encontrei animais que se pareciam com
lebres e raposas, embora não como eu os conhecia. Na praia do outro lado da ilha
havia uma infinidade de espécies de aves que nunca tinha visto. E inúmeras tartarugas
passeavam livremente.
Foi na volta dessa jornada que eu me perdi, e vaguei por uma mata fechada por
três ou quatro dias sem ver o sol. Tive que andar até a praia e dar toda a volta para
poder me localizar. Fiquei tão cansado que foi um alívio deitar na minha cama
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novamente.
36
A
O TEMPO PASSA
estação das chuvas chegara novamente ao fim no dia 30 de setembro. Era meu
segundo aniversário na ilha. Eu comecei a me sentir feliz com a vida que levava
ali, muito mais feliz do que no passado. Não sentia mais o desconforto da solidão,
não chorava mais. Meus prazeres vinham de novos pensamentos e da fé. Lia sempre a
Bíblia. Um dia, estava muito triste e, quando abri o livro sagrado, me deparei com
estas palavras: “Eu nunca, nunca o deixarei, nem me esquecerei de ti”. Senti que
aquelas palavras eram para mim. Então tentei começar a ser feliz ali e agradecer a
Deus pela minha vida todos os dias.
Com essa disposição e mentalidade, comecei meu terceiro ano. Minha rotina era
basicamente a mesma: caçar, ler a Bíblia, cozinhar, comer, cuidar da minha
plantação, dormir... O calor era insuportável. Quando chovia, eu não conseguia sair
de casa. Mas foi nessa época que consegui modelar jarras de argila e, colocando-as ao
sol, consegui que secassem e aguentassem até mesmo o calor do fogo. Eram meus
primeiros utensílios de cozinha.
Não sentia necessidade de mais nada. A natureza me oferecia tudo, e eu só pegava
o que poderia usar ou consumir. Aprendi que estocar demais ou matar demais era
completamente inútil. Tudo que não estava sendo utilizado apodrecia. Eu aprendi a
silenciar meus desejos e simplesmente agradecer a Deus pela comida, olhar o lado
confortável da minha situação e não deixar minha mente se entorpecer de
desesperança. O lado bom era que eu estava vivo e tinha conseguido providenciar
uma habitação segura. Não estava sendo caçado por homens ou animais selvagens.
Estava bem. Era uma vida solitária dada pela misericórdia. Refletindo sobre isso,
pensava em como Deus tinha sido benevolente comigo, e como eu tinha vivido toda a
minha vida até aquele momento de maneira tão inconsequente. Não fiquei mais triste
depois desse dia.
As provisões que tinha conseguido retirar do navio já estavam praticamente
acabadas: a tinta, o pão, os biscoitos e as roupas, que já estavam em farrapos, embora
a maior parte do tempo o calor me fizesse vestir apenas uma camiseta. Mas ainda
havia baús cheios de camisas e casacos que retirei do navio, além do couro dos
animais que tinha abatido para comer.
Depois de cinco anos nessas condições, estava resignado e vivendo
confortavelmente na vontade de Deus, quando uma coisa extraordinária aconteceu.
Durante todo esse tempo, construí uma canoa, que posteriormente se converteu numa
embarcação um pouco mais resistente, com mastro e vela, com a qual pretendia
navegar até a civilização. De vez em quando me aventurava a navegar, mas nunca me
aventurava a ir muito longe do pequeno riacho que desembocava no mar.
Um dia, porém, abasteci meu barco com comida, minha arma e um casaco e me
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propus a dar a volta ao redor da ilha, meu pequeno reino. Na primeira curva, minha
descoberta foi um recife de pedras, a mais ou menos duas milhas de distância da
praia, e um banco de areia um pouco além.
Quando voltei, percebi, do alto da montanha onde costumava subir para ver o mar,
que uma forte correnteza me levaria para longe da terra se eu passasse pelo recife.
