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LUIZ ALEXANDRE SOLANO ROSSI NOS PASSOS DE SÃO VICENTE DE PAULO 2 ÍNDICE Capa Rosto Dedicatória Apresentação 1º dia 2º dia 3º dia 4º dia 5º dia 6º dia 7º dia 8º dia 9º dia 10º dia 11º dia 12º dia 13º dia 14º dia 15º dia 16º dia 17º dia 18º dia 19º dia 20º dia 21º dia 22º dia 23º dia 24º dia 25º dia 26º dia 27º dia 28º dia 29º dia 30º dia Biografia Sobre o autor Coleção Ficha Catalográfica 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg DEDICATÓRIA Aos padres vicentinos que me assistiram quando pesquisava e meditava sobre São Vicente: Pe. Eliseu Wisniewski, cm; Pe. Lauro Palú, cm; Pe. Simão Valenga, cm. 4 APRESENTAÇÃO São Vicente de Paulo viveu muito e incansavelmente. Não é muito dizer que ele se consumia inteiramente pelos outros. Como poderíamos caracterizá-lo? Encontramos nele uma pessoa de bondade ilimitada, uma pessoa humilde, delicada, serviçal, cheia de gratuidade, amorosa, amiga. Seu coração era plenamente dominado por Jesus Cristo. Ele não desejava mais nada na vida, desde que tivesse Jesus ocupando-a completamente. Uma das palavras mais fortes de São Vicente revela seu compromisso com a radicalidade do discipulado de Jesus: “Como ser um cristão e ver seu irmão sofrendo sem chorar com ele? Sem ficar doente com ele? É não ter caridade, é ser cristão de fachada; é não ser humano, é ser pior que os animais” (SV XII, 271). Em seu itinerário, podemos muito bem perceber o encontro e a harmonização da contemplação com a ação. Ele conseguiu ser Marta e Maria ao mesmo tempo! São Vicente nos chama e nos desafia a mudar nosso estilo de vida. Certa vez perguntaram a ele o que mais lhe custaria abandonar. A resposta dele revela o que se passava em seu coração e onde estava firmada a sua vocação: “seria não servir mais essa pobre gente e ser obrigado a deixar de cuidar e de servi-los” (XI, 22). Você é meu convidado para seguir as experiências de São Vicente de Paulo durante 30 dias. Trinta dias em que os passos de São Vicente de Paulo se tornarão os seus passos. Um período de meditação e reflexão que nos levará a olhar para ele sem retirar os olhos de quem somos e de como exercitamos o discipulado. Nos passos de São Vicente é um desafio que nos leva a repensar a vida a partir do cotidiano. E, certamente, esta é uma das mais valiosas lições que aprendemos com ele: o encontro com Jesus e as transformações dele decorrentes acontecem no dia a dia de cada um. A história de São Vicente nos presenteia com a pessoa de Jesus, e por isso podemos ver e celebrar, desde já, as transformações que ocorreram nele e que certamente ocorrerão em nós quando começarmos a caminhar pelo mesmo caminho. O livro foi pensado para ser utilizado todos os dias. Nele se encontram trinta meditações para você acompanhar durante um mês. Você poderá utilizá-lo como um livro devocional para ler, meditar e rezar, antes de iniciar seu dia repleto de atividades ou ainda para finalizá-lo. Minha prece é para que o próprio São Vicente tome você pelas mãos e o conduza por esses 30 dias. Que esses dias possam fazer diferença em sua vida e que, ao final deles, você desfrute das bênçãos de viver o discipulado, a solidariedade e as obras de misericórdia em profundidade, ao lado de um santo profeta! 5 1º dia INSPIRAÇÃO “Agarremo-nos a esta firme confiança em Deus, que é a força dos fracos e a vista dos cegos. E, embora as coisas não caminhem segundo os nossos gostos e pensamentos, não duvidemos, absolutamente, de que a Providência nos conduzirá ao lugar exato, para nosso maior bem” (SV III, 149). Meditação Vicente de Paulo nasceu no dia 24 de abril de 1581, num pequeno lugarejo chamado Pouy, no sul da França, numa região periférica e das mais pobres do reino. Era o terceiro de seis filhos – quatro rapazes e duas moças – de um casal de camponeses pobres: João e Bertranda Demoras. Sua vida de camponês marcará profundamente seu modo de ser e de viver, mesmo que tenha vivido no campo somente até os quinze anos. A vida era sofrida e de muito trabalho. Mas logo seus pais perceberam que o pequeno Vicente tinha qualidades fora do comum, e que seria possível encaminhá-lo para os estudos, assegurando, dessa forma, os interesses de sobrevivência da família. A vida religiosa naquela época era o caminho por excelência para assegurar certa tranquilidade à família. Ao menos, pensavam, os padres estavam ao abrigo da fome e da pobreza. Na periferia da sociedade e em meio à pobreza é que Deus foi buscar uma criança para ser santa. Deus nos surpreende constantemente. Afinal, somos acostumados a olhar com bons olhos somente para o que é central e bem localizado; pensamos que é no centro que residem as boas pessoas, e, de forma contrária, que da periferia só poderiam emergir as contradições, a violência e a pobreza. Pois foi justamente no fim do mundo, desde o reverso da história, que Deus foi chamar aquele que deveria impactar não somente a Igreja de sua época, mas também a sociedade. Os pais de Vicente faziam planos para seu filho, desconhecendo os planos de Deus. Pensemos, por um instante, que é Deus quem guia nossas vidas. Ele é o Alfa e o Ômega; jamais os pais de Vicente poderiam imaginar que ali entre seus seis filhos se encontrasse aquele que deveria ser, em poucos anos, uma figura determinante na história da Igreja e da sociedade. É natural que pais façam planos para seus filhos. Faz parte das tarefas e preocupações de cada pai e mãe o futuro de seus filhos. Tudo muito natural, importante e necessário! Todavia, sempre é importante deixar a porta aberta para as surpresas de Deus, com seus planos formidáveis. 6 Oração “Quero caminhar, meu Jesus, segundo a tua santa vontade. Não quero que prevaleçam meus sentimentos, desejos e vontades. Quero desejar tudo quanto tu mesmo desejas.” 7 2º dia INSPIRAÇÃO “Por que temeis o futuro? O Senhor não cuida dos pássaros, que não semeiam nem colhem? Quanto maior será a sua bondade em prover as necessidades de seus servidores” (SV VII, 157). Meditação Estamos no outono de 1608, ano da chegada de Vicente a Paris. A maneira como os acontecimentos se precipitam na vida dele provocará uma reviravolta em suas perspectivas. Inicia-se um processo de autodescoberta. Uma nova maneira de ver e agir dará seus primeiros passos. No ano seguinte, em 1609, Vicente viverá uma experiência decisiva. Ele e um amigo dividiam o aluguel de uma pequena casa na periferia da cidade. Tudo ia bem, até o momento em que seu amigo o acusou injustamente de ter roubado suas economias. Foi uma das humilhações mais amargas de sua existência. Diante da situação embaraçosa e humilhante, Vicente viveu como um pobre abandonado e incompreendido. Aquele não era mais o ambiente propício para a arrogância e a vaidade, e por isso ele se revestiu de humildade e, calado, procurou em Deus sua única segurança. Posteriormente tudo seria esclarecido, e o amigo difamador receberia o perdão de Vicente. Muitas vezes a vida nos apresenta algumas ciladas. Parece que tudo conspira contra a gente e que nada, absolutamente nada dá certo. “Por que aconteceu isso justamente comigo?” “Que fiz eu para merecer isso?” “Por que tanto sofrimento?” “Por que Deus se esqueceu de mim e permitiu que esta situação me atingisse, quando tudo ia bem?” Todas essas perguntas são completamente inadequadas, pois fazem de Deus um senhor carrasco que deseja nos ver sofrer! Todavia, quando olhamos a vida e o sofrimento de Jesus, eles nos dizem que Deus não está separado dos sofrimentos da humanidade. Deus não age no vácuo. Ele não é mero espectador, mas participa conosco, em nossa história. Quando dizemos “por quê?”, confessamos um Deus apático que existe apenas para justificar a si mesmo diante do sofrimento humano; porém quando perguntamos “onde está Deus?”, encontramos um Deus que partilha nosso sofrimento e carrega nossos dramas. As adversidades ocorrem. No entanto, isso não significa que Deus esteja nos punindo por algo errado que fizemos. As desgraças não provêm de Deus. Deus não é a causa da tragédia, como também não é nosso adversário. Ao contrário, apresenta-se como nossoaliado e é a própria fonte em que podemos encontrar nosso poder de 8 suportar, nossa capacidade de superar e ainda nossa determinação de continuar em direção aos nossos objetivos. Poderíamos dizer que a vida sem sofrimento existe somente em sonhos, mas nunca na realidade. Não é possível exorcizar o sofrimento da história humana, sob o risco de deixarmos de ser humanos. Deus está conosco em meio às tragédias da vida que vivemos. Solidariamente ele se encontra ao nosso lado! Oração “Senhor, não tenho medo do futuro. Assusta-me o presente. Por isso peço-te que venhas em meu socorro e me libertes das ciladas da vida.” 9 3º dia INSPIRAÇÃO “Virem a medalha e verão, à luz da fé, que o Filho de Deus, que quis ser pobre, nos é representado por estes pobres” (SV XI, 32). Meditação São Vicente viveu um processo intenso e permanente de amadurecimento e de conversão. É preciso compreender a conversão como um processo. Jamais estamos prontos para Deus e, principalmente, jamais estamos prontos da noite para o dia. Novas experiências sempre se apresentam pelo caminho. A maturidade é algo que faz parte do horizonte, isto é, sempre está à nossa frente. Foi em 1610, quando ele tinha 30 anos, que o mundo dos pobres se escancarou com toda a força diante dele. Naquela ocasião, tornou-se capelão da rainha Margarida de Valois, e tinha como primeira responsabilidade a distribuição de esmolas aos pobres que apareciam diariamente à porta do palácio. Riqueza e miséria eram vizinhas! Mas enganam-se os que imaginam que São Vicente se deixou seduzir pelo brilho das riquezas. Estava no palácio, mas tinha plena consciência de que a ele não pertencia aquilo. Entre servir a Deus e ao dinheiro, escolhera servir a Deus, servindo aos pobres. O canto de sereia do capital não tinha nenhum poder e efeito sobre ele. Se o canto de sereia não o alcançava, a voz de Deus se fazia presente diariamente. Como podemos escutar a voz