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Liturgia no Vaticano II - Antônio Sagrado Bogaz

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ÍNDICE
Capa
Rosto
Apresentação da coleção Marco Conciliar
Introdução
I. Prelúdios da reforma litúrgica conciliar
1. Desvelamentos litúrgicos pré-conciliares
2. Os anos anteriores ao Vaticano II
3. Um Concílio para renovar
4. A gênese da reforma litúrgica
5. Histórico da clericalização na vida litúrgica
6. Elaboração da Sacrosanctum Concilium
7. Releitura de conceitos litúrgicos
8. Valores litúrgicos conciliares
9. Antropologia cultural na vida litúrgica
9.1. Resgate da adaptação ritual
9.2. A riqueza da criatividade
9.3. Variações da inculturação
10. As grandes Conferências e suas conquistas
10.1. Conferência de Medellín (Colômbia, 1968)
10.2. Conferência de Puebla (México, 1979)
10.3. Conferência de Santo Domingo (1992)
10.4. Conferência de Aparecida (Brasil, 2007)
11. Breve olhar sobre nossas comunidades
II. Mística da sacrosanctum concilium
1. Elementos constitutivos de uma nova liturgia
2. Redescoberta da mística litúrgica
3. Dimensão da subjetividade nos rituais
4. Povo de Deus celebrante
5. Dimensões da assembleia litúrgica
5.1. Assembleia de crentes
5.2. Reunião em nome do Senhor
5.3. Assembleia como ecclesia
5.4. Assembleia espiritual
5.5. Escrituras sagradas
5.6. Fecundidade do rito
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5.7. Celebrar como família eclesial
III. Novo rosto da vida litúrgica
1. Nova eclesiologia, nova liturgia
2. Novos modelos rituais
3. À imagem dos povos
4. Nova linguagem e tantas línguas
5. Tempos novos do Espírito
6. Adapttação do repertório litúrgico
6.1. Adaptação como inculturação
6.2. Adaptação como criatividade
6.3. Adaptação sociológica
6.4. Adaptação pastoral e etária
7. Reeditando a teologia litúrgica
7.1. O mistério pascal de Cristo e do povo
7.2. O encontro de diferentes credos
7.3. Ritos na diversidade cultural
7.4. Renascer dos ministérios
7.5. Renascer da espontaneidade
IV. Caminhos e descaminhos perspectivas no horizonte litúrgico
1. Corporeidade na comunicação litúrgica
2. Estética e folclorismo
3. A mística de nossas celebrações
4. Desbravar novos caminhos
Conclusão - Algumas luzes do espírito
Referências bibliográficas
Fontes e documentos
Manuais
Sobre o autor
Coleção
Ficha catalográfica
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O
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR
Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja católica em muitos aspectos e, em certa
medida, o próprio cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja
foi não somente anunciada em várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de
construção assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo vigor de seu
carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e perseverante desse Papa, certamente não
teria havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força
carismática de líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo Concílio
em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas.
Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da
Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da
chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se
e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo,
assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade,
reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida
como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o
mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém
inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão
consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se
referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e
autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo.
O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada
primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos
ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões
conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se
seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no
processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram
em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto
da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir
muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja
comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social
da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso,
sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio, e particularmente no hemisfério
sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas
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da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma
conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas,
sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição
anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina
tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na
dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II,
do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista
geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas
por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres
conciliares.
Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso,
expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico
importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no
dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de
janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em
prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja
como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca
previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por
outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi
desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais
secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes
a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos
e esperançosos.
O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o
hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua
caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso”
completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por
todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia
com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas.
Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou,
entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências
que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos
tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da
verdade e na construção da fraternidade universal.
A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o
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Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas,
nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada
em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande
Sínodo, o desenvolvimento da questão noperíodo pós-conciliar e a análise crítica –
balanço e prospectiva – dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da
temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no
âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências
pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de
renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II
se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa
medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos
Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do
Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de
Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio
tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a
partir da Cúria Romana.
Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio
como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo
de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados
pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada
autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para
os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje, em muitos aspectos, radicalmente
diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de
1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente
válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua,
sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o
diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o
serviço desinteressado a toda humanidade, particularmente aos mais necessitados.
O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida
das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o
espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos
do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram,
sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges
passaram ao status de “irmãos separados”, de distantes passaram a fazer parte do
grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a
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Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente
desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João
XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro
e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as
demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de
um possível “pensamento conciliar”. O olhar ecumênico esteve presente como um
vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a
missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e
Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a
reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais
do Concílio (cf. UR 1).
Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não
somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma
doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma
simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao
fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo
para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da
Igreja. Em seu discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: “Deus ‘quer
salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm
2,4)”. E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica
amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão
geral: “Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos
da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se
ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os
futuros impulsos do Espírito Santo” (n. 24).
De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja
havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no
Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento
histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas
denominações. A constatação comum dos cristãos, de que as divisões internas da
mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão, fazia
do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também
reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais
Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um
quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das
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fronteiras católicas.
Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino
comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelam avanços e estagnações. O
medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem
gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós-
conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o
diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas
precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a
diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a
convivência entre todos os povos. Em tempos de pluralidade cultural e religiosa, o
diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais
justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo
parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que
possibilita a construção de patamares para a convivência humana.
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos.
Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem
desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do
único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa
Francisco, Evangelii Gaudium, 244).
João Décio Passos
Wagner Lopes Sanchez
Coordenadores
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N
INTRODUÇÃO
ovos tempos da liturgia é uma utopia dentro da proposta da reforma conciliar, inaugurada com a
Constituição Sacrosanctum Concilium (1963), que foi o primeiro dom do Concílio Vaticano II. Desde
sua promulgação, os caminhos da vida litúrgica foram marcados por passos transformadores que renovaram,
ou melhor, revolucionaram os elementos constitutivos das ações litúrgicas cristãs. Quando recordamos a
liturgia da Igreja desde o Concílio de Trento até o Concílio Vaticano II e a comparamos com as dinâmicas
rituais nestas últimas décadas, percebemos todas as transformações que ocorreram na vida da Igreja e nos seus
rituais. Todas as mudanças foram refletidas e assumidas para atingir o objetivo fundamental dos padres
conciliares para a vida litúrgica. O Documento conciliar tem grande preocupação com a eficácia sacramental e
litúrgica. De fato, na SC lemos que “devem os pastores de almas vigiar para que não só se observem, na ação
litúrgica, as leis que regulam a celebração válida e lícita, mas também que os fiéis participem nela consciente,
ativa e frutuosamente” (SC, 11). O mesmo tema encontramos na mesma Constituição (n. 14, 19 e 110). A
participação se realiza na própria assembleia celebrante (SC, 26), quando se congrega em nome de Jesus
Cristo (SC, 121), e sua composição deve ser harmoniosa (SC, 28-29).
A espiritualidadeque sustenta essa transformação é a centralidade do mistério
pascal de Cristo, vivido com celebrações que equilibram as emoções, a evangelização
e a razão, ao mesmo tempo que promove a transformação da vida. Cada fiel vive na
liturgia a irradiação da fé diante da razão, respondendo à vontade, diante da graça de
Deus. Descobrimos que os sentidos e a imagem são elementos fundamentais na
perspectiva contemplativa. Não se pode descuidar das culturas, da linguagem e dos
contextos humanos que se expressam nos sinais sensíveis da liturgia. A reforma das
ações celebrativas renova o seu próprio “repertório litúrgico”, promovendo uma
releitura dos rituais em sua complexidade. Esse novo olhar é o objeto da apreciação
da reforma conciliar. Preocupa-nos compreender os passos que foram dados, suas
conquistas, seus limites e, particularmente, as perspectivas que se desdobram diante
do universo eclesial que vivemos.
A Sacrosanctum Concilium é o germe de vida que provoca essa transformação.
Encontramos em seus artigos as proposições, objetivos, espiritualidade e caminhos
desse processo renovador. Essas mudanças estruturais evidenciam a ação divina nas
realidades humanas, celebradas em comunidade. Todas essas mudanças visíveis
(língua, estrutura, simbologia, entre outras) valorizam a importância da formação
litúrgica, para aprofundar sua teologia e sua espiritualidade. A diversidade de dons,
que é um presente do Espírito Santo (1Cor 12,4-11), é a iluminação para incorporar
novos instrumentos litúrgicos para celebrar o mistério pascal. Entende-se, assim, que
a liturgia é fonte de vida e expressão existencial da comunidade eclesial. É o ápice da
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comunhão com Deus, que dilata seu coração como fonte perene das graças celestiais.
É uma ação da gratuidade divina e da acolhida dos fiéis.
Vamos compreender como a liturgia foi se tornando sempre mais um espaço
privilegiado da comunhão comunitária com Jesus Cristo. Na Palavra, na Eucaristia e
nos sacramentos, a liturgia torna-se sinal e instrumento da graça. Assim, o mistério
pascal se atualiza e os cristãos se comprometem com a transformação da humanidade.
