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2 ÍNDICE Capa Rosto Apresentação da coleção Marco Conciliar Introdução I. Prelúdios da reforma litúrgica conciliar 1. Desvelamentos litúrgicos pré-conciliares 2. Os anos anteriores ao Vaticano II 3. Um Concílio para renovar 4. A gênese da reforma litúrgica 5. Histórico da clericalização na vida litúrgica 6. Elaboração da Sacrosanctum Concilium 7. Releitura de conceitos litúrgicos 8. Valores litúrgicos conciliares 9. Antropologia cultural na vida litúrgica 9.1. Resgate da adaptação ritual 9.2. A riqueza da criatividade 9.3. Variações da inculturação 10. As grandes Conferências e suas conquistas 10.1. Conferência de Medellín (Colômbia, 1968) 10.2. Conferência de Puebla (México, 1979) 10.3. Conferência de Santo Domingo (1992) 10.4. Conferência de Aparecida (Brasil, 2007) 11. Breve olhar sobre nossas comunidades II. Mística da sacrosanctum concilium 1. Elementos constitutivos de uma nova liturgia 2. Redescoberta da mística litúrgica 3. Dimensão da subjetividade nos rituais 4. Povo de Deus celebrante 5. Dimensões da assembleia litúrgica 5.1. Assembleia de crentes 5.2. Reunião em nome do Senhor 5.3. Assembleia como ecclesia 5.4. Assembleia espiritual 5.5. Escrituras sagradas 5.6. Fecundidade do rito 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg 5.7. Celebrar como família eclesial III. Novo rosto da vida litúrgica 1. Nova eclesiologia, nova liturgia 2. Novos modelos rituais 3. À imagem dos povos 4. Nova linguagem e tantas línguas 5. Tempos novos do Espírito 6. Adapttação do repertório litúrgico 6.1. Adaptação como inculturação 6.2. Adaptação como criatividade 6.3. Adaptação sociológica 6.4. Adaptação pastoral e etária 7. Reeditando a teologia litúrgica 7.1. O mistério pascal de Cristo e do povo 7.2. O encontro de diferentes credos 7.3. Ritos na diversidade cultural 7.4. Renascer dos ministérios 7.5. Renascer da espontaneidade IV. Caminhos e descaminhos perspectivas no horizonte litúrgico 1. Corporeidade na comunicação litúrgica 2. Estética e folclorismo 3. A mística de nossas celebrações 4. Desbravar novos caminhos Conclusão - Algumas luzes do espírito Referências bibliográficas Fontes e documentos Manuais Sobre o autor Coleção Ficha catalográfica 4 O APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja católica em muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de construção assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e perseverante desse Papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo Concílio em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas. Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo, assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade, reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo. O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso, sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio, e particularmente no hemisfério sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas 5 da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas, sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II, do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres conciliares. Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso, expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos e esperançosos. O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso” completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas. Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou, entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da verdade e na construção da fraternidade universal. A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o 6 Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas, nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande Sínodo, o desenvolvimento da questão noperíodo pós-conciliar e a análise crítica – balanço e prospectiva – dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a partir da Cúria Romana. Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje, em muitos aspectos, radicalmente diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de 1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua, sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o serviço desinteressado a toda humanidade, particularmente aos mais necessitados. O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram, sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges passaram ao status de “irmãos separados”, de distantes passaram a fazer parte do grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a 7 Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de um possível “pensamento conciliar”. O olhar ecumênico esteve presente como um vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais do Concílio (cf. UR 1). Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da Igreja. Em seu discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: “Deus ‘quer salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4)”. E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão geral: “Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo” (n. 24). De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas denominações. A constatação comum dos cristãos, de que as divisões internas da mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão, fazia do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das 8 fronteiras católicas. Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelam avanços e estagnações. O medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós- conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a convivência entre todos os povos. Em tempos de pluralidade cultural e religiosa, o diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que possibilita a construção de patamares para a convivência humana. Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 244). João Décio Passos Wagner Lopes Sanchez Coordenadores 9 N INTRODUÇÃO ovos tempos da liturgia é uma utopia dentro da proposta da reforma conciliar, inaugurada com a Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), que foi o primeiro dom do Concílio Vaticano II. Desde sua promulgação, os caminhos da vida litúrgica foram marcados por passos transformadores que renovaram, ou melhor, revolucionaram os elementos constitutivos das ações litúrgicas cristãs. Quando recordamos a liturgia da Igreja desde o Concílio de Trento até o Concílio Vaticano II e a comparamos com as dinâmicas rituais nestas últimas décadas, percebemos todas as transformações que ocorreram na vida da Igreja e nos seus rituais. Todas as mudanças foram refletidas e assumidas para atingir o objetivo fundamental dos padres conciliares para a vida litúrgica. O Documento conciliar tem grande preocupação com a eficácia sacramental e litúrgica. De fato, na SC lemos que “devem os pastores de almas vigiar para que não só se observem, na ação litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente, ativa e frutuosamente” (SC, 11). O mesmo tema encontramos na mesma Constituição (n. 14, 19 e 110). A participação se realiza na própria assembleia celebrante (SC, 26), quando se congrega em nome de Jesus Cristo (SC, 121), e sua composição deve ser harmoniosa (SC, 28-29). A espiritualidadeque sustenta essa transformação é a centralidade do mistério pascal de Cristo, vivido com celebrações que equilibram as emoções, a evangelização e a razão, ao mesmo tempo que promove a transformação da vida. Cada fiel vive na liturgia a irradiação da fé diante da razão, respondendo à vontade, diante da graça de Deus. Descobrimos que os sentidos e a imagem são elementos fundamentais na perspectiva contemplativa. Não se pode descuidar das culturas, da linguagem e dos contextos humanos que se expressam nos sinais sensíveis da liturgia. A reforma das ações celebrativas renova o seu próprio “repertório litúrgico”, promovendo uma releitura dos rituais em sua complexidade. Esse novo olhar é o objeto da apreciação da reforma conciliar. Preocupa-nos compreender os passos que foram dados, suas conquistas, seus limites e, particularmente, as perspectivas que se desdobram diante do universo eclesial que vivemos. A Sacrosanctum Concilium é o germe de vida que provoca essa transformação. Encontramos em seus artigos as proposições, objetivos, espiritualidade e caminhos desse processo renovador. Essas mudanças estruturais evidenciam a ação divina nas realidades humanas, celebradas em comunidade. Todas essas mudanças visíveis (língua, estrutura, simbologia, entre outras) valorizam a importância da formação litúrgica, para aprofundar sua teologia e sua espiritualidade. A diversidade de dons, que é um presente do Espírito Santo (1Cor 12,4-11), é a iluminação para incorporar novos instrumentos litúrgicos para celebrar o mistério pascal. Entende-se, assim, que a liturgia é fonte de vida e expressão existencial da comunidade