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2 SUMÁRIO Capa Rosto DEDICATÓRIA DE APRENDIZ PALAVRAS INICIAIS INTRODUÇÃO - TRILHAS DA PESQUISA EM MÍDIA E RELIGIÃO PARTE I – Mídia e Campo Religioso CAPÍTULO 1 - A MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO 1. A noção de midiatização 2. Origens históricas da midiatização da religião 3. Alta mediação, baixa mediação: religião midiatizada no espaço social CAPÍTULO 2 - MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO 1. As dinâmicas do campo religioso 2. O campo religioso no ambiente das mídias 3. O campo religioso entre a mídia e a política CAPÍTULO 3 - MEDIAÇÕES DA RELIGIÃO NO AMBIENTE DA MÍDIA 1. A religião na perspectiva das Mediações 2. As mediações e a dimensão comunicacional da religião 3. Mediações da religião, cotidiano e consumo PARTE II – MÍDIA E RELIGIÃO NA ESFERA PÚBLICA CAPÍTULO 4 - ESFERA PÚBLICA, MÍDIA E RELIGIÃO 1. A dimensão pública da religião 2. A religião entre o público e o pessoal 3. A visibilidade midiática da religião no espaço público CAPÍTULO 5 - DEMOCRACIA, RELIGIÃO E ELEIÇÕES: UM ESTUDO DE CASO 1. A presença religiosa na sociedade democrática: secularização e mídia 2. Mídia e Visibilidade: a religião como ator na Esfera Pública 3. Formas mediadas de participação religiosa na política CAPÍTULO 6 - CORPO, MÍDIA E DISCURSO RELIGIOSO 1. O corpo como mídia e a prática religiosa 2. Disciplina do corpo, controle do olhar 3. Dispositivos religiosos, mídia e corpo PARTE III - MÍDIA, RELIGIÃO E IDENTIDADE CULTURAL CAPÍTULO 7 - RELIGIÃO, MÍDIA E ESTUDOS CULTURAIS 1. Religião e identidade cultural 2. Mídia, religião e identidades culturais 3. Signos da identidade, religião e poder CAPÍTULO 8 - ENTRETENIMENTO, MÍDIA E RELIGIÃO 1. Entretenimento e práticas religiosas 2. Religião, convergência e mídia digital 3. Contatos e confrontos com o entretenimento CAPÍTULO 9 - QUEM É O OUTRO: RELIGIÃO, CULTURA E ALTERIDADE 3 kindle:embed:000H?mime=image/jpg 1. O enquadramento religioso da identidade 2. Enquadramentos religiosos da alteridade 3. Vínculos religiosos e a construção do outro IDEIAS - Da tolerância à compreensão Bibliografia Coleção Ficha Catalográfica Notas 4 D DEDICATÓRIA DE APRENDIZ edicatórias não costumam precisar de explicações, mas, neste caso, penso que vale, para dar uma dimensão de quem recebe esta. Uma tarde, em 2007, minha ex-orientadora me ligou. Convidou-me para um chá de maçã em sua casa. Sempre achei esse detalhe muito bacana em nossas conversas. Queria botar os assuntos em ordem, trocar ideias. Ideias não faltavam. Beatriz Muniz de Souza é uma das inventoras da Sociologia da Religião no Brasil. Ela não só leu os clássicos da área, ela é um clássico da área. Como professora, desafiava, fazia pensar. Orientadora, não deixava escapar um erro. Poupava elogios, incentivava a encontrar a própria trilha. Ajudou a conseguir as bolsas de estudo: sem isso, não teria feito mestrado e doutorado. Em 2003, organizamos um livro. Ela, um clássico. Eu, recém-mestre. Ela insistiu para incluir meu nome na capa. Combinamos o dia, fui à casa dela. Depois de um monte de conversa, foi até sua biblioteca, apontou seus livros e disse: “Eu estou aposentada, não volto mais para a sala de aula. E não acho bom que esses livros fiquem aqui. Queria que ficassem com você. Você vai saber usar”.Olhei. Ri, feliz como uma criança em uma loja de brinquedos. Os clássicos. Esgotados, raros, primeiras edições. Enquanto eu olhava as estantes cheias, ela completou: “Estão aí, aprendiz de feiticeiro”. Existem pessoas para quem não há como responder. À memória de Beatriz Muniz de Souza (1933-2014). 5 E PALAVRAS INICIAIS ste livro é uma introdução a alguns dos principais temas, conceitos e ideias para estudar as relações entre mídia e religião na sociedade contemporânea. O objetivo, mais do que discutir as teorias, é apresentar um panorama do que vem sendo pensado a respeito, mostrando, a partir de exemplos, situações cotidianas e estudos de caso, como as relações entre mídia e religião se enquadram em questões políticas, históricas e sociais. Os pontos de vista teóricos apresentados são diferentes, às vezes até mesmo opostos: essa variedade é um convite ao diálogo entre as teorias, pensando que o conhecimento pode ter vários caminhos. Embora seja muitas vezes uma questão de fé individual, a religião é vivida em público – e isso a torna um tema para as Ciências Sociais, particularmente, para a Comunicação. O modo como a pessoa religiosa se veste, fala, vive com os outros, escolhe seus relacionamentos afetivos ou mesmo profissionais está, em alguma medida, ligado às suas crenças. Portanto, a religião neste livro é entendida como uma prática social, algo que acontece na relação entre as pessoas. E, fechando o foco, o estudo está nas práticas sociais religiosas ligadas à mídia e à comunicação. Está fora de questão discutir questões religiosas – exceto, claro, no que diz respeito à mídia –, ou se uma crença está certa ou errada. Do ponto de vista da Comunicação, essas questões rigorosamente não interessam. Religiões e denominações são citadas por sua relação com a mídia, sem questionar a validade de nenhuma religião. Se por acaso algo soar assim, foi por inabilidade com as palavras, e ficarei feliz de corrigir em uma próxima edição. Uma nota importante: não é objetivo aqui, de maneira alguma, caracterizar de modo simples grupos plurais e complexos, cada um com seu contexto e percurso histórico. As referências a “católicos”, “evangélicos”, “protestantes”, “umbandistas”, “espíritas”, “israelitas”, “islâmicos” ou termos semelhantes derivam exclusivamente da maneira como os autores e personagens dos textos usados como base para este trabalho se autoidentificaram. A opção pelo uso de notas, em vez da citação direta de autoras e autores, é uma tentativa de deixar a leitura um pouco mais direta, evitando a repetição de expressões como “conforme a autora...” ou “segundo o autor...”. Isso não significa nenhuma pretensão de originalidade, ao contrário: este livro é construído no diálogo, e as referências estão todas assinaladas. * * * Este livro foi escrito em momentos diferentes.[1] É, em primeiro lugar, resultado de estudos como pesquisador-bolsista na Universidade de East Anglia (UEA) em 2008, que se desdobraram de várias maneiras nos anos seguintes. Especialmente, com a publicação do livro The Mediatization of Religion, pela editora britânica Ashgate, em 2013, e com a realização de um Seminário na UEA, sobre 6 o mesmo tema, em janeiro de 2014. Um agradecimento especial à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio concedido para o Seminário, no qual as pesquisas de base deste livro foram discutidas em vários momentos. Os agradecimentos pessoais começam com os professores, amigos, colegas e corpo técnico da UEA. Aos professores John Street e Lee Marsden, pelos desafios intelectuais e apoio pessoal, com quem aprendi sobre ser professor. À professora Sanna Inthorn pelos diálogos e ideias. Os comentários do professor Mick Temple, da Universidade de Stratford, a uma das primeiras versões do que viria a ser este livro, foram preciosos. À equipe universitária de recepção aos estudantes, Mrs. Kerry Dunford, Dra. Anna Magyar e Dra. Anna Grant, além do time da pastoral universitária, pelas lições práticas de convívio e tolerância – a professora Marion Houssart, da Pastoral Católica, o Rev. Neil Walker, batista, o Rev. Darren Thorton, anglicano, além dos colegas islâmicos e israelitas. E a todos os amigos de Norwich, cidade medieval no leste da Inglaterra, aonde tive a melhor recepção que um estrangeiro poderia esperar. O lugar tem a maior concentração de igrejas góticas do norte da Europa, e provavelmente uma das maiores listas de pubs do planeta. Segundo a lenda, são cinquenta e duas igrejas e 365 pubs – “uma igreja para cada domingo, um pub para cada dia” (garanto o número de igrejas, perdi a conta dos pubs). Thank you! * * * Na editora Paulus, pela recepção e a acolhida ao projeto deste livro. Acolhida, aliás, que começou em 2003, na oportunidade de publicar Mídia e Poder Simbólico.Seguiram-se O habitus na Comunicação, também de 2003, escrito em parceria com Clóvis de Barros Filho; Comunicação: troca cultural?, de 2005, Comunicação e Identidade, de 2010, outro fruto da temporada em East Anglia. * * * Questões teóricas foram discutidas no Grupo de Pesquisa Teorias e Processos da Comunicação, sediado no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCom) da Cásper Líbero, especialmente nos Seminários Temáticos. A todas e todos os participantes, um grande obrigado pelo diálogo. * * * Aos amigos e amigas, alunos e alunas, colegas de várias faculdades, universidades, centros de pesquisa e núcleos de estudos, por todas as conversas – nas salas de aula, nos encontros de corredor ou em um café. Como a lista de agradecimentos exigiria um volume à parte, tudo bem se eu deixar um grande “obrigado!” cercado de abraços por aqui? * * * Aos meus pais, Antonio Carlos e Vera Lúcia, pelo que ensinaram e são. A gente nunca deixa de ser filho, e descobri isso quando me tornei pai. Ao meu filhote Lucas, que desenha aqui ao meu lado enquanto escrevo, e à Anna Carolina, por estar junto em todas estas aventuras. 7 Norwich/São Paulo, inverno de 2014 ao verão de 2016. 8 E INTRODUÇÃO TRILHAS DA PESQUISA EM MÍDIA E RELIGIÃO screvendo sobre a pluralidade religiosa contemporânea, Anne-Sophie Lamine aponta um curioso paradoxo: embora as religiões, em sua maioria, tenham um forte sentido de comunidade, a convivência entre algumas delas raramente colocam em ação esse sentido comunitário. Ao contrário, às vezes a relação é bastante complicada.