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Mídia, religião e sociedade_ Das palavras às redes digitais - Luis Mauro Sá Martino

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SUMÁRIO
Capa
Rosto
DEDICATÓRIA DE APRENDIZ
PALAVRAS INICIAIS
INTRODUÇÃO - TRILHAS DA PESQUISA EM MÍDIA E RELIGIÃO
PARTE I – Mídia e Campo Religioso
CAPÍTULO 1 - A MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO
1. A noção de midiatização
2. Origens históricas da midiatização da religião
3. Alta mediação, baixa mediação: religião midiatizada no espaço social
CAPÍTULO 2 - MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO
1. As dinâmicas do campo religioso
2. O campo religioso no ambiente das mídias
3. O campo religioso entre a mídia e a política
CAPÍTULO 3 - MEDIAÇÕES DA RELIGIÃO NO AMBIENTE DA MÍDIA
1. A religião na perspectiva das Mediações
2. As mediações e a dimensão comunicacional da religião
3. Mediações da religião, cotidiano e consumo
PARTE II – MÍDIA E RELIGIÃO NA ESFERA PÚBLICA
CAPÍTULO 4 - ESFERA PÚBLICA, MÍDIA E RELIGIÃO
1. A dimensão pública da religião
2. A religião entre o público e o pessoal
3. A visibilidade midiática da religião no espaço público
CAPÍTULO 5 - DEMOCRACIA, RELIGIÃO E ELEIÇÕES: UM ESTUDO DE CASO
1. A presença religiosa na sociedade democrática: secularização e mídia
2. Mídia e Visibilidade: a religião como ator na Esfera Pública
3. Formas mediadas de participação religiosa na política
CAPÍTULO 6 - CORPO, MÍDIA E DISCURSO RELIGIOSO
1. O corpo como mídia e a prática religiosa
2. Disciplina do corpo, controle do olhar
3. Dispositivos religiosos, mídia e corpo
PARTE III - MÍDIA, RELIGIÃO E IDENTIDADE CULTURAL
CAPÍTULO 7 - RELIGIÃO, MÍDIA E ESTUDOS CULTURAIS
1. Religião e identidade cultural
2. Mídia, religião e identidades culturais
3. Signos da identidade, religião e poder
CAPÍTULO 8 - ENTRETENIMENTO, MÍDIA E RELIGIÃO
1. Entretenimento e práticas religiosas
2. Religião, convergência e mídia digital
3. Contatos e confrontos com o entretenimento
CAPÍTULO 9 - QUEM É O OUTRO: RELIGIÃO, CULTURA E ALTERIDADE
3
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1. O enquadramento religioso da identidade
2. Enquadramentos religiosos da alteridade
3. Vínculos religiosos e a construção do outro
IDEIAS - Da tolerância à compreensão
Bibliografia
Coleção
Ficha Catalográfica
Notas
4
D
DEDICATÓRIA DE APRENDIZ
edicatórias não costumam precisar de explicações, mas, neste caso, penso que
vale, para dar uma dimensão de quem recebe esta.
Uma tarde, em 2007, minha ex-orientadora me ligou. Convidou-me para
um chá de maçã em sua casa. Sempre achei esse detalhe muito bacana em nossas
conversas. Queria botar os assuntos em ordem, trocar ideias. Ideias não faltavam.
Beatriz Muniz de Souza é uma das inventoras da Sociologia da Religião no Brasil. Ela
não só leu os clássicos da área, ela é um clássico da área. Como professora, desafiava, fazia
pensar. Orientadora, não deixava escapar um erro. Poupava elogios, incentivava a
encontrar a própria trilha. Ajudou a conseguir as bolsas de estudo: sem isso, não teria
feito mestrado e doutorado. Em 2003, organizamos um livro. Ela, um clássico. Eu,
recém-mestre. Ela insistiu para incluir meu nome na capa. Combinamos o dia, fui à casa
dela. Depois de um monte de conversa, foi até sua biblioteca, apontou seus livros e disse:
“Eu estou aposentada, não volto mais para a sala de aula. E não acho bom que esses livros
fiquem aqui. Queria que ficassem com você. Você vai saber usar”.Olhei. Ri, feliz como
uma criança em uma loja de brinquedos. Os clássicos. Esgotados, raros, primeiras
edições. Enquanto eu olhava as estantes cheias, ela completou: “Estão aí, aprendiz de
feiticeiro”.
Existem pessoas para quem não há como responder.
À memória
de Beatriz Muniz de Souza (1933-2014).
5
E
PALAVRAS INICIAIS
ste livro é uma introdução a alguns dos principais temas, conceitos e ideias para
estudar as relações entre mídia e religião na sociedade contemporânea. O
objetivo, mais do que discutir as teorias, é apresentar um panorama do que vem
sendo pensado a respeito, mostrando, a partir de exemplos, situações cotidianas e estudos
de caso, como as relações entre mídia e religião se enquadram em questões políticas,
históricas e sociais. Os pontos de vista teóricos apresentados são diferentes, às vezes até
mesmo opostos: essa variedade é um convite ao diálogo entre as teorias, pensando que o
conhecimento pode ter vários caminhos.
Embora seja muitas vezes uma questão de fé individual, a religião é vivida em público –
e isso a torna um tema para as Ciências Sociais, particularmente, para a Comunicação. O
modo como a pessoa religiosa se veste, fala, vive com os outros, escolhe seus
relacionamentos afetivos ou mesmo profissionais está, em alguma medida, ligado às suas
crenças.
Portanto, a religião neste livro é entendida como uma prática social, algo que acontece
na relação entre as pessoas. E, fechando o foco, o estudo está nas práticas sociais religiosas
ligadas à mídia e à comunicação.
Está fora de questão discutir questões religiosas – exceto, claro, no que diz respeito à
mídia –, ou se uma crença está certa ou errada. Do ponto de vista da Comunicação, essas
questões rigorosamente não interessam. Religiões e denominações são citadas por sua
relação com a mídia, sem questionar a validade de nenhuma religião. Se por acaso algo
soar assim, foi por inabilidade com as palavras, e ficarei feliz de corrigir em uma próxima
edição.
Uma nota importante: não é objetivo aqui, de maneira alguma, caracterizar de modo
simples grupos plurais e complexos, cada um com seu contexto e percurso histórico. As
referências a “católicos”, “evangélicos”, “protestantes”, “umbandistas”, “espíritas”,
“israelitas”, “islâmicos” ou termos semelhantes derivam exclusivamente da maneira como
os autores e personagens dos textos usados como base para este trabalho se
autoidentificaram.
A opção pelo uso de notas, em vez da citação direta de autoras e autores, é uma
tentativa de deixar a leitura um pouco mais direta, evitando a repetição de expressões
como “conforme a autora...” ou “segundo o autor...”. Isso não significa nenhuma
pretensão de originalidade, ao contrário: este livro é construído no diálogo, e as
referências estão todas assinaladas.
* * *
Este livro foi escrito em momentos diferentes.[1]
É, em primeiro lugar, resultado de estudos como pesquisador-bolsista na Universidade
de East Anglia (UEA) em 2008, que se desdobraram de várias maneiras nos anos
seguintes. Especialmente, com a publicação do livro The Mediatization of Religion, pela
editora britânica Ashgate, em 2013, e com a realização de um Seminário na UEA, sobre
6
o mesmo tema, em janeiro de 2014. Um agradecimento especial à Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio concedido para o Seminário,
no qual as pesquisas de base deste livro foram discutidas em vários momentos.
Os agradecimentos pessoais começam com os professores, amigos, colegas e corpo
técnico da UEA. Aos professores John Street e Lee Marsden, pelos desafios intelectuais e
apoio pessoal, com quem aprendi sobre ser professor. À professora Sanna Inthorn pelos
diálogos e ideias. Os comentários do professor Mick Temple, da Universidade de
Stratford, a uma das primeiras versões do que viria a ser este livro, foram preciosos.
À equipe universitária de recepção aos estudantes, Mrs. Kerry Dunford, Dra. Anna
Magyar e Dra. Anna Grant, além do time da pastoral universitária, pelas lições práticas
de convívio e tolerância – a professora Marion Houssart, da Pastoral Católica, o Rev.
Neil Walker, batista, o Rev. Darren Thorton, anglicano, além dos colegas islâmicos e
israelitas.
E a todos os amigos de Norwich, cidade medieval no leste da Inglaterra, aonde tive a
melhor recepção que um estrangeiro poderia esperar. O lugar tem a maior concentração
de igrejas góticas do norte da Europa, e provavelmente uma das maiores listas de pubs do
planeta. Segundo a lenda, são cinquenta e duas igrejas e 365 pubs – “uma igreja para cada
domingo, um pub para cada dia” (garanto o número de igrejas, perdi a conta dos pubs).
Thank you!
* * *
Na editora Paulus, pela recepção e a acolhida ao projeto deste livro. Acolhida, aliás, que
começou em 2003, na oportunidade de publicar Mídia e Poder Simbólico.Seguiram-se O
habitus na Comunicação, também de 2003, escrito em parceria com Clóvis de Barros
Filho; Comunicação: troca cultural?, de 2005, Comunicação e Identidade, de 2010, outro
fruto da temporada em East Anglia.
* * *
Questões teóricas foram discutidas no Grupo de Pesquisa Teorias e Processos da
Comunicação, sediado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da
Cásper Líbero, especialmente nos Seminários Temáticos. A todas e todos os
participantes, um grande obrigado pelo diálogo.
* * *
Aos amigos e amigas, alunos e alunas, colegas de várias faculdades, universidades,
centros de pesquisa e núcleos de estudos, por todas as conversas – nas salas de aula, nos
encontros de corredor ou em um café. Como a lista de agradecimentos exigiria um
volume à parte, tudo bem se eu deixar um grande “obrigado!” cercado de abraços por
aqui?
* * *
Aos meus pais, Antonio Carlos e Vera Lúcia, pelo que ensinaram e são. A gente nunca
deixa de ser filho, e descobri isso quando me tornei pai.