eclesial. É o ápice da 10 comunhão com Deus, que dilata seu coração como fonte perene das graças celestiais. É uma ação da gratuidade divina e da acolhida dos fiéis. Vamos compreender como a liturgia foi se tornando sempre mais um espaço privilegiado da comunhão comunitária com Jesus Cristo. Na Palavra, na Eucaristia e nos sacramentos, a liturgia torna-se sinal e instrumento da graça. Assim, o mistério pascal se atualiza e os cristãos se comprometem com a transformação da humanidade. Percorrendo os anos da reforma, provocada pelo Concílio, perceberemos como se deram essas transformações no repertório litúrgico das nossas comunidades. Toda liturgia é instrumento de salvação integral e se compromete com a santificação do mundo. Descobriremos como a vida litúrgica renovada serve aos fiéis para animar a vida cristã nas dimensões pessoal e comunitária. Compreendamos, então, como a superação do ritualismo e do fixismo possibilita que a espiritualidade e a pastoral litúrgica sejam o múnus autêntico do mistério pascal, que é nossa vida em Cristo. No aprofundamento da força inovadora do Concílio Vaticano II, revemos criticamente os caminhos da vida litúrgica nestes novos tempos da Igreja, que realizaram mais transformações que todos os últimos séculos da vida eclesial. Em primeiro lugar, procuramos entender os últimos acontecimentos e escritos que foram despertando a necessidade de transformações durante as últimas décadas anteriores ao Concílio. Um breve olhar sobre esse processo de reflexão nos ajuda a compreender as novidades conciliares. Os desvelamentos litúrgicos pré-conciliares, particularmente do magistério e dos grandes liturgistas, são fundamentais para entender os novos conceitos da teologia litúrgica. Nos anos anteriores ao Concílio, vários documentos, conferências e ações inéditas dentro do campo litúrgico promovem o alicerce dessa renovação. Quando aprofundamos, num capítulo especial, os testemunhos e registros da realização das sessões conciliares, descobrimos que o entusiasmo era elevado e todos os fiéis, dentre pastores, liturgistas e povo de Deus, estavam imbuídos da necessidade de mudanças urgentes, para ingressar o povo de Deus no universo contemporâneo, em constante transformação. A mudança não se realiza apenas dentro da vida litúrgica, mas todas as áreas da vida eclesial são tocadas por profundas mudanças. Se historicamente testemunhamos a clericalização dos rituais, algumas posturas foram importantes para que os leigos voltassem como verdadeiros celebrantes e não meros assistentes dos rituais litúrgicos. A mudança de eixo na compreensão da vida litúrgica exige a releitura dos conceitos litúrgicos. Neste capítulo da obra, procuramos 11 conhecer a estrutura, espiritualidade e propostas da Constituição litúrgica, com toda a sua inovação temática. Descortina-se um novo universo litúrgico para a Igreja, e as transformações surgem como sua natural consequência. Estamos, neste itinerário da reflexão, aptos para delinear os valores e a antropologia da liturgia cristã. A liturgia que se inaugura com a reforma conciliar é um caminho que renova os valores das celebrações, naquilo que se refere à formação da assembleia, à composição do repertório litúrgico e à mística cristã. Não se trata de refazer os elementos constitutivos dessas mesmas celebrações, mas dar-lhes uma perspectiva renovada, que eleva o mistério pascal de Cristo em referência à vida e ao contexto dos fiéis. Vida e liturgia se encontram dialeticamente para promover a elevação do espírito humano a Deus e fecundar sua existência, numa constante busca de coerência no caminho de santificação. A fecundidade litúrgica coloca o conceito ex opere operato em constante interação com ex opere operantis. Nessa reforma, esses dois conceitos se tornam elementos constitutivos das ações litúrgicas. Para que esse repertório seja eficiente na edificação da eficácia sacramental, aprofundaremos os conceitos de adaptação ritual, no qual compreenderemos os bens da adaptação, conforme encontramos na Sacrosanctum Concilium, que é a “Carta Magna da adaptação litúrgica”. No Documento, encontramos as principais preocupações e princípios para a Reforma Litúrgica no setor da adaptação. Ao mesmo tempo que se insiste na acolhida dos valores e bens culturais dos povos, solicita-se o cuidado para não incorporar desvios doutrinais e superstições. Eis o texto: “A Igreja considera com benevolência tudo o que nos seus costumes não está indissoluvelmente ligado a superstições e erros, e, quando é possível, mantém-no inalterável, por vezes chega a aceitá-lo na Liturgia, quando se harmoniza com o verdadeiro e autêntico espírito litúrgico” (SC, 37b). Para tal propósito, vamos reconhecer o processo de adaptação concernente a alguns valores como a cultura, a faixa etária, a dimensão pastoral, a criatividade e a integração histórico-social do repertório litúrgico. Um breve olhar sobre as grandes conferências episcopais da América Latina, que sucederam ao Concílio, mostra o processo de integração histórica dos rituais; por seus artigos, descobrimos como eles se envolveram com as necessidades reais do ser humano, passando por sua religiosidade e adentrando sua realidade histórica. Podemos afirmar que esse foi um dos processos históricos mais relevantes de toda trajetória da comunidade cristã pós-conciliar. Essa visão panorâmica das décadas pós-Concílio, como se fosse um grande rio com muitos afluentes, desemboca no grande lago da mística litúrgica que é 12 grandemente renovada e integrada às novas eclesiologias, como variantes dentro da universalidade da fé cristã. Consideramos a superação do rubricismo e da objetividade dos rituais, compreendendo como é precioso o valor subjetivo e como podemos integrá-los na história das assembleias e em seus sentimentos religiosos, sem perder os bens adquiridos, como a tradição e os rituais elaborados ao longo dos séculos. Com a subjetividade na vida litúrgica, entendemos que é possível integrar-se aos anseios da comunidade celebrante, sem romper com a tradição e as normas que se fixaram ao longo dos tempos. Criatividade e fidelidade são conceitos que promovem o diálogo entre a tradição e a renovação, entre a norma e a espontaneidade. Falamos de uma interação entre as dimensões cristológica e pneumatológica da espiritualidade cristã, que renova a visão de Igreja, a teologia e o itinerário da vida litúrgica. Daqui, lançamosum olhar sobre a assembleia que se reúne para louvar o Senhor e engrandece seu nome com sua própria história colocada diante dele. A liturgia se compõe como um encontro de fé da família eclesial e Deus, na celebração do mistério pascal, promovendo uma fecundidade capaz de santificação e de transformação do povo de Deus, protagonista desse encontro entre Deus e seus “crentes”. A renovada eclesiologia – veremos num capítulo sobre o novo rosto da vida litúrgica – promove novos modelos rituais, abertos à solicitude dos tempos e suas assembleias. Para ser eficiente, descobrimos que a comunidade cristã deve elaborar seu repertório litúrgico à imagem dos povos, assumindo sua linguagem e seu universo simbólico. Essa perspectiva exige a reedição da teologia litúrgica, na qual se encontram diferentes religiosidades e se integram inúmeras variações culturais. No capítulo final, procuramos tecer uma apreciação de todo esse processo, em que os caminhos e descaminhos se encontram e se perdem, pois a renovação exige sempre a revisão e a retomada dos princípios fundamentais. Se a celebração se processa como um ritual cristalizado, não temos o perigo de incorreções, mas, se buscamos novas possibilidades rituais, descobrimos que é preciso redobrar a atenção para manter a coerência com os princípios fundamentais da liturgia e as orientações universais da Igreja. Apreciamos alguns elementos inerentes ao processo litúrgico, como a corporeidade, as vestimentas culturais e a renovação da mística, como alma do repertório litúrgico. Compreendendo a história, como propomos, reconhecendo os novos valores da vida litúrgica, percebendo os desafios que se despontam aos nossos olhos, somos convidados a desbravar novos caminhos, os quais nos colocarão, com confiança e esperança, dentro do universo do ser humano contemporâneo. Esse é o propósito 13 fundamental da apreciação do panorama litúrgico da Igreja, na celebração do Jubileu de Ouro do Concílio Vaticano II, o evento eclesial mais importante dos últimos séculos. 