de Deus? Vicente fez uma descoberta espetacular: Deus nos interpela a partir da própria realidade e, principalmente, da situação concreta dos pobres. São Vicente via a si mesmo como um eterno aprendiz. Achava-se indigno demais para sair dessa posição. Não queria dar passos maiores do que as pernas. Para ele, Deus sempre deveria caminhar à sua frente. Dessa forma, não haveria problemas. Pois, de fato, quando acontece o contrário, ou seja, quando caminhamos à frente de Deus, os problemas surgem e se avolumam. O aprendiz está sempre disposto a aprender; ele não foi picado pelo mosquito da arrogância e, assim, seu coração e sua mente sempre estão abertos a novas experiências, novas possibilidades e novos diálogos. Quando nos achamos prontos e batemos no peito, dizendo que somos espirituais, tornamo-nos imediatamente como o Mar Morto. Represamos a fonte de água viva e nos tornamos reféns da gaiola da arrogância que não nos permite “voar” para outras direções e caminhos que Deus está nos mostrando. São Vicente não era alguém que vivia parado e cristalizado no tempo. Crescia em Deus e em conhecimento; crescia, 10 fazendo a vontade de Deus, e crescia em sua dedicação aos pobres. A imobilidade, física, emocional, espiritual ou racional não o alcançava. Vicente era um santo em constante mobilidade. Ele era um santo com asas nos pés! Oração “Perdoa-me, Jesus, por tantas vezes que desviei meus olhos dos pobres como se eles não fossem os teus preferidos. Perdoa-me e preenche meu coração de solidariedade e de amor.” 11 4º dia INSPIRAÇÃO “Façamos o que façamos, nunca acreditarão em nós, se não demonstrarmos amor e compaixão para com aqueles que queremos que acreditem em nós” (SV I, 295). Meditação Desertos espirituais são críticos e desestabilizadores. Mas, por outro lado, podem fazer-nos olhar para a direção correta. São Vicente viveu a noite escura da alma aproximadamente entre 1611 e 1616. Uma crise espiritual assumiu o controle de sua vida e o atormentava dia e noite. Tudo começou quando, certa vez, um teólogo, que também fazia parte do grupo de capelães da rainha e, por isso mesmo, era amigo de Vicente, confiou-lhe que passava por grandes e terríveis angústias relativas à sua própria fé. Amigo que era e temendo que o capelão somatizasse ainda mais a situação e piorasse seu estado de saúde, Vicente passou a acompanhá-lo e a dedicar-lhe tempo. Passado um tempo, as angústias foram se dissipando e o coração do capelão foi tomado de serenidade. As verdades da fé se impuseram de forma cristalina, e, quando posteriormente veio a falecer, já se encontrava devidamente em paz consigo mesmo e com Deus. Todavia, sementes de dúvidas, durante aquele tempo, foram sendo semeadas no coração de São Vicente. E, quando ele percebeu, a crise já havia se instalado e o conflito se tornava inevitável. A noite não seria apenas escura, mas extremamente longa. Ao questionar a própria fé em meio a um turbilhão de ilusões e ansiedades, Vicente lançou vigorosas âncoras em Deus a fim de transformar o deserto em um florido jardim. Crises são aterradoras: elas podem nos paralisar e impedir o crescimento ou podem nos desinstalar e nos colocar em movimento. Toda crise é episódica; nenhuma crise traz em si a eternidade. E São Vicente, em meio à dúvida, se desinstala e se desacomoda, para aprofundar ainda mais a sua fé. E, nesse sentido, caminha resoluto não somente para uma vida intensa de oração, mas também para dedicar-se a serviço dos enfermos, ao visitá-los e consolá-los no hospital. Após alguns anos de deserto, São Vicente viu a crise se dissipar quando passou a se dedicar aos pobres, ou seja, quanto mais ele se aproximava dos pobres menos o deserto se fazia presente em sua vida. A experiência de viver uma crise e sair dela levará São Vicente a compreender a própria vida como se fosse uma oração feita a Deus. Assim ele ensinará às Filhas da Caridade, que às vezes se inquietavam por perder os momentos de oração e de leitura 12 quando atendiam os pobres: “... não perdemos a oração quando a deixamos por um motivo legítimo. E se há um motivo legítimo, é o serviço ao próximo. Não é deixar Deus, se deixamos Deus para Deus (...) Deixai a oração ou a leitura para assistir um pobre (...) sabei que fazer tudo isso é servi-lo. Que consolação tem uma boa Filha da Caridade ao pensar: ‘vou assistir meus pobres doentes, mas Deus aceitará isso em lugar da oração que deveria fazer neste momento’” (IX, 319). Com São Vicente, aprendemos que a oração não é apenas pronunciar palavras; a verdadeira oração acontece quando vivenciamos os dramas da vida junto aos miseráveis. Oração “Descobri, Deus amoroso, que somente posso amar quando estou com o coração tomado pelo teu amor. Da mesma forma como tu me amas, eu posso amar todos aqueles que me rodeiam.” 13 5º dia INSPIRAÇÃO “A Companhia se propõe conformar-se a Cristo em seu comportamento, em suas ações, em suas tarefas e em seus fins. Como pode uma pessoa representar outra, se não tem as mesmas características, os mesmos traços, as mesmas proporções, modos e formas de ver? É impossível. Portanto, se nos propusemos fazer-nos semelhantes a este divino modelo e sentimos em nossos corações esse desejo e essa santa afeição, é necessário procurar conformar nossos pensamentos, nossas obras e nossas intenções às suas” (SV XII, 75). Meditação 1612, mais precisamente dia 2 de maio, foi um momento definitivamente importante para São Vicente. Ele foi nomeado pároco de uma pequena aldeia chamada Clichy. Geograficamente era uma região muito extensa, mas, por outro lado, sua população era bem reduzida. Provavelmente a população não deveria passar dos 600 habitantes, e em sua maioria eram camponeses pobres. A dedicação pastoral de Vicente foi grandiosa e incansável: restaurou a igreja, visitou os doentes, consolou e animou os aflitos de coração e socorreu os pobres. A cada dia que passava, ele era mais estimado pelos paroquianos. Vivia uma alegria intensa de ajudar a transformar sua paróquia e, como recompensa, ser transformado por ela. Uma experiência tão exuberante que ele disse ao arcebispo de Paris,o cardeal Henrique de Gondi: “tenho um povo tão bom, tão obediente a tudo o que lhe digo, que penso comigo mesmo que nem o Santo Padre, nem vós, Eminência, sois tão felizes quanto eu” (SV IX, 646). Mas foi também naquele ano que Vicente ampliou seu horizonte. E sua intuição das coisas divinas se fez presente mais uma vez: reuniu um grupo de aproximadamente doze jovens que desejavam ser sacerdotes, a fim de orientá-los. Foi justamente desse grupo que saiu um dos seus mais importantes colaboradores: Antônio Portail. Mas Deus é surpreendente. É ele mesmo quem dá o crescimento e a maturidade a Vicente. Logo no ano seguinte, em 1613, ele deixa a pequena aldeia e segue rumo ao palácio de uma das mais ilustres famílias da França: os Gondi. A extensão de terras daquela família era enorme e composta por muitas aldeias e povoados. Estava no palácio, mas a vida do palácio não estava nele. Vicente era um homem do campo, e seu coração já estava dedicado aos pobres. Era do campo, e ao campo deveria retornar. Uma das funções de Vicente era a de acompanhar a família em seus deslocamentos. No campo, Vicente se encontrava consigo mesmo e realizava sua 14 missão: visitava os pobres e doentes, pregava e exortava para que os camponeses se reconciliassem com Deus e também uns com os outros, dedicava-se a escutá-los diligentemente, intervinha em conflitos e, acima de tudo, levava esperança àqueles que não esperavam mais nada da vida. O tempo, a saúde, os talentos e dons de São Vicente eram dedicados à sua comunidade. Ele já não pertencia a si mesmo. Era como uma pequena hóstia que se entregava para o bem de seus paroquianos. Considerava-se como se fosse pão repartido. Nasceu, naquela época, uma amizade duradoura com Margarida de Silly, a senhora de Gondi. Ela o quis ter como seu diretor espiritual, e ele sabiamente a orientou para as obras de caridade, assim como para viver mais próxima a Deus. Oração “Quero ser, Jesus, semelhante a ti. Transforma as características que tenho que me afastam do Senhor e constrói, no lugar delas, características que indiquem que vivo para ti.” 15 6º dia INSPIRAÇÃO “Um grande motivo que temos para nos aplicar a isto é a grandiosidade da coisa: fazer Deus conhecido aos pobres, anunciar-lhes Jesus Cristo, dizer-lhes que o Reino dos céus está próximo e que ele é para os pobres. Oh! Como isso é grandioso” (SV XII, 80). Meditação Os santos sabem ler os sinais dos tempos. Não são alienados que vivem olhando para o céu e se esquecem do que acontece diante de seus próprios olhos. No início de 1617, jamais Vicente poderia imaginar a maneira pela qual Deus marcaria profundamente sua vida. Em Folleville, deparou-se com uma realidade que pensava que não existisse. O pobre povo camponês se encontrava faminto de Deus e abandonado espiritualmente pela Igreja. Certa vez, Vicente ouviu a confissão de um doente. O resultado da confissão não fez bem somente ao enfermo, mas, principalmente, ao coração do santo. O velho doente, por meio da confissão, experimentou tal consolação e alegria que não podia se controlar, a ponto de influenciar aqueles que estavam em sua volta. Chegou mesmo a declarar que estava, até então, experimentando uma enorme e desgastante intranquilidade por causa de seu estado de condenação. A senhora Gondi, que estava próxima e que fora afetada pela experiência, interpelou seu diretor espiritual de uma forma que São Vicente jamais esqueceria: “O que podemos fazer?” E Vicente fez! No dia 25 de janeiro, dia da conversão de São Paulo, ele fez uma pregação memorável na igreja de Folleville. Naquele dia, escolheu como tema e conteúdo de seu sermão a confissão. E Deus agiu de tal maneira no coração dos camponeses daquela comunidade que muitos foram ao encontro do padre Vicente, a fim de experimentarem o dom da misericórdia divina, através do sacramento da reconciliação. O impacto daquela experiência foi tão grande que Vicente considerou aquele “o primeiro sermão da Missão” (SV XII, 8). São Vicente nos ensina a combater qualquer estado de alienação. Nossos olhos não devem se dirigir aos céus nos levando a esquecer os dramas da vida. Hoje, possivelmente, São Vicente diria que cada um de nós – discípulos e missionário de Jesus Cristo – deveria ter numa das mãos a Bíblia e na outra o jornal do dia. O testemunho do Evangelho deve ser público e levar as pessoas a viver a beleza da reconciliação com Jesus. “Nenhuma vida sem reconciliação com Jesus” deveria ser o nosso lema. Diante da realidade que se contrapõe ao projeto de Deus, não podemos 16 nos eximir da responsabilidade. A vida com Jesus, para São Vicente, aquece nossos corações quando outros corações são também aquecidos. Oração “O que posso fazer? Que seja sempre essa a minha primeira pergunta diante do Senhor.” 