[1] Para a autora, essa questão é um problema fundamental no estudo da religião: as relações entre pessoas e grupos diferentes – em outras palavras, o problema da alteridade e da diferença. Religião é um dos grandes marcadores da identidade de indivíduos, grupos e comunidades. Assim como define quem está dentro da comunidade, define também quem está fora. A pergunta seguinte é “o que fazer com quem está fora”, isto é, com quem não pertence ao grupo religioso. Ao longo da história, diversas respostas foram experimentadas – respeitar, acolher, converter, ignorar, eliminar. Mais do que qualquer diferença entre as crenças, o que seria um problema religioso, o cenário que se desenha é político: como viver com quem pensa diferente de mim? 9 O desafio do pluralismo Há algumas décadas, especialmente a partir da segunda metade dos anos 1980, o Brasil começou a vivenciar a experiência do pluralismo religioso. Isso significou o desafio de viver a diferença religiosa em um grau desconhecido até então. Não se tratava mais de uma denominação principal – o Brasil era “o maior país católico do mundo” – observando a resistência de denominações e religiões minoritárias, como protestantes e espíritas, mas de um cenário de pluralidade, no qual a dinâmica das denominações religiosas passou a se organizar em termos de uma disputa por espaço – tanto entre as pessoas quanto pelo público. O pluralismo religioso ultrapassou rapidamente a esfera das religiões e se articulou com outros setores da sociedade, como a política e a cultura. No campo político, o pluralismo religioso significou a entrada de novos temas na agenda de debates. Questões como o Estado laico, o ensino religioso nas escolas, o respeito à diferença de crenças e outras temáticas passaram a frequentar a mídia e o cotidiano. E algumas denominações religiosas não demoraram para se encontrar, às vezes de maneira bem pouco amistosa, com as ideias de outros setores da sociedade: concepções da Igreja católica a respeito do uso de anticoncepcionais foram contestadas por associações da sociedade civil, como as Católicas pelo Direito de Decidir; as referências negativas de algumas lideranças evangélicas à Umbanda ou ao Candomblé se tornaram assunto de debates com grupos afro-brasileiros; grupos vinculados às reivindicações da comunidade LGBT se posicionam em relação a diferentes grupos religiosos no que diz respeito ao combate à homofobia. Esses exemplos sugerem uma crescente complexidade do campo religioso, que ultrapassa o limite estrito da “crença” e diz respeito a toda a sociedade. Não que não existissem, desde o período colonial, diversas religiões no Brasil. No entanto, ao que parece, a consciência desse pluralismo começou a crescer a partir dos anos 1980, quando algumas denominações religiosas passaram a usar uma estratégia que, nos anos seguintes, mostraria uma relevância até então pouco conhecida – a visibilidade midiática. Claro que não é possível reduzir toda a complexidade do colorido cenário religioso brasileiro às questões relacionadas à mídia. Aliás, parte dos problemas e questões apresentados no parágrafo anterior não tem nenhuma relação com a mídia. No entanto, é a partir do momento em que esses assuntos, de uma maneira ou de outra, passam a circular nas diversas mídias, que eles tendem a chamar a atenção de uma porção maior do público. É essa relação entre mídia e religião, relacionada a questões de interesse público, que interessa a este livro. Trata-se, aqui, de um recorte metodológico que sublinha a interseção entre mídia e religião, mas não deixa de levar em consideração a existência de outros fatores – seria arriscado reduzir tudo à mídia. O ponto de vista da Comunicação é um modo de ver os fatos, mas não exclui nem diminui a importância e a validade de outros. Mas o que exatamente se está estudando quando se fala em “mídia e religião”? 10 Fronteiras de uma área de estudos Pesquisar as intersecções entre mídia, sociedade e religião significa ter em mente essa pluralidade, e lembrar que conceitos, teorias e ideias precisam acompanhar, na medida de suas limitações, as mudanças de seu objeto. É o que vem acontecendo com os estudos sobre mídia e religião. Como assinala Robert A. White, referindo-se ao contexto histórico das pesquisas em mídia e religião na Europa e nos Estados Unidos, houve uma passagem de estudos interessados nos “efeitos” da mídia sobre a religião para a “construção dos significados” pelos indivíduos diante das relações entre mídia e religião.[2] Em outras palavras, trata-se de uma passagem da pergunta: “Como as religiões usam os meios de comunicação?”, para: “Como as religiosidades se articulam com o ambiente das mídias?”. O que se nota, em estudos contemporâneos, é a ideia de falar em “religiões” ou “religiosidades” em vez de “religião”, no singular. Isso, de certa forma, é o que Bourdieu[3] e Pierucci[4] tem em mente quando falam em “dissolução” do religioso. A palavra “dissolução”, em geral, é usada para se referir ao fim de alguma coisa: no entanto, dissolver também significa “espalhar”. No mundo contemporâneo, ao lado das religiões organizadas, é possível observar o surgimento de inúmeras religiosidades – maneiras de viver experiências religiosas fora de igrejas, grupos ou denominações estabelecidas. Daí a ideia de uma “dissolução” do religioso não como “fim”, mas como algo que se espalha. Enquanto algumas religiões tradicionais observam com preocupação uma queda no número de fieis, outras religiosidades aparecem, às vezes de maneira muito diferente do que se entende por “religião”. Quem observar os estudos sobre mídia e religião, desde os primeiros [...], ainda nos anos 1960, quanto os contemporâneos, vai notar a variedade de ideias, teorias, métodos e objetos de estudo nessas pesquisas. Por lidar com uma interseção entre duas áreas, “Comunicação” e “Religião”, essas pesquisas buscam referenciais em outras disciplinas, da Sociologia à Psicologia, passando pela Antropologia e pelos estudos de Linguística. A partir dos anos 2000 houve um considerável crescimento no número de estudos a respeito de mídia e religião nos estudos de Comunicação, sobretudo a partir da publicação de várias coletâneas de estudos.[5] No entanto, nem sempre as pesquisas sobre mídia e religião estiveram vinculadas à Comunicação. Ao contrário, a entrada desse tema na área foi o resultado de um longo processo de idas e voltas – afinal, por que a religião deveria ser estudada pela Comunicação?Disciplinas como a Sociologia da Religião, não poderiam tratar do tema? E, especialmente, qual seria, digamos, o olhar específico da Comunicação? Observando alguns dos livros escritos no Brasil entre 1968, ano de publicação de alguns dos primeiros livros de Sociologia da Religião, e 2010, é possível notar como as pesquisas sobre mídia e religião transitaram, por assim dizer, da Sociologia para os estudos de Comunicação. Mas é bom avisar que esse “trânsito” não significa romper laços, e menos ainda que “mídia e religião” é um tema específico ou exclusivo da Comunicação. Cada área de estudos tem sua contribuição a dar sobre temas e objetos diversos. O recorte escolhido aqui, da Comunicação, não exclui nem diminui a 11 importância dos outros. Essa trilha é dividida em três partes: (a) um primeiro momento, ainda nos anos 1960, no qual a “mídia” era ainda um elemento secundário nas pesquisas em religião desenvolvidas sobretudo – mas não exclusivamente – nas Ciências Sociais; (b) as primeiras aproximações com a área de Comunicação, nos anos 1980, em estudos sobre Comunicação Eclesial; (c) os desenvolvimentos feitos a partir dos anos 1990, quando da ampliação dos temas na área de Comunicação. Essa divisão, vale reforçar, não significa que não ocorreram e ocorram bem-vindas mesclas, intersecções e sobreposições – o conhecimento, até onde se sabe, acontece no diálogo. Inclusive entre disciplinas e áreas do conhecimento. 12 Como se forma uma área de estudos? Antes de entrar em uma “genealogia” desses estudos, vale começar com uma pergunta: como se delineiam os contornos de uma área de pesquisa? Quando alguém fala em “pesquisa sociológica” ou “pesquisa em biologia”, por exemplo, talvez nem todo mundo tenha uma ideia correta do que se pesquisa em cada área. A origem dos termos nem sempre ajuda: definir “sociologia” como “estudo da sociedade” ou “biologia” como “estudo da vida” não explica algo fundamental: o que está sendo chamado de “sociedade” ou de “vida” em cada caso? Esses conceitos fundamentais, aliás, costumam ser bastante debatidos em cada área. Para complicar, uma pesquisa sobre História da Química – digamos, a passagem da Alquimia à Química – deve ser estudada como História ou como Química? Essas perguntas são feitas para lembrar que os fatos sempre podem ser estudados a partir de mais de uma perspectiva. Em cada área do saber, pesquisadores e professores vão olhar para o objeto conforme os seus referenciais. Como lembra o historiador britânico Keith Johnson, ao olhar para a mesma paisagem, um geógrafo, um sociólogo e um historiador verão coisas muito diferentes, de acordo com seus interesses, ideias e formações.[6] Isso não significa que as disciplinas acadêmicas tenham uma história linear. Ao contrário, muitas vezes as ideias, que estão em uma área, não tem nenhuma relação direta entre si. Às vezes, essa relação é feita de maneira desconexa, independente, e sem vínculos com esta ou aquela área. Michel Foucault lembra que o estudo de qualquer objeto tem uma história; áreas como “psicologia” ou “física” não nasceram por acaso e não apareceram prontas: ao contrário, a definição do que é, digamos, “sociologia” aconteceu aos poucos.[7] Suas características foram delineadas a partir de perspectivas, interesses e possibilidades que nem sempre se relacionam de maneira simples ou pacífica. Em cada área do saber existem disputas mais ou menos explícitas para definir o objeto de estudos, as teorias mais interessantes, os melhores métodos e assim por diante.