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2 SUMÁRIO Capa Rosto AGRADECIMENTOS APRESENTAÇÃO INTRODUÇÃO 1. FONTES E CARACTERÍSTICAS DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 1.1. Compreensão e identidade da espiritualidade cristã 1.2. Cristo como fundamento da espiritualidade cristã 1.3. A espiritualidade do mistério pascal na vida e na ação dos primeiros cristãos 1.4. Os serviços e ministérios nas primeiras comunidades cristãs como fonte de espiritualidade 1.5. A presença de Maria, a Mãe de Jesus, na espiritualidade dos primeiros cristãos 1.6. Elementos da espiritualidade cristã ao longo da história da Igreja 2. O MINISTÉRIO E A ESPIRITUALIDADE PRESBITERAL 2.1. Compreensão do sacerdócio em alguns textos do Antigo (Primeiro) e do Novo (Segundo) Testamento 2.2. O ministério presbiteral na Igreja 2.3. A espiritualidade no sacramento da Ordem e no ministério presbiteral 2.4. A pluralidade de expressões da vida espiritual no serviço presbiteral 2.5. A vida litúrgica do presbítero e suas implicações na espiritualidade: presidência e participação litúrgica 3. A ESPIRITUALIDADE DO PADRE DIOCESANO 3.1. O padre diocesano, sinal e portador do amor de Deus Trinitário 3.2. O pároco, pastor próprio da comunidade paroquial 3.3. Jesus Cristo, Bom Pastor: modelo de espiritualidade e caridade pastoral para o padre diocesano 3.4. Elementos constitutivos para a vivência da espiritualidade do padre diocesano 3.5. Padre diocesano, homem de comunhão, participação e missão, discípulo-missionário a serviço do Reino de Deus 3.6. Diocesaneidade CONSIDERAÇÕES FINAIS BIBLIOGRAFIA Coleção Ficha catalográfica Notas 3 kindle:embed:0008?mime=image/jpg AGRADECIMENTOS Aos nossos pais e formadores A todos os padres, diáconos e seminaristas diocesanos D. Angélico Sândalo Bernardino D. Antonio Carlos Altieri D. Antônio Celso Queirós D. Antonio Emídio Vilar D. Antônio Gaspar D. Benedito Beni dos Santos D. Carlos Lema Garcia D. Cláudio Hummes D. Décio Pereira (in memoriam) D. Devair Araújo de Fonseca D. Eduardo Pinheiro da Silva D. Eduardo Vieira dos Santos D. Fernando Legal D. Gil Antônio Moreira D. Henrique Aparecido de Lima D. Irineu Danelon D. João Mamede Filho D. Joaquim Justino Carreira (in memoriam) D. Joel Ivo Catapan (in memoriam) D. José Benedito Simão (in memoriam) D. José Roberto Fortes Palau D. Julio Endi Akamine D. Luciano Pedro Mendes de Almeida (in memoriam) D. Luiz Carlos Dias D. Manuel Parrado Carral D. Odilo Pedro Scherer D. Paulo Evaristo Arns (in memoriam) D. Pedro Luiz Stringhini D. Redovino Rizzardo (in memoriam) D. Sergio de Deus Borges D. Tarcísio Scaramussa D. Tomé Ferreira da Silva D. Vitório Pavanello E aos amigos colaboradores Antônio Tozelli Antonio Wardison C. da Silva Diác. Francisco de Assis Gonçalves Diác. Rafael Spagiari Giron P. Abelardo de Freitas Barros Neto P. Antonio Carlos Galhardo P. Antonio Luiz Cursino dos Santos (in memoriam) P. Cândido da Costa P. Celso Pedro da Silva P. Cézar Teixeira P. Claudio Luiz de Carvalho Pe. Dalcio Bonomini P. Dalmir de Oliveira dos Anjos P. Eduardo Rodrigues Coelho Eliton Fernando Felczak P. Emerson Henrique Citadin P. Everaldo Sanches Ribeiro P. Gaetano Tarquizio Bonomi (in memoriam) P. Geraldo Alves Pereira P. Jair Marques de Araújo P. Jorge da Silva 4 P. José Antenor Velho P. José Benedito Barbosa P. José Benedito Brebal Hespaña P. José Ricardo Pompeu Ferreira P. José Roberto Abreu de Matos P. Laerte Vieira da Cunha P. Luiz Carlos de Souza P. Luiz Cesar Bombonato P. Luiz Eduardo Pinheiro Baronto P. Márcio Felipe de Souza Alves P. Marco Eduardo Jacob da Silva P. Mário Bonatti P. Nadir Sérgio Granzotto P. Narciso Ferreira P. Paulo César Gil P. Plinio Possobom P. Raimundo Edmilson Rodrigues P. Raphael Emygdio Peretta P. Reginaldo Martins da Silva P. Reinaldo Emílio (in memoriam) P. Roberto Fernando Lacerda P. Rodolfo Inácio Pasini P. Ronaldo Zacharias P. Valdevir Cortezi 5 APRESENTAÇÃO Jesus Cristo, Sacerdote, Altar e Cordeiro, é a fonte que mobiliza o ser e o agir do ministro ordenado da Igreja. Cristo Sacerdote é aquele que conquista com o dom de si mesmo na cruz; que não tem outra oferta ou sacrifício a apresentar senão seu coração pleno de amor e de profunda confiança na vontade do Pai. Cristo Altar não procura lugares suntuosos de culto, mas faz de seu coração o lugar do livre e amoroso sacrifício em favor dos seus. Cristo Cordeiro é aquele que livremente constitui-se vítima para a vida do mundo. Seguindo essas referências, os autores propõem neste livro que a identidade do padre diocesano, conforme o Magistério da Igreja, está profundamente alicerçada no mistério de Cristo. Quem Ele é, seu ser de Filho de Deus encarnado, seus gestos e palavras, seu descimento até nós, sua vida junto ao povo da Galileia, sua atitude de serviço, o anúncio do Reino de Deus e, por fim, sua Paixão, Morte e Ressurreição reverberam diretamente nas profundezas do coração sacerdotal dos ministros ordenados e sopram como uma brisa suave que revela a beleza da misericórdia de Deus, que assumiu um rosto entre nós e chama cada um de seus novos discípulos- missionários a unir-se e configurar-se a Ele, o Bom Pastor, aquele que conhece suas ovelhas e entrega sua vida por elas. Os autores, ao apontar essa fonte de vida que pulsa do Coração de Cristo Bom Pastor, Cabeça da Igreja, único e eterno sacerdote, propõem uma espiritualidade sacerdotal ativa, centrada na dedicação ao ministério, como Jesus, que, antes de escancarar suas entranhas de amor e vida na Cruz, multiplicou e serviu os pães para o povo faminto, chamando todos ao banquete da vida; saiu pelas ruas, convidando coxos, cegos, doentes, “leprosos” da sociedade para a grande festa do Reino, em um movimento que proclama: “misericórdia é o que Eu quero”, cingiu-se de toalha e lavou os pés daqueles que outrora estavam às margens do mar da vida. Dessa forma pretendem despertar o grande tesouro que cada sacerdote diocesano carrega no interior da argila de sua existência. Esse mesmo barro, essa mesma fragilidade de terra, já não é obstáculo para o serviço, para atender ao chamado, para colocar-se em missão. Ao contrário, a própria experiência das contingências da vida molda o coração do sacerdote, à semelhança de Cristo: como o Senhor assumiu nossa pobre condição humana para compadecer-se de nós, aquele que é chamado e aceita a missão de ser o “homem de Deus” entre seus irmãos faz de sua pobreza um caminho 6 de salvação que o leva a acolher o mistério do outro ferido que dele se aproxima para, como seu próximo, viver a experiência do samaritano que se põe em atitude de solidariedade diante do irmão. Um homem conquistado por Cristo (cf. Fl 3,12) que aceita a aventura de conquistar outros para Cristo. É dessa forma que os autores entendem a proximidade, a intimidade entre Cristo e os seus presbíteros: participação em seu mistério salvífico, identificação com sua pessoa e entrega total ao seu povo para o anúncio e vivência do Reino de Deus que chegou entre nós. O termo diocesaneidade aponta para a superação de uma visão solitária do ser do sacerdócio ministerial e o insere no contexto da comunhão eclesial, entendendo-o como inseparável da Igreja formada como povo sacerdotal, nação santa, rica em carismas e ministérios para a edificação de todos. É por isso que a compreensão do sacerdócio católico abre-se a horizontes amplos que podem, na participação e comunhão de todo o presbitério, na sua união com o bispo diocesano e na edificação da Igreja local, desvelar toda a sua plenitude, dinamismo e fecundidade. Sabedores da relevância do ministério sacerdotal ordenado para a vida e edificação da Igreja, desejamos a todos uma ótima leitura, capaz de mobilizar todos em direção a um renovado amor a Cristo e sua Igreja. Dom Sergio de Deus Borges Bispo auxiliar de São Paulo Vigário Episcopal para a Região Santana 7 INTRODUÇÃO O presbítero, particularmente aquele que integra o clero diocesano, participante da ação de Cristo, é convidado a revestir-se dele e tornar-se sinal visível do amor de Deus para com seu povo, na comunidadeparoquial em que está inserido; portador do amor bondoso, caridoso e misericordioso para com todos aqueles que dele se aproximarem: O pastor é, na linguagem bíblica, figura carregada da mais extrema ternura: possui as conotações mais delicadas de carinho, solicitude e compaixão. O horizonte da “terna misericórdia do coração de nosso Deus” (Lc 1,78) e do “amor materno” de Javé revela-se de modo pleno e definitivo naquele que se autointitulou Bom Pastor e ilumina a prática de quem é chamado a apascentar, em seu Nome, as multidões que vagueiam errantes e famintas pelos vales e montanhas, periferias de cidades e sertões de nossa terra.[1] No sacramento da Ordem, Cristo confere a sua missão de Pastor aos presbíteros, tornando-os capazes de agir em seu nome. Mediante a ordenação presbiteral, por meio da imposição das mãos e de uma oração específica por parte do bispo, estabelece-se no presbítero uma graça especial, que une o sacerdote a Cristo, Sumo Sacerdote e Bom Pastor. Essa identificação sacramental com Ele insere o presbítero no mistério trinitário e, por meio do mistério de Cristo, na comunhão ministerial da Igreja, para servir o povo de Deus.[2] O padre diocesano é o servidor por excelência da comunidade paroquial para onde ele é enviado em nome da Igreja: A raiz espiritual do ministério pastoral se manifesta no nexo íntimo que existe entre “ministério” e “mistério” e “mística”. O “ministério” pastoral nasce do “mistério” da vocação e do envio divinos e, por isso, solicita “mística”. Portanto, todo ministério, por haurir do mistério, porta uma mística. Assim, o ministro é consagrado do Espírito e é por isso místico ou espiritual. Essa vocação mistérica ou espiritual do presbítero se manifesta de modo particular na unção sacramental da ordenação. Aí ele é plasmado pelo Espírito e transformado em “homem de Deus”. Torna-se “consagrado” a partir do seu interior. Pois o Espírito, tudo o que toca, transforma e vivifica.