17 7º dia INSPIRAÇÃO “Eles se dedicarão inteira e exclusivamente à salvação do povo pobre, indo, a expensas de sua bolsa comum, de aldeia em aldeia, para pregar, instruir, exortar e catequizar a todos, levando-os a fazer uma boa confissão geral de toda a vida passada” (SV XIII, 197). Meditação Não é nada fácil ser fiel à própria consciência. Vicente começou a perceber que, mesmo que seu coração estivesse voltado para os pobres, ele, geograficamente, vivia num palácio. E, a partir do momento em que sua consciência falou mais alto, não havia nada mais digno a fazer do que deixar o palácio e caminhar para o mundo dos pobres. Ao deixar a casa dos Gondi, Vicente foi para a paróquia de Châtillon-les- Dombes. Naquele lugar, algo lhe chamou a atenção: uma casa onde todos estavam doentes e, consequentemente, não havia como um cuidar do outro. Aos olhos de Vicente, aquela família retratava toda uma população faminta e que sobrevivia de maneira indigna. A realidade se impunha mais uma vez. Era Deus falando e, por isso, Vicente não poderia permanecer calado. E, num sermão, descreveu aquela situação. Na verdade podemos dizer que os sermões de Vicente eram construídos a partir da agenda da vida. Como poderia ficar calado quando as pedras gemiam? Vicente não economizou palavras: provocou a comunidade e a convocou para se colocar a serviço daquela família. O sentimento de compaixão e de solidariedade encheu imediatamente a igreja e principalmente o coração de cada um que lá se encontrava. Diante dos olhos atônitos de Vicente, o milagre da multiplicação saiu das páginas do Evangelho e se apresentou bem diante dele: a totalidade das pessoas se mobilizou e foi em socorro da família, e a casa que estava vazia ficou repleta de alimentos, de solidariedade, de afeto e de Deus. No entanto, São Vicente não se deixou levar pela emoção. Vendo a capacidade de solidariedade presente nas pessoas, percebeu que era necessário e urgente organizar a caridade a fim de que ela fosse eficaz e, ao mesmo tempo, duradoura. Afinal, quem tem fome não pode esperar! Grande estrategista e mobilizador de consciências adormecidas, Vicente reuniu algumas mulheres do lugar e constituiu o que foi chamado de a primeira Caridade (que teve seu regimento escrito por Vicente e aprovado no dia 8 de dezembro de 1617). A partir daquele dia, por onde Vicente passava pregando missões, as 18 Caridades seguiam seus passos, difundindo-se por todas as terras dos Gondi. A descoberta de Vicente não podia ser mais evangélica: a evangelização dos pobres, para ser efetiva, deveria passar necessariamente pela satisfação de suas necessidades e pela superação de sua situação de abandono e miséria. Oito anos depois, em 1625, nasceu oficialmente a Congregação da Missão. Oração “Pai, como é difícil exercitar a compaixão e a misericórdia. É mais fácil viver centrado em si mesmo. Ajuda-me a romper essa dificuldade e a ver as outras pessoas como alvo do amor solidário que tu semeias em meu coração.” 19 8º dia INSPIRAÇÃO “Que privilégio, minhas filhas, servir a esses pobres presos, abandonados nas mãos de pessoas que não têm piedade deles! Vi essa pobre gente tratada como animais. Isso foi o que fez com que Deus se enchesse de compaixão” (SV X, 125). Meditação Nosdias de São Vicente existiam “infernos ambulantes”. Assim eram as “galeras”. Tecnicamente, as galeras eram grandes embarcações que possibilitavam a defesa do território francês e a exploração e o domínio de outros territórios. Talvez pudesse ser considerado o local mais marcado pela dor e pelo sofrimento. Nelas não havia qualquer luz de esperança. O medo e a morte eram constantes para aqueles que lá chegassem; o sofrimento era inevitável, e a dor, insuportável. Vivia-se um período em que havia somente duas formas de condenação: a pena de morte e o trabalho forçado nas galeras. E São Vicente decidiu penetrar no inferno da vida! Era necessário levar a esperança de Jesus para aqueles que viviam na proximidade da morte. Dia após dia, São Vicente radicalizava sua opção por aqueles considerados indesejáveis. Àqueles que eram desumanizados, ele levava o evangelho que restaura o ser humano e sua dignidade. Mas não pensemos que São Vicente apenas se solidarizava com os presos nas galeras. Fora delas, buscava a transformação daquela situação. Não bastava rezar e ser solidário. Fazia-se necessária uma ação política mais pontual e enérgica. E por conta disso, ele não deixava de intervir junto ao general das galeras para aliviar a dor dos prisioneiros. Ação e compaixão estavam presentes nele. Nem só uma ou apenas a outra. Ação e compaixão misturavam-se na vida do santo e, dessa forma, ele via no rosto concreto dos sofredores o próprio rosto do Cristo. Por causa disso, o primeiro olhar de Vicente não era dirigido, de forma alguma, para o pecado de cada um daqueles homens, mas era direcionado para o sofrimento deles. Em 1619, o general das galeras – Felipe Emanuel de Gondi – resolveu institucionalizar, perpetuar e ampliar a atuação de São Vicente e criou o cargo de capelão geral das galeras. Pode- se até mesmo dizer que as ações desenvolvidas por São Vicente eram eminentemente políticas, com opção política ditada e determinada pela caridade. O coração de São Vicente falava mais alto quando entrava nas galeras: “quando aos pobres falei secamente, tudo se perdeu. Ao contrário, quando me compadeci de seus sofrimentos, quando beijei suas correntes, quando partilhei suas dores e testemunhei compaixão por suas aflições, foi então que me escutaram e se puseram no caminho da salvação” 20 (SV IV, 53). A ação de São Vicente se baseava radicalmente nos textos bíblicos, e por conta disso ele não podia deixar de ser e de fazer o que Jesus havia dito e feito. É importante trazer à memória o que São Tiago diz: “meus irmãos, se alguém diz que tem fé, mas não tem obras, que adianta isso? Por acaso a fé poderá salvá-lo? Por exemplo: um irmão ou irmã não tem o que vestir e lhes falta o pão de cada dia. Então alguém de vocês diz para eles: vão em paz, se aqueçam e comam bastante; no entanto, não lhes dá o necessário para o corpo. Que adianta isso? Assim também a fé: sem as obras, está completamente morta” (Tg 2,14-17). Oração “Não basta amar se não houver atitudes concretas. Não basta o discurso se a prática é contrária às palavras Meu Pai, não permitas que eu seja um cristão vazio.” 21 9º dia INSPIRAÇÃO “Tenho uma particular devoção em seguir, passo a passo, a adorável Providência de Deus” (SV II, 208). Meditação São Vicente continuava pregando incansavelmente por toda parte. Num dado momento, uma experiência emblemática falou ao seu coração e o fez pensar numa possível maneira de reformar a Igreja. Era o ano de 1620. Tudo começou quando um herege fez a seguinte objeção: “de acordo com o que dizeis, a Igreja de Roma é dirigida pelo Espírito Santo, mas não posso crer nisso, vendo que, por um lado, muitos católicos dos campos estão abandonados nas mãos de pastores entregues aos vícios e à ignorância, que não conhecem suas obrigações e não sabem sequer o que é a religião cristã; por outro lado, as cidades estão cheias de padres e de frades que não fazem absolutamente nada; é possível que, só em Paris, haja até dez mil, enquanto este pobre povo do campo se encontra em uma ignorância espantosa, pela qual se perde. E quereis convencer-me de que essa Igreja está sob a direção do Espírito Santo? Não posso acreditar”. Uma verdadeira ducha de água fria se derramava sobre a cabeça de São Vicente. No entanto, a objeção provocou nele um zelo ainda maior pelo cuidado com os pobres. Continuou fazendo missões e, no ano seguinte, reencontrou o mesmo herege que vinha para escutá-lo. Ambos se reconheceram e o herege se desarmou diante daquele padre que se apresentava de forma humilde e dedicada ao povo e que era simples na pregação e na catequese. O impacto da presença e da espiritualidade de São Vicente foi tão arrebatador que o herege reconheceu e assim se expressou: “agora pude perceber que o Espírito Santo guia a Igreja romana, já que se preocupa com a instrução e a salvação dos pobres camponeses. Estou disposto a entrar nela quando me quiserdes receber”. Para São Vicente, o cuidado com os pobres era prova substancial de que o Espírito Santo não somente se fazia presente como também guiava a Igreja. Quem de nós poderia associar o amor aos pobres com a presença do Espírito Santo? Oh, quanta sabedoria e discernimento Deus deu a São Vicente! É certo que, como padre e profeta, conhecesse de memória a belíssima expressão do profeta Miqueias: “eu, porém, estou cheio da força do Espírito de Javé, do direito e da fortaleza, para denunciar a Jacó o seu crime, e a Israel, o seu pecado” (3,8). Em 1620, ecoou uma voz santa, cheia do Espírito, para anunciar aos pobres a boa- 22 nova, e aos cativos, a libertação. Em São Vicente, a plenitude do Espírito Santo acontecia quando assumia plenamente a vida dos pobres. Oração “Pai, às vezes me canso, e a desmotivação me alcança totalmente. Preciso de tua presença arrebatadora em minha vida. Vem sem demora, Senhor!” 