Mesmo assim, num dia de mar muito calmo e com pouco vento, me aventurei a
navegar. Foi o pior erro que cometi. Meu barco foi pego pela forte correnteza e quase
fui levado a mar aberto, apesar de todos os meus esforços. Foi apenas pela mão de
Deus que consegui escapar e acabar na praia, exausto. Caí na areia em sono profundo
e fui acordado pelo meu papagaio, chamando meu nome. Agradeci a segunda chance
que tive de manter minha vida e por muitos dias sentei e refleti sobre o perigo que
tinha passado, e decidi que não voltaria a me arriscar. Era meu sexto ano ali, e
convenci-me novamente, estava feliz: tinha me tornado um excelente carpinteiro,
tinha conseguido fabricar potes e utensílios, tinha tudo o que precisava para viver.
No aniversário de onze anos na ilha, já tinha conseguido montar uma pequena
fazenda de criação com um rebanho de mais de quarenta cabras, além de minha
plantação. Também aumentei muito minha casa e fortaleza, em segurança e conforto.
Minha pequena “família” também se beneficiou do aumento do número de quartos:
Poll, o papagaio, o cão, que já estava bem velho, e meus dois gatos. Minha família
sempre se sentava unida para comer.
Continuava a navegar com meu barco, mas apenas por diversão e em percursos
relativamente curtos e seguros. O terror daquele dia em que quase me vi perdido em
alto mar demorou a deixar minha lembrança, e, como eu sempre repetia em minha
mente, estava feliz e vivo, e não deveria brincar com a dádiva que recebera.
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U
SURPRESA NA PRAIA
m dia, com o sol a pino, fui até meu barco e me surpreendi com uma marca de
pé humano na areia. Fiquei paralisado, como se tivesse visto um fantasma.
Olhei em volta, não havia nada. Não ouvi nada. Procurei por outras pegadas, mas só
havia uma. Examinei o rastro: era realmente uma pegada humana, com todos os
detalhes dos dedos e calcanhar. E muito menor do que meu próprio pé. Saí correndo
para minha fortaleza atordoado e completamente aterrorizado. Não dormi naquela
noite e demorei vários dias para tomar coragem e sair novamente.
Por dois ou três dias, voltei à praia e não encontrei mais nada. Mesmo assim, me
preveni e aumentei a segurança da minha fortaleza, construindo um muro de pedras
muito grosso e reforçando portas e cercas. Essa reforma me consumiu dois anos.
Estava em busca de outro lugar para montar um posto avançado de provisões -
especialmente por causa da pólvora, pois não gostava de deixá-la em casa - quando
resolvi explorar a parte oeste da ilha, que ainda não tinha tido curiosidade de
vasculhar. Cheguei ao ponto mais alto, olhei o mar e achei que havia um navio muito
longe da praia. Não tinha levado meu binóculo, então não pude ter certeza se era
apenas uma ilusão provocada pelo sol. Desci a montanha e desisti de tentar me
certificar se era real ou não.
Assim que desci, percebi que uma pegada humana não era uma coisa tão incomum
nessa ilha, como eu tinha imaginado. A Providência Divina tinha me colocado no
lado seguro da terra, onde os selvagens não iam. Eles aportavam naquele lado depois
de batalhas nas águas, e lá comiam os derrotados, pois eram canibais!
Não será possível expressar o horror em minha mente quando me deparei com
caveiras, esqueletos e outros ossos humanos. Observei que haviam feito uma fogueira
ali, que certamente havia sido usada para assar a carne humana.
Fiquei tão aterrorizado ao ver aquilo que vomitei violentamente e, assim que me
recompus, corri o mais rápido que podia até a montanha onde tinha estado, para poder
encontrar o caminho até minha casa.
No caminho, senti que lágrimas brotavam dos meus olhos enquanto agradecia a
Deus por não ter tido aquele destino. Os selvagens não iam até a ilha por não
encontrar ali o que queriam e não sabiam nada sobre mim. Eu apenas tinha que
continuar me escondendo. Por mais

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