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2
Sumário
Capa
Rosto
Introdução
1. Nietzsche contra o bem e o mal ou de como deixamos de ser moralistas
2. Nietzsche para além de qualquer dualismo ou de como deixamos de ser
materialistas e espiritualistas
3. Nietzsche e uma nova ética ou de como aprendemos valores para além de bem e
mal
4. Nietzsche e o além-do-homem ou de como podemos superar a nós mesmos
5. Nietzsche: o eterno retorno do mesmo e o amor fati ou de como podemos atingir a
afirmação da vida terrena
6. Nietzsche e os dois tipos de sofredores ou de como aprender com o sofrimento
afirmador
7. Nietzsche, um homem dionisíaco e trágico ou de como nos tornamos dionisíacos
8. Verdade e mentira em Nietzsche ou de como “construímos” a verdade e a mentira
enquanto valores
9. A morte de Deus – quem matou Deus? Ou de como matamos Deus e não
suportamos a nós próprios
10. Nietzsche como Anticristo ou de como nos afastamos desta vida terrena
11. Nietzsche e as contribuições à educação ou de como podemos ser filósofos
educadores
12. Nietzsche e a política da grande saúde ou de como nos tornamos saudáveis
13. Nietzsche entre a solidão e a sociedade ou de como crescemos na solidão e nos
tornamos autênticos
Considerações finais
Referências bibliográficas
3
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Introdução
Quem é Friedrich Wilhelm Nietzsche? Filósofo alemão do século XIX (1844-1900),
que ficou conhecido por seus escritos polêmicos. Nasceu em um pequeno vilarejo da
Alemanha, Röcken, e, com bolsa de estudo, cursou o Colégio Real de Pforta.
Começou os estudos universitários em Bonn, transferindo-se posteriomente para
Leipzig. Ainda bem jovem foi nomeado professor de Filologia Clássica da
Universidade da Basileia, onde lecionou por dez anos. Deixou o magistério, pois não
concordava que um professor sempre devesse ter o que dizer, todos os dias, para os
seus alunos. Também já demonstrava saúde frágil. Enfim, com uma pequena pensão
concedida pela Universidade por seus serviços prestados, pedido de pensão este
conseguido com o apelo de seu professor e amigo Overbeck junto à instituição, viveu
uma vida sem parada até o final de sua saúde psíquica, morrendo em Weimar.
Nietzsche criticou o dualismo de Platão, a quem apontava como responsável pela
inversão de valores que vigorou em nossa cultura: a valorização de um outro mundo –
o mundo das Ideias – com a desvalorização deste mundo em que vivemos – o mundo
sensível. Atacou a metafísica platônica e a valorização da alma em detrimento do
corpo, sendo esse o “cárcere da alma”. Para ele, também Sócrates – mestre de Platão
– foi responsável pela introdução do “homem teórico” na filosofia, isto é, por colocar
os conceitos, a teoria e a definição dos conceitos atrelados a uma “verdade” pré-
existente como principal meio para se atingir uma vida virtuosa. Sócrates, segundo
Nietzsche, uniu essa verdade a priori e a moral para fazer surgir esse homem
“virtuoso”, o que abriu espaço para todo tipo de moralina (expressão nietzschiana:
esse tipo humano teórico e moralista em sentido pejorativo). Além disso, o
racionalismo de Sócrates fortaleceu uma postura antropocêntrica na filosofia,
tomando o homem teórico e moral como medida para a construção do homem de bem
– isto é, tornando o próprio Sócrates um modelo de homem. Platão levou essa ideia
adiante. Assim é que os inimigos do mestre e do discípulo, a quem denominavam de
sofistas, tiveram seus nomes ligados à mentira, ao mal, já que os sofistas, para eles,
não estavam preocupados com a verdade e com a moral. Mas a questão, para
Nietzsche, é se Sócrates e Platão não seriam, eles também, tipos de sofistas ao
nomearem “a verdade” e “a moral”, ambas absolutas. Além dessas críticas, o filósofo
alemão tomou Platão como um cristão mesmo antes de Cristo, afirmando que o
cristianismo não passa de um platonismo para o povo, como podemos ver no prefácio
de Para além de bem e mal. A crítica de Nietzsche ao cristianismo é a própria crítica
à metafísica platônica.
Portanto, crescendo e dominando o Ocidente, o cristianismo tornou-se um
instrumento do dualismo metafísico de Platão, reforçando a ideia de que a alma é
eterna e de que vale mais a vida eterna, no além, do que esta vida em que o
sofrimento impera. Por isso, diante das dificuldades da vida, o homem cristão
aprende a recorrer ao seu Deus, tomando como mola propulsora de sua vida terrena
sua fé inabalável no além. Desse modo, o cristianismo finca raízes no além, exaltando
a alma em lugar do corpo, o qual, para Nietzsche, é que seria a nossa grande razão,
mediante a qual a pequena razão, aquela para a qual costumamos atribuir a razão
como um todo, seria apenas um “brinquedo” do corpo. Em nome do corpo, Nietzsche
4
justifica sua luta contra o “platonismo para o povo”, um platonismo que exalta a alma
e a razão, nada sobrando para o corpo, a grande razão. A política platônico-cristã
despreza o terreno em nome do sobrenatural. Nietzsche quer, de outra monta, tornar-
se sempre o arauto da natureza, na qual reina o devir contra a metafísica estática de
Platão, situada em seu Mundo das Ideias.
Considerando que o filósofo de Röcken toma a metafísica como contraposição de
valores, temos que foi contra este mundo que Platão elaborou um outro: para fazer-
lhe oposição; e isso foi absorvido pelo Ocidente, por intermédio da filosofia e, em
especial, do cristianismo. Dessa forma, Nietzsche prossegue em seu ataque a todos os
tipos de platonismo, mas, em especial, ao cristianismo. É nesse sentido que escreve
uma obra à qual deu o nome de O Anticristo: maldição sobre o cristianismo. Nela, o
filósofo faz todo um histórico, faz uma filosofia da religião também, para atingir o
miolo de uma construção milenar que se institucionalizou reduzindo a vida terrena ao
niilismo, ao nada, ao sem sentido. Nietzsche, nessa obra tão polêmica e se reportando
à pré-história da humanidade, escreve sobre como o homem construiu esse Deus, que
seria egoísta em seu monoteísmo, em seu “monótono-teísmo”. A polêmica segue em
frente, quando o filósofo coloca Paulo como o fundador do cristianismo, afirmando
que o único cristão que existia morreu na cruz.
Mas vamos retomar essa sua luta contra o dua- lismo platônico, na qual ele,
Nietzsche, se transforma em um dos críticos mais ferrenhos à metafísica e, aí, a todo
tipo de metafísica, isto é, a tudo aquilo que opõe a esta vida uma essência, algo que
sempre permanece, quando, para ele, tudo se movimenta sem parar. Por isso, dizemos
que ele não é o filósofo do ser, mas do devir. E o que tem feito a filosofia durante
seus anos de história, segundo o filósofo alemão? Embasado teoricamente a
metafísica. A própria filosofia como estudo do ser tornou-se filosofia primeira, todo o
resto vem em segundo plano. Nietzsche, portanto, se põe também em luta contra seus
“iguais”, ou seja, contra muitos filósofos.
Situando o filósofo alemão nesse contexto de sua luta contra o dualismo platônico, de
sua luta contra todo tipo de metafísica, podemos compreender melhor porque ele se
propõe a um estudo genealógico dos valores de nossa cultura para chegar a
compreender como foram elaboradas as avaliações que determinaram a existência de
um tipo humano que toma como valor sua condição submissa aos conceitos de culpa,
salvação, vida no além, os quais o fazem obediente aos seus padres e pastores, à
sociedade na qual vive como parte de um grande rebanho. Esse tipo humano carrega
consigo algo que, sem perceber, tritura a sua “consciência”, que o faz escravo de sua
“má consciência”, de seu próprio sentimento de culpa, que o transforma em um tipo
ressentido contra esta vida concreta e terrena em que, de fato, vive no seu cotidiano.
Tal tipo é sempre imbuído de culpa. Por isso tudo é que Nietzsche prefere tomar um
outro caminho... Para tornar-se autêntico, para escapar ao rebanho. Não opta nem em
ser parte do rebanho e nem em ser pastor ou padre. Ele pretende uma mudança radical
de valores, radical por ir à raiz dos mesmos para não somente invertê-los, mas para
suprimi-los em um processo que chamou de transvaloração de todos os valores.
O filósofo,crítico de toda filosofia de rebanho, faz menção ao surgimento de um
5
novo tipo humano, para além desse tipo que ele mesmo trata inúmeras vezes como
fraco. Um novo tipo, um tipo forte que intitulou de além-do-homem. Quem é esse
novo tipo? Um tipo capaz de ser “o sentido da Terra”, isto é, de não querer outro
sentido para esta vida aqui e agora que o seu próprio acaso. A vida não precisa de
alguém para colocar nela um sentido. Viver a vida sem recorrência ao além
metafísico já é suficiente respeito a ela que, com a natureza e como natureza, segue a
mudança eterna na qual tudo está continuamente em transformação. Para esse tipo
forte há um dizer sim à existência, mesmo que tivesse que viver cada momento de
uma vida de luta, em um eterno retorno do mesmo. O além-do-homem é um tipo
afirmativo. Vejamos que Nietzsche não deseja se juntar àqueles que têm um pé no
além metafísico... Desse modo, cria novas perspectivas, novos olhares para tudo
aquilo que sempre foi olhado com olhos socráticos, platônicos e, vale dizer, com
olhos cristãos.
Não esqueçamos, no entanto, de lembrar que, para ele, nem a razão e nem qualquer
tipo de metafísica explicam alguma coisa nesta vida. Nietzsche propõe uma teoria
das forças, ou seja, algo que não corresponde a qualquer coisa que já tenhamos visto.
Para o filósofo alemão, “o mundo não é outra coisa que vontade de poder”. As forças
existem sempre em relações e aquilo nelas que as impele a um querer-ser-mais-força
não tem correspondência em um sujeito. Não há sujeito em Nietzsche. As forças não
são, então, “algo”. São ações, são movimentos que só existem em relação a outros
movimentos, a outras forças, a outras ações que se exercem em movimentos de umas
sobre as outras. Tudo o que existe não passaria, então, de relações de forças, de
vontade de poder, sendo interpretações dessas forças que se efetivam de infinitos
modos. Nesse sentido, em um ser vivo pode haver uma ou mais “interpretações”,
“efetivações”, “centros de vontade de poder”, “forças em relações”... Não existe a
coisa em si da metafísica e nem a força em si, já que só faz sentido, em Nietzsche,
tratarmos de força sempre em relação a outra força, pois na força em relação é que
existe a vontade de potência.
Com toda essa construção do filósofo da teoria das forças, qualquer noção de causa e
efeito fica anulada, já que não há causadores das forças e nem são elas as causadoras
de alguma coisa, de algum efeito. Tudo acontece por intermédio de ações, pois se
forças são ações temos ações se relacionando com ações, e não mais a causa e o
efeito. Com Nietzsche, também, não podemos falar de “aparências” como “fachada”,
“roupagem”. Se, por exemplo, eu mesmo sou uma “interpretação de forças em
relações” (não há sujeito, então não cabe aqui a pergunta por quem interpreta), eu não
sou uma “aparência” que tem como essência relações de forças. Não é isso. O que
nomeio de “eu” já é um “tipo”, um “centro de vontade de poder” ou de “relações das
forças”. O “Eu”, o “Mauro”, neste caso, pensa que é um “sujeito que pensa” e pensa
que é um “indivíduo”, e convive com essas “ficções”. Em Nietzsche não há dualismo
de aparência (como falsidade) e realidade (como verdade). Só aparência como aquilo
que aparece como efetivação das forças, ou seja, elas mesmas em suas relações.
Desse modo, se procurarmos o que está além das aparências, encontraremos apenas
mais aparências. Nada há além de aparências, as quais são “interpretações” das
forças.
6
Munidos desse suporte explicativo, creio que fique melhor para avançarmos a
compreensão de que entender Nietzsche é um tornar-se autêntico, ou seja, de não
querer para si algo pronto, um “modelo”, um “arquétipo”. É na ficção de nossa
subjetividade que criamos a nós próprios como pessoas, ainda que possamos tomar
como referência o além-do-homem, simplesmente porque essa “referência” é a de que
cada um de nós deve construir seu próprio caminho, sua “casa própria” ou sua
“própria casa”. Conheceremos, com isso, um Nietzsche que diz que “mora em sua
própria casa”, como está escrito no frontispício de A gaia ciência. A partir disso,
prossigamos e vivamos intensamente esta leitura.
7
1.
Nietzsche contra o bem e o mal ou de como deixamos de
ser moralistas
O bem e o mal, há muitos longos anos, séculos e até milênios, dominam o cenário de
nossas vidas nas mais diferentes sociedades. A questão é que, de forma dualista
(portanto, metafísica), a moral nos coloca sempre em postura de contraposição. Por
isso, não concebe o bem sem o mal e vice-versa. Mas o bem e o mal não são coisas
em si, uma vez que determinadas avaliações morais se fazem presentes como raiz de
todo bem e de todo mal. Por exemplo: para quem acredita no valor do perdão,
perdoar é um bem, assim como odiar é um mal. Nesse sentido, como podemos
detectar se alguém é do bem ou do mal? Quando o que faz está mais próximo do bem,
no geral, do que do mal. Entretanto, um mal em grande dimensão pode anular um
sem número de ações benéficas. Desse modo, provocar a morte de alguém não se
justifica mediante qualquer bem, já que este está sempre ligado à vida. Isso tudo tem
a ver com uma avaliação: a vida como o bem por excelência. Nessa perspectiva, é
interessante notarmos que o que para um povo aparece como sendo o bem tem a ver
com o que foi avaliado como bem por esse mesmo povo ou por alguém a quem esse
povo, de algum modo, “segue”; talvez por alguém em quem tal povo acredite e assim
por diante.
O que as pessoas pensam sobre a moral? Pelo que podemos notar em nosso cotidiano,
nós mesmos costumamos dividir as pessoas e as coisas em sendo “do bem” ou “do
mal”, e isso tem a ver com o pensamento moral.
A moral surge como um aglomerado de normas para controlar o comportamento do
grupo humano em que está inserida por intermédio de valores que foram construídos
pelo que, muitas vezes, conhecemos como costumes e tradição (de geração a geração,
os valores são passados de pais a filhos sem maiores questionamentos e, quando tais
valores não correspondem mais aos valores impostos pela sociedade, aí então certos
“costumes” são colocados abaixo. Toda uma tradição é destruída em nome daquilo
que deve servir à sociedade, às instituições que controlam os tipos humanos da
sociedade). Portanto, a moral sempre esteve a serviço do grupo ou dos que, também
em grupo ou como ditadores, manipulam esse grupo maior que é a sociedade.
Nietzsche, que não está interessado nessa sociedade em que tipos humanos são
massacrados em nome de um “coletivismo”, em nome do rebanho, propõe uma
genealogia da moral, isto é, ir a fundo no surgimento de um determinado valor, um
valor moral, para avaliar esse valor ali mesmo, na sua raiz. O procedimento
genealógico nos leva, portanto, a emitir o seguinte: que tipo humano avaliou o que
hoje denominamos de “bem”? Mais ainda: quem dividiu a vida em bem e mal?
Exemplo disso: porque o perdão é visto como um bem, se muitas vezes ele contribui
para exacerbar o sentimento de culpa que destrói pessoas inocentes, ou seja, pessoas
que acreditam em certos valores propagados por essa ou aquela instituição, que nem
sempre desejam o bem-estar dessas pessoas?
8
Por isso, Nietzsche se interessa por tipos humanos que não se submetem a valores
morais de bem e mal, porque toda moral é relativa ao seu ambiente grupal, a quem
domina, a quem é dominado, isto é, toda moral não é nem um pouco isenta de
avaliações, de perspectivas e, claro, de interesses. Toda moral tem sido a história do
controle do pensamento, das ações dos homens por meio, muitas vezes, das escolas,
das igrejas e de tantas outras instituições que cumprem essa função.
É dentro da sociedade que podemos perceber os espaços de luta, de separação e de
composição de forças para um estabelecimento de poder, de grupos que se digladiam
para se manterem no poder e que, por uma visão míope, a qual não enxerga longe as
coisas, desprezam ou mesmo ignoram que tudo está em constante movimento nessa
mesma sociedade: vidas em relações são totalmente desconsideradas por tais grupos
que somente enxergam a sipróprios. Bem e mal, para o filósofo alemão, devem ser
colocados sob a mira do devir, pois é esse movimento incessante presente em tudo o
que existe, ou melhor, que faz todas as coisas “serem” desse ou daquele modo, o que
extingue qualquer tentativa de “engessamento” dessa ou daquela visão cega em que o
seu “olhar” é o único que existe e que deve se constituir como “olhar sempiterno”
(um olhar eternizado).
Para Nietzsche, um “imoralista” – porque contra o que até o momento se
convencionou denominar de moral, ou seja, tudo girando em torno de bem e mal –, os
homens até agora fizeram o seguinte: “[...] como se mostra afável, como se mostra
afetuoso o mundo, tão logo fazemos como todo mundo e nos ‘deixamos levar’ como
todo mundo!” (Nietzsche. Genealogia da moral: uma polêmica. II dissertação, § 24.
Trad. Paulo César de Souza, 2002, p. 84). Moral como rebanho... Rebanho como
natureza humana. Mas o mesmo Nietzsche pergunta: “[...] O que ofende mais fundo,
o que separa mais radicalmente do que deixar perceber o rigor e a elevação com que
se trata a si mesmo?” (Idem, ibidem). O que o filósofo propõe é que a moral está
muito distante de ser o que é: o que é que no homem o torna mais forte ou mais fraco
como natureza, vale afirmar o que lhe torna forte e com mais vida, com vida como
vontade de potência, ou aquilo que, nele, o faz “querer” uma maior intensidade de
vida, uma vida mais plena de força de viver, que não deseja outra vida no além e nem
uma vida amesquinhada, mas uma vida com mais vida?
9
2.
Nietzsche para além de qualquer dualismo ou de como
deixamos de ser materialistas e espiritualistas
“Vontade de potência” é a expressão usada por Nietzsche para mencionar uma teoria
da energética em que o mundo não é mais que uma pluralidade de forças, nem
matéria e nem abstração – “espírito”. As forças são unidades de ações que se
relacionam para formar centros de vontades de potência, onde existe uma hierarquia
e, aí, há forças que obedecem e forças que mandam. Tais centros podem ser
destruídos e outros podem aparecer. Importante salientar que os “centros” podem ser
destruídos, mas as forças não. Isso tudo acontece ao mesmo tempo e em vários
lugares, pois há vários centros desses no mundo se constituindo e se desconstituindo
enquanto centros de forças ou como centros de vontade de potência. As forças que
mandam agora depois podem obedecer, e o contrário também acontece com as
mesmas. Trata-se do devir das forças. Essa é a teoria das forças na filosofia de
Nietzsche. E quando uma força, uma ação-força (denominação minha) dá tudo de si,
ela se relaciona com outras forças enquanto força ativa. Quando uma força não dá
tudo de si, ela se relaciona com outras forças enquanto força reativa. Quando os
centros são dominados pelas ativas, então temos centros de vontades de potência
afirmativos; quando não, temos centros de vontades de potência negativos. Portanto,
vontade de potência é aquilo que na força se expande por um plus – por um “a mais
de força”. Essa é a vontade de potência afirmativa e a característica mesma da
vontade de potência, pois aquela que dizemos negativa tende à afirmação frente aos
“devires” em que as forças estão inseridas em seu “querer um a mais de força”, que
não é um querer de sujeito – não há sujeito na ação, não há gramática –, mas é um
querer próprio da força, a qual não é sujeito desse querer que lhe é natural e que nada
tem de “vontade” enquanto aquela vontade humana de um querer, por exemplo, do
que, comumente, chamamos de vontade. Não é essa vontade. É uma vontade que,
presente na força e com a força, enquanto aquela “unidade” de ação, impulsiona a
força por mais força naquilo que pode... A dar um tudo de si. Assim é que ações em
relações formam um complexo de movimentos que se expandem para mais ou para
menos força.
A vontade de potência é aquilo que quer mais poder na vontade. Esse “aquilo” não é
sujeito, não é coisa. Não sabemos o que é. Sabemos, apenas, que está presente em
tudo como pulsão fraca ou como pulsão forte, e que incide em tudo o que nos cerca
como movimentos de dominação e movimentos de resistência. Cada força é que, na
pluralidade de forças no mundo, tem quantidade finita nessa pluralidade. O que é
infinito é o número de combinações, de relações das forças, dessas “unidades” de
ações. E essas relações estão no próprio devir. O devir é, ele mesmo, o movimento
das forças por mais poder ou, se quisermos uniformizar a expressão, por mais
potência (daqui por diante, podemos utilizar a expressão “vontade de potência”
somente pela sigla VP para todas as vezes que a mencionarmos).
10
3.