Ao meu filhote Lucas, que desenha aqui ao meu lado enquanto escrevo, e à Anna
Carolina, por estar junto em todas estas aventuras.
7
Norwich/São Paulo, inverno de 2014 ao verão de 2016.
8
E
INTRODUÇÃO
TRILHAS DA PESQUISA EM MÍDIA E RELIGIÃO
screvendo sobre a pluralidade religiosa contemporânea, Anne-Sophie Lamine
aponta um curioso paradoxo: embora as religiões, em sua maioria, tenham um
forte sentido de comunidade, a convivência entre algumas delas raramente
colocam em ação esse sentido comunitário. Ao contrário, às vezes a relação é bastante
complicada.[1] Para a autora, essa questão é um problema fundamental no estudo da
religião: as relações entre pessoas e grupos diferentes – em outras palavras, o problema da
alteridade e da diferença.
Religião é um dos grandes marcadores da identidade de indivíduos, grupos e
comunidades. Assim como define quem está dentro da comunidade, define também
quem está fora. A pergunta seguinte é “o que fazer com quem está fora”, isto é, com
quem não pertence ao grupo religioso. Ao longo da história, diversas respostas foram
experimentadas – respeitar, acolher, converter, ignorar, eliminar. Mais do que qualquer
diferença entre as crenças, o que seria um problema religioso, o cenário que se desenha é
político: como viver com quem pensa diferente de mim?
9
O desafio do pluralismo
Há algumas décadas, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1980, o Brasil
começou a vivenciar a experiência do pluralismo religioso. Isso significou o desafio de
viver a diferença religiosa em um grau desconhecido até então. Não se tratava mais de
uma denominação principal – o Brasil era “o maior país católico do mundo” –
observando a resistência de denominações e religiões minoritárias, como protestantes e
espíritas, mas de um cenário de pluralidade, no qual a dinâmica das denominações
religiosas passou a se organizar em termos de uma disputa por espaço – tanto entre as
pessoas quanto pelo público.
O pluralismo religioso ultrapassou rapidamente a esfera das religiões e se articulou com
outros setores da sociedade, como a política e a cultura.
No campo político, o pluralismo religioso significou a entrada de novos temas na
agenda de debates.
Questões como o Estado laico, o ensino religioso nas escolas, o respeito à diferença de
crenças e outras temáticas passaram a frequentar a mídia e o cotidiano. E algumas
denominações religiosas não demoraram para se encontrar, às vezes de maneira bem
pouco amistosa, com as ideias de outros setores da sociedade: concepções da Igreja
católica a respeito do uso de anticoncepcionais foram contestadas por associações da
sociedade civil, como as Católicas pelo Direito de Decidir; as referências negativas de
algumas lideranças evangélicas à Umbanda ou ao Candomblé se tornaram assunto de
debates com grupos afro-brasileiros; grupos vinculados às reivindicações da comunidade
LGBT se posicionam em relação a diferentes grupos religiosos no que diz respeito ao
combate à homofobia. Esses exemplos sugerem uma crescente complexidade do campo
religioso, que ultrapassa o limite estrito da “crença” e diz respeito a toda a sociedade.
Não que não existissem, desde o período colonial, diversas religiões no Brasil. No
entanto, ao que parece, a consciência desse pluralismo começou a crescer a partir dos
anos 1980, quando algumas denominações religiosas passaram a usar uma estratégia que,
nos anos seguintes, mostraria uma relevância até então pouco conhecida – a visibilidade
midiática.
Claro que não é possível reduzir toda a complexidade do colorido cenário religioso
brasileiro às questões relacionadas à mídia. Aliás, parte dos problemas e questões
apresentados no parágrafo anterior não tem nenhuma relação com a mídia. No entanto, é
a partir do momento em que esses assuntos, de uma maneira ou de outra, passam a
circular nas diversas mídias, que eles tendem a chamar a atenção de uma porção maior do
público.
É essa relação entre mídia e religião, relacionada a questões de interesse público, que
interessa a este livro. Trata-se, aqui, de um recorte metodológico que sublinha a
interseção entre mídia e religião, mas não deixa de levar em consideração a existência de
outros fatores – seria arriscado reduzir tudo à mídia. O ponto de vista da Comunicação é
um modo de ver os fatos, mas não exclui nem diminui a importância e a validade de
outros.
Mas o que exatamente se está estudando quando se fala em “mídia e religião”?
10
Fronteiras de uma área de estudos
Pesquisar as intersecções entre mídia, sociedade e religião significa ter em mente essa
pluralidade, e lembrar que conceitos, teorias e ideias precisam acompanhar, na medida de
suas limitações, as mudanças de seu objeto. É o que vem acontecendo com os estudos
sobre mídia e religião.
Como assinala Robert A. White, referindo-se ao contexto histórico das pesquisas em
mídia e religião na Europa e nos Estados Unidos, houve uma passagem de estudos
interessados nos “efeitos” da mídia sobre a religião para a “construção dos significados”
pelos indivíduos diante das relações entre mídia e religião.[2]
Em outras palavras, trata-se de uma passagem da pergunta: “Como as religiões usam os
meios de comunicação?”, para: “Como as religiosidades se articulam com o ambiente das
mídias?”.
O que se nota, em estudos contemporâneos, é a ideia de falar em “religiões” ou
“religiosidades” em vez de “religião”, no singular. Isso, de certa forma, é o que
Bourdieu[3] e Pierucci[4] tem em mente quando falam em “dissolução” do religioso. A
palavra “dissolução”, em geral, é usada para se referir ao fim de alguma coisa: no entanto,
dissolver também significa “espalhar”.
No mundo contemporâneo, ao lado das religiões organizadas, é possível observar o
surgimento de inúmeras religiosidades – maneiras de viver experiências religiosas fora de
igrejas, grupos ou denominações estabelecidas. Daí a ideia de uma “dissolução” do
religioso não como “fim”, mas como algo que se espalha. Enquanto algumas religiões
tradicionais observam com preocupação uma queda no número de fieis, outras
religiosidades aparecem, às vezes de maneira muito diferente do que se entende por
“religião”.
Quem observar os estudos sobre mídia e religião, desde os primeiros [...], ainda nos
anos 1960, quanto os contemporâneos, vai notar a variedade de ideias, teorias, métodos e
objetos de estudo nessas pesquisas. Por lidar com uma interseção entre duas áreas,
“Comunicação” e “Religião”, essas pesquisas buscam referenciais em outras disciplinas,
da Sociologia à Psicologia, passando pela Antropologia e pelos estudos de Linguística. A
partir dos anos 2000 houve um considerável crescimento no número de estudos a
respeito de mídia e religião nos estudos de Comunicação, sobretudo a partir da
publicação de várias coletâneas de estudos.[5]
No entanto, nem sempre as pesquisas sobre mídia e religião estiveram vinculadas à
Comunicação. Ao contrário, a entrada desse tema na área foi o resultado de um longo
processo de idas e voltas – afinal, por que a religião deveria ser estudada pela
Comunicação?Disciplinas como a Sociologia da Religião, não poderiam tratar do tema?
E, especialmente, qual seria, digamos, o olhar específico da Comunicação?
Observando alguns dos livros escritos no Brasil entre 1968, ano de publicação de
alguns dos primeiros livros de Sociologia da Religião, e 2010, é possível notar como as
pesquisas sobre mídia e religião transitaram, por assim dizer, da Sociologia para os
estudos de Comunicação. Mas é bom avisar que esse “trânsito” não significa romper
laços, e menos ainda que “mídia e religião” é um tema específico ou exclusivo da
Comunicação. Cada área de estudos tem sua contribuição a dar sobre temas e objetos
diversos. O recorte escolhido aqui, da Comunicação, não exclui nem diminui a
11
importância dos outros.
Essa trilha é dividida em três partes: (a) um primeiro momento, ainda nos anos 1960,
no qual a “mídia” era ainda um elemento secundário nas pesquisas em religião
desenvolvidas sobretudo – mas não exclusivamente – nas Ciências Sociais; (b) as
primeiras aproximações com a área de Comunicação, nos anos 1980, em estudos sobre
Comunicação Eclesial; (c) os desenvolvimentos feitos a partir dos anos 1990, quando da
ampliação dos temas na área de Comunicação.
Essa divisão, vale reforçar, não significa que não ocorreram e ocorram bem-vindas
mesclas, intersecções e sobreposições – o conhecimento, até onde se sabe, acontece no
diálogo. Inclusive entre disciplinas e áreas do conhecimento.
12
Como se forma uma área de estudos?
Antes de entrar em uma “genealogia” desses estudos, vale começar com uma pergunta:
como se delineiam os contornos de uma área de pesquisa? Quando alguém fala em
“pesquisa sociológica” ou “pesquisa em biologia”, por exemplo, talvez nem todo mundo
tenha uma ideia correta do que se pesquisa em cada área. A origem dos termos nem
sempre ajuda: definir “sociologia” como “estudo da sociedade” ou “biologia” como
“estudo da vida” não explica algo fundamental: o que está sendo chamado de “sociedade”
ou de “vida” em cada caso? Esses conceitos fundamentais, aliás, costumam ser bastante
debatidos em cada área. Para complicar, uma pesquisa sobre História da Química –
digamos, a passagem da Alquimia à Química – deve ser estudada como História ou como
Química?
Essas perguntas são feitas para lembrar que os fatos sempre podem ser estudados a
partir de mais de uma perspectiva. Em cada área do saber, pesquisadores e professores vão
olhar para o objeto conforme os seus referenciais. Como lembra o historiador britânico
Keith Johnson, ao olhar para a mesma paisagem, um geógrafo, um sociólogo e um
historiador verão coisas muito diferentes, de acordo com seus interesses, ideias e
formações.[6]
Isso não significa que as disciplinas acadêmicas tenham uma história linear. Ao
contrário, muitas vezes as ideias, que estão em uma área, não tem nenhuma relação direta
entre si. Às vezes, essa relação é feita de maneira desconexa, independente, e sem vínculos
com esta ou aquela área.