23 10º dia INSPIRAÇÃO “Senhor, enviai bons operários à vossa Igreja, mas que sejam bons; enviai bons missionários, tais como devem ser, para que trabalhem de modo eficaz em vossa vinha; pessoas, ó meu Deus, desapegadas de si mesmas, de suas comodidades e dos bens terrenos. Não importa se em pequeno número, contanto que sejam bons de verdade. Concedei, Senhor, essa graça a vossa Igreja” (SV XI, 357). Meditação Ao lado do povo deveria haver bons pastores: essa era a lógica que guiava São Vicente. Bons padres dariam sequência ao trabalho iniciado pelos missionários. Nada tirava de sua cabeça que nenhuma evangelização seria possível e eficaz, para produzir vida e santidade nos pobres, se os padres não fossem bem acompanhados em sua formação. Nesse sentido, Deus deu a Vicente uma oportunidade espetacular: em 1628, o bispo de Beauvais chamou a atenção dele para a necessidade de preparar melhor os candidatos ao sacerdócio. A princípio, foi realizado um retiro bem- sucedido com os futuros padres, que se repetiu em outras dioceses da França. Mas em 1631, surgiu uma grande novidade e um enorme desafio. O arcebispo de Paris confiou a ele a responsabilidade de preparar os candidatos às ordens na arquidiocese. Idealizaram-se, naquela ocasião, os Exercícios para os Ordinandos, a primeira grande iniciativa de São Vicente com o objetivo de reformar o clero. Mas as ações de Vicente não pararam por aí. Ele também criou o que foi denominado Conferências das Terças-feiras (1633), cujo objetivo era aprofundar a formação recebida, refletir sobre a natureza do ministério e suas implicações para a vida. Juntos, os padres rezavam, partilhavam suas convicções e ouviam as orientações de São Vicente. Era a oportunidade de cada participante contribuir com o processo de formação. Não se tratava de ostentar erudição e de distribuir discursos vazios. O novo instrumento de renovação sacerdotal pensado por São Vicente foi o diálogo, e não mais o medo. A visão de São Vicente era muito abrangente. Via a vida sempre a partir de um grande cenário. Pensava grande, diríamos hoje. Dessa forma, trazia em seu coração não só preocupações relativas aos pobres, à evangelização, à política e à paz; seus horizontesse abriam, e também manifestava profundo amor e compromisso pela Igreja. Não vivia a Igreja de longe. Amava a Igreja em que Deus o havia colocado. Tinha plena consciência de que também na Igreja é possível encontrar contradições. 24 Mas nada disso o impedia de amar a Igreja e se comprometer com ela. Sabia como ninguém viver sua Igreja e ser sensível às necessidades dela. E, percebendo a necessidade, se colocava como instrumento de Deus para ser um agente de mudança. A preocupação de São Vicente com a boa formação dos sacerdotes é espetacular. Na verdade, hoje, como ontem, não podemos abrir mão de sacerdotes bem formados. E, para além disso, nem sequer podemos pensar em “povo de Deus” sem formação adequada, para que todos estejam prontos a dar “as razões de sua fé”. Oração “Deus querido, a seara é grande e os ceifeiros são poucos. Desperta e envia homens e mulheres para trabalhar pelo Reino.” 25 11º dia INSPIRAÇÃO “No caminho de Deus, não avançar é retroceder, já que o homem não pode permanecer sempre no mesmo estado” (SV II, 129). Meditação Humano, Vicente humaniza-se com o passar do tempo. Olha para os pobres para poder se reconhecer como humano. Não conseguia desviar seus olhos daquilo que estava em seu coração: os desvalidos. Descobriu uma verdade fundamental, de que muitas vezes nos esquecemos hoje: Cristo nos pobres e os pobres em Cristo. Somos como Cristo quando nos aproximamos dos pobres e nos fazemos um com eles. São Vicente dizia com todas as letras que Cristo “considera como feito a si o que se faz pelos pobres, já que eles são seus membros” (SV IX, 324). As palavras do Evangelho de Mateus não paravam de ressoar em sua cabeça: “porque eu estava com fome e vocês não me deram de comer; eu estava com sede e não me deram de beber; eu era estrangeiro e vocês não me receberam em casa; eu estava sem roupa e não me vestiram; eu estava doente na prisão e vocês não foram me visitar. Senhor, quando foi que te vimos com fome, ou com sede, como estrangeiro, ou sem roupa, doente ou preso, e não te servimos? Então o rei responderá a esses: eu garanto a vocês: todas as vezes que vocês não fizeram isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizeram” (Mt 25,42-45). São Vicente sabia que os pobres “são nossos irmãos, a quem Deus manda assistir” (SV VII, 98) e, além disso, que “o serviço aos pobres deve ser preferido a todos os outros” (SV IX, 208). É tremenda a sensibilidade humana e teológica de São Vicente ao nos ensinar: “vamos, pois, meus irmãos, e trabalhemos com um amor novo a serviço dos pobres. Busquemos mesmo os mais abandonados, reconhecendo diante de Deus que eles são nossos amos e senhores e que somos indignos de lhes prestar nossos humildes serviços” (SV XI, 273). Uma das preocupações fundamentais dele era com a proximidade que se deveria ter com os pobres. Certamente que em sua época havia inúmeras Ordens religiosas que assistiam aos doentes e que haviam fundado hospitais. Mas para São Vicente não havia ainda quem cuidasse desses doentes em suas próprias casas. Era necessário ir ao encontro deles. Levar dignidade, cuidado, amor, solidariedade, saúde e alimentação no espaço da família, onde se encontravam. Há uma situação vivida ao redor de São Vicente que comove e chega a tirar 26 lágrimas dos olhos diante de tamanha dedicação aos pobres. Certa vez, em 1630, quando estava em Paris, São Vicente conheceu uma moça chamada Margarida Naseau, uma camponesa pobre que havia aprendido a ler sozinha e procurava ensinar outras moças a ler. Algo muito interessante, porque mostra não só a paixão daquela moça por se preparar melhor, mas também a precária situação da sociedade da época, pois, por exemplo, por volta de 1685, 71% dos homens e 86% das mulheres eram incapazes de assinar um documento. O encontro dela com Vicente alterou drasticamente o rumo de sua vida. Embora Margarida se sentisse atraída pelo ensino, a assistência aos pobres era a sua grande paixão. Dedicou-se sem reservas, a ponto de morrer num hospital, por ocasião de uma epidemia. Caiu doente porque não aceitou a lógica da exclusão e da marginalização a que a doença condenava, ou seja, quis continuar a viver em igualdade com os doentes, a ponto de querer dormir entre eles, pelo que contraiu a doença. Uma mártir pobre entre os pobres! Oração “Olhemos para o Filho de Deus; oh! Que coração de caridade! Que chama de amor!” (XII, 264). 27 12º dia INSPIRAÇÃO “Sim, meu Deus, eu me proponho a entrar na prática do bem que nos ensinastes. Sei que sou fraco, mas, com vossa graça, tudo posso e tenho confiança de que vós me ajudareis. Pelo amor que vos leva a ensinar-nos vossa santa vontade, eu vos imploro que nos concedais a força e a coragem de realizá-la” (SV IX, 10). Meditação Foi em 1633 que São Vicente e Santa Luísa reuniram um grupo de moças e deram início à Companhia das Filhas da Caridade. As dores sociais que afetavam as pessoas falavam alto aos corações das Irmãs e as impulsionavam a caminhar em direção aos sofredores. Nenhum drama deixava de ecoar no coração daquelas moças. Num contexto em que as mulheres sofriam uma verdadeira privação, Vicente orientava de maneira nova e inusitada: “Julgais por acaso, minhas filhas, que Deus espera de vós que leveis a vossos doentes somente um pouco de pão, de carne, de sopa e de remédios? De modo algum. Não foi essa sua intenção, minhas filhas, ao vos escolher para lhe prestar o serviço que lhe prestais na pessoa dos pobres. Deveis, pois, levar aos pobres dois alimentos: o corporal e o espiritual, isto é, para sua instrução, dizer- lhes alguma boa palavra que tiverdes tirado de vossa oração. Deus vos reservou para isso” (SV IX, 591). A ação das filhas da Caridade não estava voltada para a filantropia. Ao contrário, tratava-se de uma ação que tem seu início no coração do Cristo: “Sois destinadas a representar a bondade de Deus para com esses pobres doentes” (SV X, 332). Elas eram consideradas por São Vicente como se fossem extensões de Deus: “uma irmã irá dez vezes por dia ver os doentes e dez vezes por dia ela encontrará Deus neles” (SV IX, 252). Cada uma das moças representava uma semente divina lançada sobre o solo e dava frutos de forma abundante. E é incrível saber que o nome “Filhas da Caridade” foi dado pelo próprio povo, que via as moças se espalhando pelas ruas de Paris com o objetivo de ajudar e de agir misericordiosamente. Que belíssimo testemunho: o batismo das filhas da Caridade aconteceu a partir da rua; o evangelho era pregado com a própria vida e o Reino de Deus se construía a partir do corpo restaurado de uma multidão de pobres. A percepção de São Vicente era espetacular. Ele via algo que não era comum, ou seja, que a fé deve ser pública. Não podemos fazer com que a fé seja refém das paredes da Igreja. A fé é uma expressão pública e deve, portanto, nos levar ao 28 encontro dos outros, principalmente dos mais pobres. Para São Vicente, a forma privilegiada de encontrar a Deus é quando nos encontramos com os pobres. Deus se encontra na realidade, e é a partir da realidade que marcamos um encontro com Deus. Oração “Sou fraco, Senhor. Dependo da tua força e também da coragem que o Senhor me infunde. Dá-me coragem e força para os dias maus.” 29 13º dia INSPIRAÇÃO “No mundo, os ricos desfrutam de todas as vantagens e ocupam os principais postos; no Reino de Jesus Cristo, a primazia pertence aos pobres, que são os primogênitos de sua Igreja e seus verdadeiros filhos. No mundo, os pobres dependem dos ricos e parecem ter nascido só para servi-los. Na santa Igreja, pelo contrário, os ricos só são admitidos sob a condição de servir aos pobres” (Bossuet). Meditação São Vicente era missionário por excelência. Na verdade, é melhor descrevê-lo como um discípulo missionário de Jesus Cristo. A partir de 1645 ele passa a enviar missionários para todos os cantos: norte da África, Madagascar, Irlanda, Escócia, Polônia, Barbaria. Fronteiras e