Percorrendo os anos da reforma, provocada pelo Concílio, perceberemos como se
deram essas transformações no repertório litúrgico das nossas comunidades. Toda
liturgia é instrumento de salvação integral e se compromete com a santificação do
mundo.
Descobriremos como a vida litúrgica renovada serve aos fiéis para animar a vida
cristã nas dimensões pessoal e comunitária. Compreendamos, então, como a
superação do ritualismo e do fixismo possibilita que a espiritualidade e a pastoral
litúrgica sejam o múnus autêntico do mistério pascal, que é nossa vida em Cristo.
No aprofundamento da força inovadora do Concílio Vaticano II, revemos
criticamente os caminhos da vida litúrgica nestes novos tempos da Igreja, que
realizaram mais transformações que todos os últimos séculos da vida eclesial.
Em primeiro lugar, procuramos entender os últimos acontecimentos e escritos que
foram despertando a necessidade de transformações durante as últimas décadas
anteriores ao Concílio. Um breve olhar sobre esse processo de reflexão nos ajuda a
compreender as novidades conciliares. Os desvelamentos litúrgicos pré-conciliares,
particularmente do magistério e dos grandes liturgistas, são fundamentais para
entender os novos conceitos da teologia litúrgica. Nos anos anteriores ao Concílio,
vários documentos, conferências e ações inéditas dentro do campo litúrgico
promovem o alicerce dessa renovação.
Quando aprofundamos, num capítulo especial, os testemunhos e registros da
realização das sessões conciliares, descobrimos que o entusiasmo era elevado e todos
os fiéis, dentre pastores, liturgistas e povo de Deus, estavam imbuídos da necessidade
de mudanças urgentes, para ingressar o povo de Deus no universo contemporâneo,
em constante transformação. A mudança não se realiza apenas dentro da vida
litúrgica, mas todas as áreas da vida eclesial são tocadas por profundas mudanças. Se
historicamente testemunhamos a clericalização dos rituais, algumas posturas foram
importantes para que os leigos voltassem como verdadeiros celebrantes e não meros
assistentes dos rituais litúrgicos. A mudança de eixo na compreensão da vida litúrgica
exige a releitura dos conceitos litúrgicos. Neste capítulo da obra, procuramos
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conhecer a estrutura, espiritualidade e propostas da Constituição litúrgica, com toda a
sua inovação temática. Descortina-se um novo universo litúrgico para a Igreja, e as
transformações surgem como sua natural consequência.
Estamos, neste itinerário da reflexão, aptos para delinear os valores e a
antropologia da liturgia cristã. A liturgia que se inaugura com a reforma conciliar é
um caminho que renova os valores das celebrações, naquilo que se refere à formação
da assembleia, à composição do repertório litúrgico e à mística cristã. Não se trata de
refazer os elementos constitutivos dessas mesmas celebrações, mas dar-lhes uma
perspectiva renovada, que eleva o mistério pascal de Cristo em referência à vida e ao
contexto dos fiéis. Vida e liturgia se encontram dialeticamente para promover a
elevação do espírito humano a Deus e fecundar sua existência, numa constante busca
de coerência no caminho de santificação. A fecundidade litúrgica coloca o conceito
ex opere operato em constante interação com ex opere operantis. Nessa reforma,
esses dois conceitos se tornam elementos constitutivos das ações litúrgicas. Para que
esse repertório seja eficiente na edificação da eficácia sacramental, aprofundaremos
os conceitos de adaptação ritual, no qual compreenderemos os bens da adaptação,
conforme encontramos na Sacrosanctum Concilium, que é a “Carta Magna da
adaptação litúrgica”. No Documento, encontramos as principais preocupações e
princípios para a Reforma Litúrgica no setor da adaptação. Ao mesmo tempo que se
insiste na acolhida dos valores e bens culturais dos povos, solicita-se o cuidado para
não incorporar desvios doutrinais e superstições. Eis o texto: “A Igreja considera com
benevolência tudo o que nos seus costumes não está indissoluvelmente ligado a
superstições e erros, e, quando é possível, mantém-no inalterável, por vezes chega a
aceitá-lo na Liturgia, quando se harmoniza com o verdadeiro e autêntico espírito
litúrgico” (SC, 37b). Para tal propósito, vamos reconhecer o processo de adaptação
concernente a alguns valores como a cultura, a faixa etária, a dimensão pastoral, a
criatividade e a integração histórico-social do repertório litúrgico.
Um breve olhar sobre as grandes conferências episcopais da América Latina, que
sucederam ao Concílio, mostra o processo de integração histórica dos rituais; por seus
artigos, descobrimos como eles se envolveram com as necessidades reais do ser
humano, passando por sua religiosidade e adentrando sua realidade histórica.
Podemos afirmar que esse foi um dos processos históricos mais relevantes de toda
trajetória da comunidade cristã pós-conciliar.
Essa visão panorâmica das décadas pós-Concílio, como se fosse um grande rio
com muitos afluentes, desemboca no grande lago da mística litúrgica que é
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grandemente renovada e integrada às novas eclesiologias, como variantes dentro da
universalidade da fé cristã. Consideramos a superação do rubricismo e da
objetividade dos rituais, compreendendo como é precioso o valor subjetivo e como
podemos integrá-los na história das assembleias e em seus sentimentos religiosos,
sem perder os bens adquiridos, como a tradição e os rituais elaborados ao longo dos
séculos. Com a subjetividade na vida litúrgica, entendemos que é possível integrar-se
aos anseios da comunidade celebrante, sem romper com a tradição e as normas que se
fixaram ao longo dos tempos. Criatividade e fidelidade são conceitos que promovem
o diálogo entre a tradição e a renovação, entre a norma e a espontaneidade. Falamos
de uma interação entre as dimensões cristológica e pneumatológica da espiritualidade
cristã, que renova a visão de Igreja, a teologia e o itinerário da vida litúrgica. Daqui,
lançamosum olhar sobre a assembleia que se reúne para louvar o Senhor e
engrandece seu nome com sua própria história colocada diante dele. A liturgia se
compõe como um encontro de fé da família eclesial e Deus, na celebração do mistério
pascal, promovendo uma fecundidade capaz de santificação e de transformação do
povo de Deus, protagonista desse encontro entre Deus e seus “crentes”.
A renovada eclesiologia – veremos num capítulo sobre o novo rosto da vida
litúrgica – promove novos modelos rituais, abertos à solicitude dos tempos e suas
assembleias. Para ser eficiente, descobrimos que a comunidade cristã deve elaborar
seu repertório litúrgico à imagem dos povos, assumindo sua linguagem e seu universo
simbólico. Essa perspectiva exige a reedição da teologia litúrgica, na qual se
encontram diferentes religiosidades e se integram inúmeras variações culturais.
No capítulo final, procuramos tecer uma apreciação de todo esse processo, em que
os caminhos e descaminhos se encontram e se perdem, pois a renovação exige sempre
a revisão e a retomada dos princípios fundamentais. Se a celebração se processa como
um ritual cristalizado, não temos o perigo de incorreções, mas, se buscamos novas
possibilidades rituais, descobrimos que é preciso redobrar a atenção para manter a
coerência com os princípios fundamentais da liturgia e as orientações universais da
Igreja. Apreciamos alguns elementos inerentes ao processo litúrgico, como a
corporeidade, as vestimentas culturais e a renovação da mística, como alma do
repertório litúrgico.
Compreendendo a história, como propomos, reconhecendo os novos valores da
vida litúrgica, percebendo os desafios que se despontam aos nossos olhos, somos
convidados a desbravar novos caminhos, os quais nos colocarão, com confiança e
esperança, dentro do universo do ser humano contemporâneo. Esse é o propósito
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fundamental da apreciação do panorama litúrgico da Igreja, na celebração do Jubileu
de Ouro do Concílio Vaticano II, o evento eclesial mais importante dos últimos
séculos.
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H
I
PRELÚDIOS DA REFORMA LITÚRGICA CONCILIAR
á alguns séculos, a vida litúrgica na Igreja cumpria determinações canônicas e ritualistas muito rígidas,
em consequência dos confrontos doutrinais com movimentos cristãos contrapostos que ocorreram na
Igreja. Depois do Concílio de Trento, as preocupações com os ritos, sua precisão e detalhes tornaram-se
preponderantes nas celebrações, particularmente os sacramentos. Os rituais devocionais, como bênçãos,
procissões, benditos, promessas, cumpriam rituais mais espontâneos, mais distantes das exigências rituais
canônicas. O legalismo tornou-se uma muralha contra as reformas culturais, antropológicas e devocionais das
ações litúrgicas assim que a evangelização aterrissou em novos continentes, culturas, simbologias e novas
civilizações sem nenhuma interação na composição do repertório litúrgico da tradição tridentina.