Nietzsche e uma nova ética ou de como aprendemos
valores para além de bem e mal
Nesse sentido da VP, a moral que domina no rebanho é a moral fraca, reativa, uma
moral do ressentimento, da vingança, que não é forte o suficiente para se superar e se
abolir enquanto moral de decadência. Por que a moral é contranatureza, olhando
dessa perspectiva? Porque se trata de uma moral que não vê a vida como VP, que não
percebe o que é a natureza humana, essa ficção da nossa razão que se impõe
falsamente sobre a natureza. Existe apenas natureza e nada mais. Sobre o fundamento
da natureza é erguida a “natureza humana”, a “cultura”. O que um tipo humano fraco
não enxerga em sua míope visão é que quando ele busca pôr no outro a culpa pela sua
decadência, a ponto de tornar o outro um alvo de sua vingança, o que está em luta
pelo mundo todo são forças ativas e reativas e que, ele próprio, esse tipo fraco, não
passa de um centro de vontades de potência negativo, ou, no plural, até mesmo
centros negativos, com forças reativas no comando.
Que valores emergiram diante de uma moral ressentida, de uma moral de fracos, de
uma moral de tipos humanos vingativos? Valores que não são valores, “valores
contranaturais”. E como seria uma moral que cultiva “valores naturais”, ou seja, uma
cultura com base na moral como natureza? Uma cultura em prol de seus fundamentos
naturais, ou seja, valores que encaram a vida como VP. Para esse tipo de moral, é
necessário que se esteja para além de bem e mal. Para essa grande batalha, há a
necessidade de se preparar os filósofos do futuro, como afirma Nietzsche. Filósofos
criadores, superadores de si mesmos, que tenham a moral como complexo de valores
em que se apoiam para serem duros, rigorosos consigo mesmos, para elevarem-se
mediante a mediocridade da chamada “humanidade”. Esse tipo é o tipo “imoralista”,
um tipo que supera o homem, é o porvir do além-do-homem.
11
4.
Nietzsche e o além-do-homem ou de como podemos
superar a nós mesmos
Não é por acaso que Nietzsche, ao escrever o seu Assim falou Zaratustra: um livro
para todos e ninguém, anuncia o além-do-homem como o sentido da Terra. O homem
deve ser superado e, juntamente com ele, suas morais, suas sociedades que têm
valores decadentes de base metafísica. O além-do-homem está para além de bem e
mal não como alguém que não se submete a valor nenhum, mas como aquele que
afirma valores para uma vida sem refúgios no além. Ele não busca uma essência em
detrimento do seu próprio corpo. Não há essência porque toda a pluralidade do corpo
é importante para ele. O übermensch (esse além-do-homem) é, portanto, aquele que
destrói velhas tábuas de moral e cria novos valores. Ele tem que transmutar todos os
valores que até agora conceberam um tipo humano medíocre, por isso ele opera com
aquilo que Nietzsche chama de transvaloração de todos os valores, isto é, atravessar
todos os valores medíocres, “demasiado humanos” enquanto decadentes, para fazer
mais que invertê-los. Trata-se de suprimi-los, de erigir novas tábuas de valores.
Valores que não mais criem tipos humanos fracos, vingativos, que odeiam este
mundo, esta vida, que são ressentidos com relação aos mais fortes, mas tipos que
amem esta vida sem a necessidade de recorrerem a uma vida além-túmulo. Tais
novos valores devem criar tipos humanos voltados para o além-do-homem, novos
tipos humanos que têm um plus, um “a mais” de vida. Tipos novos que são tipos
superiores nãocomo raça, equívoco esse encontrado por várias vezes em relação aos
escritos de Nietzsche no tocante ao seu übermensch, que encontramos, não poucas
vezes, traduzido como “super-homem”. Tradução que não está errada, mas que
remete a erros de interpretação que põem em risco a própria vida. Quantos, por
exemplo, usaram isso para embasarem suas pseudoteorias, seu racismo, seu ódio aos
outros. Quantos nazi-fascistas ainda existem entre nós.... Esses, eles próprios se
sentem “superiores” porque se entendem com os olhos da mediocridade e que, entre
os medíocres, querem ser uma elite de mediocridade. São esses nazi-fascistas que
existem espalhados não só pela nossa sociedade, mas pelas sociedades de todos os
países e que não refletem, em hipótese alguma, o que o filósofo alemão entendia por
superior. São degenerados esses tipos. Nada entenderam de Nietzsche, que jamais
colocou-se, por exemplo, como antissemita. Aliás, diga-se de passagem que o
filósofo sempre desprezou esse tipo antissemita.
Desponta disso uma possível “moral do übermensch”, que é uma moral em que o
nosso corpo é um “campo de batalhas”, e, se há uma pequena razão, o que
comumente denominamos razão, esta tem o trabalho de firmar-se como saudável
sempre por um plus de vida mediante o “centro de forças corpo” no qual se insere. O
corpo é a grande razão. Toda a luta no corpo é para um “a mais” de vida, para mais
força. Disso, podemos compreender corpo como VP e a filosofia de Nietzsche como
altamente experimental, com valores que servem à vida, o valor dos valores, vida
enquanto referencial de todos os valores, porque vida enquanto VP. Nesse sentido é
12
que podemos superar a nós mesmos e deixar de ser metafísicos, racionalistas,
racistas, alienados deste mundo em nome de um mundo no além. Devemos construir
nossos novos valores assentados em nossas experiências vitais com relação ao corpo
como a nossa maior riqueza e o mundo como aquele que proporciona essa nossa
riqueza, a nossa própria vida terrena, a única que temos e livre de qualquer
especulação de ordem metafísica.
13
5.
Nietzsche: o eterno retorno do mesmo e o amor fati ou
de como podemos atingir a afirmação da vida terrena
Quem viveria quantas vezes fosse necessário toda a sua vida, e diante de tantos
sofrimentos e dissabores, mas também frente a todas as alegrias e prazeres, dizendo
um eterno sim à vida como ela é, sem escapes metafísicos? Tais escapes são as fugas
para um além ou fugas para dentro de conceitos que tendem a tomar o lugar da vida,
ao ponto até de trabalhar com vocábulos como essência no sentido de indicar o que
faz do ser um ser, quando, na realidade, a metafísica esquece que aquilo que chama
de essência não tem cabimento diante do devir; pois se é essência não muda. Ora, o
devir é a mudança constante e o mundo é eterno devir. Isso posto, o “ser” não é outra
coisa que a expressão de um “sendo” e, destarte, só existe o devir ou quantos devires
existirem como seres. A saber: que a metafísica é a perspectiva de quem não ama esta
vida terrena, isto é, perspectiva de quem a nega. Porém, esta vida terrena, a qual nem
precisaríamos afirmar como imanente, parece que é a única existente, uma vez que a
transcendência não existe, ou seja, esta tal metafísica somente existe, ao que parece,
para aqueles que não amam seu destino, que é seu próprio corpo, sua própria vida. E
destino como natureza, como este mundo plural enquanto mundo das forças, mundo
como VP.
Por isso... Amor fati... Amor ao destino. O fatum é a palavra latina utilizada por
Nietzsche para se referir ao destino. E como é esse destino? Ele é sempre o mesmo,
por isso retorna como mesmo e sem cessar. Eterno retorno do mesmo. Há
interpretações diferentes com relação ao eterno retorno do mesmo. Porém,
compreendamos aqui, para se tornar mais claro para nós, que o que retorna é o
diferente. Se esse instante no qual cada homem vive retorna sem cessar, se esse
instante é o da pluralidade, das forças em suas relações, instante da VP, então
estamos diante do retorno do mesmo. Eterno porque cada instante tem a marca do
devir, do movimento que não para. Nessa perspectiva, o que retorna é a diferença
eterna.
Desse modo, nosso destino é, desde sempre, VP. Ninguém escolhe o corpo como
destino. Assim, é necessário amá-lo, como é necessário amar a vida, amar o mundo.
Nascemos com o corpo e, por tudo que é o corpo e por todas as suas relações com a
natureza e o mundo, porque também ele é natureza, por tudo isso é que amar o nosso
corpo é um sinal de amor fati. Amar a vida como ela é, ainda que com os sofrimentos,
é amor fati. Não se trata de amar o sofrimento, mas a vida que não existe sem
sofrimento. Então, isso significa que afirmar a vida não é reclamar dela. Assim, o
próprio viver é amor fati. Lutar é amor fati. E, em se tratando de lutar, nosso próprio
corpo é um campo de batalhas. Quem é o homem senão um campo de batalhas!
Centro de VP, forças em relações de mando e obediência. É que somos tipos
humanos enquanto VP. Portanto, é necessário que vivamos intensamente esta vida
terrena.
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Viver cada instante, cada dia, cada ano com toda a intensidade de vida que um
homem pode fazê-lo, isso é sublimidade do amor fati, ser um afirmador da vida.
Para o Ano Novo, – Eu ainda vivo, eu ainda penso: ainda tenho de viver, pois
ainda tenho de pensar. Sum, ergo cogito: cogito, ergo sum [Eu sou, portanto
penso: eu penso, portanto sou]. Hoje, cada um se permite expressar o seu mais
caro desejo e pensamento: também eu, então, quero dizer o que desejo para mim
mesmo e que pensamento, este ano, me veio primeiramente ao coração – que
pensamento deverá ser para mim razão, garantia e doçura de toda a vida que me
resta! Quero cada vez mais aprender a ver como belo aquilo que é necessário nas
coisas: – assim me tornarei um daqueles que fazem belas as coisas. Amor fati
[amor ao destino]: seja este, doravante, o meu amor! Não quero fazer guerra ao
que é feio. Não quero acusar nem mesmo acusar os acusadores. Que a minha
única negação seja desviar o olhar! E, tudo somado e em suma: quero ser, algum
dia, apenas alguém que diz Sim! (Nietzsche. A gaia ciência. Livro IV, § 276.
Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 187-188)
Nesse sentido, para quem pensa que Nietzsche é pessimista, o que temos para
oferecer é um Nietzsche de bem com a vida. Nem otimismo, nem pessimismo.
Nietzsche é o filósofo que não tem base em dualismos. Apenas vive a vida com um
máximo de afirmação da mesma. O grande projeto do filósofo alemão é não negar a
vida e, por isso, toda e qualquer coisa que poderia obstacular esse projeto não é páreo
para aquele que é um afirmador. O objetivo de Nietzsche está para além de acusar.
Não deseja acusar nem mesmo os acusadores. “Desvia o olhar” não como alguém que
não consegue ver o feio, mas como alguém que deixa a vida de cada um fluir, porque
sabe que a vida, para ele, é VP. Não seria uma catástrofe da natureza que o faria
negar a vida. Por isso, o “ano novo” do filósofo é sempre uma afirmação do instante
do eterno retorno do mesmo. É um afirmar das diferenças, é um afirmar do querer
sempre a vida como devir, como dança das forças.
Tudo vai, tudo volta; a roda da vida gira sem cessar. Tudo morre; tudo volta a
florescer; correm eternamente as estações da vida. Tudo se destrói, tudo se
reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se desagrega,
tudo se saúda outra vez; o anel da vida conserva-se eternamente leal a si mesmo.
A todos os momentos a vida principia; ao redor de cada aqui, gira a bola acolá. O
centro está em toda a parte. O caminho da eternidade é tortuoso (Idem. Assim
falava Zaratustra. Trad. Eduardo Nunes Fonseca. III Parte. O convalescente.
1985, p. 167. – Para quem preferir outra tradução, ver: Assim falou Zaratustra:
um livro para todos e para ninguém. Trad. Mário da Silva. III Parte. O
convalescente. 2003, p. 260).
Para Nietzsche, o eterno retorno do mesmo e o amor fati estão intimamente ligados.
Tratar de um é tratar do outro. Só deseja para si um retornar eterno quem realmente
ama seus instantes.Dizer sim à vida é dizer sim à diversidade da mesma e, ao mesmo
tempo, afirmar que não há obstáculos para quem ama sua própria existência. Isso
significa compreender que o devir está presente nela, pois tudo gira eternamente.
Enquanto um centro de forças se constrói aqui, outro se desfaz acolá. Dessa maneira é
15
que funciona a teoria das forças, assim é que se faz presente e se faz marcante em
Nietzsche. Por esse olhar, a eternidade não é uma linha reta, talvez como seja para os
metafísicos, para os que acreditam na perfeição quando, entre as condições da vida,
poderia estar o erro, tanto que sempre está. Sem ele, a vida não existe. Tão simples,
mas tão difícil para quem acredita que tudo tende à perfeição, por ser essa a “lei da
natureza”, para quem crê em uma espécie de evolucionismo. Será evolucionismo?
Nesse caso, Nietzsche se coloca contra Darwin, pois o homem não evolui para se
adaptar. O que acontece é que o homem impõe resistência aos ambientes que mudam
e, aí, ele também muda e não sem oferecer muita resistência. A resistência não é
evolução e nem adaptação. Resistência é a luta da força contra a força. E quando
acontece aquilo que os darwinistas chamam de evolução, o que acontece, tratando
com Nietzsche, não é outra coisa que uma relação de forças em que novos centros de
VP são constituídos em detrimento de outros centros de VP, os quais são
desconstituídos. Se a evolução quer mostrar uma ideia de evolução, a resistência quer
mostrar uma ideia de relações de forças em um devir contínuo e que muda por conta
das resistências das forças. Vejamos que força tem a ver com resistência. E, para
haver resistência na mudança, há, provavelmente, mais erros do que acertos. Talvez,
quem sabe, muitas vezes para acertar o homem tem que errar. Afinal, não é isso que a
própria história nos mostra? Sendo assim afirmadores dessa postura de amor fati
diante do eterno retorno do mesmo é que podemos nos tornar um novo tipo do que
tem sido o tipo humano até agora: nos tornamos alguém à frente do nosso próprio
tempo, por fazermos experiências com nosso próprio pensamento, característica de
uma filosofia experimentalista como a de Nietzsche. Isso não significa, entretanto,
que imitaremos Nietzsche, até porque criadores não costumam se submeter à
qualidade de discípulo e nem à de mestre, a não ser quando se é discípulo e mestre de
suas próprias experiências, enquanto centro de forças em relações e em um corpo
como VP. O que Nietzsche nos ofereceu é que “cada um deve morar em sua própria
casa”, construir seus próprios caminhos diante do caminho caminho traçado pelo
destino que toma nomes como: este mundo, esta vida, nosso corpo e tudo quanto é
VP.
16
6.
Nietzsche e os dois tipos de sofredores ou de como
aprender com o sofrimento afirmador
O sofrimento, para muitos de nós, é o grande empecilho para um dizer sim à vida.
Para alguns filósofos, por exemplo, “viver é sofrer” – caso de Schopenhauer. Para
algumas crenças, sofrer é próprio da vida, por isso o homem deve buscar a cessação
do sofrimento, deve buscar, quem sabe, um nir (negação) vana (sopro), uma
“negação do sopro”, uma “negação da vida”. Para evitar o sofrimento, o homem deve
buscar o “caminho do meio”. Isso é o que declara abertamente o budismo. Mas, de
onde vem essa vontade de não querer sofrer ou de pensar que o sofrimento é tão
colado à vida que esta vira sinônimo de sofrimento?
Ainda que haja diferenças nesse tipo de perspectiva, de que “viver é sofrer”, o
sofrimento é algo sempre ruim: disso resulta todo o resto de avaliação sobre a vida
com sofrimento. Ou se a vida não é ruim, devemos, então, separar o sofrimento da
vida. Como? Para muitas tendências religiosas, isso é feito pelo caminho do
ascetismo. Nesse sentido, o ascetismo cristão é o mais eficiente. Mas, na análise de
Nietzsche, criar um sofrimento contra o sofrimento resulta em sofrimento dobrado,
eis o que fez o cristianismo. Para essa crença, a vida só deixa de ser sofrimento
quando remetida para o além e, aí sim, se transmuta a vida em vida sem sofrimentos:
vida no além. E quando ao asceta se impõe o celibato? Valeria, então, como uma
ascese da castração. Celibato imposto a todo um grupo é uma máxima de
contranatureza.
O celibato auxiliaria no seguinte: “quem não nasce não sofre”. Ora, para quem visa
extinguir totalmente o sofrimento da “humanidade”, o celibato termina por contribuir
para a não geração de sofredores e extingue essa espécie por antecipação. Mas, como
por “amor” se faz isso: castração como extinção? Enfim, quem entende que para não
sofrer é preciso sofrer pela via do ascetismo, e, de preferência, do ascetismo
celibatário, pratica essa “política da extinção”. Isso é o que pregam muitas religiões e
até algumas tendências filosóficas. Sendo assim, o fazem pela via institucional. Seria
demais afirmar que tal postura significaria, aos poucos, a extinção da própria espécie
humana? Ora, se nisso há apenas extinção, o que devemos pensar senão que é isso
mesmo? Para esse tipo asceta da negação da vida, a única expressão a lhe ser
atribuída é a de verdadeiro exterminador do futuro. Pensar a vida como sofrimento e
buscar o ascetismo celibatário como saída para isso é, sem dúvida, o ponto de vista de
um grande pessimismo com relação à vida. Isso é demonstração de fraqueza mediante
o erro, mediante o sofrimento, uma vez que ambos são condições da existência, da
vida enquanto VP. Será que andaram lendo demais a propositura schopenhaueriana,
muito colada a essa ideia celibatária? Fica aqui o registro de uma ironia.
E para não tratarmos somente do cristianismo como religião niilista, por não ver
sentido nesta vida terrena tal e qual ela é a cada instante nesta Terra, também
abordamos o budismo. Nele, toda a existência é sofrimento. Mas existe uma enorme
17
diferença com relação ao cristianismo. Ainda que o objetivo seja o nirvana, o
budismo prega o caminho do meio. Existe uma busca por equilíbrio. O próprio
Siddartha, antes de se tornar Buda, sofreu com a ascese e chegou à conclusão de que
os extremos são ruins ao homem. Portanto, o homem sábio deve buscar o seu
equilíbrio. Isso aliviará, em grande parte, o seu sofrimento na vida. Vejamos que
mesmo com o caminho do meio não se deixa de querer extinguir o sofrimento na
vida. Há dois grandes princípios budistas: o da vida como sofrimento e o da cessação
do sofrimento. Por isso é que, para Nietzsche, o budismo também é uma religião
niilista. O budismo prega a saída da impermanência da existência para que se possa
chegar à total cessação do sofrimento, mas, enquanto não sai da impermanência
existencial, do próprio devir, o homem deve procurar pelo caminho do meio.
Portanto, o nirvana não está descartado. Ele está colado ao budismo de uma tal forma
que não é possível querer separá-lo de outros propósitos para um mesmo fim: a
cessação do sofrimento. Perder isso seria para o budismo como perder a própria
identidade. Porém, apesar de o sofrimento ser um obstáculo a ser retirado do caminho
da existência o máximo possível, até que se chegue, finalmente, ao nirvana total,
Nietzsche ainda vê o budismo como uma religião higiênica: porque não mancha a
existência com o sentimento de culpa, como faz o cristianismo, e disso o filósofo
alemão trata, em especial, em Para a genealogia da moral: uma polêmica e no seu O
anticristo: maldição sobre o cristianismo. Mas, mesmo esse tipo humano, o tipo
budista, também sofre por escassez de força vital por precisar eliminar o sofrimento
com um desapego que, mais que desapego, é negação da própria vida, ainda que
Nietzsche reconheça no budismo uma superioridade com relação ao cristianismo, a
qual é explicada por não ser uma religião da culpa, que imprime nos seus seguidores
o sentimento de culpa.
Ainda haverá outros modos de se querer eliminar o sofrimento da vida, correndo com
isso o risco de eliminar a vida?
Então, que dizer da ciência médica com relação ao sofrimento humano? Em se
tratando de medicina, também ela tem uma missão: a de diminuir o sofrimento
humano e, se possível, quem sabe um dia,chegar até a acabar de vez com ele. Tantas
coisas já foram inventadas, até “pílulas da felicidade”. Desse ponto de vista, o médico
não tem nada a ver com o amor fati. Ele deseja mudar o fatum e, às vezes, termina
por gerar inúmeros problemas que variam desde o campo ético até outros que
lembram bem um doutor Frankenstein. Nada contra o avanço das pesquisas: ele é
necessário. A questão está no uso, nos valores que permeiam tal avanço. Quem sabe
por isso o próprio Nietzsche se põe como um médico da civilização, pois trata de
novos valores que tomem como referencial não uma vida isenta de estímulos que a
fazem forte, com mais potência. Vejamos bem: não se trata de não tratar as doenças
ou de preveni-las. Sejamos sensatos nesse ponto.
No fundo, e afinal, são dois os tipos de sofredores que Nietzsche nos apresenta. O
filósofo também nos oferece o seguinte, para irmos além do sofrimento propriamente
dito: não é bem o sofrimento que incomoda o tipo humano decadente, o que o
incomoda é a falta de sentido do sofrimento, ou seja, se existimos e sofremos com
esse existir, qual é o sentido disso tudo? Aí está a resposta. O problema é a falta de
18
sentido dos que sofrem de escassez de vida.