[8] Levando em conta essas ressalvas, os estudos de mídia e religião no Brasil começam ainda nos anos 1960. Em geral, estão no meio de pesquisas sobre religião nas Ciências Sociais, ganhando maior autonomia e destaque a partir dos anos 2000. Para algum observador apressado pode parecer óbvio que um tema como “mídia e religião” só pode ser estudado na área de Comunicação. Mas, em geral, por trás de coisas aparentemente óbvias, os fatos costumam ser bem mais complexos. A apropriação de um tema por uma área do saber está relacionada às características específicas de cada uma delas. Temas novos nem sempre são bem-vindos em todas as áreas. Ao contrário, geralmente há resistências e discussões antes de um tema ser considerado “típico” de uma área. (Em geral, depois de certo tempo, esses temas acabam sendo considerados como “naturalmente” pertencentes a uma área ou outra, mas isso é outra história). Se, como lembra Ferreira, não é possível reduzir os elementos científicos aos fatores políticos, também é preciso levar em conta a interferência de elementos políticos na formação de uma área.[9] 13 A mídia nos estudos de Sociologia da Religião A religião sempre foi uma das temáticas privilegiadas nas Ciências Sociais. Os chamados “pais fundadores” das Ciências Sociais, Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim, dedicaram considerável quantidade de estudos ao tema, incluindo aí algumas de suas obras clássicas, como a Introdução à Crítica do Direito de Hegel, de Marx, passando por A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Weber, e As formas elementares da vida religiosa, de Durkheim. Não que não houvesse o que estudar: publicações religiosas impressas já existiam desde o século XVII, e o rádio foi usado como instrumento de divulgação religiosa a partir do início do século XX. Mas, como indica o pesquisador norte-americano Steven Bruce, foi a partir do surgimento dos “televangelistas” e dos programas religiosos na televisão que a academia voltou suas atenções para o tema.[10] É a partir dos anos 1990, quando o campo religioso já está diretamente relacionado com a mídia, que se nota um aumento no número de pesquisas sobre o tema.[11] Outros pesquisadores indicam ainda outra mudança que pode ter contribuído para dar mais espaço ao tema “mídia e religião” nas Ciências Sociais: a passagem de uma “sociologia religiosa”, isto é, feita por pessoas ligadas a denominações religiosas, para uma “sociologia da religião”, feita por interessados na religião exclusivamente como fenômeno social, como, em outros casos, seriam o esporte, a moda, a política ou o consumo.[12] A religião interessa para as Ciências Sociais – e para a Comunicação – por sua importância como fenômeno social, não como fenômeno religioso. A realidade em si dos fenômenos religiosos, das crenças e divindades, disputadas sobre questões doutrinárias, sobre o certo e o errado das religiões em si não são o objeto da pesquisa nas Ciências Sociais. A religião se torna um tema de interesse porque essas crenças estão ligadas ao modo como indivíduos, comunidades e sociedades vivem e se relacionam uns com os outros. O debate sobre as características de uma divindade, por exemplo, interessa exclusivamente aos adeptos daquela religião. No entanto, quando esse debate se torna um pretexto para que algumas pessoas adotem determinada atitude em relação às outras, como servi-las ou dominá-las, a questão se torna de interesse para as Ciências Sociais, na medida em que é uma prática social. A inclusão da comunicação se mostrou particularmente importante para algumas práticas religiosas, a princípio para algumas denominações religiosas norte-americanas e, pouco tempo depois, na América Latina. Em seu estudo pioneiro sobre o pentecostalismo em São Paulo, Beatriz Muniz de Souza destacava o espaço da mídia, principalmente das publicações impressas e programas de rádio, nas igrejas evangélicas.[13] Para a autora, a mídia era parte central de suas atividades, seja mantendo os laços estabelecidos com os fiéis, seja como parte da divulgação de sua mensagem. Souza destaca os meios de comunicação das denominações religiosas, que atuavam tanto como proprietária de editoras e veículos impressos quanto alugando espaços em rádios. Era o início de uma relação institucional e econômica que se tornaria mais e mais complexa com o tempo. Os primeiros trabalhos específicos sobre mídia e religião são escritos, na área da Sociologia da Religião, apenas nos anos 1980, quando o tema ganha espaço na agenda de 14 pesquisada área. Hugo Assmann, em A igreja eletrônica e seu impacto na América Latina, faz um estudo a respeito das consequências políticas do televangelismo, destacando a introdução de novos modos de viver a religião no contexto latino-americano, uma vez que o modelo de televangelismo usado era originário dos Estados Unidos.[14] Isso era um contraste não só com o Catolicismo, até então predominante na América Latina, mas também com o protestantismo tradicional, com o nascimento das “multinacionais da fé”.[15] No entanto, a partir dos anos 1980, o tema começava a chamar a atenção de pesquisadores da área de Comunicação. 15 A religião como objeto da pesquisa em comunicação Embora as relações entre mídia e religião só tenham entrado na agenda de pesquisa da Comunicação a partir dos anos 1980, o tema logo passou a estar presente em diversos trabalhos interessados em compreender essa relação do ponto de vista dos estudos da área. Se, no momento anterior, a mídia era vista como uma parte em estudos sociológicos, agora a preocupação era entender como ela se tornava central em alguns aspectos das instituições e práticas religiosas. Vale lembrar que o próprio cenário religioso também estava mudando. No início da década de 1980, surgiram denominações religiosas, como a Igreja Universal do Reino de Deus e a Igreja da Graça, que faziam dos meios de comunicação, especialmente da televisão, mais do que um acessório, um elemento central de suas atividades, ao mesmo tempo em que a Igreja católica também revia seus conceitos sobre a comunicação, investindo na mídia para a divulgação de suas ideias. Nessa época, as pesquisas em mídia e religião se dirigiram, em boa parte, a estudar a chamada “mídia religiosa”, ou seja, o uso da mídia pelas igrejas – quais eram seus objetivos, suas características, limites e possibilidades. Ou, em outras palavras, pesquisas sobre “Comunicação Eclesiástica”, concentradas em estudos a respeito do Catolicismo, em suas diversas manifestações e movimentos, nas igrejas protestantes tradicionais. Trabalhos publicados nessa época situam as discussões sobre mídia e religião no contexto de redemocratização política e expansão dos chamados “meios de comunicação de massa”.[16] É possível destacar também o trabalho de Luiz Beltrão sobre “Folkcomunicação”, no qual o autor se dedica, em quase metade do livro, a estudar a comunicação de grupos religiosos.[17] Essa perspectiva nas relações entre mídia e religião popular foi seguida por outros pesquisadores, já estudando o fenômeno a partir da Comunicação, não da religião. [18] Isso não significou que pesquisas em outras áreas não se ocupassem do mesmo tema. É possível localizar elementos dessa interseção entre “cultura de massa” e “religião”, como as relações entre religião e indústria cultural ou sobre traços religiosos na cultura pop (entendida no sentido anglo-saxônico de “popular culture”).[19] A criação de interfaces com a religião também parece ter ajudado, de maneira mais ou menos direta, a Comunicação a se consolidar como área de estudos. Alguns autores colocam o Cristianismo, ao lado do marxismo, como duas das origens mais importantes do pensamento em Comunicação na América Latina. Gomes delineia as conquistas dessas duas matrizes no mundo acadêmico como o desenvolvimento original de um pensamento crítico, combinado às particularidades da religião como fonte de uma reflexão na qual se procuram caminhos de reflexão, não apenas do fenômeno religioso, mas também da própria Comunicação.[20] As pesquisas em mídia e religião, de alguma maneira, passaram a “convergir” porque o fenômeno estudado também convergia: a partir dos anos 1980, é possível notar que mídia e religião se tornam cada vez mais interdependentes.[21] 16 Estudar mídia e religião na área de Comunicação Nos anos seguintes, já no início da década de 2000, surgiram novas linhas de pesquisa dentro do tema “mídia e religião” – que, por sua vez, já havia se consolidado como parte da área de Comunicação. Ao mesmo tempo, o cenário religioso também mudou consideravelmente a partir do final dos anos 1990: de um lado, a consolidação das igrejas evangélicas neopentecostais; de outro, Renovação Carismática Católica. E também foi o momento de mudanças na Comunicação: a internet e as mídias digitais, em meados da década de 1990, trouxeram novas perspectivas para o estudo das relações entre mídia e religião a partir de um referencial da Comunicação. Não se pode deixar de lembrar, no entanto, que essas transformações e mudanças geralmente não foram completas e, menos ainda, lineares. São datas e fatos escolhidos muito mais por questões de exposição do que fronteiras fechadas. Nesse momento, há novas buscas dentro da área de Comunicação para entender a religião a partir de seus referenciais teóricos, como estudos sobre religião a partir da Semiótica ou do Marketing.[22] As questões relacionando religião com o entretenimento e consumo, ganharam a atenção de diversas pesquisadoras e estudiosos.[23] Essas mudanças foram acompanhadas, por sua vez, de transformações mais gerais na maneira como a sociedade passou a se relacionar com a mídia, palavra que, a partir dos anos 2000, perde o significado exclusivo de “meios de comunicação de massa” para se referir à série quase ilimitada de dispositivos – de televisões e computadores a tablets e smartphones – e das mensagens compartilhadas por eles. Um dos destaques desse processo é a entrada das mídias digitais e dos ambientes da internet como objetos de estudo, seja mostrando como os meios digitais formam uma maneira nova e específica de manifestação de fenômenos religiosos – como a devoção on- line funciona – ou como os vínculos religiosos também são criados nesse espaço.[24] Isso não significou o abandono dos trabalhos dirigidos ao estudo das mídias de massa, particularmente da televisão.