O Movimento litúrgico tem sido muito aprofundado pelos cientistas da liturgia,
por ser considerado o “prelúdio” da reforma Conciliar que se iniciou com a
Constituição Sacrosanctum Concilium (BOGAZ, 2005, p. 36). De fato, com o
Movimento Litúrgico, as águas começaram a se mover e foi desencadeado um
processo paulatino de mudanças nas concepções de liturgia. Aos poucos, a liturgia foi
se desvelando como culto público da Igreja, no pensar do monge belga L. Beauduin
(1873-1953), definindo-se como todos os atos de culto que a Igreja reconhece como
próprios para celebrar o mistério de Cristo. Desvela-se, nas reflexões posteriores,
como celebração do mistério da salvação, no qual o mistério de Cristo é a realidade
que se celebra e se atualiza pelos rituais litúrgicos. Esse é o pensamento de O. Casel
(1886-1948), que apresenta a liturgia como um evento primordial de salvação que se
faz presente no rito, através do qual se realiza o plano de salvação (MARSILI, 1987,
p. 97). Ao lado das proposições dos baluartes do Movimento Litúrgico, que eram, na
maioria, monges beneditinos, a Igreja hierárquica também procura desenvolver
propostas para a reforma litúrgica.
1. Desvelamentos litúrgicos pré-conciliares
O Documento mais importante desse processo é a Encíclica Mediator Dei, de Pio
XII, que procura compreender a Liturgia como ação do próprio Cristo como
mediador e sacerdote único da humanidade. Em Cristo se dá o perfeito culto ao Pai.
Pelos ritos litúrgicos, o Pai é glorificado e realiza-se a santificação da humanidade
(Hb 10,5). A comunidade eclesial realiza de forma ininterrupta o culto prestado por
Cristo durante sua vida. Esse culto revela a natureza cultual da Igreja e confirma a
presença de Cristo, seu mediador e sacerdote. A Liturgia é o culto de Cristo, do qual a
Igreja participa. Sua função é a realização dos ritos que revelam o próprio Cristo.
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Muitos são os elementos rituais e espirituais que a Encíclica Mediator Dei
desvelou para a compreensão da verdadeira identidade da Liturgia na Igreja. Celebrar
significa tornar Cristo presente na Liturgia, continuando seu ofício sacerdotal e
prestando um culto agradável a Deus no seu “templo” espiritual que é a Igreja. A
Igreja, em toda ação litúrgica, torna seu divino fundador, Cristo, presente e atuante na
vida da comunidade. Para superar o conceito de ritualismo das práticas litúrgicas,
esse documento reconhece o caráter litúrgico da Igreja celebrante, pois a liturgia é a
ação cultual unitária da cabeça e do corpo da Igreja numa simbiose total. Ela é a
perfeita interação entre o Cristo, cabeça, e a Igreja, seu corpo místico (MARSILI,
1987, p. 99).
2. Os anos anteriores ao Vaticano II
O mundo em profunda transformação, como se anota em todos os documentos do
Vaticano II, urge uma Igreja que se integre a esse processo de mudanças e, portanto,
uma nova visão litúrgica que, mantendo sua essência, procura novas formas de
responder aos anseios de uma nova eclesiologia.
Nos movimentos que antecederam o Concílio, sentia-se necessidade de mudanças
profundas que pudessem renovar a identidade das atividades eclesiais e assim
integrar-se às novas realidades. Os movimentos que surgiram provam esses anseios,
como os movimentos bíblico, eclesial e laical.
A vida litúrgica da Igreja é a maior preocupação entre os movimentos que
surgiram no período. A Mediator Dei tinha deixado marcas importantes que
trouxeram novos elementos, mas visava também a coibir práticas litúrgicas
inovadoras, presentes na Igreja.
Os primeiros acenos referentes às celebrações apontavam para uma reforma
iminente. Pio XII deu alguns passos importantes, como podemos assinalar: a
renovação da Vigília Pascal (9 de fevereiro de 1951), da qual procurou-se simplificar
os ritos para facilitar a participação da comunidade; missas vespertinas e regras para o
jejum eucarístico (Encíclica Christus Dominus, 6 de janeiro de 1953), diminuindo as
horas longas de jejum para participar da comunhão; simplificação das rubricas (23 de
março de 1955), para a celebração das missas e a liturgia das horas; novo Rito da
Semana Santa (16 de novembro de 1955), novamente procurando simplificar as
rubricas e diminuir os movimentos e gestos excessivos dos rituais; instrução sobre a
música na liturgia (3 de setembro de 1958), que visava sobretudo maior participação,
sugerindo o retorno ao gregoriano em substituição ao estilo barroco, muito elitista e
16
coralista (MARSILI, 1987, p. 103).
Foram mudanças pontuais que visavam restaurar os rituais, mas o que se esperava
era uma renovação na natureza da liturgia para que pudessem ocorrer mudanças
fundamentais nos seus símbolos, ritos e movimentos. Enfim, todo o repertório
litúrgico exigia renovação, mas isso somente era possível a partir da conversão dos
conceitos fundamentais da liturgia cristã.
Notava-se, entretanto, grande resistência às mudanças por parte da Congregação
dos Ritos, que pretendia que as reformas litúrgicas ocorressem apenas no plano das
rubricas e, considerando assim, fora dos temas conciliares.
Se por um lado temos uma preocupação grande com a Congregação dos Ritos,
exigindo precisão na ediçãotípica (editio typica é o título dado a todos os livros
litúrgicos da Igreja Católica), desde a ortografia, formas tipográficas e pontuações,
por outro lado sentia-se uma ruptura entre os aspectos práticos (normas) e os aspectos
teóricos (teologia) da liturgia. Ora, bem sabemos que é impossível separar esses dois
aspectos sem que se tornem dicotômicos.
O que se evidenciava, aos poucos e progressivamente, é que a reforma que se
iniciou com Pio XII ia provocando uma nova teologia da liturgia, com novos aspectos
espirituais, eclesiológicos e sobretudo pastorais. A percepção da importância dos
fundamentos teológicos da liturgia foi fecundando a necessidade da sua restauração,
assim que a consciência do mistério pascal como centro de toda celebração provoca a
reforma e gera uma nova visão do cristianismo como “mistério eclesial” (MARSILI,
1987, p. 108).
Estamos em plena gestação, quase imperceptível, da reforma litúrgica. Bem
melhor que seja imperceptível, caso contrário provocaria reações contrárias e
dificultaria, como noutras vezes, seu processo natural. A volta para a importância da
vida pastoral da liturgia, como resposta aos anseios dos fiéis ao redor do mundo,
mostrou que novas trincheiras precisavam ser escavadas para compor os novos
quadros rituais e ultrapassar as barreiras de qualquer renovação.
Antes de tudo, distinguir a verdadeira tradição do tradicionalismo. A tradição nos
insere na evolução dos séculos e nos reporta aos primórdios do cristianismo,
proporcionando um contato vivo com o Cristo. Essa tradição nos leva a considerar e
valorizar as diversas tradições, das mais antigas às mais modernas, em que a
evangelização fecundou os povos e suas culturas. O tradicionalismo representa, ao
contrário, o congelamento de um momento histórico e sua absolutização, dificultando
transformações rituais. Havia, no período, uma identificação errônea dos dois
17
conceitos, a qual impossibilitava mudanças estruturais dos ritos e, muito mais, a
renovação da teologia da liturgia.
Em segundo lugar, devemos considerar que a visão jurídica e ritualista das
celebrações era forte impedimento para entender a teologia dos rituais. Não se
buscava o fundamento e o significado dos ritos, mas se aprendia a repeti-los de forma
sistemática e automatizada. Reduziu-se a ciên- cia litúrgica à manipulação dos
símbolos. O conhecimento do cerimonial torna-se a garantia das rubricas exatas e
objetivas, para garantir a validade sacramental, indiferente à sua fecundidade
fundamental (SCHMIDT, 1966, p. 107). Os fiéis participam das cerimônias como que
assistindo a um espetáculo sagrado, sem se importar tanto com sua própria edificação
espiritual.
Vencidas essas barreiras, com grande profetismo e coragem por parte do Papa
João XXIII, foram lançadas as intenções fundamentais da Sacrosanctum Concilium.
A Liturgia se integra na “atualização da história da salvação”, na qual a transmissão
do mistério pascal se presentifica por meio de um rito legitimamente adaptável aos
tempos e lugares em que se insere a comunidade celebrante. Essa conotação litúrgica
que adentrou o espírito conciliar legitimava a necessidade de atualizar os ritos,
propiciando assim que a cristalização ritual de vários séculos desbrave o caminho da
inovação e da pluralidade do repertório litúrgico. Se essa mobilidade ritual flexibiliza
a execução dos ritos, por outro lado e na mesma direção, a concepção jurídica-
ritualista será superada na perspectiva da dinâmica teológico-espiritual da vida
litúrgica. Os ritos devem servir para aprofundar, rezar e viver o mistério pascal e não
são valores em si mesmos. O valor fundamental das celebrações é o mistério que a
comunidade celebra: ação de Cristo, celebrado em seu corpo, que é a comunidade dos
cristãos, integrando os fiéis com seu Senhor. O culto serve ao encontro humano-
divino, nas duas direções. O ritual é o instrumento de oferta da graça divina à
comunidade celebrante e o louvor de seus membros ao seu Criador e Salvador.