[...] existem dois tipos de sofredores, os que sofrem de abundância de vida, que
querem uma arte dionisíaca e também uma visão e compreensão trágica da vida –
e depois os que sofrem de empobrecimento de vida, que buscam silêncio,
quietude, mar liso, redenção de si mesmos mediante a arte e o conhecimento, ou a
embriaguez, o entorpecimento, a convulsão, a loucura (Nietzsche. A gaia ciência.
Livro V, § 370. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 272-273).
Na continuidade de seu pensamento, o filósofo alemão entende que, para o tipo
humano, a falta de sentido existencial também se enquadra, então, em um grande
sofrimento. Nesse viés, em seguida, Nietzsche também explica porque muitos se
põem a encontrar um sentido para o sofrimento, já que o tipo humano necessita
sempre de um sentido para todas as coisas.
O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em
si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um
sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era
a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe
ofereceu um sentido! (Idem. Genealogia da moral: uma polêmica. III dissertação,
§ 28. Trad. Paulo César de Souza. 2002, p. 149).
Todavia, resgatando os dois tipos de sofredores, temos o que sofre por abundância de
vida, isto é, os tipos humanos senhores de uma força vital e que sofrem porque toda a
doação que fazem em termos de “dar uma força” – não por humanitarismo, mas por
estarem excedendo em força vital –, essa doação ainda não lhes é suficiente porque
têm força em abundância, e isso é um sofrer de poder afirmativo que quer extrapolar,
cada vez mais, em poder vital. Não conseguindo isso, então sofrem por excesso de
vitalidade. Para esses, o sofrimento não é obstáculo, já que cresceram em força. Para
eles, o sofrimento é um estímulo para se tornarem mais fortes. Este é o primeiro tipo
de sofredor: um tipo rico em vida, em força vital. Já o segundo tipo é aquele que sofre
por pobreza de força vital. Os seres humanos deste tipo maldizem a vida porque não
são fortes o suficiente para ela. Esses, para fazermos uma metáfora, não podem “doar
sangue” como o primeiro tipo, pois eles sempre “necessitam de sangue” e se tornam
sanguessugas. Continuam malquerendo a vida porque são fracos perante a mesma.
Para eles, o sofrimento é somente obstáculo, impedimento ao viver “pleno”. Por essa
perspectiva, aprendemos com Nietzsche porque há dois tipos de sofredores e,
certamente, o ponto de referência é sempre a vida como VP. O primeiro tipo é um
tipo forte e que não precisa inflar para mostrar que existe. O segundo é um tipo fraco
e que vive a inflar. Recorramos à citação direta sobre o que Nietzsche pensa desses
“inflatores de ego”: “Minha antipatia, – Não gosto de pessoas que, para ter algum
efeito, necessitam estourar como bombas, e junto às quais sempre há o perigo de
perdermos subitamente a audição – e mesmo alguma coisa mais” (Idem. A gaia
ciência. Livro III, § 218. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 175).
Agora, sobre a questão de que o sofrimento não é, por exemplo, para o tipo cristão o
problema, mas a falta de sentido do sofrimento ou do problema do foco do
sofrimento. Bem, quanto a isso, Nietzsche é bem explícito. O tipo humano decadente
19
não consegue viver sem um “sentido”, ainda que ele mesmo injete esse sentido nas
coisas para depois retirá-lo delas como se não fosse ele o autor do feito. E isso não
muda a perspectiva com que enxerga a existência: sempre a vê como sofrimento.
Onde entra, nisso, o cristianismo? Ora, ele forneceu ao tipo humano carente de
sentido e “sofredor elevado ao quadrado” o maior de todos os sentidos: o ideal
ascético, ou seja, sofrer em nome de um ideal para além de si mesmo, por desejar
estar sempre direcionado por algo que criaram para ele, esse tipo “homem de
rebanho”. Esse criador cristão foi o sacerdote ascético. Apesar de tudo, ainda os que
têm em seus objetivos uma vida com sentido querem um sofrimento com sentido, já
que “viver é sofrer”, e eis a chave da questão e da resposta para quem sofre de
inanição de força vital. Portanto, os que descobriram esse nicho no tipo humano
fraco, que não suporta fazer a travessia do niilismo, travessia dessa falta de sentido, a
ponto de conviver com ela sem problema algum, como o faz o tipo além-do-homem
para não mais dizermos “tipo humano forte”, agarra-se, portanto, a um querer um
sentido, já que, ao menos, “preferem nada querer a perderem o querer”. Nesse caso,
são fracos, sem, entretanto, terem chegado ao “fim da linha”, pois ainda querem algo.
É preferível sofrer por um “sentido” para que o sofrimento lhes faça sentido.
Lembrando que, mesmo conhecendo essa fraqueza no tipo fraco, o verdadeiro tipo
forte não quererá, jamais, tirar a fé e esperança desses que necessitam de tal remédio
para viver o aqui e agora. Como nobre, aristocrata, o forte, nesse caso, é aquele que é
capaz do amor fati. Ele é egoísta o suficiente para não querer fazer mal aos outros:
toma para si seus próprios desafios. Esse é o além-do-homem. Quem tem saúde não
deve guerrear com quem não o tem. Por isso, se o forte for lutar com alguém, ele não
lutará com o rebanho, mas com quem toca o rebanho, com as instituições
responsáveis por isso, com os responsáveis por essas instituições que não deixam o
homem atravessar a corda que ele mesmo é: uma corda entre o animal e o além-do-
homem, como bem nos lembra Zaratustra: “O homem é uma corda distendida entre o
animal e o super-homem: uma corda sobre um abismo; travessia perigosa, temerário
caminhar, perigoso olhar para trás, perigoso tremer e parar” (Nietzsche. Assim falava
Zaratustra. I parte. Introdução, IV. Trad. Eduardo Nunes Fonseca. 1985, p. 11. – Ou,
para quem preferir: Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva).
20
7.
Nietzsche, um homem dionisíaco e trágico ou de como
nos tornamos dionisíacos
O que Nietzsche entende por dionisíaco? O devir, a música que provoca o corpo para
um “a mais” de vida, a arte fluida, o deus que sabe dançar, um construir e um destruir
constantes, já que tudo é VP, centros de VP (constituição e desconstituição,
construção e desconstrução, criação e destruição). O dionisíaco é o próprio
movimento da vida, um movimento que não para porque vida é VP.
Por que o dionisíaco está ligado ao trágico? Porque é forte e a tragédia está
intimamente ligada ao movimento da vida enquanto “vida e morte, morte e vida –
‘tudo se transforma’”. Porém, o trágico nietzschiano não é pessimista como é
pessimista a tragédia grega. A tragédia grega é uma espécie de catarse, de
sublimação. Nietzsche criou um outro tipo trágico, que não precisa sublimar porque
enfrenta as condições “adversas” da vida utilizando-as como estímulo para se tornar
mais forte. É avelha máxima nietzschiana de transformar obstáculos em estímulos.
Enquanto para muitos – até mesmo para os gregos que perdiam seus jovens hoplitas,
seus jovens soldados guerreiros, nas batalhas, fazendo suas famílias chorarem de dor
por esse fim trágico: a morte na guerra – a tragédia é sofrimento, para o filósofo
alemão a tragédia é um modo de elevar-se acima de qualquer obstáculo e nada temer,
nem para baixo, nem para cima, nem para os lados. A tragédia, também, comumente
tem a ver com a falta de sentido da existência, por isso o homem se projeta no palco
do teatro nas personagens que lhe são íntimas. Na realidade é como se esse homem
fosse mesmo a personagem e, por esse meio, acontecesse a catarse do ator e de quem
está na plateia. A tragédia grega é uma espécie de tratamento médico, visando a cura
da dor provocada pelas perdas de guerra, pela falta de sentido, pelo niilismo, esse
vazio que se instaura no tipo humano fraco porque ele não consegue fazer a travessia
desse niilismo e transformá-lo em niilismo ativo ao invés de permanecer no niilismo
passivo que o põe para baixo, em depressão, ou que o põe em revolta contra a vida, a
referência de todos os valores, e apela, muitas vezes, para o além-mundo, pois quer
uma metafísica que lhe alivie a dor da ausência do amado, da amada, do ente querido.
Nesse sentido, da metafísica como remédio, podemos até lembrar do “platonismo
como cristianismo para o povo”, com bem diz Nietzsche no prefácio de Para além de
bem e mal. Afinal, o cristianismo é uma forma popular de explicar o dualismo
platônico: este mundo e o outro mundo. O mundo sensível, mutável e imperfeito de
um lado e o mundo inteligível, imutável e perfeito do mundo das Ideias. Platão, um
cristão há quatro séculos antes de Cristo? Assim falou Nietzsche.
O tipo dionisíaco e trágico de Nietzsche, como é de se perceber, é aquele que aprende
com a vida sem a necessidade de esta ser justificada por um sentido. Mesmo repleta
de obstáculos, tais “barreiras” são encaradas pelo tipo dionisíaco e trágico de tal
modo a serem transformadas em estímulos de crescimento para o tipo humano que é
21
esse tipo. Assim, ele será capaz de ir para além da tragédia grega ou, simplesmente,
da tragédia como ainda é entendida até hoje, isto é, como algo ruim. O tipo humano
que se supera e que se suprime na sua decadência torna-se um criador e um
destruidor, porque quem cria também destrói. E sem pessimismo se transforma em
um afirmador da luta, da vida como luta, como VP afirmativa. Como? Para quem tem
novos olhares, novos valores, os quais devem emergir por seu próprio esforço, sua
própria luta, porque a vida é VP, não se submete ao “tipo rebanho”, que sempre
necessita de alguém fora si mesmo para elevar-se ou de uma “tábua de salvação” ou
de “expiação” para se sentir melhor. Por esse motivo, o Zaratustra anuncia o além-
do-homem, o qual suprime os velhos valores metafísicos de um tipo humano frágil.
Esta é a sua própria tarefa, porque ele não a delega a ninguém.
Um novo tipo assim é um tipo que sabe se tornar quem se é, subtítulo da
autobiografia de Nietzsche – Ecce homo: como alguém se torna o que é. Enquanto
um tipo dionisíaco, o tipo além-do-homem não se apega ao seu lado mais apolíneo.
Sabe conviver com o equilíbrio, a razão, a força plástica criadora apolínea do querer a
perfeição, a claridade, enfim... a beleza que faz suportar a dor, o sofrimento do
mundo. Mas, outrossim, convive muito bem com o lado subterrâneo do seu vir-a-ser,
da força musical-trágica dionisíaca, de um afirmar a vida em suas condições mais
adversas porque ama lutar, ama crescer, ama um querer um “a mais” de vida, desta
vida. Sem devaneios no além, em outro mundo, em busca de uma “perfeição e beleza
do ‘em si’”, em busca de uma lógica perfeita da existência e, a partir desse conjunto
todo, em busca de uma “vida no além”. O tipo forte, como antípoda do tipo fraco,
vive a vida deste e neste mundo com toda a contradição e, ao mesmo tempo, toda a
plenitude que a VP pode trazer, com a qualidade de guerreiro que a VP proporciona
às forças, sem medo de viver as suas experiências mais íntimas para poder criar a si
mesmo enquanto centro de experiências vitais nas relações das forças. Alguém que
nunca diz não ao “feio” da vida, porque é um tipo afirmador. Em suma, o dionisíaco é
um experimentalista no sentido mais vivificante da filosofia nietzschiana. Alguém
que não para no querer ser mais forte, cada vez mais forte. Alguém que se
experimenta para entender-se como forças em relações, como devir eterno, como
“alguém” que tem de suprimir-se enquanto aquele tipo humano que se apega apenas e
demasiadamente ao apolíneo e que, por isso, sucumbe mediante a desmesura,
mediante seus instintos, mediante a contradição e a tudo aquilo que faz forte um novo
tipo, o qual, dito de outra forma no Zaratustra, um tipo que superou o animal e o
homem que existem nele para tornar-se um tipo Ubermensch. Falamos, certamente,
do além-do-homem, de quem Zaratustra é o arauto por excelência.
Nietzsche, para explicar esse caráter apolíneo e dionisíaco, trata da arte em suas
perspectivas plásticas e de fluidez, de energia fluindo. Se a arte apolínea auxiliou os
gregos a lidarem com seu pessimismo, a sublimá-lo, a ver uma outra saída por meio
do belo, não o ensinou a conviver com Sileno, deus silvestre, sábio, para quem a
morte é o único caminho para o homem, a única certeza de que um dia não sofrerá
mais, afinal, ao nascer, o homem nasce para a morte e esse é o seu maior sofrimento,
pois existir significa ter que morrer um dia. O tipo superador de Nietzsche inverte a
sabedoria silena, pois é um tipo que não vê obstáculo nos dizeres de Sileno, outrossim
22
quer viver sempre com mais intensidade vital essa vida que tem como escopo a morte
natural.
Em outras palavras, saber que um dia morrerá, ora... Isso não impede um novo tipo,
um tipo mais forte, de viver com esse seu lado nada apolíneo e, nem assim, ser um
pessimista. Nem mesmo o contrário, um otimista que deseja tornar tudo como as “mil
maravilhas”. O tipo forte é alguém com os pés nos chão.
Esse tipo forte é, pois, aquele que admite a dor, a morte, mas que não se esconde atrás
de um otimismo, o qual também é fraco. Mais fraco que o pessimismo, porque
esconde sua fraqueza. O tipo além-do-homem é forte porque enfrenta sua fraqueza e a
supera em nome do viver com intensidade esta sua vida até o último momento de sua
existência, ainda que conviva com a “feiura” da morte; sabe viver como um trágico
que supera o dualismo “pessimismo-otimismo” para criar-se enquanto um trágico que
faz operar em si mesmo a grande saúde, aquela que, mesmo que estejamos doentes,
nos leva a conseguirmos ser saudáveis. O tipo saudável de Nietzsche é aquele para
quem a doença não é desculpa para um abandonar a vida, para um não querer viver
ao máximo de potência esta vida, com a experiência de um guerreiro que se vê como
um campo de batalhas e que não foge a nenhuma delas. O lema desse guerreiro é:
“Da escola de guerra da vida – o que não me mata fortalece-me” (Nietzsche.
Crepúsculo dos ídolos. Sentenças e farpas, § 8. Trad. Delfim Santos Filho. 1996, p.
18).
E sobre a experiência trágica: “Existem alturas da alma de onde mesmo a tragédia
deixa de ser trágica [...]. O que serve de alimento ou de bálsamo para o tipo superior
de homem deve ser quase veneno para um tipo bem diverso e menor” (Nietzsche.
Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. O espírito livre, § 30.
Trad. Paulo César Souza. 1998, p. 37). Portanto, toda experiência de vida que não nos
remete a um tipo mais elaborado para a vida enquanto VP é uma experiência de
pessimismo ou uma experiência de otimismo, isto é, de “felicidade idiota”. É
necessário suprimir o dualismo ali onde ele nasce, em nossas próprias experiências de
vida, em nossas fraquezas que nos fazem sucumbir ao invés de, mesmo “fracos”, nos
tornarem mais fortes, artistas de nossa grande saúde. O tipo trágico proposto e
vivenciado por Nietzsche é um tipo superior de espírito, entendendo “espírito” nãocomo questões de ordem espiritualista ou de ordem religiosa em seu sentido de alma
como um “para além desta vida no mundo”, para um tipo racional e decadente que
não toma seu corpo como a grande razão, que não sabe disciplinar-se para tornar-se
um tipo superior e que, por não querer esta vida de outro modo que não pela luta,
atingirá seu clímax enquanto um além-do-homem. Isso é um fazer arte, uma obra de
arte dionisíaca, uma filosofia dionisíaca para um tipo dionisíaco e trágico para além
de todo o pessimismo.
23
8.
Verdade e mentira em Nietzsche ou de como
“construímos” a verdade e a mentira enquanto valores
O que é a verdade? O que é a mentira? Para Nietzsche, tanto verdade como mentira
são perspectivas, interpretações, pontos de vista. Nesse sentido, cada um tem a sua
verdade, sendo que a verdade de outrem é que pode ser a mentira, porque não me é
conhecida como verdade, minha verdade. Mas, como fica a universalidade da
verdade? Simplesmente, não existe. Porque não há fatos, há, novamente, somente
interpretações, e Nietzsche é enfático nisso. E a verdade científica? Ela, a ciência,
também sofre com isso, pois acredita que possui verdades, que descobre verdades e
assim por diante. Tomada do ponto de vista da VP, a verdade também é relações de
forças e, por isso, e exatamente por isso, pode se transmutar em mentira, o seu
oposto, pois também a mentira é uma interpretação da VP. Quem interpreta? Não
existe essa pergunta na teoria das forças, porque não há um eu, um nós, um sujeito.
“Quem interpreta” é a VP, que é centro de forças com as forças, porque é também a
qualidade das forças, que faz as forças “quererem” mais força, mais poder, já que se
dá nas relações das mesmas e até porque não há força que não se relacione com
outras forças. Então, nesse caso, a “doutrina da VP” é a verdade? Também não,
porque não sabemos o que é verdade e o que é mentira. Apenas convivemos com
convenções humanas de verdade e mentira e enquanto valores criados desse modo:
verdade e mentira – criações humanas.
Mas, para muitos, a verdade é a própria realidade. Ora, a realidade é VP. Para esses
muitos, a aparência é a mentira. Ora, a aparência existe, portanto é real e, se assim
for, é verdade. Nietzsche não deixa espaços para fazermos dualismos. Nem verdade e
nem mentira. Nem realidade e nem aparência. Não há fatos, pois esses são
efetivações, interpretações da VP. Verdade, mentira, realidade, aparência nada mais
são do que configurações da VP em centros de forças, e são centros porque VP é a
própria relação entre as forças e é “aquilo que quer” na força, que “quer” um plus de
força, e que, por isso, faz a força se relacionar com outra força. Destarte, novamente é
necessário frisar que o mundo não é outra coisa que VP.
Verdade: buscada pela religião, pela filosofia e pela ciência. Eis a questão. Isso é o
que Nietzsche denomina de vontade de verdade, que não é outra coisa que vontade de
domínio, que é VP. Nesse viés, religião, filosofia e ciência estão em condições
parecidas, pois buscam a “verdade”. Não esqueçamos que Nietzsche é o “filósofo dos
valores” e que trabalha para a transvaloração de todos os valores. Nietzsche usa a
palavra verdade para mostrar o quanto de valor uma palavra pode carregar e como
todo esse valor pode ser “descarregado”.
O dualismo é o nosso problema, é o problema metafísico da religião, da filosofia e da
ciência. “A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores”
(Nietzsche. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Dos
preconceitos dos filósofos, § 2. Trad. Paulo César de Souza. 1998, p. 10). Daí
24
surgem: verdade e mentira, bem e mal, realidade e aparência, saúde e doença, mais
tantos outros dualismos que não conseguimos enumerar por serem muitos. Mas,
porque existiria apenas um lado da moeda, a verdade, se a mesma poderia não correr
mais enquanto moeda com esse “lado mais nobre”? A moeda não estaria virando um
“vil metal” e não mais, por isso, é levada em consideração de respeito, vale dizer: de
“moeda”? Por que, então, a verdade é aclamada em detrimento da mentira? O bem,
em detrimento do mal? A realidade, em detrimento da aparência? A saúde, em
detrimento da doença? Aqui aparece novamente um desafio, como sempre acontece
aos leitores de Nietzsche. Há a necessidade de descobrirmos o que ou “quem” fez tais
avaliações, as quais duraram e atravessaram milênios e vieram parar até nós como se
ninguém as tivesse avaliado, criado. Para saber isso, eis a premência de aplicar aquilo
que o filósofo alemão chama de procedimento genealógico.
Sem esse procedimento de perceber a avaliação na sua origem, como surgiu tal
avaliação, não é possível sabermos da sua constituição, da sua construção. Vejamos, e
sempre é bom frisarmos isso, que Nietzsche é o filósofo dos valores, então ele
procura pela avaliação dos valores. Nietzsche não pretende discutir com um físico,
por exemplo, certas querelas científicas. Nietzsche não pretende discutir com um
químico a fórmula da água. Mas algo ele afirma e que é terrível para os cientistas.
Trata-se de dizer que, para citar o exemplo da água e da sua fórmula, é necessário que
as moléculas de hidrogênio e oxigênio tenham se “efetivado” enquanto VP e se
tornaram uma configuração de forças, uma interpretação que dominou enquanto VP.
E a própria fórmula da água dominou como VP, já que foi estabelecida com um outro
centro de forças: o próprio cientista.
Mas, por exemplo, poderiam questionar os químicos, por que a fórmula é uma
interpretação e a água é outra? É interessante notarmos como por meio de uma
representação (fórmula) podemos agir diretamente sobre a “realidade” (água). É
porque tanto uma como a outra são VP, forças em relações e centros de VP que
vingaram, mas perante os quais não sabemos de sua durabilidade, porque, dizendo
novamente, “na natureza tudo se transforma”. E mais: força somente atua sobre força,
VP somente sobre VP. E o devir eterno está sempre presente. Se partirmos da teoria
das forças de Nietzsche, ficará cada vez mais difícil afirmar a “verdade” de algo,
ainda mais dizer que há uma “verdade absoluta”. Mas, fornecendo uma resposta ao
químico: trata-se de força atuando sobre força e isso é o que você chama de química.