[3] O ministro ordenado é o servo de Cristo para ser, a partir dele, por Ele e 8 com Ele, servo de todas as pessoas. Assimilado a Cristo, ele constitui o modelo de serviço, a fim de que Cristo esteja presente na comunidade. Se é verdade que todo cristão, pelo Batismo, está em comunhão com Deus Uno e Trino, é também verdade que, em virtude da consagração recebida mediante o sacramento da Ordem, o presbítero é colocado numa relação particular e específica com o Pai, com o Filho e com o Espírito Santo. A vida e o ministério do presbítero são uma continuação da vida e da ação do próprio Cristo.[4] O presbítero, como alter Christus (outro Cristo) e in persona Christi Capitis (pessoa de Cristo Cabeça), é o ministro das ações salvíficas. Pelo seu poder e dom de oferecer o sacrifício eucarístico do corpo e sangue do Senhor e pelo seu poder de anunciar autorizadamente o Evangelho, de vencer o mal do pecado mediante a absolvição sacramental, ele é fonte de vida e vitalidade na Igreja e na sua paróquia. O presbítero não é fonte dessa vida espiritual, mas aquele que a distribui a todo o povo de Deus. É o servo que, na unção do Espírito, tem acesso aos sacramentos dos quais brotam a salvação. O presbítero é escolhido, consagrado e enviado para atualizar eficazmente a missão eterna de Cristo e do Espírito Santo, de quem se torna autêntico representante. Na ordenação presbiteral, recebe o selo do Espírito Santo, que faz dele um homem assinalado com o caráter sacramental, para ser eternamente ministro de Cristo e da Igreja a serviço da vida e da esperança do povo de Deus, no qual ele foi constituído o pastor que cuida, protege, santifica e edifica os irmãos na fé, particularmente na realidade da comunidade paroquial.[5] O presbítero, porém, para exercer as funções de liturgo, mestre e pastor, deve antes de tudo ser discípulo no meio de seus irmãos. A espiritualidade cristã é, eminentemente, espiritualidade do seguimento.[6] Nesse sentido de construção da espiritualidade do seguimento de Cristo, este livro tem o objetivo de colaborar com os irmãos presbíteros diocesanos e com aqueles que estão a caminho do ministério presbiteral, seja diácono transitório ou seminarista, por meio do aprofundamento sobre a espiritualidade do padre diocesano: Para responder à sua identidade mais profunda, que é teo-ontológica, o presbítero é chamado a ser antes de tudo o que é: “homem de Deus” (1Tm 6,11). Um homem que vive profundamente imerso no mistério trinitário: abandonado e inteiramente disponível à vontade do Pai; 9 empenhado no seguimento de Jesus e no prosseguimento do seu Evangelho, através da prática da caridade pastoral; conduzido pela liberdade do Espírito numa vida de comunhão e esperança. Isso não é idealismo, mas a verdade do “tesouro” de que o presbítero é portador, embora sendo “vaso de barro” (2Cor 4,7).[7] Este livro está organizado em três capítulos. O primeiro aborda as fontes e características da espiritualidade cristã. Consiste em apresentar a compreensão e a identidade da espiritualidade cristã, apontando Cristo como fundamento dessa espiritualidade, a espiritualidade do mistério pascal vivido pelos primeiros cristãos, os serviços e os ministérios na Igreja nascente, relatando a presença de Maria, a Mãe de Jesus, na espiritualidade vivida no início do cristianismo e, por fim, discorre sobre alguns elementos da espiritualidade cristã ao longo da história da Igreja. O segundo capítulo apresenta o ministério e a espiritualidade presbiteral no contexto bíblico de alguns textos do Antigo (Primeiro) e do Novo (Segundo) Testamento, a espiritualidade do sacramento da Ordem, a dimensão espiritual do ministério presbiteral, a pluralidade de expressões da vida espiritual no serviço presbiteral e a vida litúrgica do presbítero e suas implicações na espiritualidade: presidência e participação litúrgica. O terceiro capítulo reflete sobre a espiritualidade do padre diocesano. Apresenta-o como sinal e portador do amor de Deus, o pároco como pastor da comunidade paroquial; identifica Jesus Cristo, o Bom Pastor, como modelo da caridade pastoral para o padre diocesano; indica algumas fontes de alimento espiritual da vida presbiteral diocesana; perscruta sobre a espiritualidade de pertença e, por fim, defende a expressão diocesaneidade como riqueza e propriedade fundamental da espiritualidade do padre diocesano. Desejamos que este livro possa contribuir com o presbítero diocesano, diácono transitório e seminarista no aprofundamento da própria vocação e identidade presbiteral e colaborar no que se refere à sua espiritualidade tipicamente diocesana. 10 1 FONTES E CARACTERÍSTICAS DA ESPIRITUALIDADE CRISTÃ O capítulo quinto da Constituição Dogmática Lumen Gentium, sobre a vocação universal à santidade na Igreja, convoca todos os cristãos à santidade e, por isso, nos inspira e nos insere no contexto da espiritualidade. Somos chamados, a exemplo de Jesus Cristo, Mestre e Senhor, a viver a santidade traduzida nas mais diversas realidades e situações da vida. A ordem de Jesus é simples e clara: ser perfeito como o Pai é perfeito. Os presbíteros, a exemplo de Cristo, devem, em primeiro lugar, ser testemunhas da santidade e possuir uma autêntica e robusta espiritualidade: O Senhor Jesus, mestre e modelo divino de toda a perfeição, pregou a todos e a cada um dos seus discípulos, de qualquer condição que fossem, a santidade de vida [...]. Cada um, segundo os dons e as funções que lhe foram confiados, deve enveredar sem hesitação pelo caminho da fé viva, que excita a esperança e opera pela caridade [...]. Os presbíteros, à semelhança da ordem dos bispos, de quem são a coroa espiritual, participando da graça ministerial dos mesmos através de Cristo, eterno e único mediador, cresçam no amor de Deus e do próximo, pelo exercício cotidiano do seu dever, conservem o vínculo da comunhão sacerdotal, prodigalizem em todo o bem espiritual e sejam para todos um testemunho vivo de Deus, procurando imitar aqueles sacerdotes que, no decorrer dos séculos, deixaram, num ministério muitas vezes humilde e escondido,o maior exemplo de santidade [...]. [1] De acordo com o espírito do Concílio Vaticano II, no que ainda se refere ao capítulo quinto, ele sugere que os frutos da santidade e da autêntica espiritualidade colaborem para o bem-estar da sociedade humana. A Igreja, ao longo dos séculos, formou uma imensidão de homens e mulheres que, pela santidade, transformaram a vida de muitas pessoas, indistintamente.[2] Na diversidade dos dons e das pessoas que fazem parte da Igreja, são muitos os que, pela busca e vivência autênticas da intimidade com Deus, vivem a santidade. Os bispos, os padres, os diáconos, os consagrados, por meio da total entrega e serviço generoso aos fiéis, devem ser exemplos e modelos de santidade para o povo. Os pastores são responsáveis pela 11 caminhada espiritual de seu rebanho. Também os casados, as pessoas viúvas e os celibatários são chamados à santidade de vida. [3] A espiritualidade cristã tem suas características peculiares. É uma espiritualidade marcada pela busca de Deus, por meio de Jesus Cristo morto e ressuscitado, no Espírito que anima e santifica todas as realidades e circunstâncias da história pessoal e comunitária dos fiéis cristãos comprometidos com a causa de Deus e dos irmãos. É uma espiritualidade trinitária: A espiritualidade cristã, na sua essência, é sempre trinitária: refere-se ao Pai, fonte e destino de todo o bem; ao Filho, o Deus encarnado, que na sua pessoa histórica nos revela os desígnios de salvação do Pai; ao Espírito Santo, a terceira Pessoa divina, que faz com que a obra redentora de Cristo se torne uma realidade viva e atual na nossa existência.[4] Outra dimensão característica da espiritualidade cristã é a relação íntima com Deus, por meio da pessoa de Jesus Cristo e do seu Evangelho. A vivência no Pai pelo Filho determina o modelo autêntico e concreto de uma espiritualidade encarnada e comprometida com a causa daqueles que mais necessitam do apoio, serviço e afeto pastoral: A espiritualidade do “avental e da toalha” não pode ser só da quinta-feira santa, mas sim de todos os dias. Somos chamados para servir [...]. Jesus não diz nada. É em silêncio que age, tocando mais em profundidade o coração dos apóstolos. As palavras devem ser sempre comprovadas e consagradas com o nosso agir, somente assim se tornam sacramento de vida e de amor. A espiritualidade do avental vai desde o interior de nossa família, em nosso trabalho, na Igreja, em qualquer lugar, seja qual for o cargo que ocupamos, se nós não o exercemos em espírito de serviço, nos distanciaremos cada vez mais dos outros e corremos o risco de ficar sozinhos e isolados. Os outros, mais do que amor por nós, terão medo de nós.[5] Todos os cristãos, de modo especial os presbíteros, precisam de uma profunda vivência espiritual. É necessário que sejam homens qualificados e identificados com a vida espiritual; capazes de perceber a presença de Deus nas atividades humanas e nos acontecimentos da história atual, e de enxergar todas as pessoas, particularmente os mais necessitados, com os olhos ternos, compassivos e misericordiosos de Deus: 12 A espiritualidade é de suprema importância para todo discípulo de Jesus e de modo particular para o presbítero. Trata-se aí, com efeito, de questão dos fundamentos de seu ministério [...]. A espiritualidade, portanto, será a prioridade número um do presbítero (cf. PDV 45). E isso por uma razão de princípio, pois o presbítero é o oikonómos do Reino, ou seja, o “intendente de Deus” (Tt 1,7). E também por uma razão conjuntural: por causa da aguda demanda de Deus que as pessoas hoje dirigem aos ministros religiosos, ainda que de um modo confuso e ambíguo.[6] A espiritualidade cristã é uma realidade a ser conquistada e vivida dia após dia, com entusiasmo, alegria, perseverança e certeza de que Deus, autor e mantenedor da santidade, está ao nosso lado, sendo companheiro e guia nessa empreitada em busca de “um novo céu e de uma nova terra” (Ap 21,1), “onde seremos tudo em todos” (1Cor 15,28). Nesse sentido, o padre diocesano conseguirá integrar sua vida ao ministério confiado a ele, de tal maneira que conseguirá vivê-lo como servidor de Deus e do seu povo: O ponto de partida da espiritualidade cristã e presbiteral é o encontro com o Senhor e o seu Espírito, que nos dão olhos e paixão para discernir os “sinais dos tempos” como linguagem de Deus.