[25] 17 Pluralidade de vozes Um dos principais fatores que mostram a vinculação da temática “mídia e religião” à Comunicação talvez seja o fato de esses estudos compartilharem alguns dos problemas teóricos da área. A área de Comunicação, como indicam vários autores, é marcada por uma considerável diversidade em termos de objetos, teorias e métodos de estudo. Um olhar para qualquer evento importante da área, como os congressos e encontros, mostram uma pluralidade de temas e objetos de estudo, do jornalismo às histórias em quadrinhos, das relações públicas aos jogos digitais on-line, das redes sociais ao entretenimento. Essa diversidade, em alguns momentos, leva alguns autores a questionar quais seriam as características específicas da área de Comunicação, uma discussão que, por questões de foco e espaço, será feita em outro lugar.[26] No exterior, é possível notar um aumento considerável no número de obras a respeito de mídia e religião desde o início dos anos 2000, sem mencionar as publicações dedicadas exclusivamente ao tema, como os mencionados Journal of Communication and Religion, o Journal of Media and Religion e o Journal of Pop Culture and Religion.[27] Esse aumento indica não apenas a importância do objeto de estudo, mas também a preocupação da academia em compreender as relações entre mídia e religião. Como essa pluralidade se reflete nas pesquisas sobre mídia e religião? Ao lado do crescimento do número de estudos sobre o tema, de certa maneira, é possível ver também ramificações – e, de maneira talvez circular, esse seja um dos fatores responsáveis pelo crescimento numérico e temático das pesquisas em mídia e religião a partir dos anos 2000. Quadro 1: Algumas trilhas da produção sobre mídia, Comunicação e religião Perspectiva RecorteTeórico Objeto de Estudos Conceito de Mídia Conceito de Religião Alguns autores Estudos Sociológicos Sociologia; Sociologia da Religião Instituições Religiosas Instrumental Marxista /Weberiano Souza (1969); Mendonça (1984); Campos (1997) Mariano (1997); Oro (1997) Comunicação de Massa Sociologia; Teoria Crítica; Denominações específicas; religião popular Indústria Cultural; Cultura Religiões; Religiosidadespopulares Assmann (1986); Gomes (1987); Ortiz (1980); Soares (1980); Beltrão (1980); Ambiente midiático Teoria da Comunicação Teoria Crítica; Intersecções entre mídia(s) e religiões / religiosidades Indústria Cultural; Ambiente midiático Institucional: Religiões organizadas Klein (2005); Martino (2003); Patriota (2008); Souza (2005); Carranza (2011); Campos (2002) Cunha (2013); Dantas (2008); Dias (2001) Figueiredo (2005); Melo, Gobbi, Enzo (2007) Mídias Digitais / Midiatização da Sociedade Dispositivos; Midiatização; Teorias da Imagem Denominações específicas; religiosidades Processos interacionais; dispositivos técnicos Institucional; Religiosidades Gomes (2002; 2004a; 2004b; 2010); Fiegenbaum (2006); Gasparetto (2011); Borelli (2010; 2012); Fausto Neto (2004a, 2004b, 2006, 2008); Hjarvard (2008); Miklos (2012); Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Lima (2001) e Martino (2013; 2014) O Quadro 1, tomado como uma indicação, não como representação de uma verdade, sugere não apenas um crescimento numérico das pesquisas em mídia e religião, mas também uma variedade de objetos de estudo e de pontos de vista teóricos e metodológicos. Vale lembrar, também, que há grande trânsito de pesquisas e pesquisadores, e a tabela é feita para oferecer uma ideia inicial, não para fixar nomes ou temáticas. Enquanto, em um primeiro momento – e essas datas são, sobretudo, aproximativas – notava-se uma preocupação com questões da religião, sobretudo a partir de um viés 18 marxista ou weberiano, é possível observar que a aproximação dessa temática na área de Comunicação significou também, de alguma maneira, pensar a religião a partir dos referenciais da área. Dessa maneira, questões relacionadas à indústria cultural e à Comunicação de massa foram seguidas por pesquisas sobre a mistura entre religiosidades e ambientes midiáticos, particularmente os digitais. A compreensão do objeto de estudos também varia: desde formas mais institucionais de religião, como igrejas, hierarquias e organizações, até formas das religiosidades populares. Do mesmo modo, a presença da religião na política parece ter sido igualmente acentuada no período da democratização, sendo a religião um fator de peso na constituição dos debates públicos. Além disso, é possível igualmente apontar uma diversificação do fenômeno religioso- midiático a partir desse período. Denominações neopentecostais ramificaram-se consideravelmente, procurando espaço e, muitas vezes, criar uma mensagem específica para determinados grupos sociais. Ao mesmo tempo, o final dos anos 1990 trouxe uma nova forma de religiosidade midiática católica: programas de TV, emissoras, como a Canção Nova, a Rede Vida e a TV Aparecida, dedicadas exclusivamente à programação religiosa, o fenômeno dos “padres cantores”, bem como de formas novas de transmissão televisiva e on-line de suas práticas, é uma parte visível disso. Finalmente, em algumas igrejas neopentecostais, como a Renascer em Cristo e a Bola de Neve Church, foi possível igualmente observar mudanças no sentido de trabalhar lógicas específicas de vinculação com o entretenimento e com a cultura midiática contemporânea. Para finalizar, vale notar que o número de estudos dedicados às relações entre mídia e outras religiosidades – além de católicos e protestantes – é menor, sendo possível destacar, por exemplo, os trabalhos de Luiz Signates dedicados à Comunicação do Espiritismo.[28] Religiões afrobrasileiras ou de origem semita, talvez por sua baixa presença na mídia, também não ocupam o mesmo destaque das pesquisas sobre católicos e evangélicos. No entanto, se é possível pensar que o modo como uma área ou um tema de pesquisa não aparece do nada, mas é construído a partir de transformações, continuidades e rupturas dentro de sua história específica, é possível pontuar alguns aspectos dessa história e, mais ainda, procurar algum tipo de análise interpretativa dos vínculos e afinidades em uma área de pesquisa em desenvolvimento que, como inúmeras outras, parece encontrar seu maior desenvolvimento na pluralidade e no diálogo – objetivo, talvez, de qualquer pesquisa. Nas três partes do livro, algumas dessas tramas serão exploradas. Se gerarem mais perguntas do que respostas, este texto cumpriu seu objetivo. 19 P A R T E I 20 MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO 21 CAPÍTULO 1 22 N A MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO as manhãs de domingo, por volta das 10h30, os sinos da igreja anglicana de St. Giles, em Norwich, Inglaterra, começam a tocar. Como acontece desde o ano de 1430, os sinos indicam o começo da missa. Os frequentadores se acomodam nos bancos de madeira, trocando cumprimentos. A celebração começa com uma saudação sorridente do reverendo Darren Thorton e se desenvolve com o acompanhamento de um coral – os St. Giles Singers – e um órgão do século XIX. A comunidade de St. Giles é muito acolhedora, criando uma sensação de bem-estar e familiaridade. Na arquitetura gótica da igreja, há uma atmosfera de ausência de tempo. A alguns quilômetros de lá, na mesma cidade, fica a Proclaimers Church, criada nos anos 2000. O slogan da igreja, em seu site e nas redes sociais, é: “Igreja, sem as partes chatas”.[1] Nas celebrações, os sons ecoam música pop, na tradição do rock britânico, com iluminação e acústica apropriadas. Jovens vestidos nos mais variados estilos, ligados no mundo ao redor. Em seu site, a Proclaimers explica essa perspectiva: “Vejo uma Igreja vibrante, que comunica fielmente a mensagem da Bíblia de uma maneira atual, contemporânea e fácil de entender”.[2] O contraste não poderia ser maior entre os dois ambientes. E, no entanto, são apenas maneiras diferentes de compartilhar a mensagem religiosa. Cada igreja usa uma linguagem própria, de acordo com suas concepções, tradições e objetivos. Em St. Giles, o público é formado, em sua maioria, por adultos. Na Proclaimers, os frequentadores são majoritariamente jovens. Em cada uma, a mensagem religiosa será adaptada de um modo diferente. A religião não se desliga do contexto na qual está, e o desafio enfrentado por muitas denominações religiosas é manter o conteúdo de sua mensagem adaptando a forma conforme as expectativas da comunidade – seja com coral e órgão em uma igreja medieval, seja com rock e estilo em uma construção contemporânea. Algumas formas de viver a experiência religiosa também mudam no ambiente das mídias digitais – não faltam, por exemplo, aplicativos religiosos para smartphones e tablets que permitem, por exemplo, ao fiel encontrar rapidamente seus versículos favoritos na Bíblia, sublinhá-los com cores diferentes e salvá-los de acordo com suas preferências pessoais para ler onde, quando e como quiser. Um giro pela programação de televisão, aberta ou a cabo, uma pesquisa em qualquer site de busca na internet, ou alguns minutos em uma rede social nas mídias digitais, mostra a presença constante de programas e conteúdos religiosos – que, por sua vez, muitas vezes utilizam uma linguagem claramente inspirada na mídia leiga. A vivência de uma experiência religiosa mediada pelo ambiente da mídia: esse parece ser o centro do processo de midiatização da religião. Em uma primeira definição, midiatização é a articulação entre o ambiente midiático e processos sociais. Vale a pena gastar um minuto para esmiuçar essa ideia. “Processos sociais”, em linhas gerais, são as diferentes maneiras como as pessoas 23 interagem entre si. Cada tipo de interação é um processo social diferente: o processo social “namoro” tem características próprias, como laços pessoais, contatos regulares, compartilhamento de informações e declarações mútuas de interesse afetivo que o tornam diferente de todos os outros, como o processo social “ficada” ou “amizade” (indefinições sobre qual é o processo social tendem a gerar certa angústia nos participantes). A noção de “ambiente midiático”, proposta originalmente por Joshua Meyrowitz, parte do princípio de que, no mundo contemporâneo, as diversas mídias, como televisões, smartphones, computadores e tablets estão ao nosso redor,gostemos delas ou não.