14 H I PRELÚDIOS DA REFORMA LITÚRGICA CONCILIAR á alguns séculos, a vida litúrgica na Igreja cumpria determinações canônicas e ritualistas muito rígidas, em consequência dos confrontos doutrinais com movimentos cristãos contrapostos que ocorreram na Igreja. Depois do Concílio de Trento, as preocupações com os ritos, sua precisão e detalhes tornaram-se preponderantes nas celebrações, particularmente os sacramentos. Os rituais devocionais, como bênçãos, procissões, benditos, promessas, cumpriam rituais mais espontâneos, mais distantes das exigências rituais canônicas. O legalismo tornou-se uma muralha contra as reformas culturais, antropológicas e devocionais das ações litúrgicas assim que a evangelização aterrissou em novos continentes, culturas, simbologias e novas civilizações sem nenhuma interação na composição do repertório litúrgico da tradição tridentina. O Movimento litúrgico tem sido muito aprofundado pelos cientistas da liturgia, por ser considerado o “prelúdio” da reforma Conciliar que se iniciou com a Constituição Sacrosanctum Concilium (BOGAZ, 2005, p. 36). De fato, com o Movimento Litúrgico, as águas começaram a se mover e foi desencadeado um processo paulatino de mudanças nas concepções de liturgia. Aos poucos, a liturgia foi se desvelando como culto público da Igreja, no pensar do monge belga L. Beauduin (1873-1953), definindo-se como todos os atos de culto que a Igreja reconhece como próprios para celebrar o mistério de Cristo. Desvela-se, nas reflexões posteriores, como celebração do mistério da salvação, no qual o mistério de Cristo é a realidade que se celebra e se atualiza pelos rituais litúrgicos. Esse é o pensamento de O. Casel (1886-1948), que apresenta a liturgia como um evento primordial de salvação que se faz presente no rito, através do qual se realiza o plano de salvação (MARSILI, 1987, p. 97). Ao lado das proposições dos baluartes do Movimento Litúrgico, que eram, na maioria, monges beneditinos, a Igreja hierárquica também procura desenvolver propostas para a reforma litúrgica. 1. Desvelamentos litúrgicos pré-conciliares O Documento mais importante desse processo é a Encíclica Mediator Dei, de Pio XII, que procura compreender a Liturgia como ação do próprio Cristo como mediador e sacerdote único da humanidade. Em Cristo se dá o perfeito culto ao Pai. Pelos ritos litúrgicos, o Pai é glorificado e realiza-se a santificação da humanidade (Hb 10,5). A comunidade eclesial realiza de forma ininterrupta o culto prestado por Cristo durante sua vida. Esse culto revela a natureza cultual da Igreja e confirma a presença de Cristo, seu mediador e sacerdote. A Liturgia é o culto de Cristo, do qual a Igreja participa. Sua função é a realização dos ritos que revelam o próprio Cristo. 15 Muitos são os elementos rituais e espirituais que a Encíclica Mediator Dei desvelou para a compreensão da verdadeira identidade da Liturgia na Igreja. Celebrar significa tornar Cristo presente na Liturgia, continuando seu ofício sacerdotal e prestando um culto agradável a Deus no seu “templo” espiritual que é a Igreja. A Igreja, em toda ação litúrgica, torna seu divino fundador, Cristo, presente e atuante na vida da comunidade. Para superar o conceito de ritualismo das práticas litúrgicas, esse documento reconhece o caráter litúrgico da Igreja celebrante, pois a liturgia é a ação cultual unitária da cabeça e do corpo da Igreja numa simbiose total. Ela é a perfeita interação entre o Cristo, cabeça, e a Igreja, seu corpo místico (MARSILI, 1987, p. 99). 2. Os anos anteriores ao Vaticano II O mundo em profunda transformação, como se anota em todos os documentos do Vaticano II, urge uma Igreja que se integre a esse processo de mudanças e, portanto, uma nova visão litúrgica que, mantendo sua essência, procura novas formas de responder aos anseios de uma nova eclesiologia. Nos movimentos que antecederam o Concílio, sentia-se necessidade de mudanças profundas que pudessem renovar a identidade das atividades eclesiais e assim integrar-se às novas realidades. Os movimentos que surgiram provam esses anseios, como os movimentos bíblico, eclesial e laical. A vida litúrgica da Igreja é a maior preocupação entre os movimentos que surgiram no período. A Mediator Dei tinha deixado marcas importantes que trouxeram novos elementos, mas visava também a coibir práticas litúrgicas inovadoras, presentes na Igreja. Os primeiros acenos referentes às celebrações apontavam para uma reforma iminente. Pio XII deu alguns passos importantes, como podemos assinalar: a renovação da Vigília Pascal (9 de fevereiro de 1951), da qual procurou-se simplificar os ritos para facilitar a participação da comunidade; missas vespertinas e regras para o jejum eucarístico (Encíclica Christus Dominus, 6 de janeiro de 1953), diminuindo as horas longas de jejum para participar da comunhão; simplificação das rubricas (23 de março de 1955), para a celebração das missas e a liturgia das horas; novo Rito da Semana Santa (16 de novembro de 1955), novamente procurando simplificar as rubricas e diminuir os movimentos e gestos excessivos dos rituais; instrução sobre a música na liturgia (3 de setembro de 1958), que visava sobretudo maior participação, sugerindo o retorno ao gregoriano em substituição ao estilo barroco, muito elitista e 16 coralista (MARSILI, 1987, p. 103). Foram mudanças pontuais que visavam restaurar os rituais, mas o que se esperava era uma renovação na natureza da liturgia para que pudessem ocorrer mudanças fundamentais nos seus símbolos, ritos e movimentos. Enfim, todo o repertório litúrgico exigia renovação, mas isso somente era possível a partir da conversão dos conceitos fundamentais da liturgia cristã. Notava-se, entretanto, grande resistência às mudanças por parte da Congregação dos Ritos, que pretendia que as reformas litúrgicas ocorressem apenas no plano das rubricas e, considerando assim, fora dos temas conciliares. Se por um lado temos uma preocupação grande com a Congregação dos Ritos, exigindo precisão na ediçãotípica (editio typica é o título dado a todos os livros litúrgicos da Igreja Católica), desde a ortografia, formas tipográficas e pontuações, por outro lado sentia-se uma ruptura entre os aspectos práticos (normas) e os aspectos teóricos (teologia) da liturgia. Ora, bem sabemos que é impossível separar esses dois aspectos sem que se tornem dicotômicos. O que se evidenciava, aos poucos e progressivamente, é que a reforma que se iniciou com Pio XII ia provocando uma nova teologia da liturgia, com novos aspectos espirituais, eclesiológicos e sobretudo pastorais. A percepção da importância dos fundamentos teológicos da liturgia foi fecundando a necessidade da sua restauração, assim que a consciência do mistério pascal como centro de toda celebração provoca a reforma e gera uma nova visão do cristianismo como “mistério eclesial” (MARSILI, 1987, p. 108). Estamos em plena gestação, quase imperceptível, da reforma litúrgica. Bem melhor que seja imperceptível, caso contrário provocaria reações contrárias e dificultaria, como noutras vezes, seu processo natural. A volta para a importância da vida pastoral da liturgia, como resposta aos anseios dos fiéis ao redor do mundo, mostrou que novas trincheiras precisavam ser escavadas para compor os novos quadros rituais e ultrapassar as barreiras de qualquer renovação. Antes de tudo, distinguir a verdadeira tradição do tradicionalismo. A tradição nos insere na evolução dos séculos e nos reporta aos primórdios do cristianismo, proporcionando um contato vivo com o Cristo. Essa tradição nos leva a considerar e valorizar as diversas tradições, das mais antigas às mais modernas, em que a evangelização fecundou os povos e suas culturas. O tradicionalismo representa, ao contrário, o congelamento de um momento histórico e sua absolutização, dificultando transformações rituais. Havia, no período, uma identificação errônea dos dois 17 conceitos, a qual impossibilitava mudanças estruturais dos ritos e, muito mais, a renovação da teologia da liturgia. Em segundo lugar, devemos considerar que a visão jurídica e ritualista das celebrações era forte impedimento para entender a teologia dos rituais. Não se buscava o fundamento e o significado dos ritos, mas se aprendia a repeti-los de forma sistemática e automatizada. Reduziu-se a ciên- cia litúrgica à manipulação dos símbolos. O conhecimento do cerimonial torna-se a garantia das rubricas exatas e objetivas, para garantir a validade sacramental, indiferente à sua fecundidade fundamental (SCHMIDT, 1966, p. 107). Os fiéis participam das cerimônias como que assistindo a um espetáculo sagrado, sem se importar tanto com sua própria edificação espiritual. Vencidas essas barreiras, com grande profetismo e coragem por parte do Papa João XXIII, foram lançadas as intenções fundamentais da Sacrosanctum Concilium. A Liturgia se integra na “atualização da história da salvação”, na qual a transmissão do mistério pascal se presentifica por meio de um rito legitimamente adaptável aos tempos e lugares em que se insere a comunidade celebrante. Essa conotação litúrgica que adentrou o espírito conciliar legitimava a necessidade de atualizar os ritos, propiciando assim que a cristalização ritual de vários séculos desbrave o caminho da inovação e da pluralidade do repertório litúrgico. Se essa mobilidade ritual flexibiliza a execução dos ritos, por outro lado e na mesma direção, a concepção jurídica- ritualista será superada na perspectiva da dinâmica teológico-espiritual da vida litúrgica. Os ritos devem servir para aprofundar, rezar e viver o mistério pascal e não são valores em si mesmos. O valor fundamental das celebrações é o mistério que a comunidade celebra: ação de Cristo, celebrado em seu corpo, que é a comunidade dos cristãos, integrando os fiéis com seu Senhor. O culto serve ao encontro humano- divino, nas duas direções. O ritual é o instrumento de oferta da graça divina à comunidade celebrante e o louvor de seus membros ao seu Criador e Salvador. 