Existem, porém, aqueles que, ressentidos, ironicamente, dirão de Nietzsche que,
sendo desse modo, somente a sua “teoria das forças” seria verdade. Vê-se que nada
teriam entendido sobre Nietzsche. Vê-se até que não sabem lidar com valores. Vê-se
que não compreenderam o que é o procedimento genealógico. Mesmo assim, ainda se
dizem cientistas e, outros, filósofos. Ora, o filósofo alemão não cansava de afirmar
que ele não era fechado para um sistema, nem para o dele, ou seja: ele não detém a
verdade e nem poderia. O máximo que Nietzsche detém são as suas verdades
enquanto experiências vividas. Não esqueçamos que sua filosofia é experimentalista.
“De todo o escrito só me apraz aquilo que uma pessoa escreveu com o seu sangue.
Escreva com sangue e aprenderá que o sangue é espírito” (Nietzsche. Assim falava
Zaratustra. I Parte. Ler e escrever. Trad. Eduardo Nunes Fonseca. 1985, p. 30. – Ou,
25
para quem preferir: Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém.
Trad. Mário da Silva. 2003, p. 66). Somente quem “dá o sangue” em suas vivências,
somente quem experimenta sua própria vida, experimenta a si mesmo é que pode
falar de “espírito”, pois este não é outro que a constituição de nossas próprias
experiências. Somos, também, centros de forças e, como tais, somos “efetivados”
pelas relações das mesmas nesse tipo humano que existe e que chamamos de “nós”.
Por isso, para o filósofo alemão, não há problemas “puramente espirituais”. O
“espírito” não está apartado do corpo e, sendo assim, não há dualismos entre “corpo e
espírito”. Dizendo em uma linguagem mais firme: há somente corpo, do contrário a
experiência não aconteceria, porque é com o corpo que vivemos neste mundo. Se o
corpo, também, não é matéria e se o espírito é corpo por somar com o corpo enquanto
relações de forças,o que temos é que não podemos lançar mão do materialismo e
nem do espiritualismo para entendermos Nietzsche. Vejamos que a teoria do filósofo
alemão não é atomista e que ele também não entra na discussão inócua entre
materialistas e espiritualistas e idealistas. Sua filosofia das forças as toma como uma
energética sem átomos, porque os átomos seriam, eles próprios, VP, e nada mais!
Logo, uma força não é um átomo. Uma força é um quantum de força, de energia que
“deseja dar tudo de si”, que “quer” expandir. Também um centro de VP é um
quantum de forças. Pena que Nietzsche não teve tempo de estudar profundamente
tudo o que desejou assim estudar: física, por exemplo. Por não concordar nem com os
materialistas e nem com os espiritualistas; nem com as religiões, nem com muitos
filósofos e nem com a ciência, ainda que reconheça alguns benefícios dessa última
quando do período da sua vida em que escreveu sob a influência do que viria a se
tornar um “nó górdio” para a própria ciência: o cientificismo, o positivismo,
Nietzsche buscou seu próprio caminho – aliás, o construiu. E se adotou, por um
período da vida, o positivismo, mais tarde se posicionou como totalmente contrário a
essa corrente cientificista.
Por que percorremos todo esse caminho? Para vermos quão instável é a questão da
verdade e da mentira, que são, para Nietzsche, questões para discutirmos no nível das
avaliações, das perspectivas avaliativas, do procedimento genealógico, porque são
questões de valores. Não esqueçamos que Nietzsche é um filósofo da cultura, isto é,
filósofo dos valores. Filósofo que quer a transvaloração de todos os valores. E é
desse modo que aprendemos da verdade e da mentira que as construímos enquanto
valores de avaliações que fazemos ou, melhor tratando, que esse centro de vontades
de potência, que somos nós próprios, realiza enquanto “verdade” e “mentira”. E se
verdade e mentira são perspectivas das forças, o mundo, que chamamos de realidade,
é apenas aparência no sentido de “aparecer” e, na sua constante mudança, um
conjunto de “apareceres”. Aí, então, reforçamos que Nietzsche não faz dualismo entre
realidade e aparência, porque não temos outra coisa que somente aquilo que se nos
aparece, efetivado pelas relações das forças. O mundo como VP. Logo, a ciência
trabalha com aparências para fazer seus pareceres. E que surpresa ela terá quando
descobrir o que há por detrás das “aparências”: mais aparências. Somente aparências.
Há aparências, pois somente é o efetivar das forças que se faz presente. Somos nós
próprios esse efetivar, somos, nós mesmos, essa aparência. E o que se esconde por
26
trás desse “nós mesmos”? Mais aparências. Com isso, afirmamos que não há nada
além de relações de forças, de quantum de forças que variam de um “poder dar mais
de si” de cada força e que variam de acordo com os centros de VP. Portanto, não há
espaço para “essências”. O que há por detrás da VP? Mais VP.
Verdade e realidade, mentira e aparência são, no fundo, oriundas de perspectivas das
forças. Não sabemos, de “fato”, o que é a verdade e o que é aparência. Mas, também,
podemos entrar na questão da palavra “verdade” enquanto palavra, e não enquanto
“verdade”. Portanto, em primeiro lugar, o que é uma palavra?
A figuração de um estímulo nervoso em sons. Mas concluir do estímulo nervoso
uma causa fora de nós já é resultado de uma aplicação falsa e ilegítima do
princípio da razão. Como poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na
gênese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza fosse decisivo nas
designações, como poderíamos no entanto dizer: a pedra é dura: como se para nós
esse “dura” fosse conhecido ainda de outro modo, e não somente como uma
estimulação inteiramente subjetiva! (Nietzsche. Sobre verdade e mentira no
sentido extramoral, § 1. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho. 1999, p. 55).
As coisas começam a se complicar. A palavra expressa o conceito e o conceito
expressa uma avaliação, um modo de ver, uma perspectiva. Porém, quando
“congelado”, o conceito, agora cristalizado na palavra, aponta para algo, alguma
coisa, alguém. Tudo isso entre aspas. Nós, homens do conhecimento, não
conhecemos nem a nós mesmos.
Quanto mais com relação à verdade, o que conhecemos?
O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias,
antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas
poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a
um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se
esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas (Idem. Ibidem. 1999, p. 57).
Nem verdade... Nem mentira! O lance foi dado.
27
9.
A morte de Deus – quem matou Deus? Ou de como
matamos Deus e não suportamos a nós próprios
Se há algo que incomoda a muitos em se tratando de Nietzsche, é quando ele anuncia
a morte de Deus. Dizem os incautos que o filósofo matou Deus, porém ele alerta que
“nós” matamos. Como assim, “nós”?
O homem louco – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã
acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente:
“Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles
que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Mas,
caçoaram do homem louco. Contudo, ele continuava: “Para onde foi Deus?”,
gritou ele, “Já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus
assassinos! [...] Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!”. Ele
continuou como extemporâneo, alguém fora do seu tempo: “Eu venho cedo
demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a
caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o
trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo
depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda
lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles o
cometeram!”. – Conta também que no mesmo dia o homem louco irrompeu
várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Requiem aeternam deo. Levado para
fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não
os mausoléus e túmulos de Deus?” (Nietzsche. A gaia ciência. Livro III, § 125.
Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 148).
Quantos já tentaram explicar, justificar e até mesmo tentar converter o filósofo
alemão em um cristão exemplar por apontar a causa da morte de Deus e como o
homem, o último homem, um tipo humano, executou isso. Quem é mesmo esse
“último homem”? É aquele que já não quer mais. É aquele para o qual um “nada de
vontade” estaria bom. Porém, esse homem se engana e traz sobre si a “vontade de
nada”, porque o homem prefere querer o nada a nada querer, como bem enfatiza
Nietzsche em sua Para a genealogia da moral, pois começa e termina esse livro com
essa menção. E quanto à “vontade de nada”, ela se abate sobre o último homem.
Então, ele é suprimido por um outro tipo humano. Como assim, ele não era o último?
Pensava que poderia acabar com a VP. Não pôde e, por isso, foi o último a agir
assim. Desapareceu. No lugar dele, aparece um tipo humano que assume, diante do
nada, o querer morrer: o niilismo que, agora sim, suprimirá, de vez, com todos os
tipos humanos. Ele quer morrer, esse tipo pós “último homem”. Ele quer morrer. Ele
já não aguenta mais.
E o “último homem”, que se enganava como se possível fosse nada querer, na
realidade projetou o homem que quer morrer. Quem é esse tipo que quer morrer? É o
homem da “meia-noite”, no qual culmina toda a sombra, toda a treva. E por que foi o
28
último homem quem matou Deus? Porque ele já não conseguia mais ter diante de si
algo que já lhe representava o nada, pois ele nada queria. Na realidade, ele não podia
com o “nada”. Suprimiu-se por não querer, e por não querer matou “Deus”. Matou o
seu “nada”. Para ele, Deus já era o mesmo que o nada. Porém,ao ceder lugar ao
“homem que queria morrer”, suscitou uma volta das forças reativas contra si mesmas.
Lutaram em nome de querer o nada a nada querer. E querendo o nada... suprimiram-
se. O niilista por excelência se acabou no seu nada e as forças nesse centro niilista
passaram a dar um plus de cada força, aquele “a mais”. Eis então a VP afirmativa e
somente ela... afirmativa. Isso é típico da leitura deleuziana e é bem interessante na
leitura sobre a morte de Deus em Nietzsche em associação com essas relações de
forças e tipos humanos efetivados por essas relações, interpretados, eles próprios, por
essas relações de forças, pela VP. Com isso, voltamos a enfatizar o que Nietzsche já
expressara em seu Para além de bem e mal: que o mundo não é outra coisa que VP.
Quando o rebanho voltar-se contra o próprio rebanho, após os pastores terem se
digladiado até morrerem, então tudo estará consumado enquanto ponto de mutação do
devir no mundo. E nas ondas do devir não haverá um final, uma espécie de
escatologia cristã. Não... sem finais! E sem finalidades! E sem “juízos finais”!
Porque após os tipos humanos, após o próprio tipo humano que quis morrer, para
além deles todos vem a expressão vital da VP enquanto novo tipo para além do tipo
humano ou, como se queira interpretar, e, talvez, possamos nos dar a esse “luxo” (?)
de interpretação: é a hora do além-do-homem. É a hora do sentido da Terra. É a hora
de Dionísio contra o Crucificado. No lugar de um homem-deus, um deus-além-do-
homem. O que seria isso? Uma nova concepção de sagrado? Se sagrada for essa vida
como ela é, sem fugas no além-mundo ao estilo platônico e de muitos tipos
metafísicos, se sagrada for essa vida por conta da sua “dança” (do seu devir), dos seus
tantos movimentos, então estamos, de agora em diante, defronte àquilo que torna os
que leem Nietzsche temerosos da “morte de Deus” – um “meio-dia” que a “sol a
pino” desapareceu, inclusive, conjuntamente com a sua sombra. Quem sabe por isso o
louco mencionado na obra A gaia ciência (§ 125) não conseguiu encontrar “Deus”
durante o dia e com a lanterna acesa. Quando o “meio-dia” se cruza com a “meia-
noite”, o niilismo chega à sua maior culminância, isto é, não há mais dualismos. Nem
dia e nem noite. Nem bem e nem mal. Nem Deus e nem o diabo. Nem o homem e
nem Deus. Apenas e simplesmente o além-do-homem, o sentido da Terra enquanto
VP.
Não é mais o homem que agradece à luz do Sol. Agora quem se exalta é aquele que
entende que o Sol tem a quem brilhar: a esse novo tipo. E ele se sente mais vívido,
mais cheio de potência, com um grande plus de vida enquanto VP. Porém, terminou
todo e qualquer antropocentrismo, todo e qualquer racionalismo. Esse tipo, o além-
do-homem, é a própria VP esplendorosa e que jamais pode ser captada em todas as
suas nuances, porque trata-se de forças em relações, trata-se do próprio devir, trata-se,
portanto, e talvez, daquele “deus que soubesse dançar”, no qual Nietzsche poderia
acreditar um dia. Mas, não ousemos mais utilizar tais blasfêmias.
E se as igrejas, todas as igrejas, se tornaram mausoléus de Deus, elas podem se tornar
novas casas para novos tipos: tipos além-do-homem, que não se prendem às suas
29
casas porque são tipos devires. Essas casas seriam casas para os vivos, e não mais
para os mortos. Casa para todos... para todos os que vivem!
Nesse sentido, quem matou Deus não foi Nietzsche, foi aquele último homem, do qual
nós, tipos decadentes racionais, fazemos parte. Mas, preferimos já o não-querer. Em
breve, estaremos suprimidos pelas nossas mais altas crenças e, quem sabe, daremos
lugar ao tipo humano que quer morrer. Ao menos, ele quer morrer, ou seja, ele
parece querer algo. Essa é a hora de aparecerem os arautos do além-do-homem, essa é
a hora de aparecerem não um, mas vários Zaratustras, e não somente inverterem o
sentido histórico de Zoroastro, o criador do dualismo, porque trata-se de um outro
Zoroastro: aquele que veio para acabar com todo tipo de oposição de valores e que,
portanto, não é mais criador de qualquer religião dualista como o Zoroastro histórico.
Esses Zaratustras chegarão para liquidar com todo tipo de metafísica, por isso serão
os arautos do além-do-homem. E, por isso também, é possível que compreendamos o
livro Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém, do próprio
Nietzsche, como ele foi denominado: o quinto evangelho. A “boa-nova” é, agora, a
de Zaratustra. Ele anuncia o além-do-homem. O louco, portanto, lá em meio aos
“últimos homens”, lá em meio ao mercado, não poderia ser já um disfarce de
Zaratustra, que, na realidade, é um “mestre dos disfarces”?
A morte de Deus: o maior de todos os acontecimentos da História. O fim da
metafísica para que o mundo volte a ser o que era antes de tipos humanos que
transformaram a natureza em contranatureza. A natureza torna-se si mesma. Não
como essência, mas como devir. Onde tudo se transforma, já diziam muitos antes de
nós.
30
10.
Nietzsche como Anticristo ou de como nos afastamos
desta vida terrena
Para começarmos a entender o Nietzsche que escreveu O Anticristo: maldição sobre
o cristianismo, temos que entender o problema maior do cristianismo para a
constituição humana enquanto VP. É bom lembrarmos que, para o filósofo alemão,
Platão já era um cristão mesmo antes de Cristo, o que, de per si, já nos auxilia. Toda a
questão em torno do cristianismo e de Cristo gira em torno de se apostar em um outro
mundo, em uma outra vida, em detrimento desta vida, deste mundo. Essa é a
metafísica que Nietzsche mais combate.
E também existem outras questões que serão pontuadas neste pequeno ensaio que
instiga a leitura das obras do filósofo e das obras sobre os seus livros, mas que, de
longe, não pretendem respondê-las, pois tal intenção exige tempo, ruminação,
amadurecimento de leitura e reflexão filosóficas.
O aparecimento do Cristo torna-se necessário mediante uma vingança que seus
seguidores precisavam ter contra este mundo. Precisavam expor seu ressentimento a
todo custo e esse custo foi a criação de um homem-deus que, eterno, bom e justo –
segundo os ditames de muitos dos seguidores cristãos –, poderia devolver à Terra
uma justiça perante seus inimigos: aqueles que praticavam o mal perseguindo
cristãos. E surgia com esse homem-deus o ideal maior do cristianismo: “a ‘vida’
triunfa sobre a ‘morte’”. A morte surge como má, como oposição à vida mesma. Não
se trata mais de um processo natural, mas cultural e, de tal monta, em que a vida
somente se torna boa após a morte. E a própria morte se tornou “boa morte”, porque
passagem deste mundo para um melhor! O que está em jogo, novamente, é o além
mundo. Agora, o “além-mundo” presente no mundo vence o mundo para que este
deixe de ser o que é e se transforme naquele mundo “perfeito”, um mundo em que a
natureza não mais dita as regras nas relações de forças, porém um mundo em que
uma certa razão domina tudo a ponto de impor um cosmos, uma ordem, a esse caos
chamado gaia, denominado Terra. Agora, um “monótono-teísmo” entra em ação se
“encarnando”.
Certamente que a perspectiva de Nietzsche sobre Jesus – ou, como ele mesmo
chamava: o tipo Jesus – não é das melhores, pois o coloca como um homem fraco,
bom em demasia, alguém que não deixou seus seguidores se prepararem para uma
interpretação mais aglutinadora em torno de tantas facções cristãs. O motivo maior
estava na morte criminosa de Jesus como um enigma. O próprio desaparecimento do
seu corpo é alvo de interpretações até os dias atuais entre seguidores e não seguidores
do cristianismo. Até mesmo o cinema já explorou esse ponto aberto dentro das
interpretações sobre o corpo de Jesus assassinado. Entretanto, os discípulos, que,
segundo Nietzsche, estariam chefiados por Paulo, fundaram a base do cristianismo:
Cristo ressuscitou. Diante da ordem estabelecida pelo judaísmo, sob o império
romano naquela época, surgiam seus mais contundentes rebeldes: os cristãos que
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acusavam os fariseus, os doutores da lei, como os mandantes do assassinato, ainda
que com o endosso dos romanos. Porém,o corpo desapareceu...
Vê-se que essa é uma leitura “apimentada”, pois desperta muitas outras leituras e
interpretações, assim como desentendimentos. Porém, não esqueçamos que isso não
foi inventado por nós, na época em que vivemos. Isso vem de milênios. E é certo que
muitos “rancores” foram deixados de lado em nome da “fé”. Para “aplacar” os
corações mais aflitos segue uma notória citação do próprio Nietzsche a respeito de
uma passagem de um dos quatro evangelhos canônicos, reconhecidos como oficiais:
“Com razão alguém disse: ‘onde estiver teu tesouro estará também teu coração’”
(Nietzsche. Genealogia da moral: uma polêmica. Prólogo, § 1. Trad. Paulo César de
Souza. 2002, p. 7). Esta é uma citação de Mateus 6,21. O próprio Nietzsche afirma
que o nosso coração está naquilo que buscamos. Na continuação do parágrafo ele diz
que está no nosso conhecimento. E toda luta pelo conhecimento não é pacífica,
porque não existe luta pacífica. Portanto, tudo depende de onde colocamos o nosso
“coração”. Saibamos entender, pois, as disputas interpretativas.
Certamente, aqui não pretendemos abrir uma discussão entre “fé e razão”, pois, para
isso, muitos especialistas já o têm feito desde há muito e nem temos mais espaço aqui
para isso, já que o objetivo teria que ser outro. Nosso objetivo aqui é esclarecer como,
realmente, a obra O anticristo toma o tom polêmico que traz na continuação de seu
título: “maldição sobre o cristianismo”. Porém, não devemos esquecer que Nietzsche
vê uma manipulação da própria figura de Jesus entre os seus e, é claro, de como o
próprio Jesus se via em meio a um povo que estava carente de tudo, principalmente
de sua liberdade. E, para quem pensa que Nietzsche pretende extinguir o cristianismo,
com base em um aforismo datado de outubro-novembro de 1888, temos o seguinte:
“Minha fórmula para dizer isto é a seguinte: O anticristo é a lógica necessária para a
evolução de um cristianismo autêntico; em mim, o cristianismo se supera a si
mesmo” (grifo meu, como todos os demais grifos).
Mas, então, por que Nietzsche se coloca como “anticristo”? Sua obra Ecce homo faz,
no nome, menção a “Eis o homem!”. É a sua autobiografia. Nietzsche faz, então, a
transvaloração do Cristo segundo o que até hoje se tem compreendido como tal. De
acordo com o filósofo alemão e ainda na obra O anticristo:
Volto atrás, e vou contar a autêntica história do Cristianismo. Já a palavra
“Cristianismo” é um equívoco – no fundo, existiu apenas um único cristão, e esse
morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz. O que desde esse instante se
chamou “Evangelho” era já o contrário do que Cristo vivera: uma “má nova”, um
dysangelium. [...] O Cristianismo autêntico, originário, será possível em todas as
épocas... Não uma fé, mas uma ação, um não fazer certas coisas, sobretudo um
diferente ser... [...] Reduzir o ser-cristão a uma cristianidade, a um ter por
verdadeiro, a uma simples fenomenalidade de consciência significa negar a
cristianidade. De fato, nunca houve cristão algum (Nietzsche. O anticristo:
anátema sobre o cristianismo, § 39. Trad. Artur Morão. 2002, p. 59).
Ainda que Nietzsche se ponha como Ecce homo e se coloque como Dionísio contra o
Crucificado, ele não é inocente a ponto de levantar toda essa polêmica. Seu grande
32
objetivo, novamente, é, a um só tempo, uma denúncia contra tipos cristãos e uma
incessante pugna contra a metafísica que faz do platonismo um cristianismo para o
povo, evocando, para isso, o além.
Nietzsche também retoma a briga com Paulo, o apóstolo: fundador de um
“cristianismo” vingativo.