[3] Fazem parte do cotidiano, criando um “ambiente” (do latim ambiens, “aquilo que está ao redor”). Mas não é apenas a presença desses aparelhos que cria o “ambiente midiático”. Os aparelhos, sozinhos, não vão muito longe. Esse ambiente só é formado porque nós interagimos com e através desses aparelhos. Eles fazem parte das nossas relações sociais e das nossas práticas cotidianas. Seja para mandar uma mensagem para alguém, seja para ver como estará o clima amanhã, as mídias formam um ambiente no qual circulam nossas ideias, conceitos e ações na interação com as outras pessoas. No entanto, cada aparelho tem suas características. Dentro de um smartphone, cada aplicativo tem seu estilo. Um programa de televisão está adaptado ao formato da TV, da mesma maneira que um post em uma rede social deve seguir os critérios da rede onde é postado. Isso significa que cada mídia tem o seu estilo, ou seja, sua linguagem. E isso vai além do estilo: o custo de uma mensagem na televisão, por exemplo, é infinitamente maior do que postar um vídeo caseiro on-line. Claro que, na prática, existem inúmeros cruzamentos de estilos e linguagens nas mídias, mas cada uma tem suas particularidades. O conjunto desses elementos específicos de cada mídia é o que alguns pesquisadores, como Thomas Meyer, chamam de “lógica da mídia”. [4] A midiatização é uma característica de várias igrejas e grupos religiosos, nas quais práticas e modos de vivência da religião são alterados, repensados no contexto de uma sociedade na qual várias atividades cotidianas, de relacionamentos familiares a questões profissionais, acontecem no ambiente digital e fora dele. Talvez não seja errado afirmar, ao menos no caso brasileiro, que algumas denominações religiosas têm nas mídias mais do que um aliado na divulgação de uma mensagem, mas quase sua razão de ser.[5] O capítulo está dividido em duas partes. Na primeira, veremos os aspectos teóricos da midiatização. Em seguida, faremos um breve resgate histórico de momentos-chave do processo de midiatização da religião, destacando o caso brasileiro. 24 1. A NOÇÃO DE MIDIATIZAÇÃO O termo “midiatização” vem sendo utilizado nos estudos de Comunicação ao menos desde os anos 1970. No entanto, assim como no caso de outros conceitos, não existe consenso a respeito do que “midiatização” significa. Alguns dos principais autores que trabalham com o tema mostram que a palavra “midiatização” tem uma quantidade considerável de significados. Mas é possível, mesmo assim, delinear alguns a partir deles, particularmente, na midiatização da religião.[6] O primeiro ponto importante é lembrar que a mídia não transforma processos sociais. Isso seria o chamado “midiacentrismo”, dar uma importância exagerada aos meios de comunicação como se fossem os responsáveis por criar ou transformar atividades sociais. Os “meios”, em si, não fazem nada quando não são colocados no conjunto das relações humanas. A mídia só pode interferir nas práticas e vivências religiosas porque essas relações sociais existiam antes de qualquer vínculo com a mídia. É importante, nesse sentido, pensar no contexto histórico e social no qual as religiões se tornam práticas mediadas.[7] A mídia, portanto, não tem “efeitos” sobre as práticas religiosas, sobre as igrejas e denominações. Elas se encaixam em uma trama muito mais complexa. A noção de midiatização tenta balancear essa ligação, lembrando que, no mundo contemporâneo, uma boa parte dos processos sociais, do namoro às práticas religiosas, acontece nos ambientes midiáticos – no entanto, não deixam de manter também suas características e atributos. Retomando o exemplo anterior, um namoro, ainda que aconteça de maneira exclusivamente virtual, não deixa de ser uma relação entre seres humanos, não entre dispositivos eletrônicos. As características da relação afetiva não se perdem, mas ocorrem de maneira diferente – a atenção está na relação com o outro, não com o smartphone. (Se a relação com o smartphone for mais interessante do que com outra a pessoa, vale repensar o relacionamento.) Em uma aproximação inicial, midiatização é a articulação entre a lógica e o formato dos meios no processo de comunicação.[8] E, ampliando essa definição, em vários outros processos sociais. Muniz Sodré define a midiatização como uma “virtualização das relações humanas, presente na articulação do múltiplo funcionamento institucional e de determinadas pautas individuais de conduta com as tecnologias da comunicação” [9]. Ou, nas palavras de Pedro Gilberto Gomes, um “novo modo de ser no mundo”.[10] A midiatização, em outras palavras, pode ser entendida como o movimento de articulação das mídias nos processos sociais, com a consequente alteração de práticas e significados “mediados”, isto é, que ocorrem na mídia.[11] É preciso tomar algum cuidado com essa afirmação. O uso de meios de comunicação por uma instituição religiosa para transmitir uma mensagem, sem que nenhuma prática religiosa seja alterada para isso, não significa sua “midiatização”, mas sua “mediação” (mediation).[12] A midiatização tem início no momento em que as mídias, lembra Finneman, tornam-se parte das atividades individuais e institucionais.[13] Quando processos sociais assumem novas configurações, 25 ganhando outras formas e contornos, aí se pode pensar em termos de midiatização. A transmissão de um culto religioso pela televisão, sem nenhum tipo de alteração nas práticas litúrgicas, é a “mediação” do culto; quando, no entanto, o próprio culto religioso é planejado e adaptado para ficar mais parecido com o estilo de programas de televisão, ou quando algumas lideranças religiosas adotam práticas semelhantes à de figuras midiáticas, seja no modo de vestir, seja na maneira de lidar com o público, seja em sua preparação específica para conduzir celebrações e cultos em um estilo apropriado para transmissão via TV ou internet, então estamos na lógica da midiatização. Isso, não custa lembrar, não significa que a mídia tenha efeitos nos processos sociais. É complicado encontrar uma separação entre “mídia”, “sociedade” e “instituições” que permita falar de “efeitos” de uma sobre a outra. Afinal, “emissores” e “receptores”, lembra Stuart Hall, vivem no mesmo ambiente cultural, dividem várias referências, tem pontos comuns em suas histórias e vivências.[14] Não é possível, por conta disso, falar em uma separação mas, para usar outra ideia de Hall, em “articulação” – e “articulação” não significa “efeito”. [15] A veiculação de uma cerimônia religiosa pela televisão não significa, neste ponto de vista, a midiatização da religião. No entanto, quando tanto as práticas de produção quanto de divulgação da mensagem religiosa se organizam, na própria instituição religiosa, em termos de uma lógica vinculada ao ambiente midiático, é possível falar em uma midiatização da denominação religiosa. A adequação institucional às lógicas de produção midiática, bem como dos fiéis e de suas práticas, ao ambiente midiático, pode ser entendida como um sintoma mais nítido do processo de midiatização do campo religioso – por exemplo, quando mesmo as cerimônias religiosas, mesmo aquelas que não são transmitidas pela mídia utilizam as linguagens da mídia. Lembrando que esquemas são apenas indicações, vale observar semelhanças e diferenças entre momentos diferentes da sociedade: Quadro 2: Mediação (“Mediation”) e Midiatização como conceitos analíticos Mediação Midiatização Nível de ocorrência Micro (indivíduos, comunidades instituições, organizações). Macro (sociedades, estados, processos e práticas sociais). Indica Uso da mídia por indivíduos,comunidades e grupos. Articulação de práticas individuais e sociais com a mídia. Questão Quais são as condições de construção dos sentidos, pelo receptor,das mensagens da mídia? Como pessoas e instituições articulam suas práticas cotidianas com o ambiente das mídias? Conceito de mídia Canal / Linguagem. Ambiente. Foco A recepção da mensagem da mídia e sua articulação com indivíduos, grupos ecomunidades. Oprocesso a partir do qual algumas práticas sociais são pautadas na lógica das mídias. Características Uso da mídia, por indivíduose comunidades, para compartilhar uma mensagem. Práticas individuais e sociais adotam a “lógica da mídia”. Intervalo de tempo Ação de curto prazo. Ação de médio/longo prazo. Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Couldry (2008), Hjarvard (2008a), Livingstone (2009b) Krotz (2009), Schutz (2004), Veron (2013), Martino (2013) e Sodré (2004; 2014). Pensando nessa perspectiva, afirmações como “a mídia faz isso” ou “o efeito da mídia é esse” deixam de levar em consideração que a “mídia” não é uma entidade à parte, distante da sociedade na qual está inserida. No ambiente das mídias digitais, isso fica ainda mais claro na medida em que as noções de “produtor” e “receptor” são colocadas em jogo. 26 A midiatização da religião pode ser entendida como a articulação de características dos meios de comunicação, com sua linguagem, seus códigos, seus limites e possibilidades de construção de mensagens nas práticas, formações e instituições religiosas. A midiatização não é uma relação passageira ou ocasional, mas um processo no qual tanto a mídia quanto a religião se articulam em práticas e ações comuns. Como recordam Boase e Wellman, as alterações no cotidiano provocadas pela presença das mídias atingem um ponto máximo, paradoxalmente, quando essa presença se torna invisível: para usar um exemplo dos autores, ninguém mais se espanta, hoje em dia, com a existência do telefone ou da televisão.[16] Os aparelhos e suas linguagens estão misturados com o cotidiano a ponto de não nos darmos conta de sua existência – e, no entanto, no Brasil, até meados dos anos 1980, ter uma linha telefônica era um processo complicado. Isso fica mais claro quando se pensa que, até meados da década de 2000, o acesso à internet era feito principalmente a partir de computadores tipo desktop e linhas telefônicas: era preciso se conectar, ou, como era dito na época, “entrar na internet”. A partir dos dispositivos smartphones e conexões via celular/wi-fi, a conexão é constante e fica difícil, muitas vezes, estabelecer uma divisão entre os momentos conectados e desconectados. Seria precipitado, portanto, resumir o processo de midiatização da religião a um único fator. Ao contrário, é um processo complexo, que envolve elementos diferentes, muitas vezes contraditórios.