Michel Foucault lembra que o estudo de qualquer objeto tem uma história; áreas como
“psicologia” ou “física” não nasceram por acaso e não apareceram prontas: ao contrário, a
definição do que é, digamos, “sociologia” aconteceu aos poucos.[7] Suas características
foram delineadas a partir de perspectivas, interesses e possibilidades que nem sempre se
relacionam de maneira simples ou pacífica. Em cada área do saber existem disputas mais
ou menos explícitas para definir o objeto de estudos, as teorias mais interessantes, os
melhores métodos e assim por diante.[8]
Levando em conta essas ressalvas, os estudos de mídia e religião no Brasil começam
ainda nos anos 1960. Em geral, estão no meio de pesquisas sobre religião nas Ciências
Sociais, ganhando maior autonomia e destaque a partir dos anos 2000.
Para algum observador apressado pode parecer óbvio que um tema como “mídia e
religião” só pode ser estudado na área de Comunicação. Mas, em geral, por trás de coisas
aparentemente óbvias, os fatos costumam ser bem mais complexos. A apropriação de um
tema por uma área do saber está relacionada às características específicas de cada uma
delas. Temas novos nem sempre são bem-vindos em todas as áreas.
Ao contrário, geralmente há resistências e discussões antes de um tema ser considerado
“típico” de uma área. (Em geral, depois de certo tempo, esses temas acabam sendo
considerados como “naturalmente” pertencentes a uma área ou outra, mas isso é outra
história). Se, como lembra Ferreira, não é possível reduzir os elementos científicos aos
fatores políticos, também é preciso levar em conta a interferência de elementos políticos
na formação de uma área.[9]
13
A mídia nos estudos de Sociologia da Religião
A religião sempre foi uma das temáticas privilegiadas nas Ciências Sociais. Os
chamados “pais fundadores” das Ciências Sociais, Karl Marx, Max Weber e Émile
Durkheim, dedicaram considerável quantidade de estudos ao tema, incluindo aí algumas
de suas obras clássicas, como a Introdução à Crítica do Direito de Hegel, de Marx,
passando por A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Weber, e As formas
elementares da vida religiosa, de Durkheim.
Não que não houvesse o que estudar: publicações religiosas impressas já existiam desde
o século XVII, e o rádio foi usado como instrumento de divulgação religiosa a partir do
início do século XX. Mas, como indica o pesquisador norte-americano Steven Bruce, foi
a partir do surgimento dos “televangelistas” e dos programas religiosos na televisão que a
academia voltou suas atenções para o tema.[10] É a partir dos anos 1990, quando o
campo religioso já está diretamente relacionado com a mídia, que se nota um aumento
no número de pesquisas sobre o tema.[11]
Outros pesquisadores indicam ainda outra mudança que pode ter contribuído para dar
mais espaço ao tema “mídia e religião” nas Ciências Sociais: a passagem de uma
“sociologia religiosa”, isto é, feita por pessoas ligadas a denominações religiosas, para uma
“sociologia da religião”, feita por interessados na religião exclusivamente como fenômeno
social, como, em outros casos, seriam o esporte, a moda, a política ou o consumo.[12]
A religião interessa para as Ciências Sociais – e para a Comunicação – por sua
importância como fenômeno social, não como fenômeno religioso. A realidade em si dos
fenômenos religiosos, das crenças e divindades, disputadas sobre questões doutrinárias,
sobre o certo e o errado das religiões em si não são o objeto da pesquisa nas Ciências
Sociais. A religião se torna um tema de interesse porque essas crenças estão ligadas ao
modo como indivíduos, comunidades e sociedades vivem e se relacionam uns com os
outros.
O debate sobre as características de uma divindade, por exemplo, interessa
exclusivamente aos adeptos daquela religião. No entanto, quando esse debate se torna um
pretexto para que algumas pessoas adotem determinada atitude em relação às outras,
como servi-las ou dominá-las, a questão se torna de interesse para as Ciências Sociais, na
medida em que é uma prática social.
A inclusão da comunicação se mostrou particularmente importante para algumas
práticas religiosas, a princípio para algumas denominações religiosas norte-americanas e,
pouco tempo depois, na América Latina.
Em seu estudo pioneiro sobre o pentecostalismo em São Paulo, Beatriz Muniz de
Souza destacava o espaço da mídia, principalmente das publicações impressas e
programas de rádio, nas igrejas evangélicas.[13] Para a autora, a mídia era parte central de
suas atividades, seja mantendo os laços estabelecidos com os fiéis, seja como parte da
divulgação de sua mensagem. Souza destaca os meios de comunicação das denominações
religiosas, que atuavam tanto como proprietária de editoras e veículos impressos quanto
alugando espaços em rádios. Era o início de uma relação institucional e econômica que se
tornaria mais e mais complexa com o tempo.
Os primeiros trabalhos específicos sobre mídia e religião são escritos, na área da
Sociologia da Religião, apenas nos anos 1980, quando o tema ganha espaço na agenda de
14
pesquisada área.
Hugo Assmann, em A igreja eletrônica e seu impacto na América Latina, faz um estudo a
respeito das consequências políticas do televangelismo, destacando a introdução de novos
modos de viver a religião no contexto latino-americano, uma vez que o modelo de
televangelismo usado era originário dos Estados Unidos.[14] Isso era um contraste não só
com o Catolicismo, até então predominante na América Latina, mas também com o
protestantismo tradicional, com o nascimento das “multinacionais da fé”.[15]
No entanto, a partir dos anos 1980, o tema começava a chamar a atenção de
pesquisadores da área de Comunicação.
15
A religião como objeto da pesquisa em comunicação
Embora as relações entre mídia e religião só tenham entrado na agenda de pesquisa da
Comunicação a partir dos anos 1980, o tema logo passou a estar presente em diversos
trabalhos interessados em compreender essa relação do ponto de vista dos estudos da
área. Se, no momento anterior, a mídia era vista como uma parte em estudos
sociológicos, agora a preocupação era entender como ela se tornava central em alguns
aspectos das instituições e práticas religiosas.
Vale lembrar que o próprio cenário religioso também estava mudando. No início da
década de 1980, surgiram denominações religiosas, como a Igreja Universal do Reino de
Deus e a Igreja da Graça, que faziam dos meios de comunicação, especialmente da
televisão, mais do que um acessório, um elemento central de suas atividades, ao mesmo
tempo em que a Igreja católica também revia seus conceitos sobre a comunicação,
investindo na mídia para a divulgação de suas ideias.
Nessa época, as pesquisas em mídia e religião se dirigiram, em boa parte, a estudar a
chamada “mídia religiosa”, ou seja, o uso da mídia pelas igrejas – quais eram seus
objetivos, suas características, limites e possibilidades. Ou, em outras palavras, pesquisas
sobre “Comunicação Eclesiástica”, concentradas em estudos a respeito do Catolicismo,
em suas diversas manifestações e movimentos, nas igrejas protestantes tradicionais.
Trabalhos publicados nessa época situam as discussões sobre mídia e religião no contexto
de redemocratização política e expansão dos chamados “meios de comunicação de
massa”.[16]
É possível destacar também o trabalho de Luiz Beltrão sobre “Folkcomunicação”, no
qual o autor se dedica, em quase metade do livro, a estudar a comunicação de grupos
religiosos.[17] Essa perspectiva nas relações entre mídia e religião popular foi seguida por
outros pesquisadores, já estudando o fenômeno a partir da Comunicação, não da religião.
[18]
Isso não significou que pesquisas em outras áreas não se ocupassem do mesmo tema. É
possível localizar elementos dessa interseção entre “cultura de massa” e “religião”, como
as relações entre religião e indústria cultural ou sobre traços religiosos na cultura pop
(entendida no sentido anglo-saxônico de “popular culture”).[19]
A criação de interfaces com a religião também parece ter ajudado, de maneira mais ou
menos direta, a Comunicação a se consolidar como área de estudos. Alguns autores
colocam o Cristianismo, ao lado do marxismo, como duas das origens mais importantes
do pensamento em Comunicação na América Latina. Gomes delineia as conquistas
dessas duas matrizes no mundo acadêmico como o desenvolvimento original de um
pensamento crítico, combinado às particularidades da religião como fonte de uma
reflexão na qual se procuram caminhos de reflexão, não apenas do fenômeno religioso,
mas também da própria Comunicação.[20] As pesquisas em mídia e religião, de alguma
maneira, passaram a “convergir” porque o fenômeno estudado também convergia: a
partir dos anos 1980, é possível notar que mídia e religião se tornam cada vez mais
interdependentes.[21]
16
Estudar mídia e religião na área de Comunicação
Nos anos seguintes, já no início da década de 2000, surgiram novas linhas de pesquisa
dentro do tema “mídia e religião” – que, por sua vez, já havia se consolidado como parte
da área de Comunicação. Ao mesmo tempo, o cenário religioso também mudou
consideravelmente a partir do final dos anos 1990: de um lado, a consolidação das igrejas
evangélicas neopentecostais; de outro, Renovação Carismática Católica. E também foi o
momento de mudanças na Comunicação: a internet e as mídias digitais, em meados da
década de 1990, trouxeram novas perspectivas para o estudo das relações entre mídia e
religião a partir de um referencial da Comunicação.
Não se pode deixar de lembrar, no entanto, que essas transformações e mudanças
geralmente não foram completas e, menos ainda, lineares. São datas e fatos escolhidos
muito mais por questões de exposição do que fronteiras fechadas.
Nesse momento, há novas buscas dentro da área de Comunicação para entender a
religião a partir de seus referenciais teóricos, como estudos sobre religião a partir da
Semiótica ou do Marketing.[22] As questões relacionando religião com o entretenimento e
consumo, ganharam a atenção de diversas pesquisadoras e estudiosos.[23]
Essas mudanças foram acompanhadas, por sua vez, de transformações mais gerais na
maneira como a sociedade passou a se relacionar com a mídia, palavra que, a partir dos
anos 2000, perde o significado exclusivo de “meios de comunicação de massa” para se
referir à série quase ilimitada de dispositivos – de televisões e computadores a tablets e
smartphones – e das mensagens compartilhadas por eles.