3. Um Concílio para renovar Reportamos um documento que circula como uma anedota do Concílio entre os tantos volumes que foram publicados sobre aqueles anos dourados e fecundos da história contemporânea da Igreja. Vários diários, testemunhos e anotações foram publicados por bispos, teólogos, observadores e assessores, retratando os acontecimentos, encontros e o espírito dos padres conciliares. O testemunho de Mons. Loris Capovilla, na ocasião secretário pessoal do Papa 18 João XXIII, relata os fatos do período. Segundo Mons. Capovilla, o secretário de Estado, Card. Domenico Tardini, anotou em sua agenda (20 de janeiro de 1959) o seguinte: “Sua Santidade, ontem pela tarde, refletiu e concretizou o programa de seu pontificado. Três coisas foram idealizadas: um Sínodo para a Igreja de Roma, atualização do Código de Direito Canônico e um Concílio Ecumênico. Ele quer anunciar esses três pontos aos senhores cardeais, no próximo domingo, depois da cerimônia de São Paulo”. No domingo referido, dia 25 de janeiro, depois da celebração da missa, o Papa se levantou e rezou. “Ficou de joelhos mais que o habitual”, diz o testemunho. No trajeto do Vaticano até a Basílica de São Paulo, manteve-se muito silencioso e prolongou-se no ritual até mais tarde que das outras vezes. Esperou que os jornalistas se afastassem para anunciar aos cardeais presentes que estava para convocar a Igreja católica para um grande Concílio. O fato foi muito inusitado, pois, apenas três meses depois de sua eleição, aos 77 anos, o Papa João XXIII anunciou ao mundo a realização do Concílio. Suas palavras ficaram marcadas e, nas entrelinhas, mostravam a grande expectativa em relação ao evento e sua confiança em Deus. “Pronunciamos, diante de vocês, trêmulos e com algo de comoção, mas ao mesmo tempo com humilde resolução de propósito, a proposta de uma dupla celebração: um sínodo diocesano para a cidade de Roma e um Concílio Ecumênico para a Igreja universal.” Essa narrativa manifestava plena consciência de que estavam sendo inaugurados novos tempos para a Igreja. Três são as diretrizes, segundo o mesmo Monsenhor, para a realização dessa grande reunião ecumênica: 1. Promover a renovação interior dos católicos; 2. Inserir os católicos diante da Igreja no mundo contemporâneo; 3. Solicitar aos bispos, sacerdotes e leigos para a corresponsabilidade na colegialidade da Igreja. Todos são responsáveis pela salvação dos homens, e essas diretrizes perpassam todas as sessões conciliares. Na verdade, quando todos pensavam que João XXIII seria apenas um “pontífice de transição”, ele lançou pilares que mudaram para sempre a história da Igreja. Para Mons. Capovilla, “se o Concílio ainda não alcançou as metas fixadas, quer dizer que nossa conversão é uma tarefa ainda por cumprir”. Graças ao Concílio, “sabemos, melhor que ontem, quem somos e para onde vamos”, como encontramos na Constituição Lumen Gentium, sabemos ainda mais “que idioma devemos falar e que mensagem devemos difundir”, conforme encontramos na Constituição Dei Verbum, “como e com que intensidade rezar”, segundo a teologia da Sacrosanctum 19 Concilium, e “que atitude assumir diante dos problemas e dramas da humanidade contemporânea” como se encontra na Constituição Gaudium et Spes. Para ele, que destaca em palavras textuais esses quatro documentos como pilares da renovação conciliar, os documentos sobre a liturgia, sobre a igreja, sobre a palavra de Deus e sobre a realidade atual integram o cristianismo no coração do ser humano de nosso tempo. Esses documentos são os quatro pilares que sustentam o edifício da renovada teologia pastoral e alentam a escutar a voz de Deus, a dirigir-se a Deus como filhos, e obrigam a dialogar com todos os compromissos da família humana. Estão abertas as portas do Concílio Vaticano II e a vida litúrgica da Igreja ganhará novos contornos, dinamizando e engrandecendo a celebração de seus rituais. 4. A gênese da reforma litúrgica Podemos dizer que talvez a década de 1960 tenha sido a mais complexa, sob o ponto de vista dos acontecimentosmais marcantes do século XX. Foram tantos que seria necessário um livro para entender como o mundo estava mudando em todos os sentidos. Começa a construção do Muro de Berlim. Brasília, nova capital do Brasil, é inaugurada. O russo Yuri Gagarin torna-se o primeiro homem a entrar no espaço. Neil Armstrong, um americano, é o primeiro homem a pisar na Lua. John Fitzgerald Kennedy, presidente dos Estados Unidos, é assassinado em Dallas, Texas. Um golpe militar tira do poder João Goulart, presidente do Brasil. Inicia-se a ditadura militar. Os Beatles e os Rolling Stones popularizam sua música em todo o planeta. Ocorre o primeiro transplante de coração na África do Sul. Lançamento do primeiro computador eletrônico, o RAMAC 305, pela empresa IBM. Guerra dos Seis Dias. Israel ataca Síria, Egito e Jordânia. Tem início a Revolução Cultural na China. É assassinado o ativista dos direitos civis Martin Luther King. Enviada a primeira mensagem de e-mail entre computadores distantes. Nessa época, teve início uma grande revolução comportamental com o surgimento do feminismo e os movimentos civis a favor das minorias étnicas. O Papa João XXIII abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja católica. Nossa visão é solidificada na Igreja. Essa imagem vem sendo gerada há séculos. Essa solidificação é como um diamante. Ela nos tem permitido a nossa estabilidade e tem evitado todos os tipos de conflito. Mas não podemos entendê-la como um processo de estagnação porque seria um perigo próximo da regressão. Como a vida não é estática, assim também a Igreja não pode ser. Foi num sentido amplo de 20 coragem e audácia que o Papa João XXIII se lançou na maior reforma, ou seria revolução, ao convocar um Concílio Ecumênico não para reforçar paradigmas, muito menos combater heresias e continuar firmando doutrinas e doutrinas. O que menos o papa queria era confrontar rupturas. O objetivo do Concílio Vaticano II era extremamente claro, como um rio de águas límpidas. Renovar a identidade da Igreja diante das mudanças, das grandes transformações do mundo moderno após as terríveis Guerras Mundiais. Era visível que o mundo passava por transformações muito rápidas. Não havia tempo para permanecer estático diante dos olhos que agora viam novidades em todos os cantos do mundo. Dessa maneira, João XXIII convocou os representantes da Igreja para participar do Concílio Ecumênico Vaticano II, através da Bula Papal Humanae salutis, de 25 de dezembro de 1961, para promover uma reforma nos vários setores da Igreja Católica Apostólica Romana. A abertura solene aconteceu no dia 11 de outubro de 1962. Com o falecimento do Papa João XXIII durante o Concílio, assumiu a Sede de Roma o Cardeal João Batista Montini, sob o nome de Paulo VI. O Papa Paulo VI deu, então, continuidade aos trabalhos desenvolvidos até a data do falecimento de João XXIII e considerou encerrado o Concílio, depois de 4 sessões, no dia 8 de dezembro de 1965. Segundo os dados publicados, participaram entre 2000 e 2200 pastores (bispos e cardeais), tratando de temas da Igreja, como a Palavra de Deus, a identidade da Igreja, a vida litúrgica, os meios de comunicação, a identidade dos leigos e presbíteros, as missões, entre outros. Pode-se dizer que o Concílio reuniu uma riqueza impressionante de princípios e reflexões nos documentos aprovados. Tivemos quatro Constituições, nove Decretos e três Declarações temáticas. Quando o Concílio Vaticano II completou trinta anos, João Paulo II classificou o Concílio como uma grande reflexão sobre a vida da Igreja e suas relações com o mundo. Considerou, também, nessa premissa que o Concílio Vaticano II teve, a busca pela fidelidade ao Senhor, respondendo aos desafios do mundo atual, acolhendo os sinais dos tempos, decifrados pela Palavra de Deus. Entendemos que o pensamento moderno na Europa ocidental se direciona dentro de uma estrutura que procura marcar fundamentalmente as relações humanas, assim como as relações religiosas e políticas abrangentes nos últimos séculos. No entanto, todas as suas seguranças de ordem epistemológica que fundamentam uma forma de vivência política, cultural e religiosa são destruídas. 