[17] Vale, nesse sentido, retomar alguns momentos importantes no processo de midiatização da religião. 27 2. ORIGENS HISTÓRICAS DA MIDIATIZAÇÃO DA RELIGIÃO As primeiras tentativas de uso das mídias para a transmissão de mensagens religiosas aconteceram na primeira metade do século XX, quando o padre católico James Coughlin estreou, nos anos 1930, um programa de rádio religioso nos Estados Unidos. Seu conteú‐ do, fortemente conservador, era pincelado por tintas totalitárias e mesmo antissemitas, ecoando correntes da política europeia da época. O estilo, no entanto, era o mesmo dos programas de rádio comuns: Coughlin percebeu que era preciso adaptar a mensagem religiosa às novas linguagens da mídia para se fazer entender. Na mesma época, a BBC, na Inglaterra, passou a transmitir pelo rádio as orações matinais anglicanas diretamente da Abadia de Westminster, em Londres – aos domingos, a missa completa –, um exemplo de “mediação” da religião. A utilização da mídia era mais como um acessório do que como uma nova linguagem. Ao que tudo indica, as relações entre mídia e religião começaram de fato nos Estados Unidos a partir dos anos 1940, quando sacerdotes católicos e protestantes passaram a se utilizar dos meios de comunicação eletrônicos – na época, o cinema, o rádio e a imprensa –, para divulgar suas mensagens religiosas, adaptando-as às características de cada meio. [18] Ao longo do século XX, dentre os exemplos mais representativos, estão o bispo católico Fulton Sheen e o pastor protestante Billy Graham. Eles possivelmente foram os primeiros a adequar meio e mensagem no uso da linguagem da televisão – edição de imagens, e variações no enquadramento, por exemplo. Seus programas não eram cerimônias religiosas filmadas, mas especialmente criadas levando em conta as características da TV. A geração seguinte de “televangelistas”, que inclui Rex Humbert e Jimmy Swaggart, pode ser considerada a primeira efetivamente midiatizada. Mais ainda, eles tornaram a sobrevivência de suas igrejas dependente, em boa parte, do sucesso do aparato midiático, particularmente com o uso das linguagens do entretenimento – como será visto em detalhes na terceira parte do livro. No caso brasileiro, o processo de midiatização da religião ganha força na chamada “segunda onda” do Protestantismo. Sem entrar em uma discussão que está no campo da Sociologia da Religião, a expressão “segunda onda” refere-se ao conjunto de igrejas protestantes criadas no Brasil a partir de meados do século XX. A “primeira onda”, o “protestantismo histórico”, são igrejas protestantes que chegaram ao Brasil com os imigrantes europeus do século XIX. São, em sua maioria, luteranos, presbiterianos, batistas e metodistas. A “segunda onda”, ou protestantismo “pentecostal”, teria sido iniciada com o surgimento de igrejas como Deus é Amor, o Brasil para Cristo e outras igrejas estabelecidas a partir dos anos 1950/1960, nas quais traços da influência norte-americana podiam ser identificados com maior nitidez. A “terceira onda”, por sua vez, agruparia as chamadas denominações neopentecostais, com origem no final da década de 1970 e renovando-se ao longo dos quarenta anos seguintes, como as igrejas Universal do Reino de Deus, Igreja da Graça, Renascer em Cristo, Bola de Neve Church e Igreja Mundial do Poder de Deus, entre outras.[19] Nos anos 1960 e 1970, portanto, na “segunda onda”, houve a consolidação plena da pregação pelo rádio e uma expansão quase sem limites da televisão; a internet e as mídias 28 digitais só iriam começar a aparecer nesse cenário a partir de 1995. Mas a indicação estava clara: o processo de midiatização demandava uma reestruturação nas organizações religiosas para incluir uma preocupação com o uso institucional dos meios, diferente de qualquer forma anterior de proselitismo. Assim, um dos principais momentos da midiatização das instituições religiosas no Brasil é a partir dos anos 1980, quando igrejas evangélicas neopentecostais se valem de todos os recursos de mídia disponíveis, como é o caso, naquela época, da Igreja Internacional da Graça e a Igreja Universal do Reino de Deus. Nesta última, a midiatização foi desde o início um dos pontos principais da denominação, com a presença constante de elementos fortemente midiáticos em vários dos aspectos de suas práticas.[20] Na Igreja da Graça, uma informação de seu site indica que ela foi idealizada quando seu fundador, o pastor R. R. Soares, ainda na juventude, teria se impressionado com o potencial comunicativo da televisão e decidiu consagrar sua vida à pregação com a utilização de meios eletrônicos: R. R. Soares cresceu em Muniz Freire, interior do Espírito Santo. Quando criança, durante uma visita à cidade vizinha, ele viu, pela primeira vez, um aparelho de TV na vitrine de uma loja. Ao perceber que uma multidão estava parada em frente ao estabelecimento, completamente fascinada pelo que via através daquela tela, ele fez uma oração: “Ninguém está usando esta nova invenção para falar do Senhor, meu Deus. Dê-me os meios e a oportunidade, e eu estarei naquela tela falando do Seu amor”.[21] Nessas denominações, assim como em alguns setores da Igreja católica, a segmentação de público, as diferenças de estilo entre atividades religiosas voltadas para grupos diferentes de fiéis e a elaboração de uma mensagem específica para cada grupo estão entre suas práticas. O modelo de religião midiatizada que acompanhou o surgimento dos ambientes digitais refletiu-se em outras igrejas evangélicas, fundadas já nos anos 1990, que adotaram de modo sem precedentes a linguagem da mídia em suas práticas (MARTINO, 2009), como as IgrejasRenascer em Cristo e Bola de Neve. A primeira, fundada pelo casal Estêvão e Sônia Hernandes, adotou um estilo de ação pautado em uma lógica midiática vista, sobretudo, em seus programas de televisão, principalmente no entretenimento. Vale assinalar também o espaço midiático que a presença de figuras como o jogador de futebol Kaká trazia para a denominação – o atleta desligou-se da igreja em 2010.[22] Na Bola de Neve, observa-se uma segmentação maior do público: fundada por um publicitário, volta-se sobretudo para a juventude, utilizando um discurso próximo dos códigos e modelos da mídia, empregando, a exemplo de outras denominações, merchandising e uma ampla esfera de produtos à venda com o logotipo da igreja.[23] A partir dos anos 1990, sobretudo com o padre Marcelo Rossi, começa uma estratégia de divulgação da mensagem religiosa a partir de um modelo baseado no formato das mídias – não por acaso, algumas celebrações eram denominadas, pela imprensa, como “showmissas”.[24] O padre financiou e atuou em filmes no início do século XXI, como Irmãos de Fé e Maria, a mãe do Filho de Deus, com atores da Rede Globo nos papéis principais. Na metade da década de 2000, outros religiosos passaram a ganhar espaços na mídia 29 com uma estratégia semelhante de adoção das práticas midiáticas. Usando um vocabulário próximo da linguagem de figuras midiáticas, como cantores, atores e apresentadores de televisão, tanto o padre Marcelo Rossi quanto Fábio de Melo conseguiram rapidamente um grande espaço nas mídias – não apenas católicas, mas também em emissoras leigas sem vínculos religiosos diretos, como o caso da Rede Globo. Além da participação em programas de televisão sem caráter religioso, vale destacar desde toda uma produção e lançamento regular de CDs e DVDs a livros de orações e auto-ajuda. Ainda no campo católico, a chamada Comunidade Canção Nova, estabelecida nos anos 1970 pelo Monsenhor Jonas Abib, tornou-se um conglomerado de produção religioso-midiática, atuando com força no mercado de bens simbólicos.[25] A midiatização da religião trouxe alterações não apenas para as dinâmicas do campo religioso, mas parece ter mudado, ainda que parcialmente, algumas ações internas do campo da Comunicação.[26] 30 3. ALTA MEDIAÇÃO, BAIXA MEDIAÇÃO: RELIGIÃO MIDIATIZADA NO ESPAÇO SOCIAL Em um trabalho anterior, procurei identificar algumas diferenças entre denominações religiosas ligadas à sua relação com o ambiente midiático.[27] A ideia principal é que, quanto mais “mediada” (mediated) uma denominação for, mais aberta ela está para adotar, em suas práticas, ideias e estilos da mídia e do entretenimento. Para indicar o quanto uma denominação religiosa é mediada, o critério foi o uso da televisão como principal elemento de comunicação. Por que a televisão, quando se tem todo o ambiente das mídias digitais? Por conta do investimento necessário: fazer um bom site e manter um sistema de redes sociais trabalhando não é barato, mas não se compara ao custo de um programa de televisão. Se uma igreja decide concentrar seus esforços em propagar sua mensagem via TV, isso pode ser um índice da importância dada à presença no ambiente midiático. Assim, em termos das relações entre mídia e religião, a ideia é pensar em termos de alta mediação e baixa mediação. Uma denominação teria uma alta mediação quando a mídia fosse um elemento central de sua existência, algo visível, sobretudo pelo uso em larga escala de programas de televisão – ou, como em alguns casos, por terem a concessão de um canal próprio. No caso brasileiro, as igrejas Universal do Reino de Deus, Internacional da Graça, Mundial do Poder de Deus, Renascer e Bola de Neve (esta última por conta de sua interseção com a cultura do entretenimento) e alguns setores da Igreja católica estariam entre aquelas de alta mediação. Denominações de baixa mediação são aquelas que procuram, por suas razões, menor interseção – ou mesmo certo afastamento – do ambiente midiático. Certos setores da Igreja católica, a Congregação Cristã no Brasil, O Brasil para Cristo, a Igreja do Evangelho Quadrangular e a Deus é Amor, por exemplo, estariam entre as de menor presença no ambiente midiático. Essa divisão, evidentemente, não é estanque, e há diferenças até mesmo dentro de algumas igrejas: no caso da Igreja católica, por exemplo, alguns movimentos são mais mediados do que outros. Isso não significa mudanças doutrinais – algo que nem seria assunto deste livro – ou em suas crenças, mas uma postura de relação com o ambiente midiático e social ao seu redor. Igrejas de alta mediação tendem a adotar com mais facilidade os elementos do ambiente midiático no qual estão inseridas, adaptando-os, claro, às suas concepções doutrinárias e institucionais. Esse processo não parece ser isolado. Em sua tese de doutorado, Ronaldo O. Rodrigues, a partir de um excelente estudo sobre as relações entre mídia, religião e juventude na ilha de Marajó, no Pará, propõe uma classificação das igrejas conforme sua relação com a mídia, tomando como ponto de partida o vínculo específico de cada religião, em sua origem, com a mídia. Nos resultados de seu trabalho, mostra também que a maneira de compartilhar a mensagem religiosa depende da relação da religião com o ambiente midiático ao seu redor.