Um dos destaques desse processo é a entrada das mídias digitais e dos ambientes da
internet como objetos de estudo, seja mostrando como os meios digitais formam uma
maneira nova e específica de manifestação de fenômenos religiosos – como a devoção on-
line funciona – ou como os vínculos religiosos também são criados nesse espaço.[24] Isso
não significou o abandono dos trabalhos dirigidos ao estudo das mídias de massa,
particularmente da televisão.[25]
17
Pluralidade de vozes
Um dos principais fatores que mostram a vinculação da temática “mídia e religião” à
Comunicação talvez seja o fato de esses estudos compartilharem alguns dos problemas
teóricos da área.
A área de Comunicação, como indicam vários autores, é marcada por uma considerável
diversidade em termos de objetos, teorias e métodos de estudo. Um olhar para qualquer
evento importante da área, como os congressos e encontros, mostram uma pluralidade de
temas e objetos de estudo, do jornalismo às histórias em quadrinhos, das relações
públicas aos jogos digitais on-line, das redes sociais ao entretenimento. Essa diversidade,
em alguns momentos, leva alguns autores a questionar quais seriam as características
específicas da área de Comunicação, uma discussão que, por questões de foco e espaço,
será feita em outro lugar.[26]
No exterior, é possível notar um aumento considerável no número de obras a respeito
de mídia e religião desde o início dos anos 2000, sem mencionar as publicações dedicadas
exclusivamente ao tema, como os mencionados Journal of Communication and Religion, o
Journal of Media and Religion e o Journal of Pop Culture and Religion.[27] Esse aumento
indica não apenas a importância do objeto de estudo, mas também a preocupação da
academia em compreender as relações entre mídia e religião.
Como essa pluralidade se reflete nas pesquisas sobre mídia e religião? Ao lado do
crescimento do número de estudos sobre o tema, de certa maneira, é possível ver também
ramificações – e, de maneira talvez circular, esse seja um dos fatores responsáveis pelo
crescimento numérico e temático das pesquisas em mídia e religião a partir dos anos
2000.
Quadro 1: Algumas trilhas da produção sobre mídia, Comunicação e religião
Perspectiva RecorteTeórico Objeto de Estudos Conceito de Mídia
Conceito de
Religião Alguns autores
Estudos
Sociológicos
Sociologia;
Sociologia
da Religião
Instituições Religiosas Instrumental Marxista /Weberiano
Souza (1969);
Mendonça (1984); Campos (1997) Mariano (1997); Oro (1997)
Comunicação
de Massa
Sociologia;
Teoria
Crítica;
Denominações
específicas;
religião popular
Indústria Cultural;
Cultura
Religiões;
Religiosidadespopulares
Assmann (1986); Gomes (1987); Ortiz (1980); Soares (1980); Beltrão (1980);
Ambiente
midiático
Teoria da
Comunicação
Teoria
Crítica;
Intersecções entre
mídia(s) e religiões /
religiosidades
Indústria Cultural;
Ambiente midiático
Institucional:
Religiões
organizadas
Klein (2005); Martino (2003); Patriota (2008); Souza (2005); Carranza (2011); Campos
(2002) Cunha (2013); Dantas (2008); Dias (2001) Figueiredo (2005); Melo, Gobbi, Enzo
(2007)
Mídias
Digitais /
Midiatização
da Sociedade
Dispositivos;
Midiatização;
Teorias
da Imagem
Denominações
específicas;
religiosidades
Processos
interacionais;
dispositivos técnicos
Institucional;
Religiosidades
Gomes (2002; 2004a; 2004b; 2010); Fiegenbaum (2006); Gasparetto (2011); Borelli
(2010; 2012); Fausto Neto (2004a, 2004b, 2006, 2008); Hjarvard (2008);
Miklos (2012);
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Lima (2001) e Martino (2013; 2014)
O Quadro 1, tomado como uma indicação, não como representação de uma verdade,
sugere não apenas um crescimento numérico das pesquisas em mídia e religião, mas
também uma variedade de objetos de estudo e de pontos de vista teóricos e
metodológicos. Vale lembrar, também, que há grande trânsito de pesquisas e
pesquisadores, e a tabela é feita para oferecer uma ideia inicial, não para fixar nomes ou
temáticas.
Enquanto, em um primeiro momento – e essas datas são, sobretudo, aproximativas –
notava-se uma preocupação com questões da religião, sobretudo a partir de um viés
18
marxista ou weberiano, é possível observar que a aproximação dessa temática na área de
Comunicação significou também, de alguma maneira, pensar a religião a partir dos
referenciais da área. Dessa maneira, questões relacionadas à indústria cultural e à
Comunicação de massa foram seguidas por pesquisas sobre a mistura entre religiosidades
e ambientes midiáticos, particularmente os digitais. A compreensão do objeto de estudos
também varia: desde formas mais institucionais de religião, como igrejas, hierarquias e
organizações, até formas das religiosidades populares.
Do mesmo modo, a presença da religião na política parece ter sido igualmente
acentuada no período da democratização, sendo a religião um fator de peso na
constituição dos debates públicos.
Além disso, é possível igualmente apontar uma diversificação do fenômeno religioso-
midiático a partir desse período. Denominações neopentecostais ramificaram-se
consideravelmente, procurando espaço e, muitas vezes, criar uma mensagem específica
para determinados grupos sociais. Ao mesmo tempo, o final dos anos 1990 trouxe uma
nova forma de religiosidade midiática católica: programas de TV, emissoras, como a
Canção Nova, a Rede Vida e a TV Aparecida, dedicadas exclusivamente à programação
religiosa, o fenômeno dos “padres cantores”, bem como de formas novas de transmissão
televisiva e on-line de suas práticas, é uma parte visível disso. Finalmente, em algumas
igrejas neopentecostais, como a Renascer em Cristo e a Bola de Neve Church, foi possível
igualmente observar mudanças no sentido de trabalhar lógicas específicas de vinculação
com o entretenimento e com a cultura midiática contemporânea.
Para finalizar, vale notar que o número de estudos dedicados às relações entre mídia e
outras religiosidades – além de católicos e protestantes – é menor, sendo possível
destacar, por exemplo, os trabalhos de Luiz Signates dedicados à Comunicação do
Espiritismo.[28] Religiões afrobrasileiras ou de origem semita, talvez por sua baixa
presença na mídia, também não ocupam o mesmo destaque das pesquisas sobre católicos
e evangélicos.
No entanto, se é possível pensar que o modo como uma área ou um tema de pesquisa
não aparece do nada, mas é construído a partir de transformações, continuidades e
rupturas dentro de sua história específica, é possível pontuar alguns aspectos dessa
história e, mais ainda, procurar algum tipo de análise interpretativa dos vínculos e
afinidades em uma área de pesquisa em desenvolvimento que, como inúmeras outras,
parece encontrar seu maior desenvolvimento na pluralidade e no diálogo – objetivo,
talvez, de qualquer pesquisa.
Nas três partes do livro, algumas dessas tramas serão exploradas.
Se gerarem mais perguntas do que respostas, este texto cumpriu seu objetivo.
19
P A R T E
I
20
MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO
21
CAPÍTULO 1
22
N
A MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO
as manhãs de domingo, por volta das 10h30, os sinos da igreja anglicana de St.
Giles, em Norwich, Inglaterra, começam a tocar. Como acontece desde o ano
de 1430, os sinos indicam o começo da missa. Os frequentadores se acomodam
nos bancos de madeira, trocando cumprimentos. A celebração começa com uma
saudação sorridente do reverendo Darren Thorton e se desenvolve com o
acompanhamento de um coral – os St. Giles Singers – e um órgão do século XIX. A
comunidade de St. Giles é muito acolhedora, criando uma sensação de bem-estar e
familiaridade. Na arquitetura gótica da igreja, há uma atmosfera de ausência de tempo.
A alguns quilômetros de lá, na mesma cidade, fica a Proclaimers Church, criada nos
anos 2000. O slogan da igreja, em seu site e nas redes sociais, é: “Igreja, sem as partes
chatas”.[1] Nas celebrações, os sons ecoam música pop, na tradição do rock britânico, com
iluminação e acústica apropriadas. Jovens vestidos nos mais variados estilos, ligados no
mundo ao redor. Em seu site, a Proclaimers explica essa perspectiva: “Vejo uma Igreja
vibrante, que comunica fielmente a mensagem da Bíblia de uma maneira atual,
contemporânea e fácil de entender”.[2]
O contraste não poderia ser maior entre os dois ambientes. E, no entanto, são apenas
maneiras diferentes de compartilhar a mensagem religiosa. Cada igreja usa uma
linguagem própria, de acordo com suas concepções, tradições e objetivos. Em St. Giles, o
público é formado, em sua maioria, por adultos. Na Proclaimers, os frequentadores são
majoritariamente jovens. Em cada uma, a mensagem religiosa será adaptada de um modo
diferente.
A religião não se desliga do contexto na qual está, e o desafio enfrentado por muitas
denominações religiosas é manter o conteúdo de sua mensagem adaptando a forma
conforme as expectativas da comunidade – seja com coral e órgão em uma igreja
medieval, seja com rock e estilo em uma construção contemporânea.
Algumas formas de viver a experiência religiosa também mudam no ambiente das
mídias digitais – não faltam, por exemplo, aplicativos religiosos para smartphones e tablets
que permitem, por exemplo, ao fiel encontrar rapidamente seus versículos favoritos na
Bíblia, sublinhá-los com cores diferentes e salvá-los de acordo com suas preferências
pessoais para ler onde, quando e como quiser. Um giro pela programação de televisão,
aberta ou a cabo, uma pesquisa em qualquer site de busca na internet, ou alguns minutos
em uma rede social nas mídias digitais, mostra a presença constante de programas e
conteúdos religiosos – que, por sua vez, muitas vezes utilizam uma linguagem claramente
inspirada na mídia leiga.
A vivência de uma experiência religiosa mediada pelo ambiente da mídia: esse parece
ser o centro do processo de midiatização da religião. Em uma primeira definição,
midiatização é a articulação entre o ambiente midiático e processos sociais. Vale a pena
gastar um minuto para esmiuçar essa ideia.