21 O imanentismo, que é a doutrina metafísica segundo a qual a presença do divino é pressentida pelo homem, mas não pode ser objeto de qualquer conhecimento claro, é visto como um sentimento interior, como fonte da única fé. Acontece que o vemos como profundamente espiritualista; não de ordem transcendental, mas puramente pertencente ao próprio homem. A modernidade fez com que o homem acabasse se centralizando em si mesmo. O panorama do homem moderno deu-lhe uma autonomia da razão, que acabou de certa forma se desvencilhando da circunscrição religiosa. O ser humano acabou no centro da arena, tendo, à sua volta, todas as perspectivas como referenciais. Dessa maneira, a transcedentalidade acabou se fundindo com a racionalidade; o que se entende dela, em função do eu centralizado, mesmo com as dicotomias que possam aparecer, é que o homem moderno está centralizado na razão. A reforma protestante, como é do conhecimento geral, deve seu sucesso a uma nova sensibilidade religiosa, que acabou considerando o livre-arbítrio humano mais importante do que os dogmas e as tradições encontradas na prática religiosa. Os poderes, laicos no setor da política, acabam separados das dominações eclesiásticas. Anteriormente, era necessário benzer a coroa antes da coroação dos reis. Hoje, soa como algo das eras medievais. A realidade social, econômica e política não exige mais os decálogos revelados; o conjunto de leis ou princípios religiosos, filosóficos, morais, políticos e outros foi esquecido pelas sociedades atuais. A controvérsia modernista, no início do século XX, atingiu seu ápice, e a Igreja procurou anatematizar tudo aquilo que distorce ou altera a Palavra de Deus, isto é, as palavras da Bíblia. Assim, a Igreja sentiu o ataque ao seu Reino, criando confrarias de perseguição aos modernistas, dentro e fora do âmbito da Igreja, destruindo suas bases, por meio da excomunhão e fortalecimento do poder institucional. Esse fato fez com que a Igreja, diante do mundo moderno, criasse uma visão de Igreja totalmente fechada dentro das realidades históricas. No período do século XIX ao século XX, muitas das questões filosóficas, na realidade visões, tentaram responder aos anseios do ser humano sem a intercessão das religiões reveladas ou sapienciais. Desses novos modelos de respostas que surgiram, apareceram as chamadas religiões positivas com um direcionamento racionalista e igualmente positivista. As novas, portanto, religiões positivas tentaram responder ao vazio existencial que foi gerado pela negação dos estudos das coisas divinas e espirituais, que provocou uma crise dentro do espírito do homem. A procura de investigar profundamente as religiões que não tinham divindade incitou uma nova 22 concepção religiosa para o homem contemporâneo. O direcionamento do espírito modernista acabou provocando uma grande reação no pensamento europeu, chegando ao repúdio à religião institucionalizada. Dessa maneira, acabou provocando um grande anticlericalismo, que acabou direcionado como crítica às crenças instituídas e também aos sistemas religiosos, principalmente ao catolicismo europeu. Levando em consideração que a prática religiosa tradicional, católica e reformada, estava diretamente vinculada aos governos liberais, monárquicos e capitalistas, a apreciação aos sistemas de governo colidiu na direção das práticas religiosas que estavam vinculadas a elas. Logo, as massas populares, sem um direcionamento, que é comum nesses casos, se tornaram anticlericais e hostis aos exercícios relativos ao culto religioso, e com o direcionamento mais proeminente ao clero católico. 5. Histórico da clericalização na vida litúrgica É necessário entender que o clericalismo e o anticlericalismo estavam desde o século XIX em atrito. Os grupos sociopolíticos que realizaram as reformas na fase inicial do liberalismo eram, em geral, portadores de um sentimentoe de uma ideologia anticlericais. Se, no que concerne à visão do universo, as elites liberais perfilhavam o deísmo filosófico, no que diz respeito às crenças, assumiam uma posição favorável aos dogmas católicos. Os liberais aceitavam o catolicismo e viam na religião um instrumento de sociabilidade e de unificação das consciências, embora atribuíssem características fundamentalmente profanas ao poder público. Já os republicanos e os socialistas iam mais longe: juntavam à crítica ao clero uma oposição à própria religião. Sendo assim, revelavam uma concepção agnóstica e, em muitos casos, ateia do universo. No fim do século XIX, essa variante anticlerical identificou-se com o laicismo. O chamado fenômeno da laicidade, comum a vários países europeus, encontra suas raízes na secularização da Época das Luzes e no próprio liberalismo. Como paradigmas culturais, o positivismo e o cientificismo rompiam com a visão católica do mundo e opunham-se à filosofia neotomista, difundida durante o pontificado de Leão XIII. Por isso, os principais mentores dessa cosmovisão lutaram pela “desclericalização” da sociedade e pela redução da influência social da Igreja. Por influência do livre pensamento, desenvolveu-se, por exemplo, em Portugal, um anticlericalismo mais virulento, mais popular e mais irreligioso, com a intervenção das camadas populares em ações de rua, em acontecimentos como a 23 “caçada aos padres” (1895). A historiografia tem demonstrado que o anticlericalismo está intimamente ligado ao clericalismo e que as duas realidades só podem ser entendidas em sua relação dialética. De fato, o anticlericalismo define-se a partir do seu antagonismo, sem o qual não teria existência. O clericalismo começou tentando subordinar a sociedade civil à sociedade eclesiástica (teocracia), usando armas espirituais com fins temporais e procurando impor-lhe os métodos da Igreja. No século XIX, era frequente os clérigos tentarem servir-se do poder político para o triunfo da religião sobre a consciência individual. Fazendo seu axioma do individualismo, segundo o qual a religião é assunto privado, o anticlericalismo acabou aderindo aos grandes princípios que definem a concepção laica: separação do religioso do profano, liberdade de pensamento, independência absoluta do Estado em relação à Igreja e recusa da ingerência da classe eclesiástica, da Santa Sé e das ordens religiosas da sociedade. A ideologia anticlerical não é redutível à dimensão política, embora os combates por ela suscitados se tenham centrado em torno do Estado, já que aí se situava o lugar privilegiado do afrontamento entre clericais e anticlericais. Essa realidade, no entanto, tem uma dimensão muito grande, pois recobre a ordem social, o ensino, as ideias, os costumes e tem pontos de contato com a cultura, a religião e o poder. Em Portugal, o anticlericalismo adquiriu inicialmente uma feição sobretudo anticongregacionista e representou uma reação da nova classe política contra o peso excessivo das ordens religiosas na sociedade. Como sempre acontece em períodos de mudança de regime, as posições ideológicas radicalizaram-se durante a guerra civil de 1832-1834 e na fase pós-revolucionária. Nesse momento de ruptura, os liberais opuseram-se às congregações, que revelavam então uma adesão militante ao miguelismo. A legislação publicada nos inícios do liberalismo comprova a existência de uma mentalidade adversa às congregações. A classe política não punha em causa o cristianismo nem os valores do catolicismo, mas pretendia diminuir a influência da Igreja na sociedade e, com essa finalidade, tomou como alvo das suas reformas o clero regular (HANSEN, 2001, p. 75). Com a unificação da Península Itálica, em 1870, após a invasão dos reis piemonteses, o Estado apoderou-se dos territórios eclesiásticos e dos bens da Igreja. Os bispos que estavam em Roma, reunidos para o Concílio Vaticano I, foram se dispersando silenciosa e desordenadamente. Acabaram não sendo reconvocados para novas sessões do Concílio. 