À “Boa-nova” seguiu-se de imediato a pior de todas: a de Paulo. Em Paulo
personifica-se o tipo antagônico ao do “alegre mensageiro”, o gênio no ódio, na
visão do ódio, na implacável lógica do ódio. Quantas coisas este disangelista
sacrificou ao ódio! Acima de tudo, o Redentor: cravou-o na sua cruz. A vida, o
exemplo, a doutrina, a morte, o sentido e o direito de todo o Evangelho – já nada
existia, quando este falso moedeiro se apoderou por ódio de tudo o que só a ele
poderia ser útil. [...] O tipo Salvador, a doutrina, a prática, o sentido da morte, e
até o que vem a seguir à morte – nada ficou sequer semelhante à realidade. Paulo
deslocou simplesmente o centro da gravidade de toda a existência – para a
mentira de Jesus “ressuscitado” (Idem. Ibidem, § 42. 2002, p. 64).
São interessantes tais colocações, principalmente ao público que não está acostumado
a elas. Porque isso leva a uma reflexão mais profunda sobre o que podem as
interpretações enquanto VP.
Por isso tudo, ao que parece, sagrada é esta vida e é ela mesma que deve ser
respeitada no seu aqui e agora para que possa ser mais sagrada, isto é, mais vida, sem
a “objetarmos” para o além.
Não podíamos, porém, já que tratamos de interpretações, deixar passar incólume uma
das “feridas maiores” dos escritos de Nietzsche em relação aos cristãos. E vem o
desafio: quem nasce na fé cristã não está “condenado” a ser “rebanho”, desde que
queira buscar conhecimento, investigar, estudar, enfim, para poder tornar-se quem se
é. Aliás, e novamente tornar-se o que se é é a sequência do título de Ecce homo. A
cada um a sua maior tarefa: procurar a si mesmo, pois, se estiver perdido, assim o
fará. Porém, nunca deve esquecer que nessa “jornada-devir”, em contínua
transformação, está o seu “Édipo sem saída”, o seu destino, “o seu corpo, a sua
grande razão”, de acordo com Assim falou Zaratustra. Todas nossas investidas de
experiência com o pensamento nos mostram, apenas, que somos um “brinquedo” nas
“mãos dessa grande razão”, o nosso próprio corpo, esse centro de forças, de VP,
porque, como já disse diversas vezes, vida é VP.
33
11.
Nietzsche e as contribuições à educação ou de como
podemos ser filósofos educadores
Como um filósofo que põe à prova todos os valores que, até agora, têm sido mais
caros à humanidade pode trazer contribuições para uma educação do futuro?
Justamente porque ele é um filósofo da cultura e é um provocador, alguém que
desafia o que está estabelecido, desafia os valores que estão favorecendo a
mediocridade. Tanto que, em voga no tempo de Nietzsche, existia uma expressão nos
meios acadêmicos para atacar a mediocridade: “filisteus da cultura”. Quem eram
esses filisteus? Os que não estavam coerentemente empenhados para realmente
propor uma educação e valores que pudessem favorecer um tipo forte, isto é, um tipo
que traria contribuições para que a vida se tornasse o centro de todo referencial para
novos valores, e não se transformasse, ela própria, em uma mercadoria por
pseudofilósofos e pseudocientistas. Os filisteus da cultura criam valores baixos, tipos
decadentes que não se experimentam enquanto disciplinados para uma luta a favor de
uma maior qualidade de vida, o que vale dizer para uma vida mais vívida, em que
nenhum outro valor, inclusive o monetário, deve estar acima desse tipo vital que tem
qualidade de vida porque entende que a vida é feita para crescermos enquanto vida de
um corpo que não é objeto, mas corpo como o que possibilita a nós as mais diferentes
experiências vitais da nossa existência. Finalmente, a crítica de Nietzsche aos filisteus
da cultura é que eles servem a valores decadentes burgueses. Com isso, esses filisteus
sufocam aquele plus de vida que há em cada um, em cada centro de VP.
O que é educar para Nietzsche? É propiciar condições para que os que estão
aprendendo e ensinando se elevem em valores vitais e possam compreender quando a
disciplina de si mesmos é necessária. Inclusive, neste caso (utilizarei a expressão
professor e aluno por minha “conta e risco”), o professor é quem desafia para a
“luta”, para que o outro possa crescer. Mas, o professor é, também, aquele que sabe
se impor desafios quando percebe que o “centro” está se desfazendo para um não
aprender valores para uma qualidade de vida (quero frisar que, quando utilizo a
palavra “qualidade”, estou me fundamentando em um quantum de forças que
promove, portanto, o tipo forte, aquele que é duro consigo para poder crescer, mas,
também, aquele que, se tornandoforte, também sabe se colocar com leveza diante dos
ambientes mais hostis, não se deixando “contaminar” pelo ambiente... Nietzsche,
propriamente, utiliza a expressão dança para esse tipo de leveza, ou mesmo o verbo
dançar).
É interessante que Nietzsche tenha se preocupado com os estabelecimentos de ensino
na Alemanha: Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de ensino é um dos seus
escritos extemporâneos. Por que é interessante? Ele estava preocupado com a
influência do filisteísmo acadêmico que atravessava o muro das universidades para,
por exemplo, instalar-se nos colégios. Como Nietzsche podia afirmar isso? Quando
do seu tempo de professor, ele chegou a ministrar aulas para o que hoje chamamos de
34
graduação e para o que hoje denominamos de colégio. Portanto, é a fala de quem
vivenciou a situação, apesar de ele próprio ter chegado à conclusão de que não havia
sido “feito” para o ensino. Quem sabe isso aconteceu por ter se deparado com uma
“regularidade pedagógica” que sempre coloca o professor para “ter sempre o que
falar e apresentar aos seus alunos”. Não são todos os dias que um professor está
inspirado, preparado para a luta. Não é todo dia que um professor “tem o que falar”
a não ser tagarelices: falas que não são úteis para a vivência do cotidiano, para um
superar-se. Superação de um tipo que deseja ir além de si mesmo, que deseja não
somente crescer, mas que deseja uma autossuperação. Certamente, que, entendendo-
se com seus limites também, visto que para Nietzsche a “perfeição” não existe, ele
concebe que certas posturas pedagógicas não contribuem para o crescimento de um
tipo humano que tem de se haver consigo próprio. Para superar essa fraqueza
pedagógica, o que é necessário? Desde o professor, significa aprender a se conhecer.
Isso é o que deve ser levado para a relação professor-aluno e aluno-professor.
Professores e alunos devem compreender, primeiramente, que são laboratórios de si
próprios e que, por isso, precisam fazer experiências consigo mesmos para que
possam tomar a qualidade de vida como o principal em sua “formação”, isto é, uma
educação para a vida.
As escolas burguesas não estão preparadas para o “conselho” nietzschiano, uma vez
que tendem para a formação burguesa. Por isso, a introdução dos escritos de
Nietzsche nas escolas deve ser conduzida com muito “tato”, com muito cuidado. As
escolas burguesas estão acostumadas a produzir tipos mercadológicos. Uma escola
com caráter nietzschiano não quer, não deseja, em hipótese alguma, “preparar para o
mercado”. Deseja, outrossim, preparar para a vida, para uma vida com vontade de
mais vida. O aluno de uma escola nietzschiana, se é que podemos tratar assim, é um
aluno fora do rebanho. Um aluno que se afirma por si mesmo em termos de
autodisciplina, em termos de querer uma qualidade vital que vá para além de uma
suposta “qualidade total” tão propalada na sociedade não somente dos dias atuais.
Muitas vezes, as palavras apenas mudam de lugar, mas mantêm-se firmes enquanto
valores de filisteus. A educação, nesse sentido, pode até colocar alunos no mercado,
de modo que eles não sejam dominados por ele, não submetendo a vida a valores
mercadológicos. Para isso, faz-se necessário uma educação para o endurecimento de
si, o que, de modo algum, exclui a leveza. É necessário ser forte e leve.
O que é, então, uma educação “dura”? É a que exige disciplina para o corpo e para o
espírito (obrigo-me a escrever de forma dual para afirmar que não deve ser assim, isto
é, que uma educação não deve visar apenas ao que Nietzsche nomeava de “pequena
razão”, como é o caso da ação pedagógica da maioria das instituições educacionais. A
“grande escola” é aquela que educa para a “grande razão” e essa grande razão é o
próprio corpo). Uma boa escola não prepara o intelecto (pequena razão) em
detrimento do corpo, como também não enxerga o corpo apenas como instrumento de
“educação física” na mais baixa compreensão do que seja, de verdade, uma educação
física. Uma boa escola (e aqui friso a questão de que cada escola tem de encontrar o
seu perfil, ou seja, quero dizer que não trato, que não forneço, em nome de Nietzsche,
“receitas para escolas”) é aquela em que a maestria está na formação do “guerreiro”,
35
daquele tipo que é preparado para as batalhas consigo mesmo e com os que lhe
impedem de atingir uma vida sã, uma vida com vida, uma vida com qualidade de
vida. O professor e o aluno de uma escola assim desejam para si desafios que os
façam fortes para a vida, no sentido de saberem transformar seus obstáculos em
estímulos para sua autossuperação. Por exemplo, se tiverem uma doença que lhes
impeça de fazer algo, não ficarão abatidos e tristes por isso. Tal situação não lhes será
obstáculo, mas um não deixar de querer aquele “a mais de vida” por causa da doença.
Por isso, seguirão em frente, sem desistir, lutando para se autossuperarem, e não se
entregando. Esse é um tipo forte “formado” em escola nietzschiana.
Quando um professor ou um educador, para atingirmos aqui outras experiências com
a educação, estará preparado para ensinar e aprender com seus alunos ou educandos?
Quando ele tiver experimentado a si mesmo, quando adquirir vivência e não falar
palavras “ocas”. Um bom professor, nesse sentido, é aquele que não somente se
coloca em alerta contra si mesmo como ensina esse tipo de atitude aos seus alunos.
Devemos, primeiro, prestar atenção em nós mesmos e em como nos relacionamos
com os outros, com o mundo. Disso é que se aprende a autodisciplina e a não ser
parte do rebanho, ou, como dizem alguns, parte da “massa”, ou, ainda, como o
próprio Nietzsche emprega: “populacho”. Um tipo assim tem que saber “mandar” e
“obedecer”. Mandar em si mesmo é o mais difícil.
“Livros. – De que vale um livro que não nos transporte além dos livros?” (Nietzsche.
A gaia ciência. Livro III, § 248. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 181). Para que
tantos livros que não nos levam a lugar algum? Para que manter uma biblioteca que
não é utilizada? Para que livros que juntam poeira sobre si? Para que livros que nos
fechem dentro deles? Os livros são ferramentas, os livros são meios, os livros são
“pontes”, os livros devem servir para nos levar para muito além deles. O que é bom
em um livro é que ele nos leve a superá-lo. Para isso, novamente, é preciso luta. É
necessário lutar com os livros para ir além deles. Para deles arrancarmos a coerência
com a vida enquanto aquela que nos desafia a cada dia para nos tornarmos o que
somos. Vida: aquela que nos desafia não porque tem “pena” de nós, mas para que nos
tornemos os melhores. Desafia não para que sobrevivamos. A vida nos desafia para
que consigamos sempre aquele “a mais” que cabe a quem sabe tirar dela tudo aquilo
que ela oferece enquanto força vital.
Como deve ser um tipo professor e um tipo aluno diante da escola como aquela que
possibilita a arte dionisíaca e a arte apolínea? Devem ser tipos que trabalham com o
que há de mais profundo em seus movimentos corporais, sabendo ler seus instintos
vitais, e, também, com o que há de mais profundo em saber ordenar plasticamente
sua produção artística, que pode ser, inclusive, a própria “tarefa” a que se propõe um
professor, um aluno, que é a de pôr em luta o fluir dionisíaco e a plasticidade apolínea
para poder criar o necessário para o seu crescimento, o de cada tipo, o tipo professor e
o tipo aluno. Um professor que tenha a coerência de sua simetria vital e que, por isso
mesmo, saiba “dançar”, que flua em seus saberes, em seus sentimentos, e que crie
obras de arte as mais diversas, como livros, por exemplo, e tantas outras, é o que se
exige de um professor em termos nietzschianos. Um aluno que crie e faça fluir
também esse seu lado, juntamente com o lado musical dionisíaco, também está dentro
36
dessa exigência com respeito ao aluno. Uma tela (variação de arte plástica, apolínea)
“conversando” com uma “melodia” (variação de arte dionisíaca). Uma boa educação
é aquela em que “Apolo” conversa com “Dionísio”, é aquela que tem no dionisíaco
sua “formação geral”, vistoque a vida é movimento, porém sem esquecer que, nesse
movimento, a plasticidade se faz presente, contudo não para “engessar” a vida, e sim
para colocá-la frente ao desafio de ser bem vivenciada em cada instante. Nesse viés,
cada instante vital é um instante em que está presente a vida em plena força, visto que
aí se encontra um plus de movimento.
É com disciplina para ser um criador, e também saber destruir tábuas de valores que
não correspondem à vida enquanto mais vida, que professor e aluno podem vir a ser
o que devem ser: autênticos em sua formação, tipos elevados de homens. A
autenticidade na educação é exigente, de acordo com Nietzsche. Nesse olhar,
topamos novamente com a questão da vivência, da experiência, do “escrever com
sangue”, como diz o próprio Nietzsche. Tornar-se quem se é (subtítulo de Ecce
homo)... eis o projeto maior que uma educação deve proporcionar ao seu educando.
Não ter “pena” de si mesmo, ser duro consigo mesmo para não virar mercadoria, para
não ser rebanho, para não ser “massa”. Está aqui o máximo que uma boa educação,
que uma boa escola deve desenvolver em seus alunos. E também em seus
professores. Tal como um livro deve nos levar para além dele, assim uma escola deve
nos levar para além dela. Escola não é fim em si mesma. Escola é meio, é “ponte”, é
passagem.
A concepção que o filósofo alemão tem de educação, ao que me parece, continua
sendo extemporânea, fora do seu tempo e fora do nosso tempo. Que escola, hoje,
prepara seu aluno para ser autêntico, duro consigo, um tipo elevado, que não se deixa
manipular como rebanho ou massa? Um tipo que busca a autodisciplina porque não
deseja a dependência do outro? Alguém que deseja “morar em sua própria casa”
(autenticidade)?
Em termos gerais, qual a grande preocupação de Nietzsche com a educação? Ele
mostra isso em sua crítica contundente ao filisteísmo da cultura, ao mercenarismo
acadêmico. Nietzsche, enquanto filósofo da cultura, não poupa palavras para
enfrentar todos os valores que, segundo ele, provocam a decadência de todo um povo.
Que não cria tipos fortes, mas sim tipos covardes, aproveitadores e que idolatram a
espécie mais indigna de utilitarismo, em que tudo é transformado em res (coisa), para
aquilo que é conhecido em outros estudos, ainda que não nietzschianos, como
reificação (a transformação do homem em coisa). Não é necessário ser um estudioso
de Nietzsche para se perceber como acontece um processo de reificação das pessoas,
que passam de tipos humanos a “tipos coisas”.
Nietzsche como educador é uma referência a uma filosofia do martelo, uma educação
filosófica que quebra os ídolos da sociedade a “marteladas”. Ainda que se corra o
risco de fazer alguns reverberarem, o “martelo” sempre estará em guarda porque
“ervas daninhas” crescem todos os dias e em qualquer lugar. São “pragas culturais”,
pragas que se espalham rapidamente pela mídia em todas as suas instâncias. Se já no
século de Nietzsche era assim, quanto mais hoje, nesse mundaréu de “informações”
37
que nos bombardeiam em nosso dia a dia. Somente uma filosofia do martelo tem
força para anunciar o crepúsculo dos ídolos.
Nietzsche, o filósofo que experimenta em si o apolíneo e o dionisíaco, nos coloca
diante desse desafio enfrentado por ele próprio, porque é um desafio para cada um de
nós, e, portanto, ninguém pode vivê-lo em nosso lugar. Como filosofia dionisíaca, a
filosofia de Nietzsche é uma filosofia para o movimento, já que este é a própria vida.
Isso tudo, em termos de educação, põe o educar como educação para o movimento,
para o vir-a-ser, para o devir. Mas, quantas não são as resistências que se impõem no
caminho de um fazer-se, de um criar-se, desfazer-se, criar-se novamente e para
sempre? Muitas, certamente.
Vejamos que o filósofo é, então, aquele que prima por uma educação profunda em
termos de sua filosofia experimentalista, tendo como pano de fundo a vida como VP.
O fazer experiências consigo mesmo é o que guarda o tom dessa música vital. Nessa
perspectiva, desaparece aquela ideia de uma filosofia dionisíaca “tresloucada”. Trata-
se, pelo contrário, de muita disciplina, de um forte “disciplinamento do espírito”.
Somente quem tenta impor ordem ao caos sabe o valor do conhecimento para a vida.
Vejamos, pois, que não há questão de adaptação na educação nietzschiana, mas um
resistir. Por exemplo: impor ordem ao caos é resistir ao caos, é pôr-se naquele
momento como mais forte. Resistir ao ambiente é tornar-se mais forte que ele. Sendo
assim, estar inserido no mercado é estar acima dele, é superá-lo para fazer da vida
mais vida. Desse modo, a educação, no viés de Nietzsche, não deve ter nada de
darwinista, porque o darwinismo é um erro enquanto ensina a “adaptação”. Aqui,
reforço, existe um Nietzsche contra Darwin. Resistir é um exercício de poder. Até
quem manda resiste. Aliás, para mandar é preciso ser muito resistente em termos de
ter força. Avançar é resistir. Recuar é resistir. Quanto mais resistência, mais VP. É
preciso entender, por experiência, o que significa resistir. É por isso que resistência é
luta. O que deve ser, nesse contexto, a educação? Deve ser uma educação para a
resistência.
Em suma: é necessária uma nova ordem de valores. “O conhecimento opera como
instrumento de poder” (Nietzsche. Fragmentos finais, fragmento 14 [122]. Trad.
Flávio R. Kothe. 2002, p. 79). E a educação trabalha com o conhecer... Por isso, “[...]
não se deve exigir de si nada que não se possa” (Idem. Ibidem, fragmento 11 [1], p.
75).
A cada um... Que se conheça para tornar-se quem se é, porque fora disso toda
educação é vazia e não respeita as pessoas. E para se conhecer é preciso, muitas
vezes, ter a coragem de se perder para poder se encontrar. Eis, também, em que
consiste uma boa prática educacional.
Quem está preparado para um vir-a-ser professor? Quem está preparado para um vir-
a-ser aluno? Que escola está preparada para tudo isso? São as perguntas que, no
mínimo, nos devemos fazer em termos de uma educação nietzschiana, enquanto uma
educação que não está interessada no imediatismo do “mercado”. Uma concepção
nietzschiana de educação jamais poderia ser uma concepção de mercado, porque,
além do mais, está longe de qualquer tipo de darwinismo social, o que se faz explícito
38
em nossa sociedade.
Querem testar suas forças, educadores e educandos? “[...] até que ponto se suporta
viver num mundo sem sentido: porque a gente mesmo organiza um pequeno pedaço
dele” (Nietzsche. Fragmentos finais, fragmento 9 [60]. Trad. Flávio R. Kothe. 2002,
p. 71). Que organizações vingarão? Esse é o grande desafio para uma educação ao
estilo de Nietzsche.
39
12.
Nietzsche e a política da grande saúde ou de como nos
tornamos saudáveis
O que é a política da grande saúde? É a perspectiva de Nietzsche para tudo aquilo que
promove a fortificação da vida. E aquilo que mais nos leva para isso é a luta. Porém,
somos ansiosos demais para perceber isso. “Toda luta – e todo acontecer é uma luta –
precisa de duração” (Nietzsche. Fragmentos finais, fragmento 1 [92]. Trad. Flávio R.
Kothe. 2002, p. 63). O que o filósofo coloca em pauta é a questão do “tempo”, do
“amadurecimento”. Há aqueles que lutam e nada entendem sobre a duração e, por
isso, a luta os frustra. Há outros que lutam e logo desistem, porque não aprenderam a
superar a impaciência. Enfim, entender a duração da luta é entender-se consigo
mesmo, é compreender porque a duração é tão necessária. E cada luta, cada combate
tem o seu tempo. Tempo que descobrimos na própria luta, no próprio devir. E a luta
existe porque viver é lutar sempre. Portanto, quem espera da vida “mar liso”, esse é
um forte candidato à decepção. A vida não está para nós, mas nós para ela. Além
disso, somos nós que “enfiamos” sentido na existência, e não ela em nós, já que a
vida para fluir não necessita, ela própria, de sentido. Nessa perspectiva é que,
também, ela está para nós: como um “sem sentido”. Então, além da briga do natural
que há em nós, pois a natureza é luta, também colocamos em luta contranatureza
(cultura) e natureza.Querer dar sentido à vida é uma dessas lutas. Outro exemplo: a
moral é uma contranatureza e se põe, muitíssimas vezes, contra o que é natural. Por
isso, valorar, criar avaliações, valores, é sempre se colocar em pugna consigo mesmo
e com os outros, além de se postar em luta com a natureza, com o que de mais natural
há em nós: a nossa própria vida.