[7] 13 1.1. Compreensão e identidade da espiritualidade cristã Apesar de a espiritualidade cristã ser um tema atraente e envolvente, que desperta muito interesse em todos, pode-se afirmar que é também um conceito que exige profunda reflexão e muita pesquisa para dar pistas convincentes e acertadas a respeito de sua definição. Não devemos nos contentar com definições superficiais e banais. Vários autores, nessa área, demonstram que realmente não é fácil descrever e dissertar sobre essa matéria. É o que escreve frei Betto, um dos grandes expoentes da espiritualidade cristã: O que é espiritualidade? Eis uma pergunta que me fiz a vida toda e ainda paira inquietação em meu coração. É como o nome de Deus, tão vulgarmente pronunciado por nós e, no entanto, impenetrável. Como é mesmo que ele se chama? Javé, Eloim, Adonai, Alá, Senhor? Ao conhecer uma pessoa, nossa primeira curiosidade é perguntar seu nome. Segunda, quem é, o que faz.[8] A espiritualidade cristã consiste, entre outras dimensões, na vivência da fé, por meio de atitudes concretas e reais da caridade cristã, traduzidas em gestos de solidariedade, ternura, acolhida, respeito, inclusão, compaixão e misericórdia do cristão no seu dia a dia. É, antes de tudo, a compreensão e a aplicação do Evangelho em todas as situações e circunstâncias da vida. Para os presbíteros diocesanos, significa a autêntica sintonia com a Palavra de Deus transformada nas atitudes concretas, acima mencionadas, para com a comunidade a eles confiada e para todos aqueles que deles se aproximarem. A espiritualidade está presente no jeito de ser, de agir, de falar, de rezar, de atender: “A espiritualidade é o conjunto de práticas e atitudes que manifestam a experiência de Deus (do Espírito Santo) numa pessoa, numa cultura, ou numa comunidade”. É toda a existência humana que se põe em marcha, existência pessoal e comunitária. Trata-se de um estilo de vida que dá unidade profunda ao nosso orar, nosso pensar e nosso agir.[9] Etimologicamente, de acordo com alguns especialistas, espiritualidade advém do termo grego pneumatiké e do latim spiritualitas, que sugerem vida no Espírito, de acordo com Ele, sustentado por Ele, tendo como primazia a busca da perfeição segundo o próprio Deus. Para o judaísmo, a expressão ruah significa vento, respiração e espírito, indicando força interior movida 14 pela ação de Deus.[10] Considerando esses pressupostos, podemos afirmar que espiritualidade cristã é uma realidade interior que impulsiona a fazer o bem e a transformar o que necessita ser transformado. É a força que Deus dá ao homem para agir, segundo o seu Espírito, para a vivência, a autonomia e o despojamento de si em vista do bem comum e da dignidade humana. Fundamentalmente: Espiritualidade designa, de modo geral, o conjunto das perspectivas e das atividades humanas voltadas para tudo o que o ser humano busca como verdade, bem, beleza, justiça: realidades ou valores que estão no horizonte da vida humana, sustentam-na e se manifestam no dia a dia. Na Tradição judaico-cristã, essas realidades ou valores vêm de Deus e nos orientam para Deus, que é Espírito. Essas formas de agir são denominadas espirituais, em contraste com os modos materiais de agir, comandados exclusiva ou principalmente pela busca do poder, da riqueza ou do prazer, mais ou menos à revelia da consideração de Deus, cujo desejo está inscrito no coração de todo ser humano, e que nos une a todos como irmãos em comunhão, como filhos de um mesmo Pai. [11] Nesse horizonte, a espiritualidade cristã é um estilo de vida marcado pela busca de Deus, por meio de Jesus Cristo, no Espírito, e que cotidianamente – com perseverança, fidelidade,alegria, esperança e dedicação – vai-se desenvolvendo em toda a vida presbiteral diocesana. À luz da fé cristã (há fé religiosa quíchua, fé religiosa islâmica, fé religiosa hindu), nós descobrimos a presença de Deus no cosmo, na vida humana e na história como amor gratuito e salvação precisamente porque Jesus, Filho de Deus e Filho de Maria de Nazaré, com sua palavra, atividade, morte e ressurreição, nos faz entrar vitalmente nessa descoberta. A partir desse encontro de fé, nossa espiritualidade só pode ser “religiosa” (como voltada para o Deus vivo, revelado por Jesus) e “cristã” mesmo (como seguimento do próprio Jesus). O Deus de Jesus é o nosso Deus. Ele é a profundidade máxima de nossa vida. A causa de Jesus é a nossa causa. Nosso viver é o Cristo (Fl 1,21). Ele é a nossa paixão e seu Espírito é nossa espiritualidade.[12] REFLEXÃO 1. O que é a espiritualidade cristã? 2. Como a espiritualidade pode responder aos anseios imanentes às 15 fragilidades no contexto do ministério presbiteral diocesano? 16 1.2. Cristo como fundamento da espiritualidade cristã Jesus Cristo é o fundamento de toda espiritualidade cristã. Ele é o centro, o cume e o ápice da espiritualidade vivida pelo presbítero diocesano. Ele é a cabeça de todo o corpo eclesial. É impossível falar de espiritualidade cristã sem se referir à pessoa e obra de Jesus, Mestre e Senhor. É nele, com Ele e por Ele que toda espiritualidade sobrevive. A vida, alicerçada e sedimentada no Cristo Senhor da História, faz com que o presbítero diocesano viva e transmita o compromisso assumido no dia do seu batismo e da ordenação presbiteral de ser anunciador da Boa-Nova, benfeitor da humanidade, profeta comprometido, discípulo-missionário autenticamente capacitado para a missão a ele confiada: Essa centralidade de Jesus se projeta em todas as formas da espiritualidade cristã, desde as origens, como o atesta o Novo Testamento e toda a Tradição cristã através dos tempos. Na Antiguidade, Jesus foi sempre considerado como o Ungido de Deus, Cristo, que na cruz, ato supremo de amor, atrai todas as coisas a si e, triunfante da morte, é Senhor todo- poderoso, o Pantocrator, cuja misericórdia preside e regula a vida do universo inteiro, muito além da comunidade cristã e de cada um de nós. [13] Sendo o Cristo fundamento e centro de toda espiritualidade cristã, o presbítero diocesano busca-o como ponto da partida e de chegada em todas as circunstâncias e realidades da sua existência e do seu ministério, pois sabe que tão somente Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14,6). Nele, por Ele e com Ele, o presbítero diocesano busca assemelhar e configurar a sua vida ao Cristo, sumo e eterno sacerdote: A espiritualidade cristã é, por definição, a espiritualidade de Jesus, segundo o seu Espírito. Sua opção deverá ser nossa opção; suas atitudes, nossas atitudes; suas práxis, nossas práxis. Para nós, como para Paulo, viver é o Cristo, e morrer com ele e por ele é o verdadeiro lucro (cf. Fl 1,21).[14] Jesus viveu coerentemente em sintonia e em obediência para com o Pai e ao mesmo tempo dedicado e solícito ao próximo: Ele foi extremamente de Deus e do seu povo. A radicalidade e a autenticidade no seguimento a Jesus Cristo moldam o presbítero diocesano a ponto de torná-lo parecido com Ele, fazendo com que sua vida e seu ministério presbiteral sejam configurados ao 17 mais profundo e existencial exercício do serviço dedicado a Deus, à Igreja e à comunidade paroquial. O seguimento de Jesus, na perspectiva do Reino de Deus, vive-se no intenso e, às vezes, difícil caminhar do dia a dia com as mais complexas e diversas situações que o presbítero diocesano enfrenta em sua jornada diária, pois ele tem a consciência de que todo sofrimento humano, toda luta em busca de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária se transformarão em conquistas e vitórias para o crescimento pessoal, presbiteral e comunitário: O seguimento de Jesus e a pertença à sua comunidade implicam uma extrema atenção e uma disponibilidade incondicional para servir às necessidades básicas, materiais e corpóreas dos seres humanos: dar pão aos que têm fome, água aos que têm sede, vestir os nus, evangelizar os pobres e libertar os cativos. Trata-se de um projeto para transformar a realidade no sentido do senhorio de Deus, a construção de uma nova humanidade.[15] O projeto de vida de Jesus, confiado pelo Pai, cumprido exemplarmente, não se limita a uma realidade espiritual individualista e egoísta. Ao contrário, a sua proposta é transformadora, isto é, leva em consideração o pessoal na perspectiva do encontro com o outro, na realização e transformação da humanidade. Trata-se de um projeto de vida que se inicia pessoalmente, mas que leva imediatamente ao compromisso comunitário. Por isso, o modo de ser e de agir de Jesus tornou-se uma grande novidade para a humanidade: sua postura se traduz num novo modo de ser e de viver no mundo. O padre diocesano procura, em sua identidade presbiteral, ser sinal visível e concreto desse jeito encantador e transformador de Jesus Cristo, Mestre e Senhor: Ele comia e bebia com os pecadores (Mt 11,19), entretinha-se com as crianças de seu povo (Mc 10,13-16). Deteve-se em conversar com a samaritana (Jo 4), com Nicodemos (Jo 3). Permitiu que seus pés fossem lavados por uma prostituta (Lc 7,36-50) e se deteve em tocar os enfermos com sua saliva (Mc 7,33). Quando falava com alguém, não demonstrava aborrecimento, mas fixava nele o olhar, com profunda atenção amorosa: “Fitando-o, Jesus o amou” (Mc 10,21). Era atento aos menores gestos de bondade de seu povo e maravilhava-se perante os pobres: “Viu também uma viúva indigente, que lançava duas moedinhas” (Lc 21,2). Assim ensinou a sublime arte espiritual e pastoral de “deter-se”, embora isso nem sempre lhe fosse agradável, já que a cidade amada lhe arrancou 18 lágrimas (Lc 19,41). Essa compenetração em sua terra e em seu povo certamente caracterizava seu modo de amar e era, portanto, parte de sua “espiritualidade”.