barreiras não eram consideradas por ele como obstáculos. Vicente, quando olhava para além das fronteiras, percebia seucoração santo arder de paixão. Por isso, podemos dizer que a vocação dele era “ir não só a uma paróquia, nem só a uma diocese, mas por toda a terra” (SV XII, 262), seguindo fielmente as palavras de Jesus: “então Jesus se aproximou e falou: toda autoridade me foi dada no céu e sobre a terra. Portanto, vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (Mt 28,18-19). Mesmo que missões além-mar fossem tremendamente arriscadas, ele tinha plena convicção de que as nações deveriam ser salvas: “a salvação duma alma é de tal importância que se deve expor a vida temporal” (VII, 117). E para o trabalho missionário ele escolhia aqueles que eram mais virtuosos, inteligentes e despojados. Para ele, todos deveriam viver e se pensar em estado permanente de missão. Escrevendo certa vez a um padre da Missão que estava em Madagascar, Vicente abriu seu coração e demonstrou a importância que dava aos seus missionários: “... e a Companhia olhou para vós, como a melhor hóstia que tenha, para com ela homenagear nosso soberano Criador, para lhe prestar esse serviço, com outro bom padre da companhia”. Do que valeria a missão se não fosse recheada de compaixão e de cuidado? Por isso ele dizia, a respeito da presença do Reino na história: “Se houver alguém entre nós que pense estar na missão para evangelizar os pobres e não para socorrê-los, para remediar suas necessidades espirituais e não as temporais, respondo que devemos assisti-los e fazê-los assistir de todas as maneiras, por nós e por outrem, se quisermos 30 ouvir estas consoladoras palavras do soberano juiz dos vivos e dos mortos: ‘vinde benditos do meu Pai; possuí o reino que vos foi preparado, porque tive fome e me destes de comer; estava nu e me vestistes; doente, e me socorrestes’” (SV XI, 393). Assim como Jesus se encarnou na realidade mais pobre da Palestina, São Vicente também percebia a necessidade vital de fazer missões inserindo-se na realidade social marcada pelo drama do ser humano. Oração “Pai, quero ser um discípulo missionário de teu Reino. Ensina-me a viver e a agir como missionário para que o teu nome seja engrandecido em toda a terra.” 31 14º dia INSPIRAÇÃO “Ó Salvador, sabeis o que meu coração quer dizer; ele se dirige a vós, fonte de misericórdia; vede seus desejos que não tendem senão a vós, não aspiram a outra coisa senão a vós, não querem senão a vós. Digamos muitas vezes: ‘ensinai-nos a orar’. Concedei-nos, Senhor, este dom da oração; ensinai-nos vós mesmo como devemos rezar. É o que pedimos, hoje e todos os dias, com confiança, com muita confiança em vossa bondade” (SV XI, 222). Meditação Santos não nascem prontos. Eles são feitos no calor da hora. Cada um deles tem seu tempo e seu local. Vivem em meio às contradições do cotidiano e, por que não dizer, envolvidos em suas próprias contradições. Uma das tarefas mais difíceis que temos como seres humanos é a de nos construirmos. Somos complexos demais e, certamente, precisamos de tempo para aprender a viver da melhor forma possível. São Vicente de Paulo iniciou sua história de vida peregrinando ao redor de si mesmo. Tinha em seu coração o desejo de se encontrar e de construir um futuro que fosse promissor tanto para si quanto para sua família. Tinha em seu coração ilusões juvenis bastante honestas, ao assumir o desejo do pai de seguir a vida religiosa. Um misto de ambições e de interesses familiares povoavam sua mente e coração. Nessa jornada terá inúmeros encontros com fracassos e desilusões. Mas quem disse que a experiência do fracasso e de desilusões indica que somos fracassados? Contra toda esperança, São Vicente continuou a caminhar em busca de um sentido mais profundo para a sua vida. Em sua época, sentiu o Espírito Santo chamando-o a viver como Jesus viveu e, a partir desse momento, sua sensibilidade e solidariedade com os dramas e esperanças dos mais pobres se tornaram evidentes. Foi na experiência de fraqueza que São Vicente encontrou suas forças. Paradoxalmente, foi quando se encontrava fraco, e crescia a consciência da inutilidade de todos os seus esforços, que ele finalmente percebeu a luz da saída. No desejo de conquistar um lugar ao sol, ele fizera escolhas às vezes equivocadas. Ocupou seu coração com o que não devia: a ambição desmedida. E sabemos que, quando a ambição se torna a única mola da existência, o espaço para acolher a vontade de Deus vai diminuindo. A equação é muito simples: quando São Vicente centralizava seu futuro em si mesmo, tudo ia mal, mas, quando sua vida gravitava ao redor de Deus e de sua vontade, novas perspectivas e novos horizontes se abriam completamente. 32 São muitos os cristãos que invertem as coisas, ou seja, esvaziam-se de Deus e enchem seu coração com tudo aquilo que não é Deus. Não dão espaço para Jesus reinar em suas próprias vidas, fazendo, assim, com que o leme da vida esteja em suas próprias mãos e não nas mãos daquele que deveria ser o único a nos guiar. Oração “Meu Deus e meu tudo, aspiro somente a ti. Permite-me que meu coração bata segundo o teu próprio coração e que se encha de alegria a cada batida.” 33 15º dia INSPIRAÇÃO “Começai sempre todas as vossas orações pela presença de Deus. Considerai que, embora não vejamos a Deus, a fé nos ensina a reconhecer sua santa presença em toda parte, penetrando intimamente todas as coisas e até mesmo os nossos corações” (SV IX,4). Meditação O encontro com os pobres será, certamente, a experiência de Deus mais marcante da vida de São Vicente de Paulo. Ele descobriu algo que andava meio escondido em sua época: que só é possível caminhar para Deus a partir do momento em que peregrinamos entre os pobres. Aquela era uma época em que cada vez menos se via a imagem de Cristo nos pobres. Na verdade, eram considerados preguiçosos, ladrões, vagabundos. A sociedade daquele tempo não se interrogava sobre as causas que provocavam o surgimento dos pobres. Na verdade, os pobres haviam se tornado órfãos tanto da sociedade quanto da Igreja. São Vicente redescobrira Cristo nos pobres e os pobres em Cristo, e assim resgatou o Evangelho de Jesus Cristo para o seu dia a dia, ao interpretar as palavras de Jesus em seu cotidiano. De que adiantariam as palavras de Jesus se elas não ressoassem na história que vivemos? Ele era um hermeneuta da realidade, isto é, interpretava a realidade a partir da Palavra de Deus, e a Palavra de Deus a partir de sua realidade. As palavras de Jesus não saíam de sua mente: “deram-lhe o livro do profeta Isaías. Abrindo o livro, Jesus encontrou a passagem onde está escrito: o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos, e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor. Em seguida Jesus fechou o livro, o entregou na mão do ajudante e sentou-se. Todos os que estavam na sinagoga tinham os olhos fixos nele. Então Jesus começou a dizer-lhes: hoje se cumpriu essa passagem da Escritura, que vocês acabam de ouvir” (Lc 4,17-21). Queria São Vicente que houvesse muitos “Jesus” caminhando pelas ruas das cidades e nos campos, anunciando a chegada da plena liberdade para todos. A revolução na vida e para a vida começaria quando assumíssemos a vida de Jesus, ou seja, quando as palavras do apóstolo Paulo fizessem eco em nossas vidas: “já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”. Seguindo os passos de São Vicente, aprendemos que as palavras de Jesus estão umbilicalmente ligadas à vida. As 34 palavras de Jesus alimentam a realidade, que é transformada por elas. Oração “Senhor, não posso enxergar-te com os olhos naturais. Porém, ensina-me a enxergar- te com os olhos da fé, para ver tudo quanto tu és e fazes por mim.” 35 16º dia INSPIRAÇÃO “Não é suficiente sentir bons afetos. É necessário dar um passo a mais e chegar à resolução de trabalhar, com todo interesse, para adquirir esta virtude, propondo-se a praticá-la e arealizar seus atos. Esse é o ponto mais importante e o fruto que se deve tirar da oração” (SV XI, 406). Meditação Consciências adormecidas precisam ser despertadas. Há uma “sonolência espiritual” que atinge muitos cristãos que, por isso, não conseguem ver-se como agentes e protagonistas de Deus na defesa da vida. E São Vicente sabia, como ninguém, motivar, desafiar e desinstalar as pessoas de suas zonas de conforto. Certa vez precisou questionar as Senhoras da Caridade, para ver se continuariam a cuidar da obra das crianças rejeitadas. Seu discurso foi enérgico e provocador de uma atitude: “pois bem, minhas senhoras, a compaixão e a caridade vos fizeram adotar estas pequenas criaturas como vossos filhos; fostes suas mães segundo a graça, porque suas mães segundo a natureza as abandonaram; vede agora se também quereis abandoná-las. Deixai de ser suas mães para vos tornardes agora seus juízes; sua vida e sua morte está em vossas mãos; vou pedir vossa palavra e anotar os vossos votos; é hora de pronunciar a sentença delas e de saber se não quereis mais ter misericórdia delas. Viverão se continuardes a cuidar delas caridosamente; e, pelo contrário, morrerão e perecerão infalivelmente se as abandonardes; a experiência não vos permite duvidar disso” (XIII, 801). Palavras fortes e necessárias para despertar da inatividade sonolenta para ações de misericórdia. É claro que todos os votos foram favoráveis! A exortação de São Vicente reflete a tragédia de uma sociedade incapaz de colocar no topo dos valores a defesa da vida. Por isso, a necessidade de se fazer e se apresentar de forma enérgica. O amor de Cristo o consumia por dentro, e ele sabia muito bem que não socorrer as crianças naquele momento significaria a morte de cada uma delas. Cada uma daquelas crianças rejeitadas era como se fosse parte dele mesmo, uma parte preciosa de sua vida. Perder as crianças seria como perder a si mesmo! A única resposta que ele via para superar a letargia era encher o coração com doses extras de misericórdia. E, para ele, somos misericordiosos porque a ação de Deus em nós nos encheu de misericórdia divina. Devemos pedir a Deus constantemente que nos dê esse espírito de compaixão e de misericórdia de modo que quem nos vir passar possa dizer: “eis uma pessoa cheia de misericórdia” (XI, 342). 