3. Um Concílio para renovar
Reportamos um documento que circula como uma anedota do Concílio entre os
tantos volumes que foram publicados sobre aqueles anos dourados e fecundos da
história contemporânea da Igreja. Vários diários, testemunhos e anotações foram
publicados por bispos, teólogos, observadores e assessores, retratando os
acontecimentos, encontros e o espírito dos padres conciliares.
O testemunho de Mons. Loris Capovilla, na ocasião secretário pessoal do Papa
18
João XXIII, relata os fatos do período. Segundo Mons. Capovilla, o secretário de
Estado, Card. Domenico Tardini, anotou em sua agenda (20 de janeiro de 1959) o
seguinte: “Sua Santidade, ontem pela tarde, refletiu e concretizou o programa de seu
pontificado. Três coisas foram idealizadas: um Sínodo para a Igreja de Roma,
atualização do Código de Direito Canônico e um Concílio Ecumênico. Ele quer
anunciar esses três pontos aos senhores cardeais, no próximo domingo, depois da
cerimônia de São Paulo”.
No domingo referido, dia 25 de janeiro, depois da celebração da missa, o Papa se
levantou e rezou. “Ficou de joelhos mais que o habitual”, diz o testemunho. No
trajeto do Vaticano até a Basílica de São Paulo, manteve-se muito silencioso e
prolongou-se no ritual até mais tarde que das outras vezes. Esperou que os jornalistas
se afastassem para anunciar aos cardeais presentes que estava para convocar a Igreja
católica para um grande Concílio. O fato foi muito inusitado, pois, apenas três meses
depois de sua eleição, aos 77 anos, o Papa João XXIII anunciou ao mundo a
realização do Concílio. Suas palavras ficaram marcadas e, nas entrelinhas, mostravam
a grande expectativa em relação ao evento e sua confiança em Deus.
“Pronunciamos, diante de vocês, trêmulos e com algo de comoção, mas ao mesmo
tempo com humilde resolução de propósito, a proposta de uma dupla celebração: um
sínodo diocesano para a cidade de Roma e um Concílio Ecumênico para a Igreja
universal.”
Essa narrativa manifestava plena consciência de que estavam sendo inaugurados
novos tempos para a Igreja. Três são as diretrizes, segundo o mesmo Monsenhor, para
a realização dessa grande reunião ecumênica:
1. Promover a renovação interior dos católicos;
2. Inserir os católicos diante da Igreja no mundo contemporâneo;
3. Solicitar aos bispos, sacerdotes e leigos para a corresponsabilidade na colegialidade da Igreja.
Todos são responsáveis pela salvação dos homens, e essas diretrizes perpassam
todas as sessões conciliares.
Na verdade, quando todos pensavam que João XXIII seria apenas um “pontífice
de transição”, ele lançou pilares que mudaram para sempre a história da Igreja.
Para Mons. Capovilla, “se o Concílio ainda não alcançou as metas fixadas, quer
dizer que nossa conversão é uma tarefa ainda por cumprir”. Graças ao Concílio,
“sabemos, melhor que ontem, quem somos e para onde vamos”, como encontramos
na Constituição Lumen Gentium, sabemos ainda mais “que idioma devemos falar e
que mensagem devemos difundir”, conforme encontramos na Constituição Dei
Verbum, “como e com que intensidade rezar”, segundo a teologia da Sacrosanctum
19
Concilium, e “que atitude assumir diante dos problemas e dramas da humanidade
contemporânea” como se encontra na Constituição Gaudium et Spes.
Para ele, que destaca em palavras textuais esses quatro documentos como pilares
da renovação conciliar, os documentos sobre a liturgia, sobre a igreja, sobre a palavra
de Deus e sobre a realidade atual integram o cristianismo no coração do ser humano
de nosso tempo. Esses documentos são os quatro pilares que sustentam o edifício da
renovada teologia pastoral e alentam a escutar a voz de Deus, a dirigir-se a Deus
como filhos, e obrigam a dialogar com todos os compromissos da família humana.
Estão abertas as portas do Concílio Vaticano II e a vida litúrgica da Igreja ganhará
novos contornos, dinamizando e engrandecendo a celebração de seus rituais.
4. A gênese da reforma litúrgica
Podemos dizer que talvez a década de 1960 tenha sido a mais complexa, sob o
ponto de vista dos acontecimentosmais marcantes do século XX. Foram tantos que
seria necessário um livro para entender como o mundo estava mudando em todos os
sentidos.
Começa a construção do Muro de Berlim. Brasília, nova capital do Brasil, é
inaugurada. O russo Yuri Gagarin torna-se o primeiro homem a entrar no espaço.
Neil Armstrong, um americano, é o primeiro homem a pisar na Lua. John Fitzgerald
Kennedy, presidente dos Estados Unidos, é assassinado em Dallas, Texas. Um golpe
militar tira do poder João Goulart, presidente do Brasil. Inicia-se a ditadura militar.
Os Beatles e os Rolling Stones popularizam sua música em todo o planeta. Ocorre o
primeiro transplante de coração na África do Sul. Lançamento do primeiro
computador eletrônico, o RAMAC 305, pela empresa IBM. Guerra dos Seis Dias.
Israel ataca Síria, Egito e Jordânia. Tem início a Revolução Cultural na China. É
assassinado o ativista dos direitos civis Martin Luther King. Enviada a primeira
mensagem de e-mail entre computadores distantes.
Nessa época, teve início uma grande revolução comportamental com o surgimento
do feminismo e os movimentos civis a favor das minorias étnicas. O Papa João XXIII
abre o Concílio Vaticano II e revoluciona a Igreja católica.
Nossa visão é solidificada na Igreja. Essa imagem vem sendo gerada há séculos.
Essa solidificação é como um diamante. Ela nos tem permitido a nossa estabilidade e
tem evitado todos os tipos de conflito. Mas não podemos entendê-la como um
processo de estagnação porque seria um perigo próximo da regressão. Como a vida
não é estática, assim também a Igreja não pode ser. Foi num sentido amplo de
20
coragem e audácia que o Papa João XXIII se lançou na maior reforma, ou seria
revolução, ao convocar um Concílio Ecumênico não para reforçar paradigmas, muito
menos combater heresias e continuar firmando doutrinas e doutrinas. O que menos o
papa queria era confrontar rupturas. O objetivo do Concílio Vaticano II era
extremamente claro, como um rio de águas límpidas. Renovar a identidade da Igreja
diante das mudanças, das grandes transformações do mundo moderno após as
terríveis Guerras Mundiais. Era visível que o mundo passava por transformações
muito rápidas. Não havia tempo para permanecer estático diante dos olhos que agora
viam novidades em todos os cantos do mundo.
Dessa maneira, João XXIII convocou os representantes da Igreja para participar
do Concílio Ecumênico Vaticano II, através da Bula Papal Humanae salutis, de 25 de
dezembro de 1961, para promover uma reforma nos vários setores da Igreja Católica
Apostólica Romana.
A abertura solene aconteceu no dia 11 de outubro de 1962. Com o falecimento do
Papa João XXIII durante o Concílio, assumiu a Sede de Roma o Cardeal João Batista
Montini, sob o nome de Paulo VI. O Papa Paulo VI deu, então, continuidade aos
trabalhos desenvolvidos até a data do falecimento de João XXIII e considerou
encerrado o Concílio, depois de 4 sessões, no dia 8 de dezembro de 1965.
Segundo os dados publicados, participaram entre 2000 e 2200 pastores (bispos e
cardeais), tratando de temas da Igreja, como a Palavra de Deus, a identidade da
Igreja, a vida litúrgica, os meios de comunicação, a identidade dos leigos e
presbíteros, as missões, entre outros.
Pode-se dizer que o Concílio reuniu uma riqueza impressionante de princípios e
reflexões nos documentos aprovados. Tivemos quatro Constituições, nove Decretos e
três Declarações temáticas.
Quando o Concílio Vaticano II completou trinta anos, João Paulo II classificou o
Concílio como uma grande reflexão sobre a vida da Igreja e suas relações com o
mundo. Considerou, também, nessa premissa que o Concílio Vaticano II teve, a busca
pela fidelidade ao Senhor, respondendo aos desafios do mundo atual, acolhendo os
sinais dos tempos, decifrados pela Palavra de Deus.
Entendemos que o pensamento moderno na Europa ocidental se direciona dentro
de uma estrutura que procura marcar fundamentalmente as relações humanas, assim
como as relações religiosas e políticas abrangentes nos últimos séculos. No entanto,
todas as suas seguranças de ordem epistemológica que fundamentam uma forma de
vivência política, cultural e religiosa são destruídas.