[16] No plano salvífico de Deus, a missão primordial de Jesus era anunciar o Reino de Deus (Mc 1,14-15). O Reino que Jesus pregava e propunha aos seus tinha como ponto de partida o direito, a justiça, a verdade, o comprometimento com os necessitados (Lc 6,20; Mc 10,14; Mt 5,19) e a transformação de cada pessoa e da sociedade. Naturalmente não se restringia às questões sociais, psicológicas e existenciais. Considerava tudo isso, porém contemplava algo além dessas questões, isto é, a dimensão espiritual, o desejo e a realidade das coisas do alto, da vida eterna, que, por sua vez, começa aqui e agora. Pode-se afirmar que o presbítero diocesano, discípulo-missionário do Mestre e Senhor, tem a missão de continuar o projeto de Jesus, no que se refere à vivência do Reino de Deus no espaço da comunidade paroquial e da sociedade em que está inserido: O Reino de Deus não é um conceito espacial nem estático, e sim um conceito dinâmico. Designa a soberania real de Deus, exercendo-se de fato em atos e em verdade [...]. O projeto do Reino é de Deus, portanto não se esgota nos limites do tempo e do espaço. Tem um conteúdo transcendente, como transcendente é o Deus de Israel, o Abbá de Jesus. Porém, essa transcendência, que faz o Reino não se esgotar nos limites da história, se revela no seio da história [...]. O Reino de Deus é dom e graça e deve ser acolhido e recebido na pessoa de Jesus. Mas também é missão e tarefa. Jesus empenhou todas as suas forças nesse projeto e ensinou aqueles que o seguiam a fazer o mesmo. [17] Jesus, no exercício do seu ministério profético e sacerdotal, quis escolher um grupo de doze homens na qualidade de apóstolos e a eles deu o ministério da evangelização, da caridade e da condução da missão iniciada por Ele. Tamanhos foram o encanto e a sedução pelo Mestre que se tornaram capazes de deixar para trás todas as outras coisas e empenhos, para se dedicar única e exclusivamente à causa do Reino de Deus. O padre diocesano também opta por deixar a casa dos pais, o trabalho e o sucessoprofissional para dedicar-se exclusivamente a Deus, à sua Igreja e ao seu povo querido: A Igreja se constituiu sobre a base dos apóstolos, como comunidade de fé, de esperança e de caridade. Por meio dos apóstolos, chegamos ao próprio 19 Jesus. A Igreja começou a se constituir quando alguns pescadores da Galileia conheceram Jesus, deixaram-se conquistar pelo seu olhar, pela sua voz, por seu chamado cálido e forte: “Sigam-me, eu farei vocês se tornarem pescadores de homens!” (Mc 1,17).[18] O Filho de Deus, consciente de sua missão, o que incluía o sofrimento, a paixão e a morte, enfrentou-a com maturidade e serenidade, como Servo Sofredor. Sua vocação é ser o Servo de Deus. O Servo homem das dores e familiarizado com o sofrimento foi condenado injustamente. Foi obediente até a morte de cruz. Tendo consciência de que ela fazia parte de sua árdua diaconia, entregou-se à infinita bondade e misericórdia do Pai; sabia que, entregando tudo nas mãos do Pai, sairia vitorioso. E assim o fez.[19] O padre diocesano, também consciente de sua missão como pastor de uma comunidade paroquial, sabe que, em certas circunstâncias, terá de superar as dificuldades, os problemas e as fragilidades com esperança, otimismo e perseverança. O Servo Sofredor, o Cordeiro de Deus, torna-se, pelo poder infinito de Deus, o Ressuscitado, o Cristo, o Senhor vitorioso da morte e da vida. O Cristo vivido na espiritualidade cristã é também, sobretudo, o Cristo ressuscitado. Por isso, o padre diocesano em sua mística deverá ser, viver e testemunhar a alegria, a esperança e o otimismo que nascem de uma vida profundamente mergulhada no Senhor vitorioso e misericordioso. REFLEXÃO 1. Como o encantamento por Cristo e o deixar-se seduzir por Ele podem acontecer e ajudar a mobilizar e integrar toda a vida e pessoa do padre diocesano, desde a sua interioridade, para o exercício existencial do ministério? 2. Qual a importância do apaixonamento por Cristo para que o ministério possa ser fonte de realização e não mero serviço externo? 20 1.3. A espiritualidade do mistério pascal na vida e na ação dos primeiros cristãos O Concílio Vaticano II, em sua Constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a Sagrada Liturgia, se serviu das Sagradas Escrituras para reafirmar que a Igreja nasceu do “lado aberto de Cristo na cruz” e teve, no dia de Pentecostes, a sua manifestação missionária.[20] Para os discípulos de Jesus, a experiência da ressurreição foi como um acordar para a vida e para uma nova proposta de transformação do mundo e da sociedade. Depois da morte de Jesus, os discípulos ficaram desanimados, desarticulados e sem destino (Lc 24,13). Cegos, não perceberam a presença de Jesus no meio deles (Lc 24,20). Quando abriram os olhos e acordaram para ouvir a Palavra do Mestre e Senhor, puderam fazer a experiência da vida nova em Deus:[21] A credibilidade da ressurreição de Jesus baseia-se no testemunho dos apóstolos e da Igreja nascente. Tudo leva a crer que os apóstolos não tinham disposições psicológicas para “inventar” a notícia da ressurreição de Jesus ou para “sonhar alucinadamente” com tal evento. Ainda impregnados das concepções de um messianismo nacionalista e político, capitularam quando viram o Mestre preso e aparentemente fracassado. Fugiram para não ser presos eles mesmos (cf. Mt 26,31s). Pedro chegou a renegar o Senhor (cf. 26,33-35). O caso de Tomé é o mais significativo: resistiu ao testemunho dos demais apóstolos e pediu provas palpáveis da ressurreição (cf. Jo 20,24.29). Somente após a revelação do Ressuscitado, rendeu-se à verdade.[22] A partir do momento em que reconheceram que o Mestre estava vivo e ressuscitado, tudo se transformou. Eles vencem o medo, recuperam a fé, reencontram força e coragem para continuar o projeto que por pouco não tinham deixado de lado (At 4,19; 5,29). No pensamento deles, não só o Cristo havia ressuscitado, mas eles também. Começam a ver as pessoas e o mundo com os “olhos” do Ressuscitado. Percebem o que podem e devem fazer para levar avante a transformação do mundo na perspectiva da caridade, da justiça e da misericórdia. À luz da ressurreição, conseguem compreender a Antiga Escritura e perceber que o próprio Jesus estava no centro dela. Moisés e os profetas já falavam dele (cf. Jo 1,45; 5,46). A partir da experiência do mistério pascal, começam a compreender a vida de Jesus como realização das antigas promessas (Jo 19,28). Creem 21 incondicionalmente na Escritura e na Palavra de Jesus (Jo 2,22).[23] A espiritualidade nascida do mistério pascal faz com que a primeira comunidade compreenda o sentido mais profundo das palavras e dos gestos de Jesus. Agora tudo tem novo sentido, tudo está esclarecido. A comunidade onde a Palavra se fez eco torna-se, para os cristãos e para os presbíteros diocesanos, fonte de anúncio e vivência da mais profunda experiência do encontro pessoal e comunitário com o Mestre e Senhor: A Nova Aliança tem seu princípio e seu complemento no mistério pascal, na cruz e na ressurreição gloriosa de Jesus Cristo, que assim cumpre a vontade do Pai, em seu desígnio de salvação do homem. E o mistério pascal que é redenção e vida está no centro de toda a vida cristã: “a vida de Jesus se manifesta também em nossa carne mortal” (2Cor 4,11).[24] A vinda do Espírito Santo no dia de Pentecostes faz com que os membros da primeira comunidade se transformem e adquiram força, coragem, esperança, alegria e otimismo, para continuar a missão de Jesus. Os cristãos não estão mais órfãos e abandonados. A partir de agora, é o próprio Espírito de Deus que vai encorajar, animar e motivar os seus discípulos-missionários a continuarem a obra de Jesus Cristo: O Espírito não é o Pai. É dado por ele. O Espírito não é o Filho, mas é dado e recebido pelo Filho ressuscitado. É alguém jamais separado do Pai e do Filho, distinto e autônomo em sua ação (cf. Mt 28,19; 2Cor 13,13). É aquele que, após a ressurreição de Jesus, não deixa a humanidade órfã, mas habita em cada ser humano, dando-lhes a possibilidade de crerem, amarem e seguirem Jesus Cristo.[25] A efusão do Espírito Santo marca profundamente o início da ação missionária dos discípulos de Jesus e faz deles verdadeiros evangelizadores. A partir da vinda do Espírito sobre eles, novos missionários também partiram em missão e fundaram comunidades a serviço da vida e da esperança do povo de Deus. Os primeiros cristãos, à luz da ressurreição e da presença do Espírito Santo, transformaram suas vidas e as vidas de tantas outras pessoas. Conseguiram seguir Jesus radicalmente na comunidade e viver autenticamente o processo de discípulo-missionário batizando (Mt 28,19), ensinando (Mt 28,10), perdoando (Jo 20,23), celebrando a memória do Ressuscitado (1Cor 11,14), servindo (Jo 13,14) e testemunhando (At 1,8). [26] 22 O presbítero diocesano, à luz da experiência da primeira comunidade cristã, tendo prometido publicamente no dia da ordenação assumir todos os compromissos com Deus, com a Igreja e com o povo, é convidado a viver radicalmente a espiritualidade do mistério pascal, conformando a vida presbiteral com a vida da comunidade paroquial, e é o pastor segundo o único e exclusivo Pastor, Jesus Cristo, Mestre e Senhor. REFLEXÃO 1. Como o presbítero diocesano pode fazer, por meio de sua espiritualidade, experiência da ressurreição de Jesus? 2. Como a ressurreição do Senhor pode renovar e dar vitalidade à pessoa do presbítero e, com isso, restaurar sua história, sua vida, da mesma forma como renovou a vida dos apóstolos e dos primeiros discípulos? 3. Como a experiência de Pentecostes, que deu ânimo, coragem e dinamismo aos antes medrosos, pode ajudar o presbítero diocesano a enfrentar, entre outros, o complexo de Jonas, isto é, a fuga dos grandes desafios da missão e os medos interiores? 23 1.4. Os serviços e ministérios nas primeiras comunidades cristãs como fonte de espiritualidade Os primeiros cristãos deixaram um legado espiritual muito importante e atual para os dias de hoje. Havia naquela comunidade iniciante o exercício de váriosserviços e ministérios (At 6,1-6). Em Antioquia, cidade que pertencia à Síria, vislumbraram-se alguns deles: o apóstolo, correspondente ao missionário hoje, o doutor, o catequista e o profeta, ministro da Palavra (At 13,1).