“Processos sociais”, em linhas gerais, são as diferentes maneiras como as pessoas
23
interagem entre si. Cada tipo de interação é um processo social diferente: o processo
social “namoro” tem características próprias, como laços pessoais, contatos regulares,
compartilhamento de informações e declarações mútuas de interesse afetivo que o
tornam diferente de todos os outros, como o processo social “ficada” ou “amizade”
(indefinições sobre qual é o processo social tendem a gerar certa angústia nos
participantes).
A noção de “ambiente midiático”, proposta originalmente por Joshua Meyrowitz, parte
do princípio de que, no mundo contemporâneo, as diversas mídias, como televisões,
smartphones, computadores e tablets estão ao nosso redor,gostemos delas ou não.[3]
Fazem parte do cotidiano, criando um “ambiente” (do latim ambiens, “aquilo que está ao
redor”).
Mas não é apenas a presença desses aparelhos que cria o “ambiente midiático”. Os
aparelhos, sozinhos, não vão muito longe. Esse ambiente só é formado porque nós
interagimos com e através desses aparelhos. Eles fazem parte das nossas relações sociais e
das nossas práticas cotidianas. Seja para mandar uma mensagem para alguém, seja para
ver como estará o clima amanhã, as mídias formam um ambiente no qual circulam nossas
ideias, conceitos e ações na interação com as outras pessoas.
No entanto, cada aparelho tem suas características. Dentro de um smartphone, cada
aplicativo tem seu estilo. Um programa de televisão está adaptado ao formato da TV, da
mesma maneira que um post em uma rede social deve seguir os critérios da rede onde é
postado. Isso significa que cada mídia tem o seu estilo, ou seja, sua linguagem. E isso vai
além do estilo: o custo de uma mensagem na televisão, por exemplo, é infinitamente
maior do que postar um vídeo caseiro on-line. Claro que, na prática, existem inúmeros
cruzamentos de estilos e linguagens nas mídias, mas cada uma tem suas particularidades.
O conjunto desses elementos específicos de cada mídia é o que alguns pesquisadores,
como Thomas Meyer, chamam de “lógica da mídia”. [4]
A midiatização é uma característica de várias igrejas e grupos religiosos, nas quais
práticas e modos de vivência da religião são alterados, repensados no contexto de uma
sociedade na qual várias atividades cotidianas, de relacionamentos familiares a questões
profissionais, acontecem no ambiente digital e fora dele. Talvez não seja errado afirmar,
ao menos no caso brasileiro, que algumas denominações religiosas têm nas mídias mais
do que um aliado na divulgação de uma mensagem, mas quase sua razão de ser.[5]
O capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, veremos os aspectos teóricos da
midiatização. Em seguida, faremos um breve resgate histórico de momentos-chave do
processo de midiatização da religião, destacando o caso brasileiro.
24
1. A NOÇÃO DE MIDIATIZAÇÃO
O termo “midiatização” vem sendo utilizado nos estudos de Comunicação ao menos
desde os anos 1970. No entanto, assim como no caso de outros conceitos, não existe
consenso a respeito do que “midiatização” significa. Alguns dos principais autores que
trabalham com o tema mostram que a palavra “midiatização” tem uma quantidade
considerável de significados. Mas é possível, mesmo assim, delinear alguns a partir deles,
particularmente, na midiatização da religião.[6]
O primeiro ponto importante é lembrar que a mídia não transforma processos sociais.
Isso seria o chamado “midiacentrismo”, dar uma importância exagerada aos meios de
comunicação como se fossem os responsáveis por criar ou transformar atividades sociais.
Os “meios”, em si, não fazem nada quando não são colocados no conjunto das relações
humanas.
A mídia só pode interferir nas práticas e vivências religiosas porque essas relações sociais
existiam antes de qualquer vínculo com a mídia. É importante, nesse sentido, pensar no
contexto histórico e social no qual as religiões se tornam práticas mediadas.[7] A mídia,
portanto, não tem “efeitos” sobre as práticas religiosas, sobre as igrejas e denominações.
Elas se encaixam em uma trama muito mais complexa.
A noção de midiatização tenta balancear essa ligação, lembrando que, no mundo
contemporâneo, uma boa parte dos processos sociais, do namoro às práticas religiosas,
acontece nos ambientes midiáticos – no entanto, não deixam de manter também suas
características e atributos.
Retomando o exemplo anterior, um namoro, ainda que aconteça de maneira
exclusivamente virtual, não deixa de ser uma relação entre seres humanos, não entre
dispositivos eletrônicos. As características da relação afetiva não se perdem, mas ocorrem
de maneira diferente – a atenção está na relação com o outro, não com o smartphone. (Se
a relação com o smartphone for mais interessante do que com outra a pessoa, vale
repensar o relacionamento.)
Em uma aproximação inicial, midiatização é a articulação entre a lógica e o formato
dos meios no processo de comunicação.[8] E, ampliando essa definição, em vários outros
processos sociais. Muniz Sodré define a midiatização como uma “virtualização das
relações humanas, presente na articulação do múltiplo funcionamento institucional e de
determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicação” [9]. Ou,
nas palavras de Pedro Gilberto Gomes, um “novo modo de ser no mundo”.[10]
A midiatização, em outras palavras, pode ser entendida como o movimento de
articulação das mídias nos processos sociais, com a consequente alteração de práticas e
significados “mediados”, isto é, que ocorrem na mídia.[11]
É preciso tomar algum cuidado com essa afirmação.
O uso de meios de comunicação por uma instituição religiosa para transmitir uma
mensagem, sem que nenhuma prática religiosa seja alterada para isso, não significa sua
“midiatização”, mas sua “mediação” (mediation).[12] A midiatização tem início no
momento em que as mídias, lembra Finneman, tornam-se parte das atividades
individuais e institucionais.[13] Quando processos sociais assumem novas configurações,
25
ganhando outras formas e contornos, aí se pode pensar em termos de midiatização.
A transmissão de um culto religioso pela televisão, sem nenhum tipo de alteração nas
práticas litúrgicas, é a “mediação” do culto; quando, no entanto, o próprio culto religioso
é planejado e adaptado para ficar mais parecido com o estilo de programas de televisão,
ou quando algumas lideranças religiosas adotam práticas semelhantes à de figuras
midiáticas, seja no modo de vestir, seja na maneira de lidar com o público, seja em sua
preparação específica para conduzir celebrações e cultos em um estilo apropriado para
transmissão via TV ou internet, então estamos na lógica da midiatização.
Isso, não custa lembrar, não significa que a mídia tenha efeitos nos processos sociais. É
complicado encontrar uma separação entre “mídia”, “sociedade” e “instituições” que
permita falar de “efeitos” de uma sobre a outra. Afinal, “emissores” e “receptores”, lembra
Stuart Hall, vivem no mesmo ambiente cultural, dividem várias referências, tem pontos
comuns em suas histórias e vivências.[14] Não é possível, por conta disso, falar em uma
separação mas, para usar outra ideia de Hall, em “articulação” – e “articulação” não
significa “efeito”. [15]
A veiculação de uma cerimônia religiosa pela televisão não significa, neste ponto de
vista, a midiatização da religião. No entanto, quando tanto as práticas de produção
quanto de divulgação da mensagem religiosa se organizam, na própria instituição
religiosa, em termos de uma lógica vinculada ao ambiente midiático, é possível falar em
uma midiatização da denominação religiosa. A adequação institucional às lógicas de
produção midiática, bem como dos fiéis e de suas práticas, ao ambiente midiático, pode
ser entendida como um sintoma mais nítido do processo de midiatização do campo
religioso – por exemplo, quando mesmo as cerimônias religiosas, mesmo aquelas que não
são transmitidas pela mídia utilizam as linguagens da mídia.
Lembrando que esquemas são apenas indicações, vale observar semelhanças e diferenças
entre momentos diferentes da sociedade:
Quadro 2: Mediação (“Mediation”) e Midiatização como conceitos analíticos
Mediação Midiatização
Nível de
ocorrência Micro (indivíduos, comunidades instituições, organizações).
Macro (sociedades, estados,
processos e práticas sociais).
Indica Uso da mídia por indivíduos,comunidades e grupos.
Articulação de práticas individuais
e sociais com a mídia.
Questão Quais são as condições de construção dos sentidos, pelo receptor,das mensagens da mídia?
Como pessoas e instituições articulam suas práticas cotidianas
com o ambiente das mídias?
Conceito de mídia Canal / Linguagem. Ambiente.
Foco A recepção da mensagem da mídia e sua articulação com indivíduos, grupos ecomunidades.
Oprocesso a partir do qual algumas práticas sociais são pautadas
na lógica das mídias.
Características Uso da mídia, por indivíduose comunidades, para compartilhar uma mensagem.
Práticas individuais e sociais
adotam a “lógica da mídia”.
Intervalo de
tempo Ação de curto prazo. Ação de médio/longo prazo.
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Couldry (2008), Hjarvard (2008a), Livingstone (2009b) Krotz (2009), Schutz
(2004), Veron (2013), Martino (2013) e Sodré (2004; 2014).
Pensando nessa perspectiva, afirmações como “a mídia faz isso” ou “o efeito da mídia é
esse” deixam de levar em consideração que a “mídia” não é uma entidade à parte,
distante da sociedade na qual está inserida. No ambiente das mídias digitais, isso fica
ainda mais claro na medida em que as noções de “produtor” e “receptor” são colocadas
em jogo.
26
A midiatização da religião pode ser entendida como a articulação de características dos
meios de comunicação, com sua linguagem, seus códigos, seus limites e possibilidades de
construção de mensagens nas práticas, formações e instituições religiosas. A midiatização
não é uma relação passageira ou ocasional, mas um processo no qual tanto a mídia
quanto a religião se articulam em práticas e ações comuns.