21
O imanentismo, que é a doutrina metafísica segundo a qual a presença do divino é
pressentida pelo homem, mas não pode ser objeto de qualquer conhecimento claro, é
visto como um sentimento interior, como fonte da única fé. Acontece que o vemos
como profundamente espiritualista; não de ordem transcendental, mas puramente
pertencente ao próprio homem.
A modernidade fez com que o homem acabasse se centralizando em si mesmo. O
panorama do homem moderno deu-lhe uma autonomia da razão, que acabou de certa
forma se desvencilhando da circunscrição religiosa. O ser humano acabou no centro
da arena, tendo, à sua volta, todas as perspectivas como referenciais. Dessa maneira, a
transcedentalidade acabou se fundindo com a racionalidade; o que se entende dela,
em função do eu centralizado, mesmo com as dicotomias que possam aparecer, é que
o homem moderno está centralizado na razão.
A reforma protestante, como é do conhecimento geral, deve seu sucesso a uma
nova sensibilidade religiosa, que acabou considerando o livre-arbítrio humano mais
importante do que os dogmas e as tradições encontradas na prática religiosa.
Os poderes, laicos no setor da política, acabam separados das dominações
eclesiásticas. Anteriormente, era necessário benzer a coroa antes da coroação dos reis.
Hoje, soa como algo das eras medievais. A realidade social, econômica e política não
exige mais os decálogos revelados; o conjunto de leis ou princípios religiosos,
filosóficos, morais, políticos e outros foi esquecido pelas sociedades atuais.
A controvérsia modernista, no início do século XX, atingiu seu ápice, e a Igreja
procurou anatematizar tudo aquilo que distorce ou altera a Palavra de Deus, isto é, as
palavras da Bíblia. Assim, a Igreja sentiu o ataque ao seu Reino, criando confrarias de
perseguição aos modernistas, dentro e fora do âmbito da Igreja, destruindo suas
bases, por meio da excomunhão e fortalecimento do poder institucional. Esse fato fez
com que a Igreja, diante do mundo moderno, criasse uma visão de Igreja totalmente
fechada dentro das realidades históricas.
No período do século XIX ao século XX, muitas das questões filosóficas, na
realidade visões, tentaram responder aos anseios do ser humano sem a intercessão das
religiões reveladas ou sapienciais. Desses novos modelos de respostas que surgiram,
apareceram as chamadas religiões positivas com um direcionamento racionalista e
igualmente positivista. As novas, portanto, religiões positivas tentaram responder ao
vazio existencial que foi gerado pela negação dos estudos das coisas divinas e
espirituais, que provocou uma crise dentro do espírito do homem. A procura de
investigar profundamente as religiões que não tinham divindade incitou uma nova
22
concepção religiosa para o homem contemporâneo.
O direcionamento do espírito modernista acabou provocando uma grande reação
no pensamento europeu, chegando ao repúdio à religião institucionalizada. Dessa
maneira, acabou provocando um grande anticlericalismo, que acabou direcionado
como crítica às crenças instituídas e também aos sistemas religiosos, principalmente
ao catolicismo europeu.
Levando em consideração que a prática religiosa tradicional, católica e reformada,
estava diretamente vinculada aos governos liberais, monárquicos e capitalistas, a
apreciação aos sistemas de governo colidiu na direção das práticas religiosas que
estavam vinculadas a elas. Logo, as massas populares, sem um direcionamento, que é
comum nesses casos, se tornaram anticlericais e hostis aos exercícios relativos ao
culto religioso, e com o direcionamento mais proeminente ao clero católico.
5. Histórico da clericalização na vida litúrgica
É necessário entender que o clericalismo e o anticlericalismo estavam desde o
século XIX em atrito. Os grupos sociopolíticos que realizaram as reformas na fase
inicial do liberalismo eram, em geral, portadores de um sentimentoe de uma
ideologia anticlericais. Se, no que concerne à visão do universo, as elites liberais
perfilhavam o deísmo filosófico, no que diz respeito às crenças, assumiam uma
posição favorável aos dogmas católicos.
Os liberais aceitavam o catolicismo e viam na religião um instrumento de
sociabilidade e de unificação das consciências, embora atribuíssem características
fundamentalmente profanas ao poder público. Já os republicanos e os socialistas iam
mais longe: juntavam à crítica ao clero uma oposição à própria religião. Sendo assim,
revelavam uma concepção agnóstica e, em muitos casos, ateia do universo. No fim do
século XIX, essa variante anticlerical identificou-se com o laicismo.
O chamado fenômeno da laicidade, comum a vários países europeus, encontra
suas raízes na secularização da Época das Luzes e no próprio liberalismo. Como
paradigmas culturais, o positivismo e o cientificismo rompiam com a visão católica
do mundo e opunham-se à filosofia neotomista, difundida durante o pontificado de
Leão XIII. Por isso, os principais mentores dessa cosmovisão lutaram pela
“desclericalização” da sociedade e pela redução da influência social da Igreja.
Por influência do livre pensamento, desenvolveu-se, por exemplo, em Portugal,
um anticlericalismo mais virulento, mais popular e mais irreligioso, com a
intervenção das camadas populares em ações de rua, em acontecimentos como a
23
“caçada aos padres” (1895).
A historiografia tem demonstrado que o anticlericalismo está intimamente ligado
ao clericalismo e que as duas realidades só podem ser entendidas em sua relação
dialética. De fato, o anticlericalismo define-se a partir do seu antagonismo, sem o
qual não teria existência. O clericalismo começou tentando subordinar a sociedade
civil à sociedade eclesiástica (teocracia), usando armas espirituais com fins temporais
e procurando impor-lhe os métodos da Igreja. No século XIX, era frequente os
clérigos tentarem servir-se do poder político para o triunfo da religião sobre a
consciência individual. Fazendo seu axioma do individualismo, segundo o qual a
religião é assunto privado, o anticlericalismo acabou aderindo aos grandes princípios
que definem a concepção laica: separação do religioso do profano, liberdade de
pensamento, independência absoluta do Estado em relação à Igreja e recusa da
ingerência da classe eclesiástica, da Santa Sé e das ordens religiosas da sociedade.
A ideologia anticlerical não é redutível à dimensão política, embora os combates
por ela suscitados se tenham centrado em torno do Estado, já que aí se situava o lugar
privilegiado do afrontamento entre clericais e anticlericais. Essa realidade, no entanto,
tem uma dimensão muito grande, pois recobre a ordem social, o ensino, as ideias, os
costumes e tem pontos de contato com a cultura, a religião e o poder.
Em Portugal, o anticlericalismo adquiriu inicialmente uma feição sobretudo
anticongregacionista e representou uma reação da nova classe política contra o peso
excessivo das ordens religiosas na sociedade. Como sempre acontece em períodos de
mudança de regime, as posições ideológicas radicalizaram-se durante a guerra civil
de 1832-1834 e na fase pós-revolucionária. Nesse momento de ruptura, os liberais
opuseram-se às congregações, que revelavam então uma adesão militante ao
miguelismo.
A legislação publicada nos inícios do liberalismo comprova a existência de uma
mentalidade adversa às congregações. A classe política não punha em causa o
cristianismo nem os valores do catolicismo, mas pretendia diminuir a influência da
Igreja na sociedade e, com essa finalidade, tomou como alvo das suas reformas o
clero regular (HANSEN, 2001, p. 75).
Com a unificação da Península Itálica, em 1870, após a invasão dos reis
piemonteses, o Estado apoderou-se dos territórios eclesiásticos e dos bens da Igreja.
Os bispos que estavam em Roma, reunidos para o Concílio Vaticano I, foram se
dispersando silenciosa e desordenadamente. Acabaram não sendo reconvocados para
novas sessões do Concílio.
24
Como as decisões do Concílio de Trento tinham o sentido de definitivas e perenes,
além da decisão da infalibilidade papal, tinha-se uma vaga ideia de que a era dos
concílios ecumênicos já havia se tornado algo do passado e que seu destino chegara
ao fim.
Com o início do Vaticano II, o sentido da busca do diálogo com outras igrejas
selava o final da Contrarreforma e da teologia apologética. Compreende-se que a
Igreja passava de sua postura de anátema à postura de diálogo. Passa-se do período da
condenação da modernidade para um tempo de escuta e de construção de diálogo.
Como uma criança que desponta para a vida, surge um novo olhar da Igreja em
direção ao mundo e a sua própria história. Havia chegado a hora de buscar a
aproximação da história da salvação com a história do mundo. A dicotomia que,
durante séculos, regeu as esferas antagônicas, como sagrado e profano, civil e
religioso, fé e razão, caminhou para um diálogo de interação. A Igreja saiu da redoma
de vidro e vislumbrou a encarnação no mundo como lugar da salvação para continuar
o projeto que Jesus Cristo iniciou dois mil anos antes.