[28] A midiatização da religião, portanto, tem alterado as dinâmicas e práticas tanto no 31 campo religioso quanto no campo da comunicação. Essa aproximação não está isenta de contradições e paradoxos, em um movimento de mão dupla. Um exemplo pode ser o crescimento da Rede Record de Televisão, propriedade da Igreja Universal do Reino de Deus, que, no início do século XXI, chegou ao segundo lugar de audiência, conquistando um posto que por vinte anos havia sido do SBT – o primeiro lugar, desde os anos 1970, é da Rede Globo. O aporte da Igreja Universal na Record, ao alugar espaços na grade de programação, aparentemente alterou algumas das relações políticas e econômicas do campo da televisão. Por outro lado, notam-se também alterações no campo religioso. Religiões altamente midiatizadas parecem alcançar, em alguns momentos, maior destaque do que outras denominações em virtude de maior divulgação de sua mensagem e chegar a um número potencialmente maior de adeptos. Note-se, por exemplo, que quase todas as denominações religiosas brasileiras que apresentaram uma taxa expressiva de crescimento entre os anos 1980 e 2000 foram as que mais se articularam com a lógica dos meios de comunicação – note-se, a respeito, a Renascer em Cristo, a Igreja da Graça, a Bola de Neve Church, a Igreja Mundial do Poder de Deus e a Igreja Universal do Reino de Deus – esta última sendo a igreja evangélica que teve crescimento mais rápido desde sua fundação, em 1977. O processo de midiatização da religião apresenta-se dentro de um conjunto multifatorial de variáveis, dentre os quais a articulação de fatores que envolvem tanto elementos propriamente vinculados às características específicas de grupos e movimentos religiosos quanto uma economia política das mídias. Neste último caso, nota-se uma alteração na medida em que a midiatização inclui novos atores no campo, contribuindo para novas dinâmicas e mediações. Nesse sentido, a midiatização da religião torna-se uma estratégia de vinculação das instituições religiosas a um contexto marcado sobretudo pela presença dos elementos comunicacionais e midiáticos, garantindo sua visibilidade no espaço social. 32 CAPÍTULO 2 33 N MÍDIA E CAMPO RELIGIOSO a noite de domingo, 18 de março de 2014, o programa Domingo Espetacular, da Rede Record, exibiu uma reportagem denunciando supostas irregularidades na Igreja Mundial do Poder de Deus. Fundada em 1998 por Valdemiro Santiago, a Mundial apresentava um crescimento considerável, embalada, entre outros fatores, por uma forte presença na televisão – em certo momento, a igreja tinha quase 24h de programação diária em emissoras de TV. A investigação das denúncias feitas na reportagem, além de outros problemas internos, diminuíram o ritmo de expansãoda Igreja Mundial. A Rede Record pertence à Igreja Universal do Reino de Deus.[1] Voltando um pouco no tempo, em 1995, o bispo Sérgio Von Helde, então bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, agrediu com chutes e socos uma estátua de Nossa Senhora Aparecida, em seu programa matinal de televisão, transmitido pela TV Record. No mesmo ano, a Rede Globo de Televisão levou ao ar a minissérie Decadência, que tinha como personagem principal um pastor evangélico corrupto, vivido pelo ator Edson Celulari. A Rede Globo, aos domingos, transmite a missa católica diretamente da basílica de Aparecida do Norte, em São Paulo.[2] Esses episódios, assim como outros semelhantes, mostram um ponto importante para pensar a relação entre mídia e religião: a disputa pelo estabelecimento de uma verdade – em geral, a sua verdade – ultrapassou a fronteira das denominações religiosas e acontece, sobretudo, no ambiente das mídias. Em outras palavras, a dinâmica do campo religioso não pode ser pensada sem levar em conta a midiatização da sociedade – e a midiatização do campo religioso. 34 1. AS DINÂMICAS DO CAMPO RELIGIOSO A ideia de disputa está no centro da noção de campo. Em linhas gerais, um campo é um espaço estruturado de relações no qual agentes em disputa buscam um prêmio comum.[3] Vale desdobrar as partes dessa definição. Um campo é um espaço formado pela relação entre “agentes” – que podem ser pessoas ou instituições – que têm um interesse comum. No campo religioso, os agentes são cada religião, igreja ou denominação religiosa, assim como cada padre, pastor ou pai de santo. O que os une é a relação de disputa permanente entre eles. Por mais diferentes que sejam, todos lidam com questões mais ou menos parecidas: o sagrado, o sentido da vida, a origem e a finalidade da existência, e assim por diante. Cada religião oferece suas próprias respostas para essas questões, competindo com todas as outras para convencer o maior número de pessoas de que sua mensagem é a correta. A busca, em última instância, é para conseguir o maior número de adeptos, o que costuma garantir uma maior importância, prestígio e visibilidade pública – e, portanto, capacidade de interferir em outras áreas da sociedade. Um campo é um “espaço estruturado”, isto é, tem posições mais ou menos marcadas previamente. Isso significa que, ao se entrar em um campo, as posições já estão relativamente definidas – algumas com maior destaque e maiores vantagens do que outras. No campo religioso brasileiro, por exemplo, a Igreja católica ocupou, durante séculos, uma posição de liderança praticamente isolada, enquanto igrejas protestantes, grupos espíritas e umbandistas tinham menor destaque e prestígio. As posições mais altas, ou dominantes, significam apoio e influência em outras áreas – na política, por exemplo. No campo religioso, as denominações com mais prestígio, número de adeptos, história e influência tendem a ocupar posições dominantes, hegemônicas, e estabelecer o direito de especificar as regras do jogo. Por exemplo, indicar qual é a interpretação correta de um texto sagrado, quais são os erros, as ortodoxias e heresias e assim por diante. Como há poucas posições dominantes em um campo, todos aqueles que participam desse campo, sejam indivíduos ou instituições – os “agentes” do campo – estão constantemente em relação de disputa. No caso do campo religioso, essa disputa pode ser, por exemplo, pela conquista de novos adeptos ou por uma maior influência nas decisões políticas. Isso significa que cada instituição vai desenvolver métodos próprios para conseguir isso antes de suas concorrentes. Cada ação de um agente tende a ser observada pelos outros, que, conforme o caso, reagem de alguma maneira. Em geral, em um campo, as ações dos dominantes tendem a ser imitadas, de maneira mais ou menos explícitas, pelos concorrentes – ser imitado, aliás, não deixa de ser uma prova de reconhecimento. O “prêmio específico”, finalmente, é o que se recebe quando se ocupa as posições mais altas de um campo. Dentre suas vantagens, por exemplo, está a capacidade de definir o que é “correto” dentro do campo. Uma denominação religiosa já estabelecida tem mais chances de definir, para um número maior de pessoas, a interpretação “correta” de um texto sagrado do que uma igreja recém-fundada. Isso significa um maior prestígio dentro do próprio campo e todas as vantagens que 35 decorrem disso. O conjunto dessas vantagens é o “prêmio”, que varia de campo para campo – cada campo tem seus prêmios específicos, que só significam alguma coisa para os participantes. Cada campo tem suas características específicas. No ramo cristão do campo religioso, por exemplo, a criação de novas divisões em religiões tradicionais pode ser relativamente fácil, nas ramificações protestantes, ou impossível, no caso da Igreja católica. A distribuição de poderes dentro de um campo é desigual. Em uma sociedade, as denominações religiosas hegemônicas costumam ter muito mais influência nos assuntos públicos do que denominações mais novas. Essa desigualdade é fruto das condições materiais e simbólicas de cada agente: sua história, suas vantagens e desvantagens, suas relações extra-campo. Essa hierarquia está permanentemente em disputa. Isso significa que, dentro de um campo, cada agente tende a adotar estratégias para manter ou conservar sua posição, se é dominante, ou questionar e romper com as regras, se estiver em uma posição de menor prestígio. Dessa maneira, enquanto instituições religiosas dominantes, tendem a ser mais conservadoras e ortodoxas, denominações mais jovens costumam ser mais questionadoras e heterodoxas. Agentes que ocupam posições dominadas tendem a ser mais questionadores e propensos a mudanças do que agentes dominantes pelo simples fato de que têm menos a perder. Uma mudança de estratégia, para um agente dominante de um campo, pode significar uma perda. A midiatização do campo religioso, iniciado, sobretudo, por denominações neopentecostais, acentuou uma reconfiguração do campo e foi um fator para mudanças de estratégia – por exemplo, fez com que a Igreja católica revisse algumas de suas práticas de mídia.