36 São Vicente era extremamente empático e simpático. Por isso, a antipatia passava longe dele. Diferenciava-se nas ruas simplesmente porque amava, perdoava e se dedicava aos pobres. Numa sociedade que vivia sob o descontrole do medo, da violência e do ódio, São Vicente surgia como um farol que iluminava bem no meio da noite escura. Ele transpirava misericórdia! Oração “Desperta minha consciência, Jesus, e permite que meus passos sigam os teus passos. Faz-me um discípulo que imite plenamente teu modo de ser e de viver.” 37 17º dia INSPIRAÇÃO “O grande segredo da vida espiritual consiste em entregar a Deus tudo o que amamos, abandonando-nos a nós mesmos ao que ele quer, numa perfeita confiança de que tudo caminhará melhor” (SV VIII, 255). Meditação Virtudes devem ser exercitadas. Deveríamos vivê-las de uma maneira tão intensa e especial que nossas ações deveriam transpirá-las. Pode-se dizer que elas ditavam o ritmo do coração de São Vicente e eram consideradas por ele como as cinco pedras capazes de derrubar o gigante Golias. São Vicente repetia, sem cansar, que são cinco as virtudes do missionário, e que tudo o que Deus pede de nós se encontra nelas: Simplicidade: é quando não temos outra pretensão senão a de Deus, quando recusamos qualquer motivo que não seja Deus e rejeitamos o que aparece. Na bela linguagem do Salmo 131,2: “moderei e fiz calar meus desejos. Como criança desmamada no colo de sua mãe, como criança desmamada, assim está a minha alma”. Humildade: seria a reação contra a autoexaltação do ser humano. São Vicente descobriu a necessidade de se fazer pequeno, de se esvaziar, de não buscar a própria glória. Quanto mais ele se esvaziava mais Deus o preenchia! Mansidão: é a arte de permanecer firme mesmo em meio às tempestades e crises da vida; é a virtude que permite aquietar o próprio coração e o coração dos demais. Abnegação: é o desprendimento dos interesses pessoais e individuais, tendo em vista o bem comunitário; uma virtude que nos leva a viver o amor de forma incondicional. Existimos para o serviço, e não para acumular privilégios pessoais. Zelo: é a responsabilidade e o cuidado por aquilo que amamos, e, consequentemente, a prática dessa virtude leva cada vez mais à dedicação. É importante saber que as virtudes não são naturais. Não nascemos com elas e, exatamente por isso, é inadequado pensar que não podemos desenvolvê-las. Virtudes são aprendidas, exercitadas e elaboradas. Aprendemos as virtudes em nosso dia a dia. Também é necessário salientar que a primeira marca das virtudes reside justamente em sua prática. É insuficiente apenas saber que elas existem; de nada vale decorar seus nomes ou escrevê-las em grandes cartazes e espalhá-las pela casa ou até mesmo ensiná-las. Faz-se necessário praticá-las a cada dia, a fim de que se tornem para nós como se fossem uma segunda pele. No entanto, São Vicente sabia que a fonte das virtudes é o próprio Cristo, e por 38 isso, quanto mais perto estivermos de Cristo, mais beberemos abundantemente dessa boa água. Oração “Pai querido, a melhor maneira de exercitar a fé consiste em nos lançar total e completamente nos teus braços. Ensina-me a ter fé e a me perder em ti para que possa me achar.” 39 18º dia INSPIRAÇÃO “Da experiência que tenho, resta-me o julgamento que sempre fiz: a verdadeira religião está no meio dos pobres! Deus os enriqueceu com uma fé viva. Eles creem, tocam, saboreiam as palavras de vida” (SV XII, 170-171). Meditação Somos acostumados aos primeiros lugares. Numa competição ninguém deseja chegar em segundo lugar. Numa sociedade em que somos levados à competição, competimos por todas as coisas, e por qualquer delas, mesmo as menores; queremos sempre o primeiro lugar. Aqueles que chegam em segundo lugar jamais são lembrados. Vivemos numa sociedade de vitoriosos, que não oferece lugar para todos. A lucidez de São Vicente a respeito disso transparece numa carta enviada ao Pe. Jacques: “guardai-vos bem, meu padre, de atribuir-vos qualquer bom resultado; cometeríeis um roubo e faríeis injúrias a Deus, que é o único autor de todo bem. Vossa tendência seja sempre para baixo, para o amor de vossa abjeção e o desejo do desprezo e da confusão, contra a inclinação natural, que leva ao gosto de aparecer e de ter êxito” (VII, 298). São Vicente, diferentemente de muitos anos antes, já não corria mais para ocupar os primeiros lugares. Seus passos, todos eles, levavam-no necessariamente para mais perto daqueles que eram considerados os últimos da sociedade. Inseria-se entre os pobres, assumindo a posição que era deles. Lembra-nos a experiência de São Paulo. No início, sempre fazia questão de se apresentar como apóstolo. O título lhe era caro. Tornava-o importante diante dos demais. Não podia ser comparado a qualquer um. O título fazia dele alguém diferente e, mais do que isso, fazia-o superior. Todavia, conforme Paulo foi amadurecendo, suas atitudes mudaram porque entrou em processo de conversão. Abdicou do título de apóstolo e assumiu o de servo. Já não se via como superior, mas como aquele que era servidor. E mais para o fim de sua vida a conversão se fez completa. Não se apresentava mais como servo, mas se reconhecia como o mais terrível dos pecadores. Quanto mais ele se aproximava de Deus, mais reconhecia quem de fato era e como dependia absolutamente de Deus para viver e sobreviver. A humildade transpirava em São Vicente: “ponho minha confiança em Deus, e não, de modo algum, em minha preparação, nem em todas as minhas habilidades” (II, 40 289-290). “Melhor é servir do que ser servido” era mais do que um lema, era um estilo de vida para São Vicente. É muito comum encontrar São Vicente assinando as milhares de cartas que escreveue colocando após seu nome: “indigno superior da Congregação da Missão”. Um dia, quando lhe propuseram uma homenagem, logo disse: “as cartas dedicatórias se fazem para louvar aqueles a quem se dirigem, mas sou totalmente indigno de louvor. Para bem me descrever, precisariam dizer que sou filho de um agricultor, que guardei porcos e vacas, e acrescentar que isso não é nada em comparação com minha ignorância e malícia. Por isso, julgai, senhor, se uma pessoa tão miserável como sou deva ser nomeada em público na maneira que estais me propondo” (IV, 215-216). Oração “Livra-me, meu Deus, de querer os melhores lugares. Ensina-me a viver para o serviço. Que eu me aproxime das pessoas como servo e não como senhor sobre elas.” 41 19º dia INSPIRAÇÃO “Quando aos pobres falei secamente, tudo se perdeu. Ao contrário, quando me compadeci de seus sofrimentos, quando beijei suas correntes, quando partilhei suas dores e testemunhei compaixão por suas aflições, foi então que me escutaram e se puseram no caminho da salvação” (SV IV, 53). Meditação Foi em Folleville e Châtillon que São Vicente descobriu a força do protagonismo dos leigos. Deu especial atenção às mulheres que desenvolveram o trabalho de evangelização e promoção humana. A percepção de São Vicente foi agudíssima. Sabia que o povo de Deus não se reduzia àqueles que eram consagrados ou ordenados. Seu olhar ia mais além e percebia que o povo de Deus também era capacitado para toda boa obra. Assim, foi até os leigos e os mobilizou. Estimulou, motivou e exortou para que assumissem o protagonismo de suas vidas, mas também o protagonismo que lhes cabia na Igreja. Longe de abandonar o povo de Deus à própria sorte, abriu-lhe as portas da Igreja. Aqui, poderia muito bem dizer, a Igreja também é a casa de vocês; uma casa que vocês precisam ajudar a construir. Vale também lembrar que São Vicente não foi uma pessoa isolada e solitária. Ele se construiu cercado de amigos. Pode-se dizer ainda mais: ele não iria muito longe se não fosse a presença constante, importante e inevitável dos amigos, que foram, a um só tempo, conselheiros, ombros que apoiavam e lábios que ensinavam. Quatro deles se destacaram: Antônio Portail foi o primeiro dos frutos de São Vicente para a vida religiosa e permaneceu ao lado dele até morrer, pouco tempo antes do Santo; São Francisco de Sales, em relação a quem nutria uma profunda admiração, a ponto de dizer: “como é grande a bondade divina, meu Deus, como vós sois bom, visto que Francisco de Sales, vossa criatura, é tão cheio de bondade” (XIII, 78); Pedro de Bérulle, que exerceu forte influência espiritual sobre ele; Santa Luísa de Marilac, que se aproximou dele no final de 1624, quando São Vicente ajudou-a a criar as condições necessárias para se libertar de sua introversão e dedicar-se ao serviço dos pobres. Oração “Quanta sensibilidade falta em mim, ó Deus! Preciso escutar mais as dores e aflições 42 daqueles que vivem dramas existenciais terríveis. Dá-me sensibilidade para socorrer aqueles que necessitam de uma presença amiga e acolhedora.” 