O Concílio Ecumênico Vaticano II iniciou seu imenso trabalho com a presença
dos bispos do mundo inteiro e com a participação de centenas de assessores,
representantes de outras igrejas, e fez também consulta ao povo de Deus. Sabemos
que todo episcopado se preocupa intensamente com a vida litúrgica da Igreja, com a
evangelização e a promoção da humanidade. Não é do seu direcionamento as
intervenções políticas ou contrárias que aconteciam nos concílios anteriores. A Igreja
se reuniu para discutir, refletir, entender e elucidar sua identidade, além da sua
importantíssima missão no mundo.
Dentro dos assentamentos que o Concílio propunha, através dos representantes
curiais, que julgavam ser opções primordiais, houve uma rejeição às propostas
prepostas. Decidiu-se, praticamente de imediato, que o Concílio não seria uma
elaboração de heresias e anátemas, mas direcionamentos bem objetivos da missão
evangélica da Igreja. Portanto, não se tratava de elaborar um inventário de desvios
doutrinais, morais ou litúrgicos, mas algo de maior importância, que era descobrir a
identidade da Igreja, sua abertura ao mundo, seu caráter como instituição, sua
presença e missão na história da humanidade e, é, claro, seus valores humanos
cristãos.
6. Elaboração da Sacrosanctum Concilium
Com o processo da modernidade, a Igreja percebeu que os novos métodos de
25
comunicação e linguagem poderiam influir na sua evangelização. A comunidade
cristã e principalmente os agentes pastorais tiveram a preocupação de se inserir na
vida moderna, utilizando a interação entre a vida cotidiana e a prática da fé cristã.
Com o Concílio Vaticano II, a visão da Igreja se renova. O documento a figurar
como o primeiro desse concílio inovador foi dedicado à Liturgia e apresentou uma
visão teológica extremamente significativa.
A Constituição Sacrosanctum Concilium foi aprovada em 1963 e abriu novas
perspectivas para a liturgia cristã. Ela permitiu despertar novas dimensões da vida
litúrgica do povo cristão, proporcionando uma reforma fundamental, pela qual as
celebrações acabaram assumindo uma realidade mais autêntica, fecunda e consciente
das comunidades cristãs.
Esse documento sobre a liturgia se caracteriza principalmente por princípios
doutrinais e normas práticas, esculpindo o núcleo da teologia litúrgica. Por meio
dessa ação litúrgica, a mensagem de Jesus Cristo, libertador, se estende na história da
humanidade, através da pregação do Evangelho. O seu sacrifício (doação de sua vida
a Deus pela humanidade), direcionado pelos sacramentos, encontra nos ritos a
edificação da vida litúrgica na comunidade cristã.
É através de sinais simbólicos que a salvação realizada por Cristo se atualiza na
vida dos cristãos, através dos cultos da Igreja. Os rituais, utilizando todo o seu
instrumental litúrgico, como sinais, símbolos, palavras, gestos, movimentos, silêncio
e outros, se transformam nos mediadores no diálogoentre Deus e seu povo, por Jesus
Cristo, no Espírito Santo. Isso faz com que a verdadeira celebração litúrgica somente
aconteça na integração da comunidade cristã com a comunidade trinitária.
A Sacrosanctum Concilium foi aprovada com 2147 votos favoráveis, tendo apenas
4 sufrágios negativos, na sessão solene realizada em 04/12/1963. Foi promulgada
pelo Papa Paulo VI, solenemente, como o primeiro documento do Concílio Vaticano
II.
7. Releitura de conceitos litúrgicos
Entendemos que as ações litúrgicas tenham como proposta a celebração da
história da salvação. Sem o sentido da convicção da presença de Deus Pai na História,
de Jesus Cristo em corpo e sangue e a presença do Espírito Santo, os rituais seriam
apenas representações teatrais dos acontecimentos esplendorosos dos séculos
passados. No entanto, pela fé, essa expressão ritual vem manifestar que esses
acontecimentos divinos ainda estão presentes em nossas vidas e continuam
26
fortalecendo e fecundando nossa história cristã.
A provocação incessante da liturgia como “fonte e cume da vida cristã” tocou o
coração das assembleias celebrantes. Todas as celebrações eram programadas e
revisadas a partir desse importante axioma. Não basta mais celebrar; é preciso que o
rito se expresse como fonte da graça e ápice da comunidade reunida.
Isso faz com que a ação litúrgica da Igreja adquira na comunidade sua força
vivificante. De fato, a Sacrosanctum Concilium afirma que a liturgia é o ponto
culminante e a fonte da vida da Igreja. No Documento Conciliar, encontramos
caminhos para a compreensão da liturgia tanto em sua identidade quanto em suas
características e objetivos, superando, portanto, suas concepções ritualistas. Podemos
encontrar esta definição: “da Liturgia, pois, especialmente da Eucaristia, corre sobre
nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total
eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a
seu fim, todas as outras obras da Igreja” (SC, 10). Essa é a razão que nos move e que
provocou grande movimento da Igreja nas comunidades. Entendemos que todas as
práticas cristãs, como a homilia, a oração, a caridade, o testemunho de fé, levam à
liturgia. É como se o ritual litúrgico concebesse todas as dimensões que cingem a
vida cristã.
Na vida litúrgica, as celebrações se tornam a fonte de vida dos fiéis, além de seu
fortalecimento e edificação, pois estamos diante da graça, da escuta da palavra, dos
louvores, súplicas e preces, além da conquista do perdão e da misericórdia divina.
Devemos sempre compreender que a ação litúrgi- ca favorece a superação da
dicotomia entre celebração e fé. Se não tivermos o aprofundamento teológico, a
mística espiritual e a transformação da própria vida, os rituais não são a expressão da
fé no Filho de Deus. Afinal quem nos convoca, sempre, para a missão no Reino de
Deus é Jesus Cristo.
As ações litúrgicas devem ser plenas, conscientes e participativas como a Igreja
deseja, propondo o uso da Sagrada Escritura, que, então, ficará mais compreensível
ao povo celebrante. A Igreja também propõe um espírito de criatividade e adaptação,
possibilitando a realização da inculturação dos rituais e dos textos litúrgicos aos
grupos étnicos, regiões e povos. A acolhida dos elementos culturais, tanto nos
símbolos quanto na religiosidade, é apreciada pela Constituição. Mais que um espírito
de acolhida, trata-se de uma aspiração dos padres conciliares: “Mantendo-se
substancialmente a unidade do rito romano, dê-se possibilidade às legítimas
diversidades e adaptações aos vários grupos étnicos, regiões e povos, sobretudo nas
27
Missões, de se afirmarem, até na revisão dos livros litúrgicos; tenha-se isto
oportunamente diante dos olhos ao estruturar os ritos e ao preparar as rubricas” (SC,
38).
Ao longo do ano litúrgico, vivendo seus direcionamentos particulares, a
comunidade celebra o mistério pascal de Jesus Cristo, sempre atualizando a história
da salvação e consagrando, sempre, suas vidas à graça divina.
A liturgia não exaure totalmente a ação da Igreja, mas dignifica momentos solenes
da vivência cristã; é o ponto mais elevado da vida comunitária. O texto considera a
importância da ação litúrgica, mas destaca a importância da base da espiritualidade
que deve ser nutrida por cada fiel. Com esse espírito místico, os fiéis se unem em
comunidade para celebrar comunitariamente o mistério pascal. Este é o fundamento
de toda ação litúrgica: “a participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida
espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto
para rezar a sós ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar” (SC, 12).
É nas ações litúrgicas que o cristão encontra sua força e seu alimento,
particularmente nos seus sacramentos.
Por isso, não podemos pensar numa assembleia passiva, já que a ação litúrgica é
de natureza comunitária, ou seja, é uma ação de todo o povo que procura se reunir em
Jesus Cristo e, para isso, precisa se inserir no seu sacerdócio divino, pela completude
da iniciação cristã. Para que a participação seja eficaz, é necessário que os ministérios
sejam assumidos e partilhados na comunidade e que os textos bíblicos e os ritos
exprimam claramente o mistério pascal na vida da comunidade. As palavras da
Constituição sobre a Liturgia são propositivas:
A santa mãe Igreja, para permitir ao povo cristão um acesso mais seguro à
abundância de graça que a Liturgia contém, deseja fazer uma acurada reforma
geral da mesma Liturgia. Na verdade, a Liturgia compõe-se duma parte imutável,
porque de instituição divina, e de partes susceptíveis de modificação, as quais
podem e devem variar no decorrer do tempo, se porventura se tiverem introduzido
nelas elementos que não correspondam tão bem à natureza íntima da Liturgia ou
se tenham tornado menos apropriados (SC, 21).
A reforma conciliar é um desejo dos padres reunidos em Concílio. A evidência
dos critérios, como o respeito à tradição e sua continuidade, bem como a manutenção
dos elementos de “origem divina” servem à legitimidade dos ritos. Ao mesmo tempo
que procura integrar-se na história dos povos, destaca-se a importância dos
fundamentos bíblicos e a continuidade da tradição.