Nesse contexto, pretender uma transvaloração de todos os valores é “comprar”
muitas brigas. “Mudar de sentir para mudar de pensar”. Para isso, é preciso estar
“amparado” na política da grande saúde, para tornar-se mais forte, tornar-se quem se
é, autêntico na luta pela própria vida e na luta que é a vida. O nome da luta é,
também, “dança”. Nesse sentido, é interessante citar as artes marciais,
principalmente o Wu-Chu (Kun – fu), que, com base em movimentos de animais,
desenvolve movimentos que parecem verdadeiras danças. É o próprio retrato da vida.
Vida como arte, luta como arte.
Essa política da grande saúde se faz enquanto saber se movimentar, enquanto
flexibilidade do corpo, enquanto entendimento do fluir da vida. Grande saúde
enquanto uma saúde que está para além da dicotomia saúde-doença, pois, no caso
dessa política nietzschiana, mesmo o doente pode ser saudável, porque depende de
como ele luta com a sua doença, sem ressentimentos por estar, em variadas ocasiões,
mais doente ainda. O “doente saudável” resiste e mesmo na doença consegue ser
saudável, consegue lutar. Em termos de uma grande política da saúde, somente quem
não luta é que está doente. Doente porque não quer um “a mais” de vida. Quem
deseja esse plus de vida, mesmo doente, não deixa de viver com a máxima
40
intensidade que o momento lhe proporciona. Isso significa um dar tudo de si para se
autossuperar, saindo da dicotomia saúde-doença para se tornar plenamente saudável.
Talvez os filósofos do futuro não façam mais dicotomias, dualismos que levam o tipo
humano a ser uma “cabeça pensante” e um “corpo”. Na política da grande saúde há
somente o corpo, essa grande razão. Nessa política, não se apela para o além. Não há
um estado metafísico e, justamente por isso, esses filósofos são chamados de filósofos
do futuro. Eles são filósofos que superam, na filosofia, toda a metafísica e, com isso,
praticam a transvaloração de todos os valores metafísicos da filosofia.
Seria, hoje, possível que os filósofos se entendessem desse modo? Uns poucos,
talvez. A filosofia, em geral e por esse olhar, não compartilha da política de
Nietzsche para a grande saúde. Não é difícil entender porque o filósofo alemão
demorou tanto a ser considerado filósofo pelos, então, filósofos. Além do mais, que
filósofo era esse que subvertia a própria escrita, a própria gramática, que inventava
novos usos para as mesmas palavras e que, enfim, “bagunçava” a tão tradicional
filosofia em sua própria casa? Um filósofo que ousou bater de frente com a filosofia
de Platão, a ponto de considerar o filósofo grego como um cristão antes mesmo de o
cristianismo existir (cristianismo como platonismo para o povo).
E, em se tratando de platonismo para o povo, como o cristianismo faz mal para a
saúde? Ora, por abordar o cristianismo, Nietzsche chegou à seguinte consideração: de
que faz mal para a saúde quando a “má consciência” ou o “sentimento de culpa”
impõe ao cristão um martírio no sentido de enfiá-lo dentro de uma “máquina de moer
carne” e, juntamente, mói, também, o “espírito”. O sentimento de culpa mata. Ele é
essa “máquina de moer”. Não é por acaso que inventaram um remédio chamado
“perdão”. O perdão faz papel de aliviador para as dores do sentimento de quem se
sente culpado. “Culpa, minha máxima culpa”. É assim que se diz e é assim que se
acredita. Por isso, é assim que se sofre por fraqueza de vida. O sentimento de culpa
enfraquece qualquer tipo humano e lhe põe por terra, ao menos até que chegue o
“perdão”. Mas há aqueles que não se perdoam. Esses têm uma luta contra a natureza,
uma luta em vão, uma grande luta em vão, pois é uma luta para um “a menos de
vida”, para o enfraquecimento da vida. Não promove a força, promove a fraqueza. O
sentimento de culpa é um triturador de homens e os torna inaptos para a luta (vale
dizer: para a vida). É preciso resgatar o corpo e deixar a alma para lá, onde ela habita.
A alma que fique no lugar que lhe cabe dentro das crenças religiosas. Mas nós não
vivemos sem o corpo. “A crença no corpo é mais fundamental do que a crença na
alma [...]” (Nietzsche. Fragmentos finais, aforismo 2 [102]. Trad. Flávio R. Kothe.
2002, p. 64).
De que vale a natureza sem o corpo? De que vale a vida sem o corpo? Somente
começaram a falar de “alma” a partir da existência do corpo e, ainda assim,
inverteram as coisas. O corpo todo pensa, pois o corpo todo interpreta. Toda
interpretação é uma luta do corpo. Toda interpretação é um efetivar-se das forças em
relação, centros de VP denominados de corpos. Isso é ir além do que comumente se
entende por interpretação. Desse modo, é possível notarmos quão pobre pode ser o
que entendemos por “interpretação” a partir de um foco “puramente” racional. Nesse
41
ponto, é muito interessante a maneira como Nietzsche nos chama a atenção com o seu
perspectivismo. Assim é que podemos aprender a olhar de várias perspectivas, e não
ficar presos às “perspectivas de rãs”, que enxergam tudo de baixo, nunca do alto,
porque poucos são os que conseguem voar, porque aprenderam a correr, mas agora
querem voar, voar bem alto, para acima daqueles que rastejam pela terra. Um voar
que não tem nada a ver com os “voos da metafísica”. Um voar que torna leve o corpo
do lutador, do vivente, porque aprendeu a viver, aprendeu a dançar, aprendeu a bailar
de corpo inteiro. Mais do que poético, isso deve soar de modo bélico, já que se trata
não de uma, mas de várias batalhas. E não esqueçamos: nosso corpo é, ele também,
esse campo de batalhas.
Assim, a grande saúde é uma política do se tornar cada vez mais forte e é assim que
se justifica um dar tudo de si. Quem aprende que a vida detém múltiplas perspectivas
– para bem dizer, infinitos pontos de vista – aprende que viver é enfrentar desafios,
“sair da própria casca”, desbravar novos horizontes, e, com tudo isso, fazer inúmeras
experiências consigo mesmo. Mais uma vez se faz presente a filosofia
experimentalista de Nietzsche. Experimentar-se é fundamental para quem deseja ser
saudável dentro dessa política nietzschiana. Fazer experiências com o próprio
pensamento, sentir de diversos modos o próprio corpo, essa grande razão que faz ruir
todo logocentrismo da pequena razão. Sentir que o que comumente chamamos de
razão não passa daquela pontinha de um enorme iceberg, com o qual chocamos
constantemente e que tem o poder de destruir essa razão-consciência, que é tão
pequena perto da grande razão, perto da luta entre os afetos de cada tipo humano.
Enquanto o tipo humano não sentir em si a briga entre os próprios instintos e que
aquilo que ele denomina de consciência pode, simplesmente, não passar de “efeito”
dessa briga, ficará sempre confuso com seu antropocentrismo, com o seu
logocentrismo. Não há centro porque o centro está em todas as partes, porque tudo é
VP. Não há parte, porque o todo está na parte dentro de uma concepção de rede de
forças, na qual o que se estabelece são centros de VP, relações entre as forças. Nessa
concepção de rede está presente o todo como rede e, também, a parte como rede. O
que há é a própria rede que faz conexões mil, tão diversas, tão múltiplas, que chegam
a ser infinitas, porque infinitas são as interpretações, as perspectivas que se efetivam
incessantemente em um mundo onde tudo flui, tudo é construído e desconstruído
permanentemente.
O que seria, então, e em uma inversão, a “política da grande doença”? Seria a política
da metafísica, que deposita seu sentido em um lugar fora deste mundo, ou aquela que
acredita em “essências”. Ora, tudo muda, tudo flui. A não ser que a essência seja a
própria mudança, o que de per si já é estranho no que tange a algo intitulado como
“essência”, pois, metafisicamente tratando, a essênciaé o que não muda.
Aristotelicamente falando, essência é diferente de acidente. Ainda mais se a essência
for a pequena razão. Aí, incorremos naquilo que já tratamos sobre esse racionalismo
apoiado em um logocentrismo; ou, melhor ainda: um ratiocentrismo. A grande
doença é uma política que pretende o “ser” eterno. Quem aposta, aristotelicamente,
por exemplo, em um ato puro, ou, como Platão, no mundo das ideias? Esse apostador
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do tipo metafísico busca a “perfeição”, e não vê que entre as condições da vida está o
erro, a mudança, a fluidez. Somente toda uma filosofia dionisíaca vai na contramão
dessa política da grande doença, que, daninha, nega a vida, esta vida terrena, tira-lhe
a força, é uma política que nos faz não darmos tudo de nós, que nos enfraquece e, no
máximo, alimenta-nos esperanças em relação a algo perfeito – ou de pelo menos de
nos agarrarmos a uma essência. Todo dualismo dos clássicos, dos filósofos clássicos,
é uma doentia teimosia de querer fazer vingar uma essência em tudo, inclusive em
nós, em cada um de nós. Será que não bastaria a nós esta vida dionisíaca em sua
dinâmica como devir?
Por isso é que o pensamento não dionisíaco pode gerar equívocos quanto aos que o
buscam como “verdade”, como “conhecimento”.
Sim, pode haver no nosso interior em luta muito heroísmo oculto, mas certamente
nada de divino, nada repousando eternamente em si, como queria Spinoza. O
pensar consciente, em particular o do filósofo, é a espécie menos vigorosa de
pensamento e, por isso, também aquela relativamente mais suave e tranquila: daí
que justamente o filósofo pode se enganar mais facilmente sobre a natureza do
conhecer (Nietzsche. A gaia ciência. Livro IV, § 333. Trad. Paulo César de
Souza. 2001, p. 221).
O filósofo alemão é enfático ao afirmar nesse mesmo aforismo que o que chega para
nós como “consciência” já é um certo “acerto de contas” entre instintos e que, por
isso, temos aquela sensação de uma espécie de “tranquilidade do espírito” ao
refletirmos. Parece que acreditamos até mesmo na apreensão do dionisíaco, quando,
em realidade, é ele que nos possui. O que é o pensamento, nesse caso?
Dionisiacamente, cada impulso esteve em guerra contra outros impulsos dentro de
nós e o resultado disso nós mal conhecemos. Chamamos isso de pensamento. É
preciso mudarmos nosso sentir para, somente desse modo, mudarmos nossa forma de
pensar. Nesse mesmo aforismo de A gaia ciência é que Nietzsche coloca o corpo de
cada filósofo como campo de batalhas. Por que não sentem isso? Por que não
enxergam isso, esses filósofos que sustentam a política da grande doença? Porque a
doença é o sentido do seu viver, do seu existir como filósofo metafísico. Para eles, o
pensamento metafísico é o mais vigoroso dos pensamentos. Quando Nietzsche afirma
que o pensamento do filósofo é a forma menos vigorosa, e que é dessa falta de vigor
que emana a relativa “tranquilidade” do filósofo, já não seria algo para colocar esses
metafísicos diante de suas posturas contranaturais? Não entenderiam que também seu
pensamento frágil é apenas um aparecer, uma aparência de tranquilidade que oculta a
fraqueza, a qual não aparece como essa estranha “suavidade”? Mas chegará a hora do
filósofo, sua prova de fogo. “A hora má – Todo filósofo provavelmente já teve uma
hora má, em que pensou: que importância tenho, se não creem sequer em meus
argumentos ruins? – Então passou por ele algum passarinho maldoso e gorjeou: ‘Que
importa você? Que importa você?’” (Nietzsche. A gaia ciência. Livro IV, § 332.
Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 220).
Quantos filósofos conseguiram deslocar o “centro de gravidade” de tudo o que
acontece de si mesmos, ou seja, que o “centro” não são eles... filósofos!
43
A política da grande doença é perigosa ao preparar o tipo humano para aquilo que ele
não é constituído – por exemplo, para ser uma “pura razão”. Nem “pura”, nem
“razão”. A política da grande doença prega o “em si”, e eis o grande problema do
filósofo, do que deseja conhecimento. O “em si” prega o desinteresse, pois a coisa
tem valor e deve ter valor por ela mesma. Nesse sentido é que Kant justifica o belo
em si. Para isso, há duas estocadas de Nietzsche:
“Belo”, disse Kant, “é o que agrada sem interesse”. Sem interesse! Comparemos
esta definição com uma outra, de um verdadeiro “espectador” e artista – Stendhal,
que em um momento chama o belo de une promesse de bonheur [uma promessa
de felicidade]. Nisso é rejeitado e eliminado precisamente aquilo que Kant
enfatiza na condição estética: le désintéressement. Quem tem razão, Kant ou
Stendhal? (Nietzsche. Genealogia da moral: uma polêmica. III dissertação, § 6.
Trad. Paulo César de Souza. 2002, p. 94).
É o interesse que faz o “em si”, portanto não há nada fora do interesse. Nem as mais
beatas senhoras e senhoritas chegam aos seus santos por desinteresse. Nietzsche,
inclusive, vai mais longe no caso delas e, apesar de isso ser forte, quem sabe, para
quem for ler este texto, é preciso salientar que aqui não prezamos a censura: “O
sentimento religioso do êxtase e a excitação sexual (dois sentimentos profundos,
coordenados entre si de modo quase espantoso. O que agrada a todas as mulheres
piedosas, velhas e jovens? Resposta: um santo com belas pernas, ainda jovem, ainda
idiota...)” (Nietzsche. Fragmentos finais, aforismo 14 [117]. Trad. Flávio R. Kothe.
2002, p. 188). Certamente que o filósofo alemão, a respeito do êxtase, seja ele de que
espécie for, sabia se tratar sempre de um estado máximo de vigor das forças. E a
consciência, “tranquila e fraca”, pode até nos trair com a história do “belo em si”,
mas nossos instintos mais profundos e fecundos não livram a “consciência” do
interesse, que reina com toda a força entre os que escondem o seu interesse, seu real
interesse, o qual seria mal interpretado em uma sociedade moralista, em uma
sociedade que preza “a boa família”, em uma sociedade que tenta ocultar sua
hipocrisia, em uma sociedade que faz “valer” para nós os nobres valores humanos, só
que esquecem de uma coisa: somos todos demasiado humanos. Ali onde se prega a
política da grande doença, a política da grande saúde faz seus ataques con- tínuos.
Campo de batalhas, literalmente campo de batalhas, é isso que somos. O doente não
quer lutar, quer “mar liso”, quer “paz”, “sossego”. Porém, seu corpo grita por saúde,
quer sair de seu estado letárgico. Deseja florescer e, mesmo doente, quer ser saudável,
não esmorecer, lutar até o fim, resistir e, quem sabe, poder até vencer...
Em nome da fé, a política da grande doença também se alastra, porque os crentes têm
necessidade de crer. “O quanto de fé alguém necessita para crescer, o quanto de
‘firme’, que não quer ver sacudido, pois nele se segura – eis uma medida de sua força
(ou, falando mais claramente, de sua fraqueza)” (Nietzsche. A gaia ciência. Livro V,
§ 347. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 240). Assim agem aqueles que, de outra
forma, não sobreviveriam. Precisam de um suporte que lhes “segure”, onde possam
se apoiar. Fazem de seus “artigos de fé” seus suportes. Como afirma o filósofo:
Pois assim é o homem: um artigo de fé poderia lhe ser refutado mil vezes – desde
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que tivesse necessidade dele, sempre voltaria a tê-lo por “verdadeiro”, conforme a
célebre “prova de força” de que fala a Bíblia (nota do tradutor: alusão a uma
passagem da primeira epístola de São Paulo aos Coríntios 2,4: “[...] a minha
palavra e a minha pregação não consistiram em discursos persuasivos de
sabedoria, mas na demonstração do Espírito e da força divina” – conforme a
versão do Pontifício Instituto Bíblico de Roma. São Paulo: Edições Paulinas, s/d)
(Idem. Ibidem.).
Quando Nietzsche fala “o homem”, refere-se a todo tipo humano que não vem a ser o
além-do-homem. Esse tipo humano fraco não vinga como um tipo novo por não
conseguir largar suas velhas tábuas de valores, sem as quais a vida na Terra se lhes
tornaria insuportável. Esses são os tipos decadentes, metafísicos. Porém, é bastante
interessante como o filósofo alemão faz a separação entre quem manipula e quem émanipulado: “[...] em suma, o instinto de fraqueza que, é verdade, não cria religiões,
metafísicas, convicções de todo o tipo – mas as conserva” (Idem, Ibidem). E, nesse
meio, ele coloca também os positivistas, os quais também precisam ter onde se
agarrar, uma exigência de apoio “científico”. Melhor dizermos cientificista do que
científico. Enfim, para Nietzsche todos esses tipos são tipos que conservam, por
instinto de fraqueza, a tradição metafísica em sua necessidade de se apoiarem em algo
que lhes seja “firme”, tão firme quanto suas crenças, seus artigos de fé. Todavia,
acontece que quem cria, ao menos, deve desconfiar de que foi ele que colocou tais
condições nesses “artigos”, o que demanda uma força criativa de quem criou para que
outros acreditem em seu “fruto”. Mas, às vezes, acontece de o próprio criador crer em
sua própria criação como se não fosse dele, como uma dádiva do além ou coisa
parecida. O caso é que isso alimenta o tipo fraco em sua necessidade.
Contudo, o cristianismo ainda é um dos maiores alvos de Nietzsche e quanto a isso
ele deixa bem claro que prejuízos a fé cristã trouxera durante muitos anos, séculos.
O que se deve ao cristianismo – o terrível prejuízo, pois tudo o que tem valor, o
que é relevante em primeiro grau, não tem sido levado a sério... – agora é que
começamos a levar a sério saúde, roupa, alimentação, moradia... O desperdício de
toda grande paixão, de todo entusiasmo, de toda profundidade e de todo
refinamento do espírito (Nietzsche. Fragmentos finais, aforismo 22 [12]. Trad.
Flávio R. Kothe. 2002, p. 62).
De acordo com o filósofo, cabe ao cristianismo a responsabilidade pela doença
enquanto fraqueza do tipo humano cristão. Um tipo que por muitos e longos anos
judiou do próprio corpo com um ascetismo próprio de quem despreza o corpo em
nome de uma suposta libertação. Libertação da “alma”. Novamente lembramos Platão
com a sua famosa frase de que o corpo é o cárcere da alma. Mas não era o filósofo
grego um atleta que viveu até por volta dos oitenta e um anos de idade? Sim, contudo,
isso não o isenta de tratar bem o próprio corpo com interesse na alma, principalmente
do tipo eterna e que veio do seu mundo das ideias. Enquanto se pode, deve-se cuidar
bem do corpo que abriga essa alma, até que esta se liberte dele. Nesse sentido, ao
meu ver, Platão está à frente do cristianismo ascético, tratando melhor seu corpo, o
que não lhe tira a responsabilidade de interpretar o corpo como “cárcere”. E não são
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poucos os que não fazem como Platão, porque não cuidam do corpo nem enquanto
essa “alma eterna” está fazendo moradia nele. E isso é, mais uma vez, pernicioso para
o corpo, para a grande razão, para a vida enquanto VP. Esse platonismo vulgar,
intitulado cristianismo, não entendeu nem mesmo Platão.
Diante disso tudo, Nietzsche desafia com sua proposta de uma política da grande
saúde: o seu sim incondicional à vida. Faz do pessimismo um novo “pessimismo” em
que a luta torna forte, sem pretensões metafísicas.
Meu novo caminho para o “sim”. Minha nova concepção do pessimismo como
busca voluntária dos lados terríveis e problemáticos da existência: com isso,
fenômenos semelhantes do passado tornaram-se nítidos para mim. “Quanta
‘verdade’ suporta, sustenta e ousa um espírito? Questão do seu vigor. Tal
pessimismo poderia desembocar na forma de uma afirmação dionisíaca do
mundo como ele é: até o desejo de seu absoluto retorno e sua eternidade: com o
que surgiria um novo ideal de filosofia e de sensibilidade (Nietzsche. Fragmentos
finais, aforismo 10 [3]. Trad. Flávio R. Kothe. 2002, p. 56).
É desse modo que Nietzsche faz a “travessia do niilismo” e se afirma nesta vida, para
além da qual não há nenhuma outra. O filósofo alemão é alguém que não vê as
dificuldades como impedimento para se afirmar a vida.
Tudo o que a vida nos apresenta faz parte da luta que é ela própria, sendo que é na
luta que crescemos em direção à própria afirmação da vida como ela é, tão terrena
quanto nós. Nós, a vida e tudo o que existe não somos outra coisa que VP, relações de
forças. Por isso, a política da grande saúde está intimamente ligada à teoria das
forças. São indissociáveis porque a grande saúde tem a ver com um quantum de
forças que nos propicia mais vitalidade, mais gana de viver. Não é um viver apesar
das dificuldades, dos problemas, mas viver de modo que dificuldades e problemas
não sejam o suficiente para que, algum dia, digamos um grande não à vida. Eis a
grande política da afirmação, eis a grande política de Nietzsche que resulta na grande
saúde, ainda que estejamos doentes. O próprio filósofo passou por essa situação
durante sua vida, em que estava com a saúde sempre debilitada, mas nunca desistiu
de viver, nunca quis ser um negador da vida. Eis o porquê do seu “novo caminho para
o sim”.