[27] O serviço missionário era uma característica da primeira comunidade: os cristãos eram animados, organizados e motivados pelos missionários, que se dedicavam exclusivamente ao serviço da Palavra. Os missionários viviam de maneira sóbria, eram despojados, confiavam na generosidade do povo (Mt 10,5-10; Lc 10,2-9).[28] Nesse horizonte, com base na vivência da espiritualidade dos primeiros cristãos, o padre diocesano é convidado a retomar a centralidade do serviço do anúncio da Palavra, sendo autêntico discípulo-missionário a serviço exclusivamente da missão a ele confiada. Outros ministérios surgem durante o processo de formação das comunidades primitivas: bispos (At 20,28; 1Tm 3,2), padres (At 11,30; Tg 5,14), diáconos (2Cor 6,4; Ef 6,21), colaboradores (Rm 16,3.21; Fl 2,15) e ainda líderes (Rm 12,8; 1Ts 5,12).[29] Todos esses ministérios e serviços tinham por objetivo apresentar a pessoa de Jesus e, com Ele, por Ele e nele, serem transformados e perpetuar a missão do Cristo, Mestre e Senhor: Paulatinamente os ministros itinerantes desapareceram e os apóstolos se sedentarizaram. Um presidente, que conservou o nome de bispo, distinguiu-se do colégio dos presbíteros e dos bispos, originando o episcopado monárquico, cuja forma se consolidou em meados do século II, e a distinção dos graus do ministério hierárquico: bispo, padre e diácono. Inácio de Antioquia foi a primeira testemunha de tal mudança. [30] A coerência entre fé e vida, manifestada por meio dos serviços prestados, revela-se como uma fonte espiritual deixada pelas primeiras comunidades cristãs. Os primeiros cristãos entenderam, desde o início, que a vida construída a partir do Ressuscitado e ao redor dos apóstolos implicaria o serviço dedicado aos irmãos, na vivência do projeto do Reino de Deus, baseados na justiça, na verdade e na defesa e promoção dos direitos fundamentais de todas as pessoas. 24 A espiritualidade vivida a partir da Palavra de Deus, da Eucaristia, da oração e da comunhão fraterna fez com que os primeiros cristãos mantivessem uma postura radical diante das falsas promessas, da idolatria, da superficialidade, da injustiça, da corrupção, das falcatruas e de tantos outros males que atraem em qualquer tempo os seres humanos, inclusive os cristãos (At 2,42-47), e, dessa forma, pudessem viver os ministérios e serviços assumidos em favor do bem comum e da santificação de todos.[31] A Palavra de Deus foi para os primeiros cristãos o alimento que sustentava a vida espiritual. Os primeiros cristãos leram a Palavra de Deus na perspectiva do Cristo ressuscitado e, por isso, em vez de seguir a doutrina dos doutores, seguiram a doutrina dos doze escolhidos por Jesus (At 4,13). É a Palavra de Jesus e os seus ensinamentos que vão orientar o modo de a comunidade se comportar diante dos irmãos e da sociedade em que está inserida.[32] A vivência da Palavra por parte dos discípulos provoca na primeira comunidade a necessidade de traduzir, por meio da convivência, um relacionamento verdadeiramente fraterno e solidário. Justamente essa relação baseia-se na fé em torno do projeto de Jesus, em que todos são estimulados a partilhar os bens materiais e espirituais em favor dos demais (At 4,32-37).[33] O padre diocesano, fiel discípulo-missionário a serviço de sua comunidade paroquial, é também testemunha da Palavra vivenciada na autêntica partilha e no comprometimento com a causa dos outros. A espiritualidade da comunhão vivida pelos primeiros cristãos é marcadamente vivida no amor do Pai, do Filho e do Espírito Santo (1Jo 1,3; 1Cor 1,9; 2Cor 13,13). Essa comunhão é sagrada. Não pode e não deve ser vivida de forma irresponsável e inadequada. Quem assim o fizer “morrerá” para a comunidade, ou seja, se sentirá excluído (At 5,1-14).[34] A espiritualidade vivida trinitariamente eliminará qualquer possibilidade de uma vivência mesquinha ou individualista por parte dos ministros consagrados. O presbítero diocesano é chamado a doar-se inteiramente à sua comunidade paroquial. Os ministérios e serviços vividos pelos primeiros cristãos testemunham a autêntica espiritualidade, fruto de uma experiência de Deus, vivida a partir do encontro pessoal com o Ressuscitado, da assídua leitura, escuta e meditação da Palavra, da fraterna comunhão entre os membros da comunidade, da oração e da ação que a vida orante proporcionava a cada um deles. Deus, que se fez homem e se fez companheiro e amigo dos homens, presente em todas as circunstâncias e situações, permitiu que se reunissem 25 em comunidade e depois se organizassem numa Igreja e pudessem fazer memória dele em todo tempo e lugar. O bispo, simbolizando a unidade, era mestre e pastor: presidia a eucaristia, batizava, reconciliava os penitentes, pregava, garantia a pureza da doutrina e velava pela disciplina. O diácono era o auxiliar do bispo: assistia os pobres, administrava os bens e ajudava nas funções litúrgicas: segundo a Didascália, obra do século III, o diácono é ouvido e boca, coração e alma do bispo. Os presbíteros apenas assistiam os bispos, mas nas grandes cidades, como Roma e Alexandria, começaram a assumir o encargo de algumas comunidades; com a criação de paróquias, adquiriram maior importância. A partir do século IV, os primeiros dentre os presbíteros e diáconos passaram a receber o nome de arcipreste e arcediago, respectivamente. O arcipreste era o substituto do bispo nas funções sacerdotais; o arcediago assistia o bispo na administração e nos atos jurídicos (em Roma, era chamado para suceder ao bispo).[35] O padre diocesano, fiel à vivência da espiritualidade dos primeiros cristãos, é chamado a construir comunidades capazes de transformar o mundo, a sociedade e a Igreja, assumindo a prática do serviço ao próximo, testemunhando e anunciando a Palavra, com renovado ardor missionário, o Evangelho da vida, da esperança e da salvação, a ponto de ser verdadeiramente sinal e portador do amor de Deus ao próximo. REFLEXÃO 1. Como o presbítero diocesano à luz das primeiras comunidades pode enriquecer a espiritualidade do seu ministério, tornando-se autêntico discípulo-missionário, e não mero funcionário da Igreja? 2. Na construção da espiritualidade, tendo como base a experiência dos primeiros cristãos, como preparar o presbítero para a administração dos seus bens pessoais e dos bens e patrimônio da Igreja, especialmente da paróquia? 26 1.5. A presença de Maria, a Mãe de Jesus, na espiritualidade dos primeiros cristãos Maria de Nazaré gera em seu ventre o Filho de Deus, o Salvador e libertador de seu povo, anunciado desde o Antigo Testamento, como descendente de Jessé, pai de Davi (cf. Is 11,1-16). Maria, a Mãe de Jesus, é a filha predileta de Sião. Ela, como modelo de fé autêntica, a exemplo de Abraão, acredita na promessa de Deus e aceita a missão a ela confiada:[36] Ao longo do Antigo Testamento, espalham-se as raízes da espiritualidade mariana. Há muitas mulheres que prefiguram Maria: Miriam, Débora, Ana, Rute, Judite, Ester [...]. Maria é a filha de Sião, no sentido que encarna o povo de Deus, confiante nas promessas de Javé. Ela vive a grandeza comunitária desta expressão rezada nos Salmos e em outros livros. [37] A Mãe de Jesus, dos apóstolos e da nova comunidade do povo cristão é a síntese de todo cristão, de toda mulher comprometida com a causa do próximo, sobretudo dos mais necessitados: “Maria representa os pobres, preferidos de Deus, o resto que vai constituir o novo Israel, a Sião fiel, a portadora do novo povo de Deus”.[38] Maria foi a privilegiada de Deus, porém seus privilégios não fizeram com que sua vida fosse facilitada com regalias e prestígios. Ao contrário, viveu como todas as mulheres de sua época:[39] ela é a representante mais ilustre do novo povo de Deus. Maria é verdadeiramente Mãe da Igreja. Marca o povo de Deus. PauloVI faz sua uma fórmula concisa da tradição: “Não se pode falar da Igreja sem que esteja presente Maria” (MC 28). Trata-se de uma presença feminina, que cria o ambiente de família, o desejo de acolhimento, o amor e o respeito à vida. É presença sacramental dos traços maternais de Deus. É uma realidade tão profundamente humana e santa que desperta nos crentes as preces de ternura, da dor e da esperança.[40] Maria, modelo e paradigma da humanidade, foi para a primeira comunidade, e continua a ser para o presbítero diocesano, sinal de unidade, compromisso, fidelidade e desapego. É a grande missionária, continuadora da missão do seu Filho e formadora de novos missionários:[41] O Novo Testamento nos mostra claramente Maria, a mãe de Jesus e a 27 mãe da Igreja, como modelo e protótipo do discipulado [...]. Com seu Fiat, ela, no lugar de toda humanidade, deu espaço a Deus e a seu plano de salvação. Ela acolheu o Verbo eterno em seu coração e em sua carne, para oferecê-lo à humanidade (Lc 1,26-38).[42] Maria, Mãe de Deus, da Igreja e de todos, advogada, inspiradora e incentivadora da missão profética de todas as comunidades, é referência de uma espiritualidade autêntica e comprometida, a ser assumida pelo presbítero diocesano. Por isso, ele é chamado a viver o ministério presbiteral com generosidade, humildade, autenticidade e solícita disponibilidade: Com os olhos postos em seus filhos e em suas necessidades, como em Caná da Galileia, Maria ajuda a manter vivas as atitudes de atenção, de serviço, de entrega e de gratuidade que devem distinguir os discípulos de seu Filho [...]. Cria comunhão e educa para um estilo de vida compartilhada e solidária, em fraternidade, na atenção e acolhida do outro, especialmente se é pobre ou necessitado.[43] A presença feminina e encantadora de Maria, a Mãe de Deus e da primeira comunidade cristã, continua a inspirar os cristãos, particularmente o padre diocesano, no exercício da cidadania e da tarefa de ser sinal visível da Santíssima Trindade para todas as pessoas, sobretudo para os mais necessitados: Esta mulher de carne e osso foi o lugar da vida de Deus na carne do mundo, sem perder nada de sua feminilidade [...]