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8. Valores litúrgicos conciliares
Os padres conciliares, no Vaticano II, imbuídos de sabedoria, destacaram a
riqueza e consideraram a importância da Sagrada Escritura não apenas como o núcleo
da história da salvação, mas como reprodução simbólica da presença de Deus na
história do povo da Aliança. É notável como os padres conciliares têm consciência do
paulatino afastamento dos fiéis das Sagradas Escrituras, como reação apologética
posterior ao Concílio de Trento. Considera-se fundamental a recuperação do uso da
Escritura nas celebrações, que deverá iluminar e fecundar todas as celebrações, como
vemos: “É enorme a importância da Sagrada Escritura na celebração da Liturgia.
Porque é a ela que se vão buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos
para cantar; com o seu espírito e da sua inspiração nasceram as preces, as orações e os
hinos litúrgicos; dela tiram a sua capacidade de significação as ações e os sinais” (SC,
24).
Entendemos como sendo uma ação comunitária na qual os ritos procuram
representar toda a vivência cultural do povo de Deus, trazendo em si a linguagem,
gestos e símbolos que se aproximam do ritual cristão. Esse é, sem dúvida alguma, um
dos trabalhos mais delicados e árduos da reforma litúrgica ao longo desses cinquenta
anos. Para que possamos remover o ritualismo e os costumes tão tradicionais que
temos, sem perder a unidade fundamental do ritual cristão da Igreja, devemos
compreender um pouco mais todos esses significados que estão no Vaticano II.
Durante o Ano Litúrgico, os rituais nas celebrações eucarísticas precisam valorizar
a união do povo com Deus. Propiciar um diálogo de amor, no qual o louvor, o perdão,
a intercessão, a comunhão e a consagração sejam laços de vida plena. E que sejam
criados, através desse alicerce, todos os valorespara o Reino de Deus na história
humana.
O Concílio Vaticano II realçou fortemente a urgência de harmonizar as
celebrações rituais e a fé do povo de Deus, para solucionar certa ruptura que se
observava entre os ritos formais e repetitivos e a própria fé. A assembleia celebrante
deve sentir-se dentro do ritual e não apenas como espectadora; ela celebra, não
assiste; ela é protagonista do ritual, na sua mais plena realização.
A Sacrosanctum Concilium desenha uma reforma litúrgica com estruturas nas
experiências celebrativas testemunhadas pelos textos bíblicos e pelos Padres da
Igreja. Reflete primordialmente que a liturgia é verdadeira ação de Cristo em sua
Igreja. Os símbolos litúrgicos são elementos de intensidade eficaz para a realização e
a atualização do mistério da salvação.
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A ritualidade litúrgica se torna real na presença de Cristo. Ela é sempre atualizada
em ações sacramentais eclesiais e desponta como edificação do encontro e do diálogo
entre o povo de Deus, mediante o mistério pascal de Jesus Cristo, manifestado pela
liturgia. Toda ação litúrgica opera a salvação divina a favor do seu povo. Seus ritos
permitem que a vida seja expressa por sinais sensíveis, unindo o visível ao invisível,
o sensível ao espiritual. Este é seu repertório litúrgico, capaz de edificar a
comunidade e celebrar a fé: assim, a Liturgia pela qual, especialmente no sacrifício
eucarístico,
se opera o fruto da nossa Redenção, contribui em sumo grau para que os fiéis
exprimam na vida e manifestem aos outros o mistério de Cristo e a autêntica
natureza da verdadeira Igreja, que é simultaneamente humana e divina, visível e
dotada de elementos invisíveis, empenhada na ação e dada à contemplação,
presente no mundo e, todavia, peregrina, mas de forma que o que nela é humano
se deve ordenar e subordinar ao divino, o visível, ao invisível, a ação, à
contemplação, e o presente, à cidade futura que buscamos (SC, 2).
O mistério pascal de Cristo, portanto, assume na ação litúrgica a forma de mistério
apropriado ao culto, realizando o rito através dos sinais sensíveis e da sua
compreensão dentro da cultura e da religiosidade da assembleia.
9. Antropologia cultural na vida litúrgica
O objetivo da Liturgia é comunicar ao povo de Deus a vida de Cristo e apresentar
ao Pai seu rito de glorificação. A Liturgia alcança formas renováveis conforme os
tempos e situações culturais dos povos e das comunidades que envolvem cada uma
delas. Essa renovação pedagógica e pastoral é o que chamamos adaptação. O real
motivo para mudar palavras, gestos, sinais e ritos não é aquilo de que as pessoas ou
celebrantes gostam. Nem tampouco da moda em voga em determinados períodos da
história ou mesmo de cada século, mas a maior participação no culto a Deus
incorporado em nossa vida atual.
9.1. Resgate da adaptação ritual
A adaptação litúrgica se faz com ponderação: é para tornar os sinais mais
convincentes à mentalidade e cultura do povo; é para conseguir aquela participação
ciente e ativa que nos põe em comunhão com a Igreja local e universal. É, também,
para destacar melhor o conteúdo fundamental de nossa liturgia, quando celebramos
nossa fé no mistério de Cristo, ponto culminante do projeto de Deus. Essa integração
30
com esses discernimentos se exerce em vários níveis: tem lugar tanto na tradução dos
textos e modificação dos cultos como na celebração dos sacramentos e da Eucaristia,
atenta às diferentes assembleias.
9.2. A riqueza da criatividade
A verdadeira criatividade está profundamente arraigada: está ligada aos ritos
precedentes como o celebrante atual ao do nosso passado. Uma fé que não cria
cultura, entende-se que não foi suficientemente anunciada e não foi completamente
assimilada. Portanto, não plenamente vivida. Para que possamos entender melhor a
criatividade, é mais prático observar onde ela se realiza. Celebrar corretamente, de
forma clara e digna, é o primeiro princípio da criatividade. O presidente da
assembleia, por exemplo, não pode utilizar gestos e textos sempre do mesmo modo.
Quando está só com crianças, num pequeno grupo ou numa igreja lotada, há uma
diferença muito grande em como deve executar seus gestos, falas e textos. Em
qualquer situação, o principal é fazer com que os ritos e as palavras tenham vida e
exprimam a fé, que desperta a Palavra proclamada. A oferta trazida ao altar e a
procissão rumo à mesa eucarística não se encontram nas rubricas: é preciso criar. É
meta da criatividade a introdução de novos símbolos, mais necessários à compreensão
do povo de hoje, criados pela piedade popular ou experimentados nas CEBs e mesmo
em outros grupos de oração.
9.3. Variações da inculturação
Há uma energia muito grande que faz com que a criatividade possa transpor ou
enxertar elementos culturais na Liturgia. Por ela aguarda-se mais, e se deseja chegar a
um estado mais profundo, chamado aculturação. Entende-se, portanto, que a
aculturação acontece no encontro de duas culturas, decorrendo daí uma síntese ou a
dominação de uma pela outra. Aplicado à Liturgia, o termo registra o processo
dinâmico que rompe com ímpeto quando a fé se instala nas bases de uma cultura.
Cada povo tem seus próprios elementos culturais que são conciliáveis com a
liturgia romana, porque são isentos de erro e superstição e assim, de maneira fácil,
podem ser incorporados por ela. Além disso, se a Igreja cultiva os valores dos povos
de Deus, não é apenas para atender ao desejo das várias nações, mas para acolher as
exigências da própria Liturgia. No momento em que esse processo leva à formação de
novos elementos nos ritos, é preciso aprovação da Conferência Episcopal e da Sé
Apostólica, pois pertence a essas instâncias garantir o autêntico espírito litúrgico e
preservar a harmonia substancial do rito romano.
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A inculturação é o caminho mais complexo: introduz ritos sociais ou religiosos,
dando-lhes sentido cristão, sem desfigurar sua natureza. A própria liturgia romana
assim se formou, inserindo, por exemplo, a festa pagã do Sol invicto na celebração do
Natal. Com essa inculturação, a Liturgia se propõe continuar na história, como o
milagre de Pentecostes, quando, sob o impulso do Espírito, multidões entendiam a
linguagem única do amor e proclamavam as maravilhas de Deus, expressando-se
cada um em sua língua (At 2,4.6).
Voltando ao espírito de São Paulo, o grande missionário cristão; nas missões
modernas, a Igreja descobriu no desabrochar dos valores culturais dos povos, as
sementes do Verbo, presentes no íntimo de cada ser humano à espera da luz do
Evangelho. O Concílio Vaticano II confiou à alçada e ao zelo das Conferências
Episcopais de todo o mundo a incumbência de estudar com seus peritos os elementos
que oportunamente podem ser incorporados na Liturgia. Isso vem diretamente dos
anseios de integrar, nas celebrações, expressões da religiosidade popular. Entre os
vários grupos étnicos, como os índios, os negros, os orientais, aparecem alguns desses
elementos, que já merecem ser inculturados em nossas celebrações, principalmente
nos sacramentos.