Como recordam Boase e Wellman, as alterações no cotidiano provocadas pela presença
das mídias atingem um ponto máximo, paradoxalmente, quando essa presença se torna
invisível: para usar um exemplo dos autores, ninguém mais se espanta, hoje em dia, com
a existência do telefone ou da televisão.[16]
Os aparelhos e suas linguagens estão misturados com o cotidiano a ponto de não nos
darmos conta de sua existência – e, no entanto, no Brasil, até meados dos anos 1980, ter
uma linha telefônica era um processo complicado. Isso fica mais claro quando se pensa
que, até meados da década de 2000, o acesso à internet era feito principalmente a partir
de computadores tipo desktop e linhas telefônicas: era preciso se conectar, ou, como era
dito na época, “entrar na internet”. A partir dos dispositivos smartphones e conexões via
celular/wi-fi, a conexão é constante e fica difícil, muitas vezes, estabelecer uma divisão
entre os momentos conectados e desconectados.
Seria precipitado, portanto, resumir o processo de midiatização da religião a um único
fator. Ao contrário, é um processo complexo, que envolve elementos diferentes, muitas
vezes contraditórios.[17] Vale, nesse sentido, retomar alguns momentos importantes no
processo de midiatização da religião.
27
2. ORIGENS HISTÓRICAS DA MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO
As primeiras tentativas de uso das mídias para a transmissão de mensagens religiosas
aconteceram na primeira metade do século XX, quando o padre católico James Coughlin
estreou, nos anos 1930, um programa de rádio religioso nos Estados Unidos. Seu conteú‐
do, fortemente conservador, era pincelado por tintas totalitárias e mesmo antissemitas,
ecoando correntes da política europeia da época. O estilo, no entanto, era o mesmo dos
programas de rádio comuns: Coughlin percebeu que era preciso adaptar a mensagem
religiosa às novas linguagens da mídia para se fazer entender. Na mesma época, a BBC,
na Inglaterra, passou a transmitir pelo rádio as orações matinais anglicanas diretamente
da Abadia de Westminster, em Londres – aos domingos, a missa completa –, um
exemplo de “mediação” da religião. A utilização da mídia era mais como um acessório do
que como uma nova linguagem.
Ao que tudo indica, as relações entre mídia e religião começaram de fato nos Estados
Unidos a partir dos anos 1940, quando sacerdotes católicos e protestantes passaram a se
utilizar dos meios de comunicação eletrônicos – na época, o cinema, o rádio e a imprensa
–, para divulgar suas mensagens religiosas, adaptando-as às características de cada meio.
[18]
Ao longo do século XX, dentre os exemplos mais representativos, estão o bispo católico
Fulton Sheen e o pastor protestante Billy Graham. Eles possivelmente foram os primeiros
a adequar meio e mensagem no uso da linguagem da televisão – edição de imagens, e
variações no enquadramento, por exemplo. Seus programas não eram cerimônias
religiosas filmadas, mas especialmente criadas levando em conta as características da TV.
A geração seguinte de “televangelistas”, que inclui Rex Humbert e Jimmy Swaggart,
pode ser considerada a primeira efetivamente midiatizada. Mais ainda, eles tornaram a
sobrevivência de suas igrejas dependente, em boa parte, do sucesso do aparato midiático,
particularmente com o uso das linguagens do entretenimento – como será visto em
detalhes na terceira parte do livro.
No caso brasileiro, o processo de midiatização da religião ganha força na chamada
“segunda onda” do Protestantismo. Sem entrar em uma discussão que está no campo da
Sociologia da Religião, a expressão “segunda onda” refere-se ao conjunto de igrejas
protestantes criadas no Brasil a partir de meados do século XX.
A “primeira onda”, o “protestantismo histórico”, são igrejas protestantes que chegaram
ao Brasil com os imigrantes europeus do século XIX. São, em sua maioria, luteranos,
presbiterianos, batistas e metodistas. A “segunda onda”, ou protestantismo “pentecostal”,
teria sido iniciada com o surgimento de igrejas como Deus é Amor, o Brasil para Cristo e
outras igrejas estabelecidas a partir dos anos 1950/1960, nas quais traços da influência
norte-americana podiam ser identificados com maior nitidez. A “terceira onda”, por sua
vez, agruparia as chamadas denominações neopentecostais, com origem no final da
década de 1970 e renovando-se ao longo dos quarenta anos seguintes, como as igrejas
Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Renascer em Cristo, Bola de Neve Church
e Igreja Mundial do Poder de Deus, entre outras.[19]
Nos anos 1960 e 1970, portanto, na “segunda onda”, houve a consolidação plena da
pregação pelo rádio e uma expansão quase sem limites da televisão; a internet e as mídias
28
digitais só iriam começar a aparecer nesse cenário a partir de 1995. Mas a indicação
estava clara: o processo de midiatização demandava uma reestruturação nas organizações
religiosas para incluir uma preocupação com o uso institucional dos meios, diferente de
qualquer forma anterior de proselitismo.
Assim, um dos principais momentos da midiatização das instituições religiosas no
Brasil é a partir dos anos 1980, quando igrejas evangélicas neopentecostais se valem de
todos os recursos de mídia disponíveis, como é o caso, naquela época, da Igreja
Internacional da Graça e a Igreja Universal do Reino de Deus. Nesta última, a
midiatização foi desde o início um dos pontos principais da denominação, com a
presença constante de elementos fortemente midiáticos em vários dos aspectos de suas
práticas.[20] Na Igreja da Graça, uma informação de seu site indica que ela foi idealizada
quando seu fundador, o pastor R. R. Soares, ainda na juventude, teria se impressionado
com o potencial comunicativo da televisão e decidiu consagrar sua vida à pregação com a
utilização de meios eletrônicos:
R. R. Soares cresceu em Muniz Freire, interior do Espírito Santo. Quando criança, durante uma
visita à cidade vizinha, ele viu, pela primeira vez, um aparelho de TV na vitrine de uma loja. Ao
perceber que uma multidão estava parada em frente ao estabelecimento, completamente
fascinada pelo que via através daquela tela, ele fez uma oração: “Ninguém está usando esta
nova invenção para falar do Senhor, meu Deus. Dê-me os meios e a oportunidade, e eu estarei
naquela tela falando do Seu amor”.[21]
Nessas denominações, assim como em alguns setores da Igreja católica, a segmentação
de público, as diferenças de estilo entre atividades religiosas voltadas para grupos
diferentes de fiéis e a elaboração de uma mensagem específica para cada grupo estão entre
suas práticas.
O modelo de religião midiatizada que acompanhou o surgimento dos ambientes
digitais refletiu-se em outras igrejas evangélicas, fundadas já nos anos 1990, que adotaram
de modo sem precedentes a linguagem da mídia em suas práticas (MARTINO, 2009),
como as IgrejasRenascer em Cristo e Bola de Neve.
A primeira, fundada pelo casal Estêvão e Sônia Hernandes, adotou um estilo de ação
pautado em uma lógica midiática vista, sobretudo, em seus programas de televisão,
principalmente no entretenimento. Vale assinalar também o espaço midiático que a
presença de figuras como o jogador de futebol Kaká trazia para a denominação – o atleta
desligou-se da igreja em 2010.[22] Na Bola de Neve, observa-se uma segmentação maior
do público: fundada por um publicitário, volta-se sobretudo para a juventude, utilizando
um discurso próximo dos códigos e modelos da mídia, empregando, a exemplo de outras
denominações, merchandising e uma ampla esfera de produtos à venda com o logotipo da
igreja.[23]
A partir dos anos 1990, sobretudo com o padre Marcelo Rossi, começa uma estratégia
de divulgação da mensagem religiosa a partir de um modelo baseado no formato das
mídias – não por acaso, algumas celebrações eram denominadas, pela imprensa, como
“showmissas”.[24] O padre financiou e atuou em filmes no início do século XXI, como
Irmãos de Fé e Maria, a mãe do Filho de Deus, com atores da Rede Globo nos papéis
principais.
Na metade da década de 2000, outros religiosos passaram a ganhar espaços na mídia
29
com uma estratégia semelhante de adoção das práticas midiáticas. Usando um
vocabulário próximo da linguagem de figuras midiáticas, como cantores, atores e
apresentadores de televisão, tanto o padre Marcelo Rossi quanto Fábio de Melo
conseguiram rapidamente um grande espaço nas mídias – não apenas católicas, mas
também em emissoras leigas sem vínculos religiosos diretos, como o caso da Rede Globo.
Além da participação em programas de televisão sem caráter religioso, vale destacar
desde toda uma produção e lançamento regular de CDs e DVDs a livros de orações e
auto-ajuda. Ainda no campo católico, a chamada Comunidade Canção Nova,
estabelecida nos anos 1970 pelo Monsenhor Jonas Abib, tornou-se um conglomerado de
produção religioso-midiática, atuando com força no mercado de bens simbólicos.[25]
A midiatização da religião trouxe alterações não apenas para as dinâmicas do campo
religioso, mas parece ter mudado, ainda que parcialmente, algumas ações internas do
campo da Comunicação.[26]
30
3. ALTA MEDIAÇÃO, BAIXA MEDIAÇÃO: RELIGIÃO MIDIATIZADA NO
ESPAÇO SOCIAL
Em um trabalho anterior, procurei identificar algumas diferenças entre denominações
religiosas ligadas à sua relação com o ambiente midiático.[27] A ideia principal é que,
quanto mais “mediada” (mediated) uma denominação for, mais aberta ela está para
adotar, em suas práticas, ideias e estilos da mídia e do entretenimento. Para indicar o
quanto uma denominação religiosa é mediada, o critério foi o uso da televisão como
principal elemento de comunicação.
Por que a televisão, quando se tem todo o ambiente das mídias digitais? Por conta do
investimento necessário: fazer um bom site e manter um sistema de redes sociais
trabalhando não é barato, mas não se compara ao custo de um programa de televisão. Se
uma igreja decide concentrar seus esforços em propagar sua mensagem via TV, isso pode
ser um índice da importância dada à presença no ambiente midiático.
Assim, em termos das relações entre mídia e religião, a ideia é pensar em termos de alta
mediação e baixa mediação.