24 Como as decisões do Concílio de Trento tinham o sentido de definitivas e perenes, além da decisão da infalibilidade papal, tinha-se uma vaga ideia de que a era dos concílios ecumênicos já havia se tornado algo do passado e que seu destino chegara ao fim. Com o início do Vaticano II, o sentido da busca do diálogo com outras igrejas selava o final da Contrarreforma e da teologia apologética. Compreende-se que a Igreja passava de sua postura de anátema à postura de diálogo. Passa-se do período da condenação da modernidade para um tempo de escuta e de construção de diálogo. Como uma criança que desponta para a vida, surge um novo olhar da Igreja em direção ao mundo e a sua própria história. Havia chegado a hora de buscar a aproximação da história da salvação com a história do mundo. A dicotomia que, durante séculos, regeu as esferas antagônicas, como sagrado e profano, civil e religioso, fé e razão, caminhou para um diálogo de interação. A Igreja saiu da redoma de vidro e vislumbrou a encarnação no mundo como lugar da salvação para continuar o projeto que Jesus Cristo iniciou dois mil anos antes. O Concílio Ecumênico Vaticano II iniciou seu imenso trabalho com a presença dos bispos do mundo inteiro e com a participação de centenas de assessores, representantes de outras igrejas, e fez também consulta ao povo de Deus. Sabemos que todo episcopado se preocupa intensamente com a vida litúrgica da Igreja, com a evangelização e a promoção da humanidade. Não é do seu direcionamento as intervenções políticas ou contrárias que aconteciam nos concílios anteriores. A Igreja se reuniu para discutir, refletir, entender e elucidar sua identidade, além da sua importantíssima missão no mundo. Dentro dos assentamentos que o Concílio propunha, através dos representantes curiais, que julgavam ser opções primordiais, houve uma rejeição às propostas prepostas. Decidiu-se, praticamente de imediato, que o Concílio não seria uma elaboração de heresias e anátemas, mas direcionamentos bem objetivos da missão evangélica da Igreja. Portanto, não se tratava de elaborar um inventário de desvios doutrinais, morais ou litúrgicos, mas algo de maior importância, que era descobrir a identidade da Igreja, sua abertura ao mundo, seu caráter como instituição, sua presença e missão na história da humanidade e, é, claro, seus valores humanos cristãos. 6. Elaboração da Sacrosanctum Concilium Com o processo da modernidade, a Igreja percebeu que os novos métodos de 25 comunicação e linguagem poderiam influir na sua evangelização. A comunidade cristã e principalmente os agentes pastorais tiveram a preocupação de se inserir na vida moderna, utilizando a interação entre a vida cotidiana e a prática da fé cristã. Com o Concílio Vaticano II, a visão da Igreja se renova. O documento a figurar como o primeiro desse concílio inovador foi dedicado à Liturgia e apresentou uma visão teológica extremamente significativa. A Constituição Sacrosanctum Concilium foi aprovada em 1963 e abriu novas perspectivas para a liturgia cristã. Ela permitiu despertar novas dimensões da vida litúrgica do povo cristão, proporcionando uma reforma fundamental, pela qual as celebrações acabaram assumindo uma realidade mais autêntica, fecunda e consciente das comunidades cristãs. Esse documento sobre a liturgia se caracteriza principalmente por princípios doutrinais e normas práticas, esculpindo o núcleo da teologia litúrgica. Por meio dessa ação litúrgica, a mensagem de Jesus Cristo, libertador, se estende na história da humanidade, através da pregação do Evangelho. O seu sacrifício (doação de sua vida a Deus pela humanidade), direcionado pelos sacramentos, encontra nos ritos a edificação da vida litúrgica na comunidade cristã. É através de sinais simbólicos que a salvação realizada por Cristo se atualiza na vida dos cristãos, através dos cultos da Igreja. Os rituais, utilizando todo o seu instrumental litúrgico, como sinais, símbolos, palavras, gestos, movimentos, silêncio e outros, se transformam nos mediadores no diálogoentre Deus e seu povo, por Jesus Cristo, no Espírito Santo. Isso faz com que a verdadeira celebração litúrgica somente aconteça na integração da comunidade cristã com a comunidade trinitária. A Sacrosanctum Concilium foi aprovada com 2147 votos favoráveis, tendo apenas 4 sufrágios negativos, na sessão solene realizada em 04/12/1963. Foi promulgada pelo Papa Paulo VI, solenemente, como o primeiro documento do Concílio Vaticano II. 7. Releitura de conceitos litúrgicos Entendemos que as ações litúrgicas tenham como proposta a celebração da história da salvação. Sem o sentido da convicção da presença de Deus Pai na História, de Jesus Cristo em corpo e sangue e a presença do Espírito Santo, os rituais seriam apenas representações teatrais dos acontecimentos esplendorosos dos séculos passados. No entanto, pela fé, essa expressão ritual vem manifestar que esses acontecimentos divinos ainda estão presentes em nossas vidas e continuam 26 fortalecendo e fecundando nossa história cristã. A provocação incessante da liturgia como “fonte e cume da vida cristã” tocou o coração das assembleias celebrantes. Todas as celebrações eram programadas e revisadas a partir desse importante axioma. Não basta mais celebrar; é preciso que o rito se expresse como fonte da graça e ápice da comunidade reunida. Isso faz com que a ação litúrgica da Igreja adquira na comunidade sua força vivificante. De fato, a Sacrosanctum Concilium afirma que a liturgia é o ponto culminante e a fonte da vida da Igreja. No Documento Conciliar, encontramos caminhos para a compreensão da liturgia tanto em sua identidade quanto em suas características e objetivos, superando, portanto, suas concepções ritualistas. Podemos encontrar esta definição: “da Liturgia, pois, especialmente da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja” (SC, 10). Essa é a razão que nos move e que provocou grande movimento da Igreja nas comunidades. Entendemos que todas as práticas cristãs, como a homilia, a oração, a caridade, o testemunho de fé, levam à liturgia. É como se o ritual litúrgico concebesse todas as dimensões que cingem a vida cristã. Na vida litúrgica, as celebrações se tornam a fonte de vida dos fiéis, além de seu fortalecimento e edificação, pois estamos diante da graça, da escuta da palavra, dos louvores, súplicas e preces, além da conquista do perdão e da misericórdia divina. Devemos sempre compreender que a ação litúrgi- ca favorece a superação da dicotomia entre celebração e fé. Se não tivermos o aprofundamento teológico, a mística espiritual e a transformação da própria vida, os rituais não são a expressão da fé no Filho de Deus. Afinal quem nos convoca, sempre, para a missão no Reino de Deus é Jesus Cristo. As ações litúrgicas devem ser plenas, conscientes e participativas como a Igreja deseja, propondo o uso da Sagrada Escritura, que, então, ficará mais compreensível ao povo celebrante. A Igreja também propõe um espírito de criatividade e adaptação, possibilitando a realização da inculturação dos rituais e dos textos litúrgicos aos grupos étnicos, regiões e povos. A acolhida dos elementos culturais, tanto nos símbolos quanto na religiosidade, é apreciada pela Constituição. Mais que um espírito de acolhida, trata-se de uma aspiração dos padres conciliares: “Mantendo-se substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo nas 27 Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se isto oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as rubricas” (SC, 38). Ao longo do ano litúrgico, vivendo seus direcionamentos particulares, a comunidade celebra o mistério pascal de Jesus Cristo, sempre atualizando a história da salvação e consagrando, sempre, suas vidas à graça divina. A liturgia não exaure totalmente a ação da Igreja, mas dignifica momentos solenes da vivência cristã; é o ponto mais elevado da vida comunitária. O texto considera a importância da ação litúrgica, mas destaca a importância da base da espiritualidade que deve ser nutrida por cada fiel. Com esse espírito místico, os fiéis se unem em comunidade para celebrar comunitariamente o mistério pascal. Este é o fundamento de toda ação litúrgica: “a participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar” (SC, 12). É nas ações litúrgicas que o cristão encontra sua força e seu alimento, particularmente nos seus sacramentos. Por isso, não podemos pensar numa assembleia passiva, já que a ação litúrgica é de natureza comunitária, ou seja, é uma ação de todo o povo que procura se reunir em Jesus Cristo e, para isso, precisa se inserir no seu sacerdócio divino, pela completude da iniciação cristã. Para que a participação seja eficaz, é necessário que os ministérios sejam assumidos e partilhados na comunidade e que os textos bíblicos e os ritos exprimam claramente o mistério pascal na vida da comunidade. As palavras da Constituição sobre a Liturgia são propositivas: A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão um acesso mais seguro à abundância de graça que a Liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma geral da mesma Liturgia. Na verdade, a Liturgia compõe-se duma parte imutável, porque de instituição divina, e de partes susceptíveis de modificação, as quais podem e devem variar no decorrer do tempo, se porventura se tiverem introduzido nelas elementos que não correspondam tão bem à natureza íntima da Liturgia ou se tenham tornado menos apropriados (SC, 21). A reforma conciliar é um desejo dos padres reunidos em Concílio. A evidência dos critérios, como o respeito à tradição e sua continuidade, bem como a manutenção dos elementos de “origem divina” servem à legitimidade dos ritos. Ao mesmo tempo que procura integrar-se na história dos povos, destaca-se a importância dos fundamentos bíblicos e a continuidade da tradição. 