10. As grandes Conferências e suas conquistas
As primeiras Conferências foram fundamentais para que a Igreja do Continente
levasse à plena realização os anseios conciliares, mas também pudesse dar-lhes
legitimidade e iluminação para que assim fossem superadas as divergências e os
desvios presentes nessa mesma renovação eclesial e litúrgica. Algumas considerações
podem ser fundamentais para reconhecer a reforma litúrgica na América Latina.
10.1. Conferência de Medellín (Colômbia, 1968)
O documento que encerra essa Conferência evidencia, em relação a Jesus Cristo, a
tríplice dimensão que documenta todos os ministérios na vida da Igreja. Dessa
maneira, Jesus Cristo é celebrado como profeta que se integra na realidade das
comunidades, como pastor que leva o povo de Deus na sua libertação e como liturgo
que celebra a vida em todas as suas extensões. Além disso, é realçada a dimensão
social das celebrações litúrgicas (BEOZZO, 1998, p. 823-850).
A Conferência de Medellín deixou uma grande herança.Fez valorizar com muita
intensidade a vida litúrgica das comunidades e possibilitou que os ministérios leigos
manifestassem uma diversidade de carismas, serviços e funções, inserindo os próprios
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leigos como membros ativos na vida missionária, profética e sacerdotal da Igreja.
O documento mostra a profunda relação entre a vida litúrgica e a prática da
caridade, recuperando os princípios fundamentais das comunidades cristãs dos
primeiros séculos. Medellín informa:
A liturgia, momento em que a Igreja é mais perfeitamente ela própria, realiza,
indissoluvelmente unidas, a comunhão com Deus e entre os homens, e de tal
modo, que aquela é a razão desta. Busca-se, antes de tudo, o louvor da glória da
graça. É certo, também, que todos os homens precisam da glória de Deus para
serem verdadeiramente homens. E por isso mesmo o gesto litúrgico não é
autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre
renovado por ter os sentimentos de Cristo Jesus, e para uma contínua conversão
(Doc. Medellín, 2005, p. 155).
Da vida litúrgica, sublinhamos seus vários aspectos. Quanto às suas dimensões:
conhecimento e vivência da fé; elevação do ser humano; animação da comunidade e
reconstrução da esperança; comprometimento com as realidades humanas. Quanto
aos elementos: catequese prévia e continuada; adaptação aos gênios da cultura;
acolhida da pluralidade; assumir a dinâmica na evolução da humanidade; integrar a
experiência vital entre fé, liturgia e vida cotidiana; elevar a realidade humana em seu
sentido cristão. Quanto aos métodos: celebrações em pequenos grupos; intensificação
da pastoral comunitária; celebrações comunitárias dos sacramentos e sacramentais;
valorizar as devoções populares como veículos de fé; comprometimento com Deus e
a humanidade.
Para os “padres de Medellín”, a espiritualidade litúrgica é fecundada na luta pela
libertação e pela fraternidade entre os povos.
10.2. Conferência de Puebla (México, 1979)
A liturgia ocupa um espaço privilegiado de comunhão e de participação da Igreja
como um todo, principalmente dos pobres. Entende-se que as ações litúrgicas têm
como finalidade unir a vida pessoal com a construção da comunidade, pois dessa
forma encontrará o sentido da libertação da sociedade humana. Esse documento
afirma ainda que, para suplantar o formalismo e o neorritualismo, o repertório
litúrgico e os ritos precisam aumentar a criatividade, sem perder a unidade da Igreja,
assim como valorizar a religiosidade popular.
É necessário aceitar e entender os valores humanos e culturais dos grupos étnicos,
que transmitem as marcas fundamentais da comunidade latino-americana. A extensão
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fundamental da liturgia nesse período é a comunhão e a participação.
10.3. Conferência de Santo Domingo (1992)
Na Conferência de Santo Domingo, na dimensão litúrgica, foi destacada
especialmente a dinâmica comunicativa da liturgia. Os rituais e toda simbologia
litúrgica devem atingir o coração das culturas, à luz dos três grandes mistérios
cristãos: a natividade, a celebração pascal, e o Pentecostes, para que o povo de Deus
seja unificado na fé, na partilha e na solidariedade, ao redor de Jesus Cristo.
Há uma necessidade e também uma preocupação muito grande em fazer com que
as celebrações se tornem sempre mais dinâmicas, participativas e fecundas. A
criatividade e a introdução de elementos culturais são reconhecidos como elementos
da animação litúrgica, embora haja sempre uma ideia fixa com a fidelidade à tradição
e a unidade com a igreja universal.
Os sinais e os símbolos precisam ser introduzidos nos rituais como expressão da fé
encarnada; os cultos devem ser apresentados com as expressões e devoções das
comunidades eclesiais. Há uma necessidade de reproduzir as formas, sinais e
expressões culturais dos povos, para que as celebrações sejam eloquentes e
transformem a vida da assembleia celebrante. A dimensão fundamental da liturgia
precisa ser inserida no contexto, nesse período, pela inculturação.
10.4. Conferência de Aparecida (Brasil, 2007)
A grande chave de leitura da Conferência de Aparecida (Brasil) é a evangelização.
Reconhecendo a grande limitação dos cristãos católicos batizados (aproximadamente
75%), os bispos se preocupam com a eficiência da evangelização, que se faz pela
catequese, pela vida litúrgica, pela vivência comunitária e pelas práticas cristãs.
Como se reconhece que a religiosidade popular está intrinsecamente unida à vida
eclesial e litúrgica, procura-se a integração desses valores como identidade do povo
de Deus em nosso continente. Valorizando a religiosidade popular, compreende-se
esse valor cultural de nosso povo, seja assumido nos rituais comunitários, seja na
piedade popular. A percepção e adesão dos valores da piedade popular servem para
envolver os fiéis na vida litúrgica, pois essa religiosidade é um elemento constitutivo
de nossa vida eclesial. Certo abismo que se encontra entre as práticas litúrgicas
formais e as expectativas dos fiéis deve ser superado, construindo uma ponte entre
elas; evitando assim a dicotomia entre a Igreja paroquial e a comunidade eclesial,
como têm sido identificadas essas duas realidades. Quando os pastores e padres
propõem celebrações mais formais e canônicas, os fiéis buscam os sacramentos mais
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populares, como batismo e primeira eucaristia, missas de sétimo dia e encomendação
dos defuntos e, sobretudo, os rituais de suas devoções tradicionais. Superar essa
dicotomia é um árduo trabalho de reflexão, acolhida e humildade, que deve ser
considerado pelos presidentes das comunidades e pelas equipes de liturgia. Afinal, o
mistério pascal de Jesus Cristo é plenamente celebrado nas procissões, peregrinações,
rosários e vias-sacras. A discriminação contra essas expressões provocou rupturas
entre o clero e os líderes religiosos populares. Os ensinamentos de Aparecida nos
apontam caminhos de redescoberta mútua desses espaços litúrgicos. O academicismo
litúrgico precisa encontrar seu parceiro antagônico nas experiências litúrgicas de
nossas assembleias populares. Para ser discípulo e missionário, binômio da identidade
cristã de nossos fiéis, é urgente a integração entre a mística cristã e a evangelização,
mediadas pelas ações litúrgicas, que lhes dão força e cumprimento.
Podemos acentuar a noção de Sagrada Liturgia, assumida como força expressiva
de nossas comunidades. Na liturgia se realiza o encontro dos cristãos com seu
Senhor, fazendo-os discípulos e convocando-os à missionariedade. Podemos
encontrar essa anotação no próprio texto:
Encontramos Jesus Cristo, de modo admirável, na Sagrada Liturgia. Ao vivê-la,
celebrando o mistério pascal, os discípulos de Cristo penetram mais nos mistérios
do Reino e expressam de modo sacramental sua vocação de discípulos e
missionários. A Constituição sobre a Sagrada Liturgia do Vaticano II nos mostra o
lugar e a função da liturgia no seguimento de Cristo, na ação missionária dos
cristãos, na vida nova em Cristo e na vida de nossos povos nele (Doc. Aparecida,
2007, n. 250).
A celebração litúrgica terá seu papel na vida da comunidade quando for
considerada como consagração do discipulado de Jesus Cristo e o ritual da graça
divina que envia seus discípulos em missão, para converter a humanidade. Que se
descubra sempre mais a força espiritual dos cristãos e de sua religiosidade, tantas
vezes embutida nas práticas devocionais, para que os fiéis se sintam protagonistas
dentro de nossas liturgias. A harmonização entre as práticas de piedade popular e a
vida litúrgica de nossas assembleias continua um caminho aberto a ser desbravado e
harmonizado.
11. Breve olhar sobre nossas comunidades
Nos primeiros anos após o Concílio Vaticano II, constatou-se de forma bem clara
e objetiva a celebração nas línguas vernáculas, a mudança de estilo das celebrações e
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a simplificação dos ritos, além da visível alegria e da participação nos cantos. Houve,
também, grande número de cursos de formação litúrgica.
Nos anos seguintes, foram realizadas as traduções dos rituais litúrgicos, em que
surgiram documentos

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