Uma denominação teria uma alta mediação quando a mídia fosse um elemento central
de sua existência, algo visível, sobretudo pelo uso em larga escala de programas de
televisão – ou, como em alguns casos, por terem a concessão de um canal próprio. No
caso brasileiro, as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Mundial
do Poder de Deus, Renascer e Bola de Neve (esta última por conta de sua interseção com
a cultura do entretenimento) e alguns setores da Igreja católica estariam entre aquelas de
alta mediação.
Denominações de baixa mediação são aquelas que procuram, por suas razões, menor
interseção – ou mesmo certo afastamento – do ambiente midiático. Certos setores da
Igreja católica, a Congregação Cristã no Brasil, O Brasil para Cristo, a Igreja do
Evangelho Quadrangular e a Deus é Amor, por exemplo, estariam entre as de menor
presença no ambiente midiático.
Essa divisão, evidentemente, não é estanque, e há diferenças até mesmo dentro de
algumas igrejas: no caso da Igreja católica, por exemplo, alguns movimentos são mais
mediados do que outros.
Isso não significa mudanças doutrinais – algo que nem seria assunto deste livro – ou
em suas crenças, mas uma postura de relação com o ambiente midiático e social ao seu
redor. Igrejas de alta mediação tendem a adotar com mais facilidade os elementos do
ambiente midiático no qual estão inseridas, adaptando-os, claro, às suas concepções
doutrinárias e institucionais.
Esse processo não parece ser isolado.
Em sua tese de doutorado, Ronaldo O. Rodrigues, a partir de um excelente estudo
sobre as relações entre mídia, religião e juventude na ilha de Marajó, no Pará, propõe
uma classificação das igrejas conforme sua relação com a mídia, tomando como ponto de
partida o vínculo específico de cada religião, em sua origem, com a mídia. Nos resultados
de seu trabalho, mostra também que a maneira de compartilhar a mensagem religiosa
depende da relação da religião com o ambiente midiático ao seu redor.[28]
A midiatização da religião, portanto, tem alterado as dinâmicas e práticas tanto no
31
campo religioso quanto no campo da comunicação. Essa aproximação não está isenta de
contradições e paradoxos, em um movimento de mão dupla.
Um exemplo pode ser o crescimento da Rede Record de Televisão, propriedade da
Igreja Universal do Reino de Deus, que, no início do século XXI, chegou ao segundo
lugar de audiência, conquistando um posto que por vinte anos havia sido do SBT – o
primeiro lugar, desde os anos 1970, é da Rede Globo. O aporte da Igreja Universal na
Record, ao alugar espaços na grade de programação, aparentemente alterou algumas das
relações políticas e econômicas do campo da televisão.
Por outro lado, notam-se também alterações no campo religioso. Religiões altamente
midiatizadas parecem alcançar, em alguns momentos, maior destaque do que outras
denominações em virtude de maior divulgação de sua mensagem e chegar a um número
potencialmente maior de adeptos. Note-se, por exemplo, que quase todas as
denominações religiosas brasileiras que apresentaram uma taxa expressiva de crescimento
entre os anos 1980 e 2000 foram as que mais se articularam com a lógica dos meios de
comunicação – note-se, a respeito, a Renascer em Cristo, a Igreja da Graça, a Bola de
Neve Church, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus
– esta última sendo a igreja evangélica que teve crescimento mais rápido desde sua
fundação, em 1977.
O processo de midiatização da religião apresenta-se dentro de um conjunto
multifatorial de variáveis, dentre os quais a articulação de fatores que envolvem tanto
elementos propriamente vinculados às características específicas de grupos e movimentos
religiosos quanto uma economia política das mídias. Neste último caso, nota-se uma
alteração na medida em que a midiatização inclui novos atores no campo, contribuindo
para novas dinâmicas e mediações. Nesse sentido, a midiatização da religião torna-se uma
estratégia de vinculação das instituições religiosas a um contexto marcado sobretudo pela
presença dos elementos comunicacionais e midiáticos, garantindo sua visibilidade no
espaço social.
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CAPÍTULO 2
33
N
MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO
a noite de domingo, 18 de março de 2014, o programa Domingo Espetacular,
da Rede Record, exibiu uma reportagem denunciando supostas irregularidades
na Igreja Mundial do Poder de Deus. Fundada em 1998 por Valdemiro
Santiago, a Mundial apresentava um crescimento considerável, embalada, entre outros
fatores, por uma forte presença na televisão – em certo momento, a igreja tinha quase
24h de programação diária em emissoras de TV. A investigação das denúncias feitas na
reportagem, além de outros problemas internos, diminuíram o ritmo de expansãoda
Igreja Mundial. A Rede Record pertence à Igreja Universal do Reino de Deus.[1]
Voltando um pouco no tempo, em 1995, o bispo Sérgio Von Helde, então bispo da
Igreja Universal do Reino de Deus, agrediu com chutes e socos uma estátua de Nossa
Senhora Aparecida, em seu programa matinal de televisão, transmitido pela TV Record.
No mesmo ano, a Rede Globo de Televisão levou ao ar a minissérie Decadência, que
tinha como personagem principal um pastor evangélico corrupto, vivido pelo ator Edson
Celulari. A Rede Globo, aos domingos, transmite a missa católica diretamente da basílica
de Aparecida do Norte, em São Paulo.[2]
Esses episódios, assim como outros semelhantes, mostram um ponto importante para
pensar a relação entre mídia e religião: a disputa pelo estabelecimento de uma verdade –
em geral, a sua verdade – ultrapassou a fronteira das denominações religiosas e acontece,
sobretudo, no ambiente das mídias. Em outras palavras, a dinâmica do campo religioso
não pode ser pensada sem levar em conta a midiatização da sociedade – e a midiatização
do campo religioso.
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1. AS DINÂMICAS DO CAMPO RELIGIOSO
A ideia de disputa está no centro da noção de campo.
Em linhas gerais, um campo é um espaço estruturado de relações no qual agentes em
disputa buscam um prêmio comum.[3] Vale desdobrar as partes dessa definição.
Um campo é um espaço formado pela relação entre “agentes” – que podem ser pessoas
ou instituições – que têm um interesse comum. No campo religioso, os agentes são cada
religião, igreja ou denominação religiosa, assim como cada padre, pastor ou pai de santo.
O que os une é a relação de disputa permanente entre eles. Por mais diferentes que
sejam, todos lidam com questões mais ou menos parecidas: o sagrado, o sentido da vida,
a origem e a finalidade da existência, e assim por diante. Cada religião oferece suas
próprias respostas para essas questões, competindo com todas as outras para convencer o
maior número de pessoas de que sua mensagem é a correta. A busca, em última instância,
é para conseguir o maior número de adeptos, o que costuma garantir uma maior
importância, prestígio e visibilidade pública – e, portanto, capacidade de interferir em
outras áreas da sociedade.
Um campo é um “espaço estruturado”, isto é, tem posições mais ou menos marcadas
previamente. Isso significa que, ao se entrar em um campo, as posições já estão
relativamente definidas – algumas com maior destaque e maiores vantagens do que
outras. No campo religioso brasileiro, por exemplo, a Igreja católica ocupou, durante
séculos, uma posição de liderança praticamente isolada, enquanto igrejas protestantes,
grupos espíritas e umbandistas tinham menor destaque e prestígio.
As posições mais altas, ou dominantes, significam apoio e influência em outras áreas –
na política, por exemplo. No campo religioso, as denominações com mais prestígio,
número de adeptos, história e influência tendem a ocupar posições dominantes,
hegemônicas, e estabelecer o direito de especificar as regras do jogo. Por exemplo, indicar
qual é a interpretação correta de um texto sagrado, quais são os erros, as ortodoxias e
heresias e assim por diante.
Como há poucas posições dominantes em um campo, todos aqueles que participam
desse campo, sejam indivíduos ou instituições – os “agentes” do campo – estão
constantemente em relação de disputa. No caso do campo religioso, essa disputa pode
ser, por exemplo, pela conquista de novos adeptos ou por uma maior influência nas
decisões políticas. Isso significa que cada instituição vai desenvolver métodos próprios
para conseguir isso antes de suas concorrentes.
Cada ação de um agente tende a ser observada pelos outros, que, conforme o caso,
reagem de alguma maneira. Em geral, em um campo, as ações dos dominantes tendem a
ser imitadas, de maneira mais ou menos explícitas, pelos concorrentes – ser imitado, aliás,
não deixa de ser uma prova de reconhecimento.
O “prêmio específico”, finalmente, é o que se recebe quando se ocupa as posições mais
altas de um campo. Dentre suas vantagens, por exemplo, está a capacidade de definir o
que é “correto” dentro do campo. Uma denominação religiosa já estabelecida tem mais
chances de definir, para um número maior de pessoas, a interpretação “correta” de um
texto sagrado do que uma igreja recém-fundada.
Isso significa um maior prestígio dentro do próprio campo e todas as vantagens que
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decorrem disso. O conjunto dessas vantagens é o “prêmio”, que varia de campo para
campo – cada campo tem seus prêmios específicos, que só significam alguma coisa para
os participantes.
Cada campo tem suas características específicas. No ramo cristão do campo religioso,
por exemplo, a criação de novas divisões em religiões tradicionais pode ser relativamente
fácil, nas ramificações protestantes, ou impossível, no caso da Igreja católica.
A distribuição de poderes dentro de um campo é desigual. Em uma sociedade, as
denominações religiosas hegemônicas costumam ter muito mais influência nos assuntos
públicos do que denominações mais novas. Essa desigualdade é fruto das condições
materiais e simbólicas de cada agente: sua história, suas vantagens e desvantagens, suas
relações extra-campo. Essa hierarquia está permanentemente em disputa.
Isso significa que, dentro de um campo, cada agente tende a adotar estratégias para
manter ou conservar sua posição, se é dominante, ou questionar e romper com as regras,
se estiver em uma posição de menor prestígio.