43 20º dia INSPIRAÇÃO “Que felicidade poder demonstrar que o Espírito Santo guia a sua Igreja, através do nosso trabalho para a instrução e santificação dos pobres” (SV XI, 37). Meditação Ninguém nasce super-homem, nem mesmo os santos. O próprio caminho de São Vicente foi marcado por limites dos quais ele tinha muita consciência. Sabia que era humano e cheio de fraquezas; não era uma pessoa isenta de ambiguidades, mas nem por isso o vemos acomodado às suas imperfeições e a seus limites, como se dissesse: “pau que nasce torto morre torto”. Ele não se acomodava ao que era; cada dia queria se construir melhor. E ele descobriu que a construção de nós mesmos se dá a partir do momento em que olhamos para Jesus. Jesus é a medida de nossa construção, uma construção mediada pelo Espírito Santo. Assim nos ensina São Vicente: “quando se diz que o Espírito Santo opera em alguém, isso significa que esse Espírito, residindo nessa pessoa, lhe dá as mesmas inclinações e disposições que Jesus Cristo tinha na terra, e elas o fazem agir do mesmo modo, não digo com igual perfeição, mas segundo a medida dos dons desse divino Espírito” (XII, 107). Limites são naturais. Todavia, não podemos virar reféns deles. Não podemos nos ver como se estivéssemos condenados a ser sempre do mesmo jeito. Saber-nos limitados e que estamos em processo de autoconstrução não é demérito. Ao contrário, é a constatação – sábia constatação – de que ainda falta muito caminho por fazer. A incompletude apenas nos revela que Deus ainda tem muito conteúdo para derramar sobre nós. É necessário que o próprio Jesus imprima em seu discípulo sua marca e seu caráter. Nesse sentido, São Vicente estabelece a marca do verdadeiro discípulo, ou seja, o verdadeiro discípulo é aquele que se esvazia de si mesmo para se revestir de Jesus Cristo. Um dos maiores problemas que agridem o ser humano é o da baixa autoestima. Muitos se acham repletos de deficiências e muito frágeis para vencer os obstáculos da vida. Na verdade, veem a si mesmos como o maior dos obstáculos. “Nasci assim e morrerei assim”, torna-se o mantra principal que repetem dia após dia. São Vicente nos ensina a olhar para os obstáculos a fim de superá-los. Nenhum obstáculo é maior do que a força que reside em nós, a força do Espírito Santo. Oração “Ó Salvador, ensina-nos a colocar nossos prazeres em ti, a amar o que amaste e a nos 44 comprazer no que te apraz” (XII, 110). 45 21º dia INSPIRAÇÃO “Assim, pois, para tender à perfeição, temos de nos revestir do Espírito de Jesus Cristo. Quão importante negócio é esse de nos revestir do Espírito de Jesus Cristo! Isso quer dizer que, para aperfeiçoar-nos e para atender utilmente o povo, temos de nos esforçar por imitar a perfeição de Jesus Cristo e procurar chegar a ela. Isso significa também que não podemos nada por nós mesmos. Temos de nos encher deste Espírito de Jesus Cristo e deixar-nos animar por ele” (SV XII, 107-108). Meditação Numa sociedade marcada pela miséria e pela contínua desumanização das pessoas, São Vicente proclamava a dignidade intransferível e inalienável de cada homem e cada mulher. Aqueles que eram mais fracos precisavam receber atenção especial, e os doentes precisavam ser servidos em suas próprias casas, da mesma maneira como os ricos eram atendidos. Por quê? São Vicente responderia serenamente e com firmeza: porque os pobres são “os bem-amados de Deus” (SV XII, 393). Seu coração estava plenamente voltado para os pobres: “Virai a medalha e vereis, pelas luzes da fé, que o Filho de Deus, que quis ser pobre, nos é representado por esses pobres (...) Ó Deus! Como é bonito ver os pobres, se os consideramos em Deus e na estima que Jesus Cristo tinha por eles” (SV XI, 32). Ou ainda “não há caridade que não seja acompanhada de justiça” (SV II, 54). A beleza de Cristo era refletida na beleza dos pobres, e por isso São Vicente contemplava diariamente a beleza de Cristo na face dos pobres. Uma das preocupações de São Vicente era a de que cada um estivesse preparado para dar o melhor de Jesus para os outros. E, por conta disso, exortava sempre as pessoas em relação ao que levavam no coração para distribuir: “Como podemos dar caridade aos outros, se não a temos entre nós? Vejamos bem se está entre nós, não em geral, mas cada um veja se a tem no coração e se está em nós no grau em que deve estar; pois, se não está acesa, se não nos amamos mutuamente como Jesus Cristo nos amou, e se não produzimos atos dessa caridade, semelhantes aos de Jesus, como podemos pensar em levar esse amor pela terra inteira? Não se pode dar o que não se tem” (XII, 264). “Não se pode dar o que não se tem” é uma das mais belas exortações de São Vicente. Somente corações amorosos poderão amar; somente corações “perdoadores” poderão perdoar; somente corações misericordiosos poderão praticar a misericórdia; somente corações justos poderão praticar a justiça. A questão principal, portanto, e 46 que deve ser respondida individualmenteé esta: o que plantamos em nossos corações? Talvez o problema seja mais profundo e se possa formular assim: não espalhamos amor, misericórdia, solidariedade, gentileza, perdão, porque existe em nosso interior um grande vazio que também precisa ser preenchido. Oração “Reveste-me do Espírito Santo, glorioso Deus, para que a alegria inunde completamente minha vida.” 47 22º dia INSPIRAÇÃO “O fim principal para o qual Deus chamou e reuniu as Filhas da Caridade é honrar e venerar Nosso Senhor Jesus Cristo como manancial e modelo de toda caridade, servindo-o corporal e espiritualmente na pessoa dos pobres” (RC I,1). Meditação São Vicente era um vanguardista. Estava à frente de seu tempo. Ao verificar os limites e a caducidade do modelo de vida consagrada que imperava naquela época e que não mais respondia às necessidades da Igreja e da sociedade, seus olhares se voltaram mais para a frente. Nada de formalismos, de vida consagrada cheirando a naftalina, de engessamento que impedisse o caminhar missionário. A compreensão dele era tomada de tamanha lucidez que somente pode ter sido revelado por Deus. Vejamos: “vosso mosteiro é a casa dos enfermos, e aquela em que reside a superiora. Vossa cela é um quarto de aluguel. Nisso, sois mais semelhantes a Nosso Senhor. Tendes como capela a igreja paroquial, na qual deveis assistir o santo sacrifício e dar bom exemplo, sendo sempre a edificação do povo, ainda que sem deixar, por isso, o serviço aos doentes. Vosso claustro são as ruas da cidade, pelas quais tendes de ir para atender os doentes, já que a obediência tem de ser vossa clausura. Por grade, tereis o temor de Deus. E por véu levareis a santa modéstia” (SV X, 662). A preocupação de Vicente eram os pobres que ele considerava como seus “senhores e patrões”. Deus ama os pobres e ama também os que amam os pobres; quando se ama alguém, tem-se afeição aos seus amigos e servidores. Por isso, os pobres não podiam ser abandonados de forma alguma. Contrariamente à opinião da Igreja, que dava mais importância aos perigos que a pessoa consagrada poderia encontrar no mundo, São Vicente percebia no mundo a sua grande seara. Não olhava, portanto, para os perigos que a pessoa consagrada poderia experimentar, mas via os perigos pelos quais os pobres passavam sem que ninguém se interessasse por eles. Por isso, escreveu: “o espírito da Companhia consiste em dar-se a Deus para amar nosso Senhor e servi-lo na pessoa dos pobres, corporal e espiritualmente, nas suas casas e noutros lugares, para instruir as moças pobres, as crianças e, de modo geral, todos os que a divina Providência lhes enviar” (XI, 592). Não se tratava de uma espiritualidade unilateral, mas, sim, de uma espiritualidade que se desenvolvia em meio ao conflito e aos dramas da vida e, no conflito, se posicionava ao lado dos pobres a partir de uma missão integral. A percepção de São Vicente surpreende até hoje. Vivem-se os dons e ministérios 48 para os outros. Somos chamados por Deus e agraciados com dons do Espírito não para nos trancafiarmos nas igrejas e em nossas casas. Dons e ministérios existem somente para o benefício de outras pessoas. E onde essas “outras pessoas” estão? São Vicente certamente responderia assim: “na rua, na rua”. Queremos amar a Deus? Vamos para as ruas das cidades e transformemos o corpo dos pobres em nosso altar. Oração “Confesso, Senhor, que muitas vezes vivo uma espiritualidade alienada. Uma espiritualidade que me afasta das pessoas e da própria realidade. Desperta-me para compreender que a melhor espiritualidade é aquela que nos faz encontrar-nos uns aos outros para celebrar o santo nome do Senhor.” 49 23º dia INSPIRAÇÃO “A vontade de Deus não pode ser bem conhecida senão através dos acontecimentos que chegam até nós, sem que os tenhamos pedido” (SV V, 453). Meditação Em 1638, por incrível que possa parecer, a mortalidade infantil ultrapassava o índice dos 50%. Trata-se de um dado dramático. Mas o que fazemos quando lemos notícias como essa em nossos jornais? Qual nossa atitude quando ficamos sabendo que 40% das crianças do nosso país são pobres? Fiquemos atentos “apenas” aos dados do quadro alarmante de crianças trabalhadoras: 4,6 milhões de crianças e adolescentes estudam e trabalham; 2,7 milhões de crianças trabalham e não estudam; 3,5 milhões de crianças trabalham mais de 40 horas semanais (dados da Fundação IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] e UNICEF [Fundo das Nações Unidas de Amparo à Infância], abrangendo o período de 1991 a 1996). Durante as épocas de colheita, o número de crianças trabalhadoras duplica e chega a atingir quase 100%, dependendo da região. O estado com maior índice de casos de trabalho infantil, conforme dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), é o Mato Grosso do Sul. Foram encontradas 3.256 crianças em trabalho escravo nas carvoarias. Em segundo lugar, vem o estado do Rio de Janeiro, com 1.013 crianças que trabalham no corte de cana. Seguem os estados de Alagoas e Pernambuco, com suas plantações de cana-de-açúcar, e o Estado da Bahia, com a plantação de sisal. Além das atividades já citadas, empregam grande número de crianças o plantio de feijão, algodão e braquiária, a colheita da erva-mate e do café, a extração do sal, as pedreiras, as usinas e outros. A atitude mais frequente é virarmos logo a página do jornal pensando que aquela situação, ainda que seja marcadamente grotesca, não tem relação alguma com a gente. Seriam apenas números que não nos incomodam no conforto burguês e religioso que criamos. Pensamos, na verdade, que a distância que mantemos deles acaba por nos proteger de nossa letargia. Mas com São Vicente não era assim. Ele considerava sua a dor dos outros! Como poderia estar feliz se outros viviam de forma infeliz? Como viveria saciado se outros viviam famintos? Como viveria sob o abrigo de um teto se tantos outros não tinham onde morar? São Vicente saía constantemente de sua zona de conforto. O Evangelho que vivia o levava a romper as fronteiras e a invadir os espaços da periferia. Por causa do 50 incômodo dos números da pobreza, São Vicente se desinstalava e fazia de seu incômodo uma missão para aqueles que o cercavam. Era desse tipo a orientação que dava às Filhas da Caridade a fim de que assumissem a obra das crianças abandonadas. Não podemos ser como aqueles que, na descrição de São Vicente, “contentam-se com os doces colóquios que têm com Deus na oração; falam mesmo dele como anjos; mas, ao sair dali, se é preciso trabalhar por Deus, sofrer, mortificar- se, instruir os pobres, ir procurar a ovelha perdida, achar bom que lhes falte alguma coisa, aceitar doenças ou alguma outra desgraça, infelizmente desaparecem, e a coragem lhes falta” (XI, 40-41). O Evangelho deve ser compreendido como prática. Sem a prática não se chega ao amor efetivo e eficaz. Jesus já havia dito: “pelo fruto os conhecereis”. Não é o muito falar e o muito rezar. Não adianta somente ter grande sentimento em relação a Deus e o coração arder de paixão por Jesus. Oração “Ó, meu Deus, como estou em falta neste aspecto! Perdoa-me as faltas passadas e dá- me a graça de que teu santo amor se imprima profundamente em meu coração, seja a vida de minha vida e a alma de minhas ações, para que, manifestando-se para fora, entre e opere também nas almas com quem trabalharei” (XII, 261). 