Eis a política da grande saúde, o que implica novas perspectivas, novas
interpretações do mundo, boas relações com o corpo e um dizer sim à vida como ela
é, em todos os seus “altos e baixos”. Não é, com certeza, tarefa fácil. Ser saudável,
nesse viés, além de ser uma batalha contínua, exige de todos nós uma postura de
novos valores. Aqui entra a dimensão nietzschiana da transvaloração de todos os
valores. A condição, inclusive, de um amor fati. Um, digamos assim, saber cuidar...
É nessa escola, na escola da vida, que se forma o “médico da civilização”. Assim é
que aconteceu com Nietzsche e com tantos outros que pensam dessa maneira. A vida
mesma é o ponto de referência para toda valoração, para a criação de todos os valores
que nos são necessários enquanto valores vitais, valores do corpo, valores do
“espírito”, do “espírito que escreve com sangue”, pois trata-se da filosofia
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experimentalista do filósofo que estudamos aqui. “Portanto, limitemo-nos a depurar
nossas opiniões e valores e a criar novas tábuas de valores” (Nietzsche. A gaia
ciência. Livro IV, § 336. Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 224).
Uma das mais expressivas maneiras pelas quais Nietzsche se expressa dentro de sua
própria política da grande saúde é a seguinte:
In media vita [No meio da vida] – Não, a vida não me desiludiu! A cada ano que
passa eu a sinto mais verdadeira, mais desejável e misteriosa – desde aquele dia
em que veio a mim o grande liberador, o pensamento de que a vida poderia ser
uma experiência de quem busca conhecer – e não um dever, uma fatalidade, uma
trapaça! – E o conhecimento mesmo: para outros pode ser outra coisa, um leito de
repouso, por exemplo, ou a via para esse leito, ou uma distração, ou um ócio –
para mim ele é um mundo de perigos e vitórias, no qual também os sentimentos
heroicos têm seus locais de dança e de jogos. A vida como meio de conhecimento
– com este princípio no coração pode-se não apenas viver valentemente, mas até
viver e rir alegremente! E quem saberá rir e viver bem, se não entender
primeiramente da guerra e da vitória? (Nietzsche. A gaia ciência. Livro IV, § 324.
Trad. Paulo César de Souza. 2001, p. 215).
Isso já é o necessário, o suficiente, para notarmos que Nietzsche não é alguém que
simplesmente escreve, que faz uma narrativa, que pratica a “letra morta”. Mais uma
vez, podemos entender porque ele somente valoriza aquilo que é “escrito com
sangue”, que é vivenciado, experimentado. Ele próprio é um experimentador de si, da
sua vida, de suas batalhas, de suas vitórias, porque cada sim à vida é uma vitória da
afirmação sobre a negação de tudo o que despreza este mundo, esta vida. Na luta, nos
tornamos amigos e inimigos de nós mesmos. Por isso, para a política da grande
saúde, é necessário que sejamos guerreiros e que, antes disso e para isso, aprendamos
a lutar. E cada um de nós já carrega o necessário para cada batalha: a si mesmo.
Autossuperação é a palavra-chave para tais batalhas que não cessam de existir no
eterno movimento da vida.
Mas não caiamos em engano. Necessitamos entender de “economia de energia”.
Nietzsche nos dá um toque quanto a isso, se nosso objetivo não é apenas ficar falando
e escrevendo, mas inserir nossas falas e escritas como nossas vivências.“Precisamos
também saber viver com a energia diminuída: tão logo a dor dá seu sinal de alarme, é
tempo de diminuí-la – algum grande perigo, um temporal está se armando, e é bom
nos ‘inflarmos’ o menos possível” (Nietzsche. A gaia ciência. Livro IV, § 318. Trad.
Paulo César de Souza. 2001, p. 213). Vejamos que o filósofo é cuidadoso. Sabe a
hora de recuar, entende de estratégia de guerra. Quando a comida é pouca, a água é
pouca, quando a dor atinge o corpo, quando a confusão atinge a mente... Bem, aí é
hora de “recuar”, de “economizar energia”. Isso é aprender economia no sentido mais
vital que existe. Aprender a se manter vivo e com força o suficiente para um “a mais”
de qualidade no viver. Isso, também, faz parte da política da grande saúde. Saber ler
a si mesmo, saber interpretar-se. Do contrário, não há saúde que aguente. E quem
pensa que Nietzsche é um desmesurado tem nesse seu aforismo uma mostra de como
ele era disciplinado e sensível para com sua própria saúde. E sabemos que ele lutou
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até o fim para, dentro da pouca saúde que tinha, ter o máximo de proveito, de plena
vida. A sua própria vida foi um exemplo da sua política da grande saúde.
48
13.
Nietzsche entre a solidão e a sociedade ou de como
crescemos na solidão e nos tornamos autênticos
Como alguém que tem uma tendência à solidão pode viver em meio à multidão?
Levando em consideração a seguinte máxima: “À grandeza pertence o terrífico: não
permitas que te impinjam coisa alguma” (Nietzsche. Fragmentos finais, aforismo 9
[94]. Trad. Flávio R. Kothe. 2002, p. 176). Mantendo-se autêntico, “morando em sua
própria casa”, não se deixando levar pela massa e, muito menos, pelos discursos de
líderes que, na realidade, são “pastores de rebanhos”. Desse modo mantemo-nos
solitários em meio à multidão.
Nietzsche, quando escreve, escreve do que viveu. Desse modo, ele mostra que,
mesmo no meio da multidão, ou em plena sociedade, não se deixava levar pelo
burburinho, pela falta de disciplina para consigo. Ele era disciplinado o suficiente
para saber o quanto representava a sociedade e seus habitantes em termos de
quererem “encaixar” qualquer pessoa que se lhes aproximava. A sociedade devora
quem chega perto dela. Mas o caminho do filósofo alemão vai na direção de um estar
só, ainda que entremeado na multidão.
De antemão, Nietzsche sempre via a multidão como um “enfrentar-se”, para poder
crescer frente a si mesmo, mas, ao mesmo tempo, para apontar que, na solidão,
enfrentamos a nós mesmos mais de perto. Assim, é possível entender que o segredo
de Nietzsche é a sua preferência para a “autofagia” do que para o “canibalismo” dos
outros sobre si. Para quem vivenciou “mil experiências”, a multidão se torna um
peso, pois nela a experiência de cada um se dissolve na experiência do coletivo.
Contudo, o que é o coletivo? O respeito à vivência de cada um? O respeito às
diferenças? Não parece que a sociedade demonstra isso em sua “coletividade”. Na
realidade, o que dá o tom para a tal “coletividade” é o rebanho, enquanto plasmado na
sociedade pelos seus “pastores”. Em meio à multidão, a exceção é posta de lado. Ora,
Nietzsche sempre primou pela exceção, porque é ela que faz a diferença em alguém.
O que significa “fazer a diferença”? É não querer igualar o não igual. É não querer
igualar-se aos outros e nem ser contrário a eles no sentido de negá-los, mas sim
querer se afirmar enquanto diferença. Nesse sentido, para viver em sociedade é
necessário desenvolver, e muito, a vivência da solidão.
Mas, quando falamos de sociedade... Há tantas! Nesse sentido, qual seria a primeira
“sociedade” para quem o filósofo prestava sua maior atenção? À “sociedade” corpo, o
seu corpo. Ele sempre se preocupou com a sua saúde, com o que lhe seria melhor
comer, beber, com o clima dos lugares onde morava em suas andanças pelo “mundo”,
por países da Europa que cita em seus escritos. É preciso ouvir o corpo para saber
escolher os lugares ou ser forte o suficiente para resistir aos lugares que não lhe são
afeitos. E, para alcançar tudo isso, se faz mister estar bem próximo de si mesmo,
compreender-se como relações de instintos e saber o que esses instintos “gritam”. É
preciso ter um espírito refinado, com boa audição e com uma sensibilidade aguçada
49
para isso. Em meio à multidão, o sufocamento, que não é exceção, não deixa o
“sangue correr”. Ensurdece. Daí cuidar-se para não se deixar sufocar. Eis uma outra
luta nietzschiana: saber ouvir o próprio corpo em meio à multidão é um desafio. Já na
solidão é necessário saber lidar com os “gritos” dos nossos “subterrâneos”. Quanto
mais profunda a solidão e a sensibilidade para tal, mais altos serão os “gritos” do
corpo.
Em meio à multidão, todo cuidado é pouco. Como dito, a multidão nos canibaliza. A
multidão vampiriza quem tem muito sangue no espírito, pois a turba é carente de
espírito.
Os “parasitas do espírito” foram até agora aqueles que me causaram mais nojo:
eles encontram-se assentados por toda a nossa Europa nada saudável, e isso com a
melhor consciência do mundo. Talvez um pouco sombrios, com um pouco de air
pessimiste, mas, no que importa, comilões, sujos, sujadores, oportunistas,
vaselinas, furtivos, arranhadores – e inocentes como todos os pequenos pecadores
e micróbios. Eles vivem do fato de outras pessoas terem espírito, distribuindo-o
às mancheias: eles sabem como é da natureza do espírito rico ser descuidado, sem
cautelas mesquinhas, doando-se dia após dia de um modo até pródigo – pois o
espírito é um péssimo administrador doméstico e não tem o menor senso de como
tudo vive e se nutre dele (Nietzsche. Fragmentos finais, aforismo 7 [17]. Trad.
Flávio R. Kothe. 2002, p. 176).
É importante não se misturar com essas pessoas que fazem o perfil do tipo vampiro.
Sendo ocas, vazias, sugam o espírito de quem se lhes aproxima. Esses tipos vampiros,
é necessário deixá-los secar sem o “sangue” de que tanto necessitam, pois não sabem
viver de si mesmos. São parasitas. Mas, como afirma o filósofo, aquele que sempre
tem algo a oferecer termina por se descuidar, pois, para esse “tipo espiritual”, não há
com o que se preocupar, já que tem em demasia tudo aquilo de que precisa, tem o seu
próprio espírito e nada precisa tirar de ninguém. É autêntico, “mora em sua própria
casa”. Mas, até com o talento que se tem, é preciso estar atento. “Tendo um talento,
se também vítima do talento: vive-se sob o vampirismo do próprio talento [...]”
(Idem. Ibidem, 10 [33], p. 181). A melhor disciplina a se adquirir, portanto, para
enfrentar todas essas questões é a autodisciplina. É esse o melhor cuidado para
consigo, não para querer preservar-se, mas para querer ir além do comum, sem,
contudo, esvaziar-se e nem se deixar esvaziar. Por exemplo: quem tem o talento para
escrever deve ficar atento com relação ao escrever, para que esse não se torne aquele
que suga toda a sua força, levando-o à exaustão. Assim se dá com todos os talentos.
Ainda mais: que os outros façam uso desse talento em demasia, exaurindo-o a quem o
talento é de direito da própria natureza. Está colocado o desafio: é possível não se
deixar vampirizar? Até quando o próprio talento pratica a vampirização? As respostas
estão dentro de cada um, de saber quando se é forte o suficiente para exaurir-se ou
não. A “medida” está em cada um para consigo mesmo e para com relação à
sociedade.
Por outra perspectiva, já que citamos o corpo enquanto sociedade, não esqueçamos
que o que denominamos de “indivíduo” não faz sentido para o filósofo do além-do-
50
homem. Se formos uma pluralidade de forças, quantas “almas” teríamos? Seria cada
força uma “alma”? Ou essa está nas relações entre as forças... “alma” como VP?
Tudo isso pode parecer estranho, mas ouçamos o próprio filósofo:
[...] nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas – [...]. L’effect
c’est moi [o efeito sou]: ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem
constituída e feliz, a classe regente se identifica com os êxitos da comunidade.
Em todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer, sobre a base,como
disse, de uma estrutura social de muitas “almas”: razão por que um filósofo deve
se arrogar o direito de situar o querer em si no âmbito da moral – moral, entenda-
se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno
“vida” (Nietzsche. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Dos
preconceitos dos filósofos, § 19. Trad. Paulo César Souza. 1998, p. 25).
Se olharmos por esse aforismo, até quando estamos sozinhos, em nossa mais
profunda solidão, o que chamamos de nosso “eu” é apenas esse comando que se
identifica com os comandados enquanto constituindo uma mesma alegria de
“resultado”, de êxito, desse “corpo”, dessa mesma “sociedade”, dessa “comunidade”.
Aí estará um “eu” feliz. Satisfeito até aquele momento. Porém, graças ao devir, a luta
está sempre presente e, em outro momento, talvez a “felicidade” seja outra, porque
outro será o comando. Disso tudo é que depende a batalha que cada um de nós trava
consigo mesmo. No fundo, em todas as batalhas estamos sempre ausentes antes da
constituição desse comando: nosso “eu” ainda estará se formando. Como não há
cessação do movimento da vida, da dança da vida, então o “eu” de cada um de nós
entra em pugna novamente. A isso entendemos esse “estar só”, estar na solidão. Mas
não mais como “indivíduos”. Estamos cindidos em relações de forças e o “indivíduo”
é, literalmente tratando, aquele que não está dividido. A mim, parece-me que, não
raras vezes, estamos divididos entre essa pluralidade das forças em relações. Não é
difícil alguém constatar quantas vezes já se sentiu mais do que sendo “um”... sendo,
quem sabe, “vários”. Quando é muito tênue a relação entre mando e obediência, o
nosso “eu” está por se transformar em um “outro”.
Diante disso, pode ser que fique mais claro que relação deve ter para consigo alguém
que deseja se encontrar e que está no meio da multidão. Penso que, por esse caminho,
podemos imaginar o que significa, por exemplo, um estar para além da multidão.
Daí, um “entender-se” consigo próprio. E não devemos confundir o “buscar a si
mesmo” como apego. Daí também, seja melhor falar de “entender-se” consigo
mesmo. “‘Apenas quem não busca a si mesmo pode ser verdadeiramente estimado.’ –
Goethe ao conselheiro Schlosser” (Nietzsche. Além do bem e do mal: prelúdio a uma
filosofia do futuro. O que é nobre?, § 266. Trad. Paulo César Souza. 1998, p. 182). Na
realidade, quem busca a si mesmo, em primeiro lugar, deve estar perdido, e, depois,
quando se “encontra”, novamente se perde de si e de todos para ser, digamos ao
modo do filósofo alemão, um “espírito livre”. Buscar a si mesmo como sendo um
compreender-se no devir, entendendo a vida como VP. Isso é o que busca um
“espírito livre”.
Viver em sociedade e viver na solidão é uma correlação de forças. Está em jogo,
51
também, a questão do “institucional”. Somos uma instituição que vive em outras
instituições. Contudo, só é possível afirmar que “temos alguma coisa em comum”
mediante certas aproximações de vivências. Nesse caso, sociedade e “cada qual”
vivem a sua possível “comunidade”. “Não basta utilizar as mesmas palavras para
compreendermos uns aos outros; é preciso utilizar as mesmas palavras para a mesma
espécie de vivências interiores, é preciso, enfim, ter a experiência em comum com o
outro”. Isso é o que o filósofo alemão entende por um “povo”, uma “cultura”, uma
“sociedade”. Afora isso, ou seja, quando a instituição não tem nada a ver com nossas
experiências mais profundas ou quando nós mesmos, uma instituição, não nos
entendemos, ficará difícil chegar a algo de “comum”. Nas correlações de força unir-
se-ão os que têm algo em comum. E Nietzsche vai mais adiante em sua reflexão e em
outra parte do mesmo aforismo de onde retirei a citação anterior deste parágrafo:
“Quando é maior o perigo, maior é a necessidade de entrar em acordo, com rapidez e
facilidade, quanto ao que é necessário fazer; entender-se mal em meio ao perigo, eis o
que os homens não podem dispensar de modo algum no convívio” (Idem. Ibidem, §
268, p. 182).
Portanto, a sociedade que não nos diz respeito indica que ou estamos no lugar errado
ou está tudo errado na sociedade e, por isso, precisamos transformá-la em termos de
que seus erros não representem nosso fim, seja ele imediato ou a longo prazo. Ou
precisamos, talvez, nós mesmos mudar. Mas, para alcançar essa “medida”, é
necessária a autoconfrontação. É hora, então, de cada um medir-se consigo mesmo.
Querer esconder-se na multidão é uma covardia. E se deixar levar pela multidão é
falta de autenticidade, de luta, de resistência ou, em outras palavras e bem ao gosto
nietzschiano, de fraqueza.
Procurar a solidão... quando é o momento para isso? Isso depende da experiência de
cada um, ou depende ainda da experiência em comum de uma sociedade para se
tornar “solitária”, para rever-se em relação às outras sociedades, pois haverá algo de
estranho no parâmetro valorativo, daquilo que chamamos de “nossos valores”. Será a
hora de uma transvaloração de todos os valores? Para algumas perguntas só deve
haver respostas mediante vivências profundas. Do contrário, tudo vira “tagarelice”.
“As nossas vivências autênticas não são de modo algum eloquentes” (Nietzsche.
Crepúsculo dos ídolos. O que os alemães estão a perder, § 26. Trad. Delfim Santos
Filho. 1996, p. 98). Isto é, nossas experiências mais profundas não são nada tagarelas.
Quando está em foco a profundidade das vivências está em foco o quanto há de
necessidade nessas vivências. A palavra-chave para uma filosofia experimentalista é a
palavra necessidade. Aquilo para o qual não temos necessidade, nós não valorizamos.
“As valorações de uma pessoa denunciam algo da estrutura de sua alma, e aquilo em
que ela vê suas condições de vida, sua autêntica necessidade” (Idem. Além do bem e
do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. O que é nobre?, § 268. Trad. Paulo César
Souza. 1998, p. 182).
Autoconhecimento tem a ver com sentir quais são nossas reais necessidades. E, se
não somos diferentes do mundo, então também somos VP. O que significa isso? Que
temos necessidades de nos relacionarmos. Que, para nós, relação é um conceito vital.
Desse modo, penso que fica, inclusive, mais “tranquilo” para nós o nos entendermos
52
como forças em relações ou VP. De acordo com Nietzsche, a mais poderosa força
que até agora o tipo humano teve foi a de comunicar as suas necessidades. Do
contrário, já teria perecido enquanto ser humano. E toda relação da força com a força
é uma comunicação.
O filósofo alemão está sempre entre sua solidão e a vida em sociedade, optando, é
claro, nos seus escritos, pela solidão. Ainda que tenha a necessidade de viver em
sociedade e, de algum modo, ter comunicado essa necessidade como aponta em Para
além de bem e mal, Nietzsche viveu solitariamente. Na solidão, o homem devora a si
mesmo porque ele fica nu diante de si e, aí, é o momento em que poderá ver deitar
por terra tudo o que tivesse feito de si próprio. Viver perigosamente é o destino de
todos nós. O perigo está presente na solidão, está presente nas relações com o outro e
não há como escapar a esse fatum. Nesse sentido, estão em pauta os tipos de perigos.
Na solidão, somos juízes e algozes de nós mesmos. Desde que haja disciplina nessa
solidão, vontade de se desgarrar de tudo aquilo que nos impede de crescer enquanto
guerreiros, pessoas que lutam para alcançar a autossuperação, atingir aquele plus de
vitalidade que, de algum modo, esteja nos faltando. Dureza e serenidade é o conselho
do filósofo para quem deseja ser seu próprio psicólogo. Aliás, todo psicólogo
deveria, antes de tudo, ser duro consigo mesmo e... sereno.
Nietzsche... Entre a sociedade e a solidão... O que seria, ainda, necessário para
caminhar pela sociedade, estabelecer relações onde todo o cuidado é pouco? E no
tocante a si mesmo, o que, também, ainda seria necessário para um tornar-se mais
forte, mais autêntico?
Em primeiro lugar, faz-se prioridade lembrar que a vida não é outra coisa que VP.
“Uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão à suaforça – a própria vida é
vontade de poder” (Idem. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.
Dos preconceitos dos filósofos, § 13, p. 20). Talvez não existem “novas chances”
para quem se descuidar disso. Ao que parece, só mesmo necessidades em comum
mantêm os homens unidos entre si, formando, desse modo, uma sociedade ou grupo
social. E quando existe um comando no grupo, o “livre arbítrio”, no qual Nietzsche
não acreditava, na realidade é o “cativo arbítrio”. “O que é chamado ‘livre arbítrio’ é,
essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem que obedecer: ‘eu
sou livre, ele tem que obedecer’” (Idem. Além do bem e do mal: prelúdio a uma
filosofia do futuro. Dos preconceitos dos filósofos, § 19, p. 24). Do mesmo modo que
somos atravessados por uma torrente de forças, também nós atravessamos outros
“corpos”. Corpo não é, juntamente com a vida, outra coisa que VP. Inclusive, até
mesmo o nosso pensamento não vem quando nós queremos, mas quando “ele” quer.