[4] Na lógica do campo religioso, o número de fiéis é um dos fatores que definem a posição de determinada instituição. Não é, evidentemente, o único elemento a partir do qual se pode medir isso, mas é um dos principais fatores para medir o grau de sucesso institucional e suas possibilidades de ação no espaço público. Dessa maneira, quanto maior o número de adeptos, maior a possibilidade de uma instituição religiosa ocupar posições de destaque dentro do campo. A midiatização, nesse cenário, pode ser vista como uma escolha estratégica de algumas denominações para atuar nas disputas internas do campo religioso. E interfere também nas práticas das próprias religiões: dentre as habilidades de um líder religioso, em algumas igrejas, está sua capacidade de lidar com a mídia. Os televangelistas norte-americanos foram pioneiros em trabalhar a lógica da midiatização alcançando um índice de repercussão pública que, nas dinâmicas específicas do campo religioso, colocou suas igrejas em posições de considerável prestígio e reconhecimento no campo.[5] Bourdieu recorda que, em um campo, o sentido das disputas e dos prêmios é permanentemente constituído e reconstituído a partir das dinâmicas do próprio campo. [6] No segmento cristão do campo religioso, por exemplo, um prêmio simbólico disputado é a definição de uma interpretação legítima da Bíblia. Essa interpretação, objeto de monopólio institucional da Igreja católica até meados do século XVI, passa a ser questionada a partir da Reforma Protestante, quando o campo religioso passa a conviver com uma disputa em grande escala. Uma das prerrogativas dos agentes dominantes, aliás, é definir, de maneira mais ou menos tácita, o que vale e o que não vale em um campo. Determinadas interpretações da 36 Bíblia, como mencionado, podem ser consideradas “corretas” ou “incorretas”, “ortodoxas” ou “heréticas”, conforme a posição da instituiçãoreligiosa no campo religioso. Trechos da Bíblia tidos como sendo referentes à homossexualidade podem ser lidos em sentido condenatório pela maior parte das igrejas cristãs que detêm a hegemonia no campo; no entanto, igrejas cristãs voltadas para o público LGBT propõem leituras não- hegemônicas, e portanto, não “ortodoxas”, desses trechos – nesse sentido, propostas de entrada no campo, como, por exemplo, a chamada “teologia inclusiva”, propõem uma interpretação diferente, buscando a entrada de novas dinâmicas.[7] Nesse sentido, a noção de “certo”, “errado”, “ortodoxia” e “heresia” em termos de interpretação dependem de quais denominações ocupam as posições principais. Assim, o que em um momento pode ser uma estratégia arriscada de um agente em posição relativamente baixa, pode se tornar o padrão, caso ele tenha sucesso. O campo religioso aparece quando há uma divisão do trabalho religioso na sociedade. [8] Foi ainda nas primeiras civilizações do Egito, da Mesopotâmia e da China, que apareceram grupos de pessoas encarregadas exclusivamente de cuidar da relação com a religião – os sacerdotes e seus auxiliares. Com isso, são criadas as condições de produção, circulação e apropriação de um tipo específico de bens, os bens simbólicos religiosos. Dentre as particularidades do campo religioso, Bourdieu destaca a existência de um tipo específico de trabalho, o “trabalho religioso”, responsável pela produção dos “bens de salvação”, que vão desde as questões doutrinárias, passando pelos rituais até chegar às práticas, símbolos e, em última instância, a toda cultura material em seu nível mais cotidiano – camisetas com mensagens religiosas, banners e adesivos para carros, por exemplo. O processo de midiatização vem se articulando com especial força com esses dois elementos do campo religioso. A midiatização da religião está ligada a algumas das características centrais das instituições religiosas. Isso significava, da parte delas, maior atenção a outras práticas contemporâneas, como questões ligadas ao consumo, estética, afetividade e sexualidade.[9] Instituições religiosas mais inseridas no processo de midiatização tendem a ser mais abertas em relação a determinados aspectos da vida cotidiana dos fiéis – conforme a denominação, por exemplo, é permitido o uso de piercings e tatuagens, a escuta de música religiosa em estilo popular, os cuidados estéticos com o corpo e com a aparência – desde que articulados com temáticas religiosas. O site de uma loja de roupas direcionadas ao público evangélico ilustra isso: (…) A jovem ou mulher evangélica que usa a marca Sol da Terra está sempre nas tendências da moda, sempre seguindo os critérios da religião com roupas comportadas (<https://www.soldaterra.net/moda-evangelica-como-comprar.php>). Ao mesmo tempo, a resistência ao processo de midiatização parece equivaler, em termos de algumas instituições religiosas, a uma maior demarcação de fronteiras simbólicas entre o “sagrado” e o “profano” nos modos de ser dos fiéis. Na prática cotidiana, isso significa utilizar várias marcações simbólicas, visíveis, por exemplo, em modos específicos de se vestir, de cuidar da aparência, de ouvir certos tipos de música ou frequentar alguns lugares. 37 A midiatização do campo religioso também alterou suas dinâmicas internas. Algumas das denominações religiosas mais articuladas com o processo de midiatização estão entre as doutrinas com maior número de fiéis no quadro religioso brasileiro. Isso sugere que sua visibilidade pública e sua possibilidade de interferência em assuntos de outros campos também é marcada pelas relações com a mídia. Essa reconfiguração midiática do campo religioso tem atraído a atenção de um crescente número de pesquisadores, interessados em entender, a partir de várias matrizes, algumas dimensões desse fato, pensando tanto nas dinâmicas internas do espaço religioso quanto nas ligações entre as igrejas e outras instituições no espaço público. Vale lembrar que nem toda experiência religiosa acontece dentro do campo religioso – aliás, há uma diferença entre o “campo religioso” e o conjunto amplo e plural das “religiosidades”.[10] No entanto, a existência de instituições religiosas é uma das condições para a formação de um “campo religioso” relativamente autônomo – mas lembrando a existência, na sociedade, de inúmeras outras formas de religiosidades que transbordam as fronteiras de campo. No caso da midiatização do campo religioso, o foco se volta para esse espaço. 38 2. O CAMPO RELIGIOSO NO AMBIENTE DAS MÍDIAS A midiatização da sociedade colocou desafios inéditos ao campo religioso. A possibilidade de conexão constante com a internet, a ideia de estar “sempre ligado” – always on, nas palavras de Sherry Turkle – trouxeram novas perspectivas para as relações entre mídia e religião.[11] Aliás, o campo religioso não ficou imune à ideia do always on: na igreja de San Antonio, na Espanha, os fiéis têm conexão wi-fi gratuita, e podem fazer downloads de aplicativos específicos da igreja. Estabelecer uma relação com coisas sagradas não significa, ao menos nesse caso, cortar a conexão on-line.[12] A midiatização do campo religioso vem acontecendo, pelo menos, de duas maneiras principais. De um lado, podemos ver o processo de midiatização nas mudanças que vêm acontecendo no campo religioso em si. O fato de algumas igrejas utilizarem a mídia como uma aliada na divulgação de sua mensagem cria uma diferença entre elas e outras denominações que não fazem isso. A diferença pode ser vista, por exemplo, na maneira como diferentes denominações religiosas alcançam mais ou menos fiéis. Isso muda, também, no que se refere à “divisão do trabalho religioso”, isto é, a separação, dentro de uma religião, dos encargos e atribuições. Vale, nesse ponto, definir como esse processo acontece. No nível individual, cada pessoa pode viver sua crença da maneira que bem entender. No entanto, em geral, as atividades religiosas não acontecem de modo isolado: religiões, em geral, são experiências que envolvem grupos e comunidades. Isso costuma resultar, em algum momento, em que os grupos religiosos se arranjem em alguma forma de organização mais ou menos complexa, em instituições compostas de pessoas com atribuições diferentes –sacerdotes, coordenadores, auxiliares, fiéis –,processo de “burocratização” da religião.[13] No âmbito das instituições religiosas, o resultado dessa burocratização é a chamada divisão do trabalho dentro das instituições religiosas, isto é, separação das tarefas relacionadas às práticas religiosas – não apenas nos momentos de celebração, como missas, cultos ou reuniões públicas, mas também das tarefas triviais de manutenção e administração. É necessário, em uma instituição religiosa, ter alguém disponível para receber os fiéis, abrir as portas, cuidar da manutenção e do dia a dia da instituição, seja de uma igreja, sinagoga, mesquita, centro espírita, ou qualquer outra. Mas também é necessário pessoas que cuidem das questões burocráticas, digamos, organizar pagamentos de colaboradores, administrar as contribuições ou obras assistenciais. Finalmente, há o chamado “corpo sacerdotal”, responsável pela condução das atividades propriamente religiosas – ou, como denomina Bourdieu, de “produção dos bens simbólicos religiosos”.[14] As instituições religiosas se ligam aos ambientes midiáticos, gerando uma tensão contínua entre suas próprias lógicas e as lógicas da mídia. Esse problema, ao que tudo indica, é um desafio para a midiatização das instituições religiosas, e pode ser resumido em uma série de perguntas e questões. Em que medida uma instituição religiosa deve abrir mão de algumas de suas práticas para ter mais espaço na lógica da mídia? A estrutura de uma celebração – um culto 39 evangélico ou uma missa católica – deve ser alterada para ficar mais adequada para transmissão via TV ou internet? Esse tipo de questão mostra a tensão que existe no processo de midiatização das instituições religiosas. E não é só isso: até que ponto os processos sociais – como
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