51 24º dia INSPIRAÇÃO “Pois bem, trabalhar pela salvação do pobre povo do campo: esse é o fim principal de nossa vocação, e o resto não é mais do que acessório, pois jamais teríamos trabalhado com os ordinandos, nos seminários dos eclesiásticos, se não tivéssemos julgado que era necessário para sustentar o povo e conservar o fruto que dão as missões quando há bons eclesiásticos” (SV XI, 133). Meditação Uma das coisas que mais faz falta para a Igreja no mundo contemporâneo são os profetas. Ah! Como faz falta voltarmos às origens! Em São Vicente encontramos uma voz que não quis se calar. Ele denunciava veementemente a injustiça e a exploração que grande número de pessoas sofria. Jamais pensouque mendicância e ignorância deviam ser consideradas como vontade divina. A opressão que se abatia sobre o povo era de responsabilidade estrutural, que era geradora de pobreza. E, diferentemente do que muitos poderiam imaginar, Deus, para São Vicente, não estava contra os pobres e não os via como amaldiçoados. Contrariamente a essa concepção, ele anunciava a mais radical solidariedade de Deus com o drama humano. Ele não se permitia o conformismo. A espiritualidade que ele nutria em seu coração o levava ao encontro dos outros. Mas não era um encontro somente para rezar com o povo pobre. Junto à oração, promovia ações transformadoras para que, enfim, as estruturas causadoras de pobreza também pudessem ser modificadas. A profecia não se separa da pessoa do profeta: ele profetiza com toda a sua vida; profecia não é discurso, mas ação pública de grande visibilidade. O profeta não fala apenas com palavras, mas com toda a sua vida. Havia, em São Vicente, coerência entre o discurso e a sua vida. Não havia espaço para dualismos. Para ele, Deus jamais poderia ser considerado como o causador da pobreza, e por isso jamais deveríamos nos alinhar a construções teológicas que sustentem que Deus é quem determina que uns sejam ricos e outros vivam na necessidade. A pobreza é um mal que estende suas raízes no estabelecimento de relações de dependência e opressão. Pobreza e miséria não são de Deus nem do diabo, mas anormalidades produzidas pelos sujeitos responsáveis pela construção da sociedade. Há miséria e sofrimento no mundo não porque seja a vontade de Deus, mas porque as pessoas são vítimas indefesas da injustiça de outros homens. Tais agentes da violência, da opressão e da injustiça possuem um poder que se opõe e contrapõe ao poder de Deus e que deteriora as relações humanas, subjugando os diferentes e hierarquizando as relações. 52 Na verdade, a existência da pobreza reflete uma ruptura de solidariedade entre os homens e de comunhão com Deus. A pobreza é um mal, e por isso também deveria ser considerada incompatível com o projeto do Reino de Deus. A pobreza e seus agentes de violência não concebem vida plena e integral para todas as pessoas e, por causa disso, fragmentam a proposta do Reino de Deus, transformando-o num antirreino. A maldade da violência que causa a pobreza fragmenta a história assim como reduz o ser humano àquilo que ele não é. Para São Vicente, a Igreja autêntica é aquela que lava os pés dos pobres e que somente é Igreja quando está a serviço. Todo o resto é acessório. Assim ele afirma: “parece-me que ofenderia a Deus se não fizesse tudo o que posso pela pobre gente do campo” (IV, 586). Oração “Temos profetas de menos em nossas Igrejas, Senhor. E por isso esquecemo-nos de tua radical solidariedade com o drama dos pobres. Queremos apenas a ti e recusamos aqueles que tu amas preferencialmente. Tem piedade de nós.” 53 25º dia INSPIRAÇÃO “Eu mesmo, velho e doente como estou, não devo deixar de ter essa disposição em mim mesmo para ir inclusive às Índias, com o intuito de ganhar ali almas para Deus, ainda que tivesse que morrer no caminho ou no barco” (SV III, 285). Meditação Conquistam-se as outras pessoas pelo exemplo. Não adianta ter discursos belíssimos e uma prática que nega as palavras. Para São Vicente, a virtude é tão bela e tão amável que as pessoas serão quase forçadas a amá-la em nós, se a praticarmos bem. Dizia ele: “os discursos que não têm a verdade por fundamento se desvanecem como fumaça” (VIII, 206). A força do exemplo, da vitalidade e do amor de São Vicente por continuar a obra de Jesus Cristo se impunha quando, aos sessenta e dois anos, numa idade em que muitos já estão pensando em descansar, ele afirmava: “apesar da minha idade, diante de Deus não me sinto escusado da obrigação que tenho de trabalhar pela salvação dessa pobre gente; pois quem poderia me impedir de o fazer? Se não pudesse pregar todos os dias, então, o faria duas vezes por semana; se não pudesse subir aos grandes púlpitos, procuraria ir aos pequenos; se ainda não me ouvissem nos pequenos púlpitos, quem me impediria de falar simples e familiarmente a essa boa gente, como estou falando agora convosco, fazendo-vos aproximar em círculo como estais?” (XI, 135). São Vicente sabia harmonizar bem uma situação em que temos muitos problemas. Ele dizia não poucas vezes: “apesar de...”. Todavia, não parava por aí! Logo ele dizia: “diante de Deus”. Muitos vivem se lamentando e lamuriando a vida inteira: “apesar da minha idade... da minha saúde... dos meus recursos...”, enquanto São Vicente reconhecia a soberania de Deus sobre todas as suas dificuldades. O pior cristianismo é aquele baseado somente em palavras. Palavras sem conteúdo não se sustentam e muito menos dão frutos. As pessoas ouvem nossas palavras e as esquecem. Todavia, o exemplo fala mais alto. Afinal, o exemplo tem o poder de mudar tanto a pessoa que age quanto aquela que observa e recebe o impacto da ação. O maior discurso que podemos fazer é aquele expresso no dia a dia. Falamos mais e com mais sentido quando agimos de forma correta. Em geral, as pessoas evitam aqueles que dizem uma coisa e fazem outra. Não precisamos de discursos bonitos. Precisamos de modelos que nos indiquem a direção. Palavras bonitas podem até mesmo ser cantadas, porém não conseguem orientar nossos passos. Palavras bonitas 54 em placas erradas são perda de tempo! São Vicente olhava para Jesus e o imitava. Não queria ser reconhecido por aquilo que falava. Queria, sim, que as pessoas soubessem e dissessem: “realmente, eis um homem que andou com Jesus”. Oração “Ajudo ou atrapalho as pessoas com o meu exemplo? Ajuda-me, Senhor, a ser e a viver de acordo com tua vontade, e a ser uma extensão de tua bênção às pessoas.” 55 26º dia INSPIRAÇÃO “Não podemos assegurar melhor nossa felicidade eterna do que vivendo e morrendo a serviço dos pobres, nos braços da Providência e numa total renúncia de nós mesmos para seguir Jesus Cristo” (SV III, 392). Meditação São Vicente foi um vaso de barro nas mãos de Deus. É claro que conhecia as belíssimas palavras encontradas no livro do profeta Jeremias: “palavra que Javé dirigiu a Jeremias: levante-se e desça até a casa do oleiro; aí eu comunicarei minha palavra a você. Desci até a casa do oleiro e o encontrei fazendo um objeto no torno. O objeto que ele estava fazendo se deformou, mas ele aproveitou o barro e fez outro objeto, conforme lhe pareceu melhor” (18,3-4). Ao longo dos anos, São Vicente se deixou modelar segundo a vontade de Deus. Já não era para ele suficiente ser simplesmente imagem de Deus. Ardia em seu coração ser como Jesus a fim de continuar as obras por ele iniciadas. Deixar-se modelar não é algo fácil. Assumimos que estamos prontos e que não há absolutamente nada em nós que precise de qualquer mudança. São Vicente se via sempre em processo de construção. Deus sempre era visto por ele como o oleiro, e ele se via como o barro. O que importa não é o simples fato de ser barro, mas sim o fato de estar nas mãos de Deus. Ser “barro” não tira a dignidade do ser humano, mas estar nas mãos do Deus oleiro faz toda a diferença. Nesse sentido, São Vicente se lançava em direção à vontade de Deus. Um vaso não tem vontade própria e por isso não pode decidir nada a respeito de si mesmo. Não é o barro que orienta o oleiro sobre como deve trabalhar e sobre o que se espera como resultado final. O barro apenas se coloca nas mãos do oleiro, à espera de que a vontade do artífice se realize completamente. Fazer a vontade de Deus é o objetivo máximo de São Vicente. Não concebe sua vida sem estar totalmente focada no cumprimento da vontade divina. Por isso, ele deseja estar absolutamente no centro do supremo propósito de Deus para a sua vida. E qual seria o supremo propósito de Deus para a minha vida? Oração “Quero ser, Senhor, um vaso de barro em tuas mãos. Faz de mim um vaso de honra para o teu santo nome.” 56 27º dia INSPIRAÇÃO “Se quisermos, poderemos sempre fazer a vontade do Pai. Oh! Que felicidade fazer sempre e em todas
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