28 8. Valores litúrgicos conciliares Os padres conciliares, no Vaticano II, imbuídos de sabedoria, destacaram a riqueza e consideraram a importância da Sagrada Escritura não apenas como o núcleo da história da salvação, mas como reprodução simbólica da presença de Deus na história do povo da Aliança. É notável como os padres conciliares têm consciência do paulatino afastamento dos fiéis das Sagradas Escrituras, como reação apologética posterior ao Concílio de Trento. Considera-se fundamental a recuperação do uso da Escritura nas celebrações, que deverá iluminar e fecundar todas as celebrações, como vemos: “É enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia. Porque é a ela que se vão buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos para cantar; com o seu espírito e da sua inspiração nasceram as preces, as orações e os hinos litúrgicos; dela tiram a sua capacidade de significação as ações e os sinais” (SC, 24). Entendemos como sendo uma ação comunitária na qual os ritos procuram representar toda a vivência cultural do povo de Deus, trazendo em si a linguagem, gestos e símbolos que se aproximam do ritual cristão. Esse é, sem dúvida alguma, um dos trabalhos mais delicados e árduos da reforma litúrgica ao longo desses cinquenta anos. Para que possamos remover o ritualismo e os costumes tão tradicionais que temos, sem perder a unidade fundamental do ritual cristão da Igreja, devemos compreender um pouco mais todos esses significados que estão no Vaticano II. Durante o Ano Litúrgico, os rituais nas celebrações eucarísticas precisam valorizar a união do povo com Deus. Propiciar um diálogo de amor, no qual o louvor, o perdão, a intercessão, a comunhão e a consagração sejam laços de vida plena. E que sejam criados, através desse alicerce, todos os valorespara o Reino de Deus na história humana. O Concílio Vaticano II realçou fortemente a urgência de harmonizar as celebrações rituais e a fé do povo de Deus, para solucionar certa ruptura que se observava entre os ritos formais e repetitivos e a própria fé. A assembleia celebrante deve sentir-se dentro do ritual e não apenas como espectadora; ela celebra, não assiste; ela é protagonista do ritual, na sua mais plena realização. A Sacrosanctum Concilium desenha uma reforma litúrgica com estruturas nas experiências celebrativas testemunhadas pelos textos bíblicos e pelos Padres da Igreja. Reflete primordialmente que a liturgia é verdadeira ação de Cristo em sua Igreja. Os símbolos litúrgicos são elementos de intensidade eficaz para a realização e a atualização do mistério da salvação. 29 A ritualidade litúrgica se torna real na presença de Cristo. Ela é sempre atualizada em ações sacramentais eclesiais e desponta como edificação do encontro e do diálogo entre o povo de Deus, mediante o mistério pascal de Jesus Cristo, manifestado pela liturgia. Toda ação litúrgica opera a salvação divina a favor do seu povo. Seus ritos permitem que a vida seja expressa por sinais sensíveis, unindo o visível ao invisível, o sensível ao espiritual. Este é seu repertório litúrgico, capaz de edificar a comunidade e celebrar a fé: assim, a Liturgia pela qual, especialmente no sacrifício eucarístico, se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação, presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível, ao invisível, a ação, à contemplação, e o presente, à cidade futura que buscamos (SC, 2). O mistério pascal de Cristo, portanto, assume na ação litúrgica a forma de mistério apropriado ao culto, realizando o rito através dos sinais sensíveis e da sua compreensão dentro da cultura e da religiosidade da assembleia. 9. Antropologia cultural na vida litúrgica O objetivo da Liturgia é comunicar ao povo de Deus a vida de Cristo e apresentar ao Pai seu rito de glorificação. A Liturgia alcança formas renováveis conforme os tempos e situações culturais dos povos e das comunidades que envolvem cada uma delas. Essa renovação pedagógica e pastoral é o que chamamos adaptação. O real motivo para mudar palavras, gestos, sinais e ritos não é aquilo de que as pessoas ou celebrantes gostam. Nem tampouco da moda em voga em determinados períodos da história ou mesmo de cada século, mas a maior participação no culto a Deus incorporado em nossa vida atual. 9.1. Resgate da adaptação ritual A adaptação litúrgica se faz com ponderação: é para tornar os sinais mais convincentes à mentalidade e cultura do povo; é para conseguir aquela participação ciente e ativa que nos põe em comunhão com a Igreja local e universal. É, também, para destacar melhor o conteúdo fundamental de nossa liturgia, quando celebramos nossa fé no mistério de Cristo, ponto culminante do projeto de Deus. Essa integração 30 com esses discernimentos se exerce em vários níveis: tem lugar tanto na tradução dos textos e modificação dos cultos como na celebração dos sacramentos e da Eucaristia, atenta às diferentes assembleias. 9.2. A riqueza da criatividade A verdadeira criatividade está profundamente arraigada: está ligada aos ritos precedentes como o celebrante atual ao do nosso passado. Uma fé que não cria cultura, entende-se que não foi suficientemente anunciada e não foi completamente assimilada. Portanto, não plenamente vivida. Para que possamos entender melhor a criatividade, é mais prático observar onde ela se realiza. Celebrar corretamente, de forma clara e digna, é o primeiro princípio da criatividade. O presidente da assembleia, por exemplo, não pode utilizar gestos e textos sempre do mesmo modo. Quando está só com crianças, num pequeno grupo ou numa igreja lotada, há uma diferença muito grande em como deve executar seus gestos, falas e textos. Em qualquer situação, o principal é fazer com que os ritos e as palavras tenham vida e exprimam a fé, que desperta a Palavra proclamada. A oferta trazida ao altar e a procissão rumo à mesa eucarística não se encontram nas rubricas: é preciso criar. É meta da criatividade a introdução de novos símbolos, mais necessários à compreensão do povo de hoje, criados pela piedade popular ou experimentados nas CEBs e mesmo em outros grupos de oração. 9.3. Variações da inculturação Há uma energia muito grande que faz com que a criatividade possa transpor ou enxertar elementos culturais na Liturgia. Por ela aguarda-se mais, e se deseja chegar a um estado mais profundo, chamado aculturação. Entende-se, portanto, que a aculturação acontece no encontro de duas culturas, decorrendo daí uma síntese ou a dominação de uma pela outra. Aplicado à Liturgia, o termo registra o processo dinâmico que rompe com ímpeto quando a fé se instala nas bases de uma cultura. Cada povo tem seus próprios elementos culturais que são conciliáveis com a liturgia romana, porque são isentos de erro e superstição e assim, de maneira fácil, podem ser incorporados por ela. Além disso, se a Igreja cultiva os valores dos povos de Deus, não é apenas para atender ao desejo das várias nações, mas para acolher as exigências da própria Liturgia. No momento em que esse processo leva à formação de novos elementos nos ritos, é preciso aprovação da Conferência Episcopal e da Sé Apostólica, pois pertence a essas instâncias garantir o autêntico espírito litúrgico e preservar a harmonia substancial do rito romano. 31 A inculturação é o caminho mais complexo: introduz ritos sociais ou religiosos, dando-lhes sentido cristão, sem desfigurar sua natureza. A própria liturgia romana assim se formou, inserindo, por exemplo, a festa pagã do Sol invicto na celebração do Natal. Com essa inculturação, a Liturgia se propõe continuar na história, como o milagre de Pentecostes, quando, sob o impulso do Espírito, multidões entendiam a linguagem única do amor e proclamavam as maravilhas de Deus, expressando-se cada um em sua língua (At 2,4.6). Voltando ao espírito de São Paulo, o grande missionário cristão; nas missões modernas, a Igreja descobriu no desabrochar dos valores culturais dos povos, as sementes do Verbo, presentes no íntimo de cada ser humano à espera da luz do Evangelho. O Concílio Vaticano II confiou à alçada e ao zelo das Conferências Episcopais de todo o mundo a incumbência de estudar com seus peritos os elementos que oportunamente podem ser incorporados na Liturgia. Isso vem diretamente dos anseios de integrar, nas celebrações, expressões da religiosidade popular. Entre os vários grupos étnicos, como os índios, os negros, os orientais, aparecem alguns desses elementos, que já merecem ser inculturados em nossas celebrações, principalmente nos sacramentos. 