. Maria é a mulher ícone do Mistério: plano divino de salvação, oculto durante algum tempo, mas agora revelado em Jesus Cristo, glória escondida sob os sinais da história [...]. Envolta pelo desígnio do Pai, Maria será coberta pela sombra do Espírito que a fará a Mãe do Filho eterno feito homem. Entre Maria e a Trindade, fica assim estabelecida uma relação de profundidade única. Ela é “o santuário e o repouso da Santíssima Trindade”, a imagem e ícone do Deus Trino.[44] O Concílio Vaticano II afirma que a Virgem Maria, Mãe de Deus e da Igreja, está no centro do projeto salvífico do Pai para a humanidade, de tal modo que podemos compreender cristológica e eclesialmente o seu lugar na História da salvação. Como Mãe do Verbo Encarnado, unida a Ele pelo mistério salvífico, ela se revela como sinal visível de amor, bondade e esperança para toda a humanidade, necessitada de carinho, ternura e 28 aconchego:[45] Modelo e Mãe, Maria ajuda em cada discípulo a realização do projeto do Eterno, manifestado nela, não na solidão de um espírito fechado em si mesmo, mas na comunhão das relações fecundas que ela viveu e vive com cada uma das divinas Pessoas, na Trindade e na Igreja. Sua beleza chama e ajuda a nossa. Em ambas ocorre uma participação na infinita beleza de Deus.[46] Do Fiat ao Magnificat, a Virgem de Nazaré foi modelo de cristã que deixou o conforto e o bem-estar pessoal e foi ao encontro dos outros para servir. Ela compreendeu, desde o início, que era necessário sair de si mesma, percorrer um itinerário existencial e profético, no que diz respeito ao serviço e à doação para a vivência do mistério salvífico do Pai. Com o seu peregrinar pelas estradas da vida e da fé, Maria executa o projeto de Deus e realiza o que o outro necessita: sendo solidária e pronta ao sofrimento alheio, uma verdadeira mística da Igreja em saída: Enquanto Maria percorre apressadamente as vias tortuosas da montanha, dentro dela desencadeia-se um itinerário interior de fé que vai da adesão dócil do Fiat à explosão alegre do Magnificat, do ser visitada por Deus ao ser visita de Deus para os outros [...]. Com o seu caminhar pelas vias incômodas para ir ter com o outro a sua casa, Maria inaugura o estilo de Deus, o estilo de “sair”, o estilo de serviço, de rebaixamento, de solidariedade para com quem tem necessidade. Nela o Deus encarnado faz-se o Deus que entra na trama humana e se torna presente também na esfera do cotidiano. A salvação adquire tonalidade doméstica.[47] Em toda a sua trajetória, a filha predileta de Sião dedicou-se inteiramente aos seus, deixando transparecer que a doação e o serviço eram realizados de maneira alegre, feliz, esperançosa e prazerosa. A sintonia entre o jeito de ser de Maria e o jeito de ser do padre diocesano tem de estar em perfeita harmonia, pois ela, sendo filha fiel e serva, é a mãe e mestra de todo aquele que resolveu assumir o compromisso como ministro ordenado para ser pai, irmão e servo de toda comunidade paroquial. REFLEXÃO 1. O jeito de ser de Maria e o jeito de ser do padre diocesano devem estar em plena sintonia. De que maneira o agir do padre diocesano tem testemunhado na comunidade paroquial o zelo, a disponibilidade, o 29 companheirismo, o compromisso, a fidelidade e a real preocupação com a pessoa do outro? 2. Do Fiat ao Magnificat, Maria foi modelo de cristã autenticamente comprometida com as necessidades dos outros. Como o padre diocesano, a exemplo de Maria, poderá testemunhar o seu compromisso com a comunidade paroquial? 30 1.6. Elementos da espiritualidade cristã ao longo da história da Igreja[48] A revelação de Deus se deu ao longo da história, porém completou-se com a pessoa de Jesus de Nazaré, morto, ressuscitado e glorificado. A preocupação com uma vivência alicerçada em uma vida espiritual sempre esteve presente na caminhada do Povo de Deus. A espiritualidade cristã foi se modificando e tomando diferentes conotações ao longo da caminhada da história da Igreja. A Igreja nascente inicia-se, segundo os santos padres, particularmente Agostinho, do coração aberto de Cristo na cruz (cf. Jo 19,34, Sacrosanctum Concilium, n. 5) e inaugura-se pública e oficialmente no dia de Pentecostes (At 2,1-13). O novo povo de Deus, em continuidade com a primeira aliança, vai determinando a sua espiritualidade a partir da experiência que tiveram com o Ressuscitado (At 2,22-23.32): Por esse mistério, Cristo, “morrendo, destruiu a nossa morte e, ressuscitando, recuperou a nossa vida”. Pois, do lado de Cristo dormindo na cruz, nasceu o admirável sacramento de toda a Igreja.[49] Desde o início do cristianismo, há uma clara opção por uma espiritualidade comunitária, sem perder de vista a pessoa de cada membro da nova comunidade. A Palavra de Deus, a oração, a ativa participação na Eucaristia, a vivência fraterna, a prática da caridade, o senso de justiça e verdade, a vida litúrgica, o serviço, a missionariedade foram elementos que determinaram a espiritualidade dos irmãos e irmãs das primeiras comunidades cristãs. A espiritualidade dos primeiros cristãos era tipicamente cristocêntrica. As palavras, os gestos, os sentimentos de Cristo estavam ainda impregnados na mente, no coração e na vida de todos eles. Era uma espiritualidade vivenciada, particularmente, na liturgia. Deve-se considerar que, nos três primeiros séculos, após a ressurreição, os cristãos estão construindo e desenvolvendo a estrutura e a doutrina da vida cristã propriamente dita. Eles têm a consciência de que o mundo deve ser conquistado e transformado por meio do testemunho de cada um deles e, para que isso aconteça, eles têm de viver radicalmente os ensinamentos do Mestre e Senhor: As comunidades cristãs herdaram da sinagoga uma espiritualidade baseada na escuta da Palavra de Deus. Se “a fé vem pelo ouvido”, a 31 espiritualidade também [...]. Outroelemento importante dessa espiritualidade cristã antiga é o fato de que os irmãos são responsáveis uns pelos outros e cada cristão precisa do outro para avançar no caminho de Deus. Deus fala a uma pessoa através da outra [...]. O acompanhamento espiritual faz parte essencial do método, para se avançar mais na obediência ao que Deus pede de cada pessoa. [50] Nesse período, podem-se destacar três tipos de espiritualidade: a do martírio, a da virgindade e a da escola de Alexandria. O martírio consistia na entrega total e absoluta a Cristo, oferecendo a própria vida como testemunho ante os poderes imperiais; a virgindade, como opção livre para consagrar-se inteiramente a Cristo; a escola de Alexandria, como despojamento do judaísmo, para assumir o que de melhor o humanismo e a filosofia grega poderiam oferecer para atingir a meta da santidade. A Idade Média (476-1492) é um período em que a espiritualidade toma novas formas e contornos, de acordo com as mais diversas realidades adjacentes a essa situação histórica, no que se refere à cultura, à economia, à religião. A Igreja consegue se impor diante dos povos como centro aglutinador de cultura e religiosidade, dando orientações sobre como viver o cristianismo nesta terra, rumo à morada celeste. No contexto desse longo período, em se tratando da espiritualidade cristã, vários personagens e elementos espirituais característicos vão aparecendo e desaparecendo, como é típico nas mudanças de época. Serão apresentados, suscintamente, alguns dados mais elementares e importantes para a compreensão da espiritualidade cristã nesse período do cristianismo. No período que compreende os séculos IV ao VI, surgem novas formas de vida espiritual, com importantes fundadores, cuja espiritualidade permanece até os dias de hoje. Entre outras importantes espiritualidades destacam-se: a espiritualidade basiliana, a agostiniana e a beneditina. Basílio (330-390), bispo de Cesareia da Capadócia, na atual Turquia, organizou a vida monástica comunitária. Para ele, a vida solitária era muito perigosa e não facilitava a vivência do amor fraterno. Cuidou com muito zelo da caridade, pois a sociedade vivia naquele momento uma situação muito complicada. Foi defensor da justiça e pregava veementemente contra o acúmulo de riquezas. Criou um abrigo para pessoas idosas, um albergue para estrangeiros e um hospital. Dedicou-se à meditação das Sagradas Escrituras. Foi um dos primeiros a organizar a oração dos Salmos. Agostinho (354-430) foi bispo de Hipona, hoje Anata, na costa da 32 Argélia. Em 397, sistematizou a vida de seus monges: oração, trabalho intelectual, atividade pastoral ou manual, união de coração e de alma (partilha) e práticas religiosas. O amor é a regra fundamental do mosteiro e este deve testemunhá-lo. Para ele, o mosteiro deveria ser o lugar da vivência do amor fraterno. O seu estilo de vida monástica influenciou todas as demais ordens que surgiram depois dele. Ele é, sem dúvida, um dos maiores expoentes da espiritualidade na cristandade medieval e moderna. Foi ele quem abriu os horizontes para a compreensão da espiritualidade como é compreendida hoje. Bento (480-547), italiano de Núrsia, na Úmbria, centro da Itália, foi o grande fundador do monaquismo ocidental. Organizou, reestruturou e aperfeiçoou as regras de Pacômio e Basílio. Fundamentalmente, a união entre trabalho e oração constitui a essência da regra beneditina. A leitura e a meditação da Palavra de Deus, associadas ao louvor litúrgico alternado com os ritmos do trabalho, mesclado com a caridade fraterna, determinam o espírito da vida e da regra beneditina. Os mosteiros beneditinos tornaram-se, ao longo da Idade Média, centros de civilização intelectual, missionária e agrícola. Por volta do século VII, a espiritualidade vai perdendo aquela mística das origens, isto é, a centralidade do mistério pascal. O próprio culto litúrgico oficial vai se distanciando do povo e esse, por sua vez, vai encontrando novas fórmulas e maneiras de expressar a sua espiritualidade. Uma vez que o povo não pode mais viver e experimentar