Isso tudo precisamos levar em consideração. Como ser autêntico? Pela via do
desapego, até o ponto do desapego de si próprio. “Independência é algo para bem
poucos: – é prerrogativa dos fortes” (Idem. Além do bem e do mal: prelúdio a uma
filosofia do futuro. O espírito livre, § 29, p. 36). Ou seja, a “independência” está para
nós à medida que nos tornamos mais fortes e isso tem a ver diretamente com a nossa
autenticidade; a começar por um enxergar a vida como VP. Porém, não seremos
diferentes de Nietzsche em sua vida, que ora se considerava um decadente e ora um
tipo por excelência, e, até por isso, extemporâneo. O que pretendo afirmar é que
53
parecemos com um pêndulo, que está entre a decadência e a superação da decadência.
Que não somos uma “linha reta”, mas parecemos muito mais com aquilo que um
simples eletrocardiograma revela a nosso respeito. Vamos da condição de “verme” à
condição de “águia” tanto quanto o contrário disso. E isso tem a ver com as relações
das forças, com o devir. Quem manda também obedece. Quem hoje obedece amanhã
poderá mandar. Quem hoje manda amanhã poderá obedecer. Quem já trilhou por
todos os caminhos sabe andar entre “vermes” e entre os “superadores de si”.
Em segundo lugar, nunca esquecer do que foi pontuado nos dizeres postos a respeito
do desapego, aprofundando ainda mais essa condição dentro e fora de nós, pois
“dentro e fora” são expressões dessas correlações de forças – isto é, somos uma
instituição vivendo dentro de instituições e tudo não passa de agregação e
desagregação de forças em relações. Qual a importância, então, do desapego? O
desapego permite um “a mais” de liberdade, o que equivale dizer: menos peso para
carregarmos. Se olharmos a vida de Nietzsche, perceberemos que andou pela sua vida
tentando ser cada vez mais leve enquanto um “estado de espírito”, pois sempre fora
um tipo literalmente que padecia de muitas enfermidades, as quais foram se
agravando até o final de sua vida. Enquanto pôde, ele foi forte, um superador de si
mesmo, acima de qualquer decadência. O desapego permite aquele “voo da águia”,
um olhar por uma perspectiva de cima e sobre as torres e não mais um olhar por uma
“perspectiva de rã”.
Para o filósofo alemão, a questão do desapego é fundamental. Tanto que ele chega a
entrar em detalhes, porém ele inclui toda uma disciplina para se atingir a
independência, um tornar-se mais forte, o tipo forte: “É preciso testar a si mesmo,
dar-se provas de ser destinado à independência e ao mando; e é preciso fazê-lo no
tempo justo. Não se deve fugir às provas, embora sejam porventura o jogo mais
perigoso que se pode jogar, e, em última instância, provas de que nós mesmos somos
as testemunhas e os únicos juízes”. Continuaremos com essa citação, mas já podemos
notar o nível de exigência proposto por Nietzsche com relação a sermos duros com
nós mesmos. Quem poderá afirmar se estamos nos tornando mais fortes ou não somos
nós próprios. Até porque a importância da percepção de um “a mais de força” em nós
é, sempre em primeiro lugar, de um autorreconhecimento, autojulgamento, um
autotestemunhar-se. Não importa o que, nesse viés, dirão de nós, mas o que,
realmente, estamos sentindo naquilo que, verdadeiramente, estamos nos tornando.
Aqui é imprescindível relembrar o subtítulo de Ecce homo, que é o seguinte: como
alguém se torna o que é. Para tudo isso, o filósofo continua: “Não se prender a uma
pessoa: seja ela a mais querida – toda pessoa é uma prisão, e também um canto. Não
se prender a uma pátria: seja ela a mais sofredora e necessitada – menos difícil é
desatar de uma pátria vitoriosa o coração. Não se prender a uma compaixão: ainda
que se dirija a homens superiores, cujo martírio e desamparo o acaso nos permitiu
vislumbrar”. Vejamos que Nietzsche é enfático e entra em pormenores sobre o
desapego. É um estar pronto para fazer a própria caminhada, um “ficar a sós consigo
mesmo”, trilhar o caminho para a própria solidão, tão necessária para quem deseja se
tornar mais forte, mais autêntico, ainda que vivendo em sociedade. Porém, muitas
vezes serão necessárias as escapadas para esse se encontrar a sós, um escapar da
54
multidão, um ficar a sós bem “ao pé da letra”.
Na continuação a respeito do desapego, a ênfase do filósofo alemão continua,
inclusive com relação ao conhecimento científico: “Não se prender a uma ciência:
ainda que nos tente com os mais preciosos achados, guardados especialmente para
nós”. Todo dogmático, portanto, encontra-se totalmente fora desses aconselhamentos.
Inclusive, todo dogmático da ciência. Todavia, damos continuidade aos dizeres de
Nietzsche desse aforismo tão especial:
Não se prender a seu próprio desligamento, ao voluptuoso abandono e
afastamento do pássaro que ganha sempre mais altura, para ver mais e mais coisas
abaixo de si: – o perigo daquele que voa. Não nos prendermos às próprias
virtudes e nos tornarmos, enquanto todo, vítimas de uma particularidade, por
exemplo, de nossa “hospitalidade”: o perigo por excelência para as almas ricas e
superiores, que tratam a si mesmas prodigamente, quase com indiferença,
exercitando a liberalidade a ponto de torná-la um vício.
Notamos que, neste aforismo, o filósofo não deixa escapar nada e mostra como se
atinge o desapego total, pois desapegar-se é, também, desapego de si mesmo no mais
alto grau. Talvez esse seja o mais difícil dos desapegos, uma vez que estamos
acostumados ao “ensimesmamento”, ao ficarmos presos em nossos “mundinhos”, em
nossos pseudoesconderijos. São falsos esses esconderijos porque não é difícil nos
trairmos, isto é, é desse modo que tão logo nos mostramos completamente nus aos
olhos de outrem. Terminando, pois, o aforismo, o filósofo faz uma conclusão que não
tem nada a ver com uma conservação no sentido darwinista; trata-se, outrossim, de
uma preservação vinda após um longo exercício de desapego, de autossuperação, de
se ter caminhado para além de si mesmo: “É preciso saber preservar-se: a mais dura
prova de independência” (Nietzsche. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia
do futuro. O espírito livre, § 41. Trad. Paulo César Souza. 1998, p. 46).
Na solidão e em meio à sociedade, a postura do desapego deve estar sempre presente,
por isso o desapego é uma postura. Nietzsche vivenciou a fundo esse viver entre a
solidão e a sociedade e a sua contribuição para nós é em termos de que cada um de
nós deve fazer experiências consigo próprio. Nisso, reforço que a filosofia
nietzschiana é experimentalista. O próprio filósofo, com seu escrever típico (em
aforismos), e por várias vezes em seus escritos, deixa isso bem nítido. Ninguém pode
vivenciar por outro a experiência que somente esse outro pode viver. A própria
questão da autenticidade já começa por aí. A grande contribuição do filósofo,
portanto, da sua filosofia dionisíaca, experimentalista, é a provocação que ele
desperta em seus leitores. Mesmo os mais incautos e despreparados conseguem
apreender alguma coisa dessas vivências nietzschianas, conseguem observar os
escritos de Nietzsche de tal forma que notam o quantode “perigo” (desafio) há em
cada um dos seus aforismos.
55
Considerações finais
Para ler Nietzsche, é indispensável estar aberto a novas experiências. Perpassar todos
os conceitos centrais do filósofo de modo a compreendê-los, somente é possível
quando não ficamos presos aos valores cristalizados em nós por nossos costumes e
tradições. Talvez tenhamos não só que rever esses valores como, até pode acontecer,
tenhamos de mudá-los, atravessá-los para a construção de novos valores.
A leitura de Nietzsche exige leitores que estejam dispostos às suas provocações,
porque o filósofo é, sem dúvida, um provocador por excelência. De certo modo, a
provocação não deixa de ser um método, um caminho estimulado pelo próprio
movimento do mundo. E nós, como “seres-devires”, isto é, também em movimento,
sempre estamos muito sensíveis a variados tipos de provocações. Elas funcionam
como propulsoras de mudanças. Ainda que não percebamos, mesmo que não
possamos captar “conscientemente” tudo aquilo que o devir gera em nós, estamos ao
dispor desse vir-a-ser. Daí nossa sensibilidade natural ao devir, até porque nós somos
devir com o devir do mundo, no mundo. Nesse sentido, nós e o mundo somos um só
e, ao mesmo tempo, múltiplas formas de “seres devires”.
Lendo Nietzsche, sendo provocados por seus escritos, é muito provável que
mudanças ocorram em nós. Nesse sentido, é difícil ficar indiferente a uma leitura de
suas obras, de seus aforismos. O importante nisso tudo é que ele trata da vida e
considera esta vida como sagrada, elevando-a à máxima consideração a que um
vivente poderia elevá-la. Em outras palavras: a vida como referência para tudo, para
todo e qualquer valor, sempre é mais uma afirmação da vida. E eis a palavra-chave
para entendermos Nietzsche – afirmação. Para ele, o máximo de afirmação da vida se
exprime pelo que denomina de amor fati, esse amar, em nós e em tudo, o nosso
destino que é a vida de cada um e de tudo o que existe como devir. Em nós, nossa
vida é nosso corpo, daí a necessidade de o afirmarmos. E mesmo a concepção
nietzschiana de eterno retorno é, também, um máximo de afirmação à vida como ela
é, com seus altos e baixos. Isto é, se tivermos de passar sempre pelos altos e baixos da
vida, isso não deveria ser, para nós, motivo de negação da vida. Não é fácil ser um
afirmador da vida em situações desfavoráveis a nós. Por isso, alguém que leia o
filósofo alemão com uma certa disciplina para a leitura entenderá o que quer dizer o
experimentalismo de sua filosofia, uma filosofia dionisíaca, uma filosofia do devir, o
movimento da própria vida em nós e na natureza, e um eterno dizer sim a tudo isso.
Aí, terminamos por nos encontrar como sendo mais que natureza humana, como
sendo natureza, ou seja, experimentando o nosso mais profundo alicerce. Fundamento
de nossos corpos e de tudo o que nele ocorre.
Portanto, ler Nietzsche é, ao contrário do que muitos pensam, nos aproximarmos mais
de uma autenticidade sem igual. Cada um deve aprender a tornar-se o que se é, um
dizer que o filósofo toma emprestado de Píndaro, da Grécia Antiga, para trazer até
nós, por intermédio, principalmente, da sua autobiografia, em que o subtítulo é
exatamente esse: um tornar-se o que se é. Para isso, o bom leitor de Nietzsche não
deseja se tornar Nietzsche, mas, por intermédio da leitura de seus aforismos, sentir-se
provocado “a se encontrar” em sua própria autenticidade.
56
Ainda que Nietzsche não seja considerado um humanista dentro da história da
filosofia, não deixa de ser alguém que, ao não querer ser parte de um rebanho,
expressa essa preocupação em não sermos manipulados, em não nos tornarmos
“massa de manobra” por parte daqueles que se acham “superiores”. Na realidade, o
filósofo faz uma forte denúncia contra qualquer tipo de “arrebanhamento”. Esse é o
Nietzsche que muitos ainda não entenderam – e, por isso, o interpretam tão mal.
Outra coisa importante: ele não deseja fazer experiências conosco, ele o faz consigo
mesmo. Cabe a cada um querer ou não experimentar-se para ser alguém autêntico,
para ser alguém que ama sua vida independentemente de condições que ela venha a
lhe impor. Isso é a autossuperação de si, isso é um real crescimento mediante os
obstáculos que nos são impostos, isso é um aprender a transformar obstáculos em
estímulos para o nosso próprio crescimento. Será que existe algo tão mais sério para
ser levado em consideração que não a vida que há presente no mundo, em cada um de
nós? Esse é um tipo de pensamento que devemos ter presente para o resto de nossas
existências.
Importante, ainda, e para “concluirmos”, é que, como Nietzsche provoca, devemos ir
além daquilo que um livro nos oferece. Em outras palavras: ele não desejou
discípulos. O que Nietzsche desejava a cada um de seus leitores é que não tivessem
“vivências tagarelas”. De certa forma, é a filosofia em sua eterna provocação de nos
colocar à busca de nós mesmos, à busca do conhecimento da vida. Por isso, não
paramos por aqui. Ainda temos muito que fazer em nossas vidas, por nós mesmos e
por tudo quanto vive, e em nome da vida como única condição para qualquer coisa
que pretendamos nesta nossa existência.
57
Referências bibliográficas
BERKOWITZ, Peter. Nietzsche: the ethics of an immoralist. Londres /
Massachusetts: Cambridge University Press / Harvard University Press, 1998.
IZQUIERDO, Augustín. Friedrich Nietzsche, o el experimento de la vida. Madri:
Edaf/Ensayo, 1989.
MONTEBELLO, Pierre. Vie et maladie chez Nietzsche. Paris: Ellipses, 2001 (Philo).
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Assim falava Zaratustra. Trad. Eduardo Nunes
Fonseca. São Paulo: Hemus, 1985.
____. Assim falou Zaratustra. 12ª ed. Trad. Mário da Silva. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
____. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2001.
____. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. 2ª ed. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
____. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa a marteladas. 3ª ed. Trad. Delfim
Santos Filho. Lisboa: Guimarães Editores, 1996.
____. Fragmentos finais. Seleção, tradução e prefácio: Flávio R. Khote. Brasília / São
Paulo: Editora UnB / Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.
____. Fragments posthumes. Édition critique des Oeuvres completes de Friedrich
Nietzsche. Textes et variants établis par G. Colli et M. Montinari. Traduits de
l’allemand par Anne-Sophie Astrup et Marc de Launay. Paris: Gallimard, 1976, XIV
volumes.
____. Genealogia da moral: uma polêmica. 4ª reimpressão. Trad. Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
____. O anticristo: anátema sobre o cristianismo. Trad. Artur Morão. Lisboa:
Edições 70, 2002.
____. Obras incompletas. Seleção de textos de Gerard Lebrun. Tradução e notas de
Rubens Rodrigues Torres Filho. Posfácio de Antonio Candido. São Paulo: Nova
Cultural, 1999 (Coleção Os Pensadores).
WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: Presses
Universitaires de France, 1995 (Collection dirigée par Blandine Kriegel).
58
 
Coleção filosofia em questão:
• Pensamento ético contemporâneo, Jacqueline Russ
• Pitágoras e os pitagóricos, Jean-François Mattéi
• Pensar com Emmanuel Levinas, Benedito E. Leite Cintra
• Nietzsche: Viver intensamente, tornar-se o que se é, Mauro Araujo de Sousa
59
 
Direção editorial: Zolferino Tonon
Coordenação editorial: Claudiano Avelino dos Santos
Coordenação de desenvolvimento digital: Erivaldo Dantas
Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes
Preparação: Thiago Augusto Almeida Passos
Revisão: Thiago Augusto Dias de Oliveira
Capa: Marcelo Campanhã
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
 
Sousa, Mauro Araujo de. Nietzsche:
viver intensamente, tornar-se o que se é
/ Mauro Araujo de Sousa. — São Paulo:
Paulus, 2012. — (Coleção Filosofia em questão)
 
ISBN 978-85-349-3520-3
 
1. Cristianismo 2. Filosofia alemã 3. Metafísica
4. Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900
– Crítica einterpretação 5. Platão I. Título. II. Série.
 
09-11594
CDD-193
 
Índices para catálogo sistemático:
1. Nietzsche: Filosofia alemã 193
© PAULUS – 2013
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br
ISBN 978-85-349-3520-3
60
61
Scivias
de Bingen, Hildegarda
9788534946025
776 páginas
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Scivias, a obra religiosa mais importante da santa e doutora da Igreja Hildegarda de
Bingen, compõe-se de vinte e seis visões, que são primeiramente escritas de maneira
literal, tal como ela as teve, sendo, a seguir, explicadas exegeticamente. Alguns dos
tópicos presentes nas visões são a caridade de Cristo, a natureza do universo, o reino
de Deus, a queda do ser humano, a santifi cação e o fi m do mundo. Ênfase especial é
dada aos sacramentos do matrimônio e da eucaristia, em resposta à heresia cátara.
Como grupo, as visões formam uma summa teológica da doutrina cristã. No fi nal de
Scivias, encontram-se hinos de louvor e uma peça curta, provavelmente um rascunho
primitivo de Ordo virtutum, a primeira obra de moral conhecida. Hildegarda é notável
por ser capaz de unir "visão com doutrina, religião com ciência, júbilo carismático
com indignação profética, e anseio por ordem social com a busca por justiça social".
Este livro é especialmente significativo para historiadores e teólogas feministas.
Elucida a vida das mulheres medievais, e é um exemplo impressionante de certa
forma especial de espiritualidade cristã.
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Santa Gemma Galgani - Diário
Galgani, Gemma
9788534945714
248 páginas
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Primeiro, ao vê-la, causou-me um pouco de medo; fiz de tudo para me assegurar de
que era verdadeiramente a Mãe de Jesus: deu-me sinal para me orientar. Depois de
um momento, fiquei toda contente; mas foi tamanha a comoção que me senti muito
pequena diante dela, e tamanho o contentamento que não pude pronunciar palavra,
senão dizer, repetidamente, o nome de 'Mãe'. [...] Enquanto juntas conversávamos, e
me tinha sempre pela mão, deixou-me; eu não queria que fosse, estava quase
chorando, e então me disse: 'Minha filha, agora basta; Jesus pede-lhe este sacrifício,
por ora convém que a deixe'. A sua palavra deixou-me em paz; repousei
tranquilamente: 'Pois bem, o sacrifício foi feito'. Deixou-me. Quem poderia descrever
em detalhes quão bela, quão querida é a Mãe celeste? Não, certamente não existe
comparação. Quando terei a felicidade de vê-la novamente?
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DOCAT
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Dando continuidade ao projeto do YOUCAT, o presente livro apresenta a Doutrina
Social da Igreja numa linguagem jovem. Esta obra conta ainda com prefácio do Papa
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Social da Igreja, convidando-os a ser Doutrina Social em movimento.
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69
A origem da Bíblia
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Este é um grandioso trabalho que oferece respostas e explica os caminhos percorridos
pela Bíblia até os dias atuais. Em estilo acessível, o autor descreve como a Bíblia
cristã teve seu início, desenvolveu-se e por fim, se fixou. Lee Martin McDonald
analisa textos desde a Bíblia hebraica até a literatura patrística.
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Índice
Rosto 2
Introdução 4
1. Nietzsche contra o bem e o mal ou de como deixamos de ser
moralistas 8
2. Nietzsche para além de qualquer dualismo ou de como
deixamos de ser materialistas e espiritualistas 10
3. Nietzsche e uma nova ética ou de como aprendemos valores
para além de bem e mal 11
4. Nietzsche e o além-do-homem ou de como podemos superar a
nós mesmos 12
5. Nietzsche: o eterno retorno do mesmo e o amor fati ou de como
podemos atingir a afirmação da vida terrena 14
6. Nietzsche e os dois tipos de sofredores ou de como aprender
com o sofrimento afirmador 17
7. Nietzsche, um homem dionisíaco e trágico ou de como nos
tornamos dionisíacos 21
8. Verdade e mentira em Nietzsche ou de como “construímos” a
verdade e a mentira enquanto valores 24
9. A morte de Deus – quem matou Deus? Ou de como matamos
Deus e não suportamos a nós próprios 28
10. Nietzsche como Anticristo ou de como nos afastamos desta
vida terrena 31
11. Nietzsche e as contribuições à educação ou de como podemos
ser filósofos educadores 34
12. Nietzsche e a política da grande saúde ou de como nos
tornamos saudáveis 40
13. Nietzsche entre a solidão e a sociedade ou de como crescemos
na solidão e nos tornamos autênticos 49
Considerações finais 56
Referências bibliográficas 58
71
	Rosto
	Introdução
	1. Nietzsche contra o bem e o mal ou de como deixamos de ser moralistas
	2. Nietzsche para além de qualquer dualismo ou de como deixamos de ser materialistas e espiritualistas
	3. Nietzsche e uma nova ética ou de como aprendemos valores para além de bem e mal
	4. Nietzsche e o além-do-homem ou de como podemos superar a nós mesmos
	5. Nietzsche: o eterno retorno do mesmo e o amor fati ou de como podemos atingir a afirmação da vida terrena
	6. Nietzsche e os dois tipos de sofredores ou de como aprender com o sofrimento afirmador
	7. Nietzsche, um homem dionisíaco e trágico ou de como nos tornamos dionisíacos
	8. Verdade e mentira em Nietzsche ou de como “construímos” a verdade e a mentira enquanto valores
	9. A morte de Deus – quem matou Deus? Ou de como matamos Deus e não suportamos a nós próprios
	10. Nietzsche como Anticristo ou de como nos afastamos desta vida terrena
	11. Nietzsche e as contribuições à educação ou de como podemos ser filósofos educadores
	12. Nietzsche e a política da grande saúde ou de como nos tornamos saudáveis
	13. Nietzsche entre a solidão e a sociedade ou de como crescemos na solidão e nos tornamos autênticos
	Considerações finais
	Referências bibliográficas

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