10. As grandes Conferências e suas conquistas As primeiras Conferências foram fundamentais para que a Igreja do Continente levasse à plena realização os anseios conciliares, mas também pudesse dar-lhes legitimidade e iluminação para que assim fossem superadas as divergências e os desvios presentes nessa mesma renovação eclesial e litúrgica. Algumas considerações podem ser fundamentais para reconhecer a reforma litúrgica na América Latina. 10.1. Conferência de Medellín (Colômbia, 1968) O documento que encerra essa Conferência evidencia, em relação a Jesus Cristo, a tríplice dimensão que documenta todos os ministérios na vida da Igreja. Dessa maneira, Jesus Cristo é celebrado como profeta que se integra na realidade das comunidades, como pastor que leva o povo de Deus na sua libertação e como liturgo que celebra a vida em todas as suas extensões. Além disso, é realçada a dimensão social das celebrações litúrgicas (BEOZZO, 1998, p. 823-850). A Conferência de Medellín deixou uma grande herança.Fez valorizar com muita intensidade a vida litúrgica das comunidades e possibilitou que os ministérios leigos manifestassem uma diversidade de carismas, serviços e funções, inserindo os próprios 32 leigos como membros ativos na vida missionária, profética e sacerdotal da Igreja. O documento mostra a profunda relação entre a vida litúrgica e a prática da caridade, recuperando os princípios fundamentais das comunidades cristãs dos primeiros séculos. Medellín informa: A liturgia, momento em que a Igreja é mais perfeitamente ela própria, realiza, indissoluvelmente unidas, a comunhão com Deus e entre os homens, e de tal modo, que aquela é a razão desta. Busca-se, antes de tudo, o louvor da glória da graça. É certo, também, que todos os homens precisam da glória de Deus para serem verdadeiramente homens. E por isso mesmo o gesto litúrgico não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado por ter os sentimentos de Cristo Jesus, e para uma contínua conversão (Doc. Medellín, 2005, p. 155). Da vida litúrgica, sublinhamos seus vários aspectos. Quanto às suas dimensões: conhecimento e vivência da fé; elevação do ser humano; animação da comunidade e reconstrução da esperança; comprometimento com as realidades humanas. Quanto aos elementos: catequese prévia e continuada; adaptação aos gênios da cultura; acolhida da pluralidade; assumir a dinâmica na evolução da humanidade; integrar a experiência vital entre fé, liturgia e vida cotidiana; elevar a realidade humana em seu sentido cristão. Quanto aos métodos: celebrações em pequenos grupos; intensificação da pastoral comunitária; celebrações comunitárias dos sacramentos e sacramentais; valorizar as devoções populares como veículos de fé; comprometimento com Deus e a humanidade. Para os “padres de Medellín”, a espiritualidade litúrgica é fecundada na luta pela libertação e pela fraternidade entre os povos. 10.2. Conferência de Puebla (México, 1979) A liturgia ocupa um espaço privilegiado de comunhão e de participação da Igreja como um todo, principalmente dos pobres. Entende-se que as ações litúrgicas têm como finalidade unir a vida pessoal com a construção da comunidade, pois dessa forma encontrará o sentido da libertação da sociedade humana. Esse documento afirma ainda que, para suplantar o formalismo e o neorritualismo, o repertório litúrgico e os ritos precisam aumentar a criatividade, sem perder a unidade da Igreja, assim como valorizar a religiosidade popular. É necessário aceitar e entender os valores humanos e culturais dos grupos étnicos, que transmitem as marcas fundamentais da comunidade latino-americana. A extensão 33 fundamental da liturgia nesse período é a comunhão e a participação. 10.3. Conferência de Santo Domingo (1992) Na Conferência de Santo Domingo, na dimensão litúrgica, foi destacada especialmente a dinâmica comunicativa da liturgia. Os rituais e toda simbologia litúrgica devem atingir o coração das culturas, à luz dos três grandes mistérios cristãos: a natividade, a celebração pascal, e o Pentecostes, para que o povo de Deus seja unificado na fé, na partilha e na solidariedade, ao redor de Jesus Cristo. Há uma necessidade e também uma preocupação muito grande em fazer com que as celebrações se tornem sempre mais dinâmicas, participativas e fecundas. A criatividade e a introdução de elementos culturais são reconhecidos como elementos da animação litúrgica, embora haja sempre uma ideia fixa com a fidelidade à tradição e a unidade com a igreja universal. Os sinais e os símbolos precisam ser introduzidos nos rituais como expressão da fé encarnada; os cultos devem ser apresentados com as expressões e devoções das comunidades eclesiais. Há uma necessidade de reproduzir as formas, sinais e expressões culturais dos povos, para que as celebrações sejam eloquentes e transformem a vida da assembleia celebrante. A dimensão fundamental da liturgia precisa ser inserida no contexto, nesse período, pela inculturação. 10.4. Conferência de Aparecida (Brasil, 2007) A grande chave de leitura da Conferência de Aparecida (Brasil) é a evangelização. Reconhecendo a grande limitação dos cristãos católicos batizados (aproximadamente 75%), os bispos se preocupam com a eficiência da evangelização, que se faz pela catequese, pela vida litúrgica, pela vivência comunitária e pelas práticas cristãs. Como se reconhece que a religiosidade popular está intrinsecamente unida à vida eclesial e litúrgica, procura-se a integração desses valores como identidade do povo de Deus em nosso continente. Valorizando a religiosidade popular, compreende-se esse valor cultural de nosso povo, seja assumido nos rituais comunitários, seja na piedade popular. A percepção e adesão dos valores da piedade popular servem para envolver os fiéis na vida litúrgica, pois essa religiosidade é um elemento constitutivo de nossa vida eclesial. Certo abismo que se encontra entre as práticas litúrgicas formais e as expectativas dos fiéis deve ser superado, construindo uma ponte entre elas; evitando assim a dicotomia entre a Igreja paroquial e a comunidade eclesial, como têm sido identificadas essas duas realidades. Quando os pastores e padres propõem celebrações mais formais e canônicas, os fiéis buscam os sacramentos mais 34 populares, como batismo e primeira eucaristia, missas de sétimo dia e encomendação dos defuntos e, sobretudo, os rituais de suas devoções tradicionais. Superar essa dicotomia é um árduo trabalho de reflexão, acolhida e humildade, que deve ser considerado pelos presidentes das comunidades e pelas equipes de liturgia. Afinal, o mistério pascal de Jesus Cristo é plenamente celebrado nas procissões, peregrinações, rosários e vias-sacras. A discriminação contra essas expressões provocou rupturas entre o clero e os líderes religiosos populares. Os ensinamentos de Aparecida nos apontam caminhos de redescoberta mútua desses espaços litúrgicos. O academicismo litúrgico precisa encontrar seu parceiro antagônico nas experiências litúrgicas de nossas assembleias populares. Para ser discípulo e missionário, binômio da identidade cristã de nossos fiéis, é urgente a integração entre a mística cristã e a evangelização, mediadas pelas ações litúrgicas, que lhes dão força e cumprimento. Podemos acentuar a noção de Sagrada Liturgia, assumida como força expressiva de nossas comunidades. Na liturgia se realiza o encontro dos cristãos com seu Senhor, fazendo-os discípulos e convocando-os à missionariedade. Podemos encontrar essa anotação no próprio texto: Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada Liturgia. Ao vivê-la, celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais nos mistérios do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos e missionários. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II nos mostra o lugar e a função da liturgia no seguimento de Cristo, na ação missionária dos cristãos, na vida nova em Cristo e na vida de nossos povos nele (Doc. Aparecida, 2007, n. 250). A celebração litúrgica terá seu papel na vida da comunidade quando for considerada como consagração do discipulado de Jesus Cristo e o ritual da graça divina que envia seus discípulos em missão, para converter a humanidade. Que se descubra sempre mais a força espiritual dos cristãos e de sua religiosidade, tantas vezes embutida nas práticas devocionais, para que os fiéis se sintam protagonistas dentro de nossas liturgias. A harmonização entre as práticas de piedade popular e a vida litúrgica de nossas assembleias continua um caminho aberto a ser desbravado e harmonizado. 11. Breve olhar sobre nossas comunidades Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, constatou-se de forma bem clara e objetiva a celebração nas línguas vernáculas, a mudança de estilo das celebrações e 35 a simplificação dos ritos, além da visível alegria e da participação nos cantos. Houve, também, grande número de cursos de formação litúrgica. Nos anos seguintes, foram realizadas as traduções dos rituais litúrgicos, em que surgiram documentos
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