a fé como nas origens, criam-se novas maneiras de estabelecer a dimensão religiosa: práticas penitenciais, romarias, devoções particulares aos santos, sincretismo religioso e supersticioso, entre outras. A espiritualidade comunitária começa a dar lugar a uma espiritualidade individualista, moralista e fundamentalista. Pode-se dizer que a espiritualidade presente no século IX apresenta certo florescimento; porém, no século X, com o Império Carolíngio em ascensão, a espiritualidade cristã novamente mergulha no caos. Nesse século, com o intuito de reerguer a vida espiritual em decadência, um grupo de monges em Cluny, na França, propõe uma profunda reforma. O mosteiro de Cluny torna-se ponto de referência, sendo que, dentre seus integrantes, emergem bispos e o papa Gregório (1073-1085), que realizou a reforma gregoriana. Cluny teve como ponto de partida a volta às origens, sobretudo à vivência integral do Evangelho. A espiritualidade dos séculos XI-XII reveste-se do caráter científico. Nesse período, desenvolve-se também a espiritualidade da amizade como caminho 33 de comunhão com Deus. A partir do século XI, as obras de caridade passam a ser prioridade, tanto para leigos como para religiosos. Dessa preocupação nascem as hospedarias. É nesse período que surge a literatura espiritual como tal. Tais literaturas ressaltam os exercícios espirituais em detrimento das virtudes. O período dos séculos XII-XIII é marcado por inúmeras mudanças de ordem social e econômica na Europa. Após as Cruzadas, o comércio começa a desenvolver-se. Inicia-se um processo de não aceitação do sistema de semiescravidão em que as pessoas viviam. Aparecem novos centros urbanos, nos quais surgem grupos de cristãos que querem imitar Jesus e os apóstolos vivendo as propostas do Evangelho radicalmente. Muitos preferem deixar os mosteiros e investir na evangelização, optando por viver a pobreza radical. Com o propósito do evangelismo e do pauperismo, dois grandes movimentos destacam-se: os dominicanos e os franciscanos, denominados ordens mendicantes. O culto eucarístico é também dessa época. Em 1264, foi instituída a Festa litúrgica de Corpus Christi. Nesse período, o povo sequer comungava mais. Contentava-se em ver Jesus na hóstia consagrada. No que diz respeito aos séculos XIV-XV, ressaltamos o movimento espiritual denominado devotio moderna, que teve suas origens nos Países Baixos, com G. Groote (+1384), e se expandiu por toda a Europa. O movimento tinha por finalidade enfatizar a vida interior focada numa devoção centralizada na meditação e no seguimento de Cristo, como também apresentava um rompimento com qualquer forma de culto externo. Esse movimento valoriza a oração interior do coração, em detrimento da oração vocal e da ação litúrgica. O referencial mais conhecido desse tipo de espiritualidade intimista foi Tomás de Kempis (1379-1471), com seu livro intitulado Imitação de Cristo. Depois da Bíblia, hoje é o livro espiritual mais vendido. Quanto aos séculos XVI-XVII, tem-se um período de profundas mudanças culturais. Da visão teocêntrica, transcendente e teológica, passa-se para uma visão humanista, antropocêntrica e imanentista. Se até então a mais representativa expressão arquitetônica se manifestava por meio das catedrais, agora dirige-se para os palácios renascentistas. A espiritualidade cristã desse período é caracterizada por grandes transformações, inclusive a reforma protestante, que se torna um novo modelo de espiritualidade. Outro aspecto relevante é o deslocamento da espiritualidade oriunda da Itália, que agora se encontra também na Espanha 34 e na França. Surgem também os novos métodos de oração e os exercícios espirituais. O barroco e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus são expressões marcantes dessa época. Grandes expoentes espirituais surgem nesse período. Aponta-se entre outros: Teresa d’Ávila (1545-1582), João da Cruz (1542-1591), Inácio de Loyola (1491-1556), Martinho Lutero (1483-1546),Francisco de Sales (1567-1622), Vicente de Paulo (1581-1660), Afonso de Ligório (1696- 1787). Em relação aos séculos XVIII-XIX, destaca-se a Revolução Francesa (1789), que foi um marco extraordinário, no que se refere à transformação do pensamento, das estruturas e dos valores sociais e políticos, e que, por sua vez, causou na Igreja e na sua espiritualidade um novo modo de ser e de viver. O Iuminismo quis substituir os valores religiosos, criando uma nova mentalidade, e com isso exaltou a secularização, a laicização e a descristianização. Pode-se afirmar que, nesse período, as virtudes cristãs da fé, humildade e caridade, vividas tão intensamente por grande parte da sociedade, agora são substituídas pela razão, autonomia pessoal e filantropia. Esse período contribuiu eficazmente para uma desconstrução da espiritualidade e de tudo o que é sagrado. Nessa época surgem também grandes mestres espirituais, tais como: João Maria Vianney, o Cura d’Ars (1786-1856), Antonio Frederico Ozanam (1813-1853), João Bosco (1815-1888), Teresa de Lisieux (1873-1897), Charles de Foucauld (1858-1916), Pierre Teilhard de Chardin (1881-1955), entre outros. O século XX é marcado por grandes guerras, descobertas científicas, descolonização, independência de muitos países, globalização, neoliberalismo, tecnologia avançada. No que se refere às questões eclesiais, não se pode deixar de mencionar o maior evento religioso do século: o Concílio Vaticano II. É bem verdade que a ele precedem vários movimentos em busca de mudanças, tais como os movimentos litúrgico, bíblico e catequético. O Concílio Vaticano II abriu as portas da Igreja ao mundo, revitalizando a sua vocação de ser sinal e portadora do amor de Deus para toda a humanidade. Em se tratando de espiritualidade, o Concílio Vaticano II resgatou as origens do cristianismo, sobretudo a centralidade do mistério pascal. A espiritualidade adjacente a esse período caracteriza-se por compaixão, misericórdia, solidariedade, acolhida, respeito ao diferente, libertação 35 integral do ser humano, não violência, diálogo inter-religioso, ecumenismo, ecologia, holismo. As manifestações da espiritualidade pós-conciliar são demasiadamente variadas, devido aos fenômenos político, econômico e religioso que abrangem a humanidade. A globalização econômica e o progresso tecnológico difundem e determinam situações degradantes aos seres humanos de todo o planeta, conforme salientou o papa Paulo VI na encíclica Populorum Progressio (n. 10). A crise existencial, o individualismo, a concentração de renda, a exclusão social, entre outras realidades, oriundas da globalização e dos seus efeitos, determinam uma crise ética e espiritual que atingem profundamente a espiritualidade hodierna. Na América Latina, fruto do Concílio Vaticano II, as Conferências Episcopais puderam conhecer e experimentar uma espiritualidade autenticamente encarnada e comprometida com o povo sofredor. O Filho de Deus foi compreendido e apresentado como Aquele que veio fazer a sua morada e encarnar-se no meio das pessoas pobres e desprovidas de toda dignidade. O tema da libertação adquiriu na América Latina um sentido profundamente encarnado, fazendo com que os discípulos-missionários, à luz do Espírito de Deus e no seguimento do seu Filho, vivessem uma espiritualidade libertadora: Iluminados pelo Cristo, o sofrimento, a injustiça e a cruz nos desafiam a viver como Igreja samaritana (cf. Lc 10,25-37), recordando que “a evangelização vai unida sempre à promoção humana e à autêntica libertação cristã”. Damos graças a Deus e nos alegramos pela fé, solidariedade e alegria características de nossos povos, transmitidas ao longo do tempo pelas avós e avôs, as mães e pais, os catequistas, os rezadores e tantas pessoas anônimas, cuja caridade mantém viva a esperança em meio às injustiças e adversidades.[51] Outro fenômeno, que não podemos deixar de mencionar, é a busca de uma espiritualidade baseada no pentecostalismo carismático. Os que optam por essa vertente priorizam uma vivência espiritual a partir dos sacramentos, das bênçãos e curas ao estilo pentecostal. É nesse contexto de novas tendências de espiritualidade que o padre diocesano tem de ser o servidor da Igreja e do seu povo, exigindo de si uma paciência histórica, a fim de que possa evangelizar com bondade, ternura, mansidão e misericórdia. O padre diocesano, fiel discípulo-missionário de Jesus, o Bom Pastor, deve ser o homem capaz de possuir o jeito compassivo e 36 esperançoso do Cristo, para ajudar o povo a ele confiado a superar toda e qualquer dificuldade e esperar com toda esperança o Reino de Deus que é justiça, verdade, solidariedade e caridade. Ele precisa ter paciência, respeito, confiança e cuidado para com todo o seu povo, e viver “samaritanamente” entre os seus. REFLEXÃO 1. Analisando a espiritualidade ao longo da história, com suas diversas realidades, levando em consideração a ética do cuidado que, entre outras coisas, diz respeito a todo ser humano nas suas diversas realidades e circunstâncias hoje, como o padre diocesano pode colaborar para que a diocese conquiste uma espiritualidade voltada para o bem-estar de cada um enquanto filho de Deus e ser humano carente e desejoso de cuidados especiais? 2. De que maneira o padre diocesano deve viver “samaritanamente” na comunidade paroquial em que está inserido? 37 2 O MINISTÉRIO E A ESPIRITUALIDADE PRESBITERAL A vida presbiteral traz consigo as marcas do mistério pascal de Cristo. O vínculo ontológico entre o padre e Cristo se exprime nas palavras da narrativa da instituição na celebração eucarística: “Isto é o meu corpo que será entregue por vós...” (cf. Mt 26,26). A missão do presbítero deriva da entrega que Jesus faz de si mesmo. É o próprio Cristo que, por meio do padre diocesano, santifica o seu corpo místico. De fato, essa ação celebrativa se prolonga no cotidiano do padre diocesano, quando vive em profunda comunhão com o bispo e o presbitério, assiste aos órfãos, preside a caridade, unge os enfermos, perdoa os pecados, mediante a administração do sacramento da misericórdia, e levanta os caídos. O sacerdócio ministerial está conectado à sacramentalidade do corpo místico de Cristo. Ao considerarmos o papel da ritualidade dentro do âmbito sacramental, a presença mística de Cristo se realiza no candidato ao presbiterado a partir do momento em que ocorre a conexão entre o propósito do eleito, a voz da Igreja e o sopro do Espírito.