Dessa maneira, enquanto instituições religiosas dominantes, tendem a ser mais
conservadoras e ortodoxas, denominações mais jovens costumam ser mais questionadoras
e heterodoxas. Agentes que ocupam posições dominadas tendem a ser mais
questionadores e propensos a mudanças do que agentes dominantes pelo simples fato de
que têm menos a perder. Uma mudança de estratégia, para um agente dominante de um
campo, pode significar uma perda. A midiatização do campo religioso, iniciado,
sobretudo, por denominações neopentecostais, acentuou uma reconfiguração do campo e
foi um fator para mudanças de estratégia – por exemplo, fez com que a Igreja católica
revisse algumas de suas práticas de mídia.[4]
Na lógica do campo religioso, o número de fiéis é um dos fatores que definem a
posição de determinada instituição. Não é, evidentemente, o único elemento a partir do
qual se pode medir isso, mas é um dos principais fatores para medir o grau de sucesso
institucional e suas possibilidades de ação no espaço público. Dessa maneira, quanto
maior o número de adeptos, maior a possibilidade de uma instituição religiosa ocupar
posições de destaque dentro do campo.
A midiatização, nesse cenário, pode ser vista como uma escolha estratégica de algumas
denominações para atuar nas disputas internas do campo religioso. E interfere também
nas práticas das próprias religiões: dentre as habilidades de um líder religioso, em algumas
igrejas, está sua capacidade de lidar com a mídia. Os televangelistas norte-americanos
foram pioneiros em trabalhar a lógica da midiatização alcançando um índice de
repercussão pública que, nas dinâmicas específicas do campo religioso, colocou suas
igrejas em posições de considerável prestígio e reconhecimento no campo.[5]
Bourdieu recorda que, em um campo, o sentido das disputas e dos prêmios é
permanentemente constituído e reconstituído a partir das dinâmicas do próprio campo.
[6] No segmento cristão do campo religioso, por exemplo, um prêmio simbólico
disputado é a definição de uma interpretação legítima da Bíblia. Essa interpretação,
objeto de monopólio institucional da Igreja católica até meados do século XVI, passa a
ser questionada a partir da Reforma Protestante, quando o campo religioso passa a
conviver com uma disputa em grande escala.
Uma das prerrogativas dos agentes dominantes, aliás, é definir, de maneira mais ou
menos tácita, o que vale e o que não vale em um campo. Determinadas interpretações da
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Bíblia, como mencionado, podem ser consideradas “corretas” ou “incorretas”,
“ortodoxas” ou “heréticas”, conforme a posição da instituiçãoreligiosa no campo
religioso.
Trechos da Bíblia tidos como sendo referentes à homossexualidade podem ser lidos em
sentido condenatório pela maior parte das igrejas cristãs que detêm a hegemonia no
campo; no entanto, igrejas cristãs voltadas para o público LGBT propõem leituras não-
hegemônicas, e portanto, não “ortodoxas”, desses trechos – nesse sentido, propostas de
entrada no campo, como, por exemplo, a chamada “teologia inclusiva”, propõem uma
interpretação diferente, buscando a entrada de novas dinâmicas.[7]
Nesse sentido, a noção de “certo”, “errado”, “ortodoxia” e “heresia” em termos de
interpretação dependem de quais denominações ocupam as posições principais. Assim, o
que em um momento pode ser uma estratégia arriscada de um agente em posição
relativamente baixa, pode se tornar o padrão, caso ele tenha sucesso.
O campo religioso aparece quando há uma divisão do trabalho religioso na sociedade.
[8] Foi ainda nas primeiras civilizações do Egito, da Mesopotâmia e da China, que
apareceram grupos de pessoas encarregadas exclusivamente de cuidar da relação com a
religião – os sacerdotes e seus auxiliares. Com isso, são criadas as condições de produção,
circulação e apropriação de um tipo específico de bens, os bens simbólicos religiosos.
Dentre as particularidades do campo religioso, Bourdieu destaca a existência de um
tipo específico de trabalho, o “trabalho religioso”, responsável pela produção dos “bens
de salvação”, que vão desde as questões doutrinárias, passando pelos rituais até chegar às
práticas, símbolos e, em última instância, a toda cultura material em seu nível mais
cotidiano – camisetas com mensagens religiosas, banners e adesivos para carros, por
exemplo.
O processo de midiatização vem se articulando com especial força com esses dois
elementos do campo religioso. A midiatização da religião está ligada a algumas das
características centrais das instituições religiosas. Isso significava, da parte delas, maior
atenção a outras práticas contemporâneas, como questões ligadas ao consumo, estética,
afetividade e sexualidade.[9]
Instituições religiosas mais inseridas no processo de midiatização tendem a ser mais
abertas em relação a determinados aspectos da vida cotidiana dos fiéis – conforme a
denominação, por exemplo, é permitido o uso de piercings e tatuagens, a escuta de
música religiosa em estilo popular, os cuidados estéticos com o corpo e com a aparência –
desde que articulados com temáticas religiosas. O site de uma loja de roupas direcionadas
ao público evangélico ilustra isso:
(…) A jovem ou mulher evangélica que usa a marca Sol da Terra está sempre nas tendências da
moda, sempre seguindo os critérios da religião com roupas comportadas
(<https://www.soldaterra.net/moda-evangelica-como-comprar.php>).
Ao mesmo tempo, a resistência ao processo de midiatização parece equivaler, em
termos de algumas instituições religiosas, a uma maior demarcação de fronteiras
simbólicas entre o “sagrado” e o “profano” nos modos de ser dos fiéis. Na prática
cotidiana, isso significa utilizar várias marcações simbólicas, visíveis, por exemplo, em
modos específicos de se vestir, de cuidar da aparência, de ouvir certos tipos de música ou
frequentar alguns lugares.
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A midiatização do campo religioso também alterou suas dinâmicas internas. Algumas
das denominações religiosas mais articuladas com o processo de midiatização estão entre
as doutrinas com maior número de fiéis no quadro religioso brasileiro. Isso sugere que
sua visibilidade pública e sua possibilidade de interferência em assuntos de outros campos
também é marcada pelas relações com a mídia.
Essa reconfiguração midiática do campo religioso tem atraído a atenção de um
crescente número de pesquisadores, interessados em entender, a partir de várias matrizes,
algumas dimensões desse fato, pensando tanto nas dinâmicas internas do espaço religioso
quanto nas ligações entre as igrejas e outras instituições no espaço público.
Vale lembrar que nem toda experiência religiosa acontece dentro do campo religioso –
aliás, há uma diferença entre o “campo religioso” e o conjunto amplo e plural das
“religiosidades”.[10]
No entanto, a existência de instituições religiosas é uma das condições para a formação
de um “campo religioso” relativamente autônomo – mas lembrando a existência, na
sociedade, de inúmeras outras formas de religiosidades que transbordam as fronteiras de
campo. No caso da midiatização do campo religioso, o foco se volta para esse espaço.
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2. O CAMPO RELIGIOSO NO AMBIENTE DAS MÍDIAS
A midiatização da sociedade colocou desafios inéditos ao campo religioso. A
possibilidade de conexão constante com a internet, a ideia de estar “sempre ligado” –
always on, nas palavras de Sherry Turkle – trouxeram novas perspectivas para as relações
entre mídia e religião.[11] Aliás, o campo religioso não ficou imune à ideia do always on:
na igreja de San Antonio, na Espanha, os fiéis têm conexão wi-fi gratuita, e podem fazer
downloads de aplicativos específicos da igreja. Estabelecer uma relação com coisas
sagradas não significa, ao menos nesse caso, cortar a conexão on-line.[12]
A midiatização do campo religioso vem acontecendo, pelo menos, de duas maneiras
principais.
De um lado, podemos ver o processo de midiatização nas mudanças que vêm
acontecendo no campo religioso em si. O fato de algumas igrejas utilizarem a mídia
como uma aliada na divulgação de sua mensagem cria uma diferença entre elas e outras
denominações que não fazem isso. A diferença pode ser vista, por exemplo, na maneira
como diferentes denominações religiosas alcançam mais ou menos fiéis. Isso muda,
também, no que se refere à “divisão do trabalho religioso”, isto é, a separação, dentro de
uma religião, dos encargos e atribuições.
Vale, nesse ponto, definir como esse processo acontece.
No nível individual, cada pessoa pode viver sua crença da maneira que bem entender.
No entanto, em geral, as atividades religiosas não acontecem de modo isolado: religiões,
em geral, são experiências que envolvem grupos e comunidades. Isso costuma resultar,
em algum momento, em que os grupos religiosos se arranjem em alguma forma de
organização mais ou menos complexa, em instituições compostas de pessoas com
atribuições diferentes –sacerdotes, coordenadores, auxiliares, fiéis –,processo de
“burocratização” da religião.[13]
No âmbito das instituições religiosas, o resultado dessa burocratização é a chamada
divisão do trabalho dentro das instituições religiosas, isto é, separação das tarefas
relacionadas às práticas religiosas – não apenas nos momentos de celebração, como
missas, cultos ou reuniões públicas, mas também das tarefas triviais de manutenção e
administração.
É necessário, em uma instituição religiosa, ter alguém disponível para receber os fiéis,
abrir as portas, cuidar da manutenção e do dia a dia da instituição, seja de uma igreja,
sinagoga, mesquita, centro espírita, ou qualquer outra. Mas também é necessário pessoas
que cuidem das questões burocráticas, digamos, organizar pagamentos de colaboradores,
administrar as contribuições ou obras assistenciais. Finalmente, há o chamado “corpo
sacerdotal”, responsável pela condução das atividades propriamente religiosas – ou, como
denomina Bourdieu, de “produção dos bens simbólicos religiosos”.[14]
As instituições religiosas se ligam aos ambientes midiáticos, gerando uma tensão
contínua entre suas próprias lógicas e as lógicas da mídia. Esse problema, ao que tudo
indica, é um desafio para a midiatização das instituições religiosas, e pode ser resumido
em uma série de perguntas e questões.
Em que medida uma instituição religiosa deve abrir mão de algumas de suas práticas
para ter mais espaço na lógica da mídia? A estrutura de uma celebração – um culto
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evangélico ou uma missa católica – deve ser alterada para ficar mais adequada para
transmissão via TV ou internet? Esse tipo de questão mostra a tensão que existe no
processo de midiatização das instituições religiosas. E não é só isso: até que ponto os
processos sociais – como

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