[1] Toda a vida de Cristo, também em sua dimensão profana, especialmente sua morte sacrificial na cruz, foi considerada pela carta aos Hebreus como exercício sacerdotal. Assim é a vida do presbítero (e de todo cristão em geral): em toda a sua extensão, ela é abraçada pelo Mistério salvífico e imantada por ele. O ministério presbiteral por inteiro, também em suas expressões aparentemente mais seculares, é em si mesmo “ministério do Espírito” (2Cor 3,8). É-o à medida que move os corações, produz a vida da graça e revela o rosto glorioso de Deus (cf. 2Cor 3,6-11). De acordo com o Concílio Vaticano II (Lumen Gentium, n. 28), por autorização do próprio Cristo e ação do Espírito, é conferido a alguns homens o sacramento da Ordem. Desde a Antiguidade, tal ministério é exercido em favor do povo. Tais ministérios são: episcopado, presbiterado e diaconado.[2] Devem ser compreendidos enquanto graus de participação no sacerdócio de Cristo, e não enquanto degraus. O ministério presbiteral e a espiritualidade inerente a esse múnus só podem ser entendidos no contexto da vida cristã e do seguimento de Jesus Cristo, uma vez que todo sacramento é fruto do mistério pascal do próprio Senhor e Mestre.[3] 38 O sacerdócio ministerial a partir das suas raízes bíblicas possui a sua origem e participação no único sacerdócio de Cristo (cf. Hb 4,14). Só é possível identificar e descrever a realidade da espiritualidade do padre diocesano à luz da vida de Jesus Cristo, o Bom Pastor. Dessa imagem intuímos que os Evangelhos são, por excelência, documentos pastorais que esclarecem operfil autêntico do sacerdócio ministerial a partir de suas raízes cristológica, eclesiológica e pneumatológica:[4] O presbítero não “administra” simplesmente os sacramentos: ele os vive. Não faz pastoral, mas é pastor. O presbítero não está presbítero; ele é presbítero. A unção sacramental o atinge em seu ser, e não apenas em seu fazer. Por isso, tudo nele é “sacerdotal”. A pastoral por inteiro adquire dimensão como que litúrgica: é oferenda a Deus. Assim via Paulo sua missão. Em seu próprio apostolado, entendia-se como “oficiante de Cristo Jesus, junto aos pagãos, sacerdote do Evangelho de Deus, a fim de que os pagãos se tornem oferenda agradável, santificada no Espírito” (Rm 15,16).[5] A identidade e a espiritualidade do padre diocesano pressupõem o conhecimento das raízes bíblicas, históricas, teológicas, espirituais e também antropológicas. Entretanto, apresentaremos neste capítulo apenas alguns elementos da Sagrada Escritura e da Ação Litúrgica que configuram a vida presbiteral e, por isso, são fundamentais no exercício do ministério do pastoreio de Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote. 39 2.1. Compreensão do sacerdócio em alguns textos do Antigo (Primeiro) e do Novo (Segundo) Testamento A origem da palavra sacerdote vem de sacer, isto é, sagrado, e dare, dotare, aquele que pode dar o sagrado, do grego hiereus, santo. Compreende-se o sacerdote, em quase todas as religiões, como alguém que é constituído para fazer a mediação entre Deus e o povo. Em Israel, todos eram considerados e constituídos como povo sacerdotal (Ex 19,6), porém entre eles, Deus escolheu uma das doze tribos, a de Levi, para exercer o ministério litúrgico. [6] No Antigo e no Novo Testamento, é possível identificar três tipos de sacerdotes, os quais possuem funções diferentes. O grau mais elevado do sacerdócio é o ofício de sumo sacerdote, no qual se centraliza o culto. Essa função é dada de acordo com o AT a Aarão. Por isso os sacerdotes judeus são denominados sacerdotes aaronitas (cf. Ex 29,29-30). O segundo tipo é o sacerdócio ministerial, concedido aos filhos de Aarão, e, em grau inferior, aos levitas, subordinados ao sacerdócio, não oferecem sacrifício (cf. Cr 34). Estes últimos tinham 24 divisões de serviços, sendo que poderiam exercer outras funções no tempo vago. Geralmente faziam as leituras e explicações da Torá nas sinagogas e eram encarregados das questões de pureza ritual (cf. Lv 11–15). O terceiro tipo é considerado o grau mais comum, denominado sacerdócio universal, comum a todos os fiéis. O povo judeu foi constituído povo de sacerdotes. Essa constituição do povo de Israel como “reino de sacerdotes e nação santa” (Ex 19,5-6) deve ser interpretada em termos pastorais: “Como pastor que apascenta o rebanho, seu braço reúne, toma nos braços os cordeiros” (Is 40,11). Deus pastoreia o seu povo, o seu rebanho, por meio de pastores escolhidos por Ele, para que realizem a tarefa (cf. Nm 27,17; 2Sm 5,2).[7] No AT encontramos ainda a figura de Melquisedeque, o rei justo de Salém. É um personagem muito interessante: sem pai, sem mãe, sem nenhuma explicação oferecida de sua origem; no entanto, é sacerdote do Deus Altíssimo, e Abraão paga o dízimo a ele, é superior a Abraão (cf. Gn 14,18-20; Sl 110,4; Hb 7,1-10). Ele é considerado pela Tradição cristã como uma prefiguração do sacerdócio de Cristo.[8] Os sacerdotes no AT exercem diversas funções: responsabilidade pelo santuário; guarda da arca; presidência das liturgias; execução dos sacrifícios e ritos de consagração e purificação, apresentação a Deus das oferendas, 40 perdão dos pecados do povo (cf. Ex 24,11; Ex 32,25-29; Dt 33,8-11; 1Sm 13,9; 2Sm 6,18; Lv 12,6ss; Lv 14; Lv 16; Lv 23,11.20; 1Rs 1,39).[9] Existem aspectos comuns entre o AT e o NT, no que se refere à noção de sacerdócio. Entre elas, destacamos as três formas básicas: Sumo Sacerdote (cf. Hb 3,1), sacerdote ministerial (cf. Rm 15–16; Tt 1,5; Tg 5,14) e o sacerdócio comum dos fiéis (cf. 1Pd 2,5ss). Vale ressaltar que o prefácio da Missa do Crisma afirma que pela unção do Espírito Santo, constituístes vosso Filho Pontífice da nova e eterna aliança. E estabelecestes que seu único sacerdócio se perpetuasse na Igreja [...]. Jesus Cristo realizou com a sua paixão-morte-ressurreição uma mediação ontológica. Por isso Ele é o consumador e realizador da nova aliança. O seu único sacerdócio indivisível gerou um povo sacerdotal que se perpetua na história humana.[10] O sacerdócio ministerial e o sacerdócio comum dos fiéis participam, cada um a seu modo, do único sacerdócio de Cristo. A natureza do sacerdócio é intrinsecamente relacionada ao Bom Pastor que oferece amavelmente a vida por suas ovelhas. O pastoreio de Deus por meio dos seus escolhidos é anúncio da salvação futura que se realizará em Cristo (cf. Ez 34,23-31). Nesse sentido, a ação salvadora de Deus para o povo de Israel realiza-se em termos pastorais.[11] A ação dos doze apóstolos não pode ser compreendida separada da ação de Jesus Cristo. Muito pelo contrário, eles participam da sua intimidade e compartilham o significado da sua vida. O “Faça-se” de Deus pronunciado no início da criação ressoa na práxis eclesial. Desse modo, a “Palavra” precede a ação e esta se torna manifestação da Palavra. Eis a finalidade de toda a pastoral e da vida do pastor presbítero diocesano: ser epifania do Logos.[12] No Novo Testamento, Jesus Cristo, mediador da Nova Aliança (Hb 9,15; 12,24), reúne em si os três ofícios exercidos por Moisés e outros agentes religiosos, isto é, os ofícios de profeta, de sacerdote e de rei: o tríplice ofício do Bom Pastor. Nesse contexto, o próprio termo pastoral nos remete à imagem bíblica do Cristo, o Bom Pastor (Jo 10,11-15), e é aplicado à ação da Igreja enquanto participação no único pastoreio de Cristo, que, após a sua ressurreição, confiou a missão de pastor a Pedro (Jo 21,15-18). Por isso, os bispos, os padres e diáconos participam dessa missão.[13] O antigo povo de Israel, para designar o discurso sobre Javé no que se 41 refere ao governo, identifica algumas metáforas como juiz, mãe, artista, médico, jardineiro, rei, guerreiro, pai, destacando particularmente a imagem do pastor. O papel fundamental dessa figura é reunir as ovelhas em segurança. O uso mais importante da imagem de Javé como pastor surge no exílio, época em que o rebanho estava disperso, por causa da irresponsabilidade dos pastores-reis (cf. Ez 34,3-6; Jr 23,1; 50,6) que apascentavam a si mesmos, em lugar de apascentarem as ovelhas. A própria constituição do povo de Israel como reino de sacerdotes e nação santa, configurado pelos escribas sacerdotais (cf. Ex 19,5-6), vislumbra a figura do autêntico pastor, que procura, apascenta e salva as ovelhas presas. Grande parte dos estudiosos afirma que a exposição mais completa sobre a figura do pastor se encontra em Ezequiel 34.[14] A vida de Jesus é apresentada no Novo Testamento como o cumprimento daquilo que outrora os profetas haviam anunciado (At 3,18-34; Lc 24,27). Parte dos primeiros seguidores de Jesus viu nesse homem o messias profeta (Jo 6,14; 7,40), mostrando que reconheceram a Palavra de Deus em Jesus, pois suas palavras e ações são confirmadas (cf. Dt 18,21-22). Ele se apresenta como o verdadeiro profeta quando revela os sinais dos tempos (Mt 16,3). Jesus Cristo anuncia a mensagem de que Ele é o conteúdo de todas as promessas e de toda a Palavra de Deus (Jo 1,14). As expressões Filho de Deus e Filho do Homem (Mc 10,45; 14,21; Jo 3,14), atribuídas a Jesus, são termos sacerdotais. Entretanto, Cristo não se intitula sacerdote, para não confundir o seu sacerdócio com o sacerdócio levítico. A sua morte é a realização plena daquele sacrifício expiatório (Mc 10,45) anunciado no Antigo Testamento. O sangue do cordeiro é prefiguração do seu sangue derramado na cruz. A partir da tipologia, isto é, do método da correspondência entre o Antigo e o Novo Testamento, Jean Daniélou, citando Justino de Roma, evidencia que, assim como aqueles que foram salvos no Egito pelo sangue com o qual se ungiram as portas,
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