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O corcunda de Notre-Dame - Victor Hugo

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2
Sumário
Capa
Rosto
Apresentação
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Coleção
Créditos
3
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N
APRESENTAÇÃO
ovelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, pensador político e um dos líderes do
Romantismo francês, Victor-Marie Hugo nasceu em 26 de fevereiro de 1802.
Era o caçula de três irmãos. Sua infância foi agitada: seu pai, Joseph-Léopold, viajava
constantemente como general do exército de Napoleão Bonaparte, levando a família
para a Itália e a Espanha, além de viagens pela França. Sua mãe, Sophie, cansou-se
dessa vida e separou-se do marido, indo morar com seus três filhos em Paris.
Foi nessa época que a genialidade de Victor Hugo começou a se manifestar na forma
de ilustrações, desenhos, peças e poemas. Contra os desejos de sua mãe, o jovem
apaixonou-se por sua vizinha, Adèle Foucher. Secretamente, os dois ficaram noivos.
Assim que Sophie morreu, em 1822, Victor pegou o dinheiro que ganhara com a
venda de seu primeiro livro de poesias e casou-se com Adèle.
Nas décadas de 1820 e 1830, Victor Hugo tornou-se um escritor reconhecido e líder
do Romantismo, movimento que pretendia libertar a literatura das influências
clássicas. Em 1831, veio seu grande sucesso e sua consolidação como o maior
escritor da França: o romance Notre-Dame de Paris (mais conhecido em português
como O corcunda de Notre-Dame). Em 1841, foi eleito membro da Academia
Francesa.
Tragédias pessoais perseguiram Hugo. Seu irmão, Eugène, enlouqueceu de ciúmes
quando viu o irmão casar-se com Adèle. Três de seus filhos morreram diante dele.
Sua favorita, Léopoldine, grávida, morreu afogada no rio Sena, junto com seu
dedicado marido, aos 19 anos. A única sobrevivente, Adèle (o mesmo nome da mãe),
viveu num hospício por mais de 30 anos.
As inclinações políticas do escritor, que era simpatizante da monarquia, mudaram
para o liberalismo no final dos anos 1820, sob a influência do padre liberal Félicité de
Lamennais; de seu amigo Charles Nodier, um apaixonado oponente da pena de
morte; e de seu pai. Foi indicado à Assembleia Constituinte depois da Revolução de
fevereiro de 1848. Depois de Napoleão III, sua posição política radical e constante
oposição levaram-no ao exílio.
Hugo viveu na Bélgica e na ilha inglesa de Jersey; mais tarde, foi viver em
Guernesey. Recusou duas ofertas de anistia, permanecendo exilado até a queda de
Napoleão III, em 1870, e a proclamação da república. Durante esse período, escreveu
seus poemas mais famosos e sua obra-prima, o romance Os Miseráveis.
Retornando a Paris, foi recebido como herói. Apesar das perdas familiares, o já idoso
escritor permaneceu ativo na política, ajudando a preservar e a modelar a Terceira
República e a democracia na França. Sua morte, em 22 de maio de 1885, gerou uma
comoção nacional: milhares de pessoas acompanharam o cortejo fúnebre do Arco do
Triunfo até o Panteão, onde ele foi enterrado.
4
H
Capítulo 1
á trezentos e quarenta e oito anos, seis meses e dezenove dias, os parisienses
foram despertados pelo som de sinos. Mesmo assim, a história não dá muita
atenção para o dia 6 de janeiro de 1482. Era um dia de festa e todos se curvavam nas
janelas e saíam às ruas, em direção ao Palácio da Justiça.
Nessa magnífica construção gótica, logo que se entrava pela porta principal se via a
grandiosa escadaria, que levava ao grande salão, pequeno demais para todas aquelas
pessoas. Nós, agora, em 1830, podemos nos permitir uma pequena viagem no tempo
e nos sentidos para nos transportarmos até aquele grande salão, junto aos homens,
mulheres e crianças do século 15.
Pena o Palácio não existir mais em nossos dias – foi destruído em um incêndio em
1618 e os trabalhos de restauração apenas o descaracterizaram ainda mais –, pois
seria interessante apreciarmos a primeira mo- radia do rei da França, neste palácio
ainda mais velho do que o Louvre. Quase tudo se foi: os quartos originais, os jardins,
as tapeçarias, os adornos de ferro nos portões. Por isso devemos usar nossa
imaginação e reconstruir o grande salão em todo o seu esplendor original.
Havia no centro do salão uma grande mesa de mármore, sobre a qual seria
apresentada uma peça de teatro: um mistério. Naquela manhã fria, a multidão
esperava impacientemente, e já esperava por mais de quatro horas, até que os
embaixadores flamengos e o Cardeal chegassem para a apresentação começar na hora
marcada: meio-dia.
Os mais agitados eram os estudantes, que que- braram os vidros de uma janela para se
acomodar e, de lá, observar e provocar as pessoas. O relógio bateu meio-dia, hora
prometida. Os estudantes ficaram em silêncio. Todos começaram a se movimentar em
busca do melhor lugar. Expectativa. A multidão só esperava três coisas desde que o
dia começara: o meio-dia, os embaixadores flamengos e o mistério. Só o meio-dia foi
pontual.
Um minuto se passou. Dois, três, quinze. Ou- viu-se um murmúrio de
descontentamento: “o mistério!”, “o mistério!”.
Jehan Du Molin foi o primeiro a gritar:
– Vamos ao mistério! E ao diabo com os embaixadores! – gritou com toda a força dos
pulmões, contorcendo-se como uma serpente.
A multidão aplaudiu.
– O mistério! Queremos o mistério! – gritaram todos.
A agitação chegou até os camarins, de onde surgiu uma figura que conseguiu, apenas
com sua aparição, atiçar a curiosidade e atrair a atenção de todos.
– Silêncio! Silêncio! – pediram alguns.
5
O pobre homem, tremendo dos pés à cabeça, dirigiu-se à plateia.
– Senhores cidadãos – disse ele, quando já havia se estabelecido certa paz. –, teremos
a honra de apresentar a moralidade intitulada A sábia decisão da Senhora Virgem
Maria, na qual faço o papel de Júpiter. Sua Eminência, o Cardeal, está acompanhando
os embaixadores, que nesse momento escutam o discurso do reitor da universidade.
Assim que sua Eminência, o Cardeal, chegar, começaremos o mistério.
Só mesmo Júpiter, vestido com suas penas e brilhos, para encher os olhos da multidão
e acalmar um pouco os ânimos. Mas, enquanto falava, a satisfação e a admiração
provocadas pelo seu traje foram destruídas pelas suas palavras. Quando pronunciou a
última frase, “assim que sua Eminência, o Cardeal, chegar, começaremos o mistério”,
sua voz foi abafada num coro de lamentos.
– Comecem agora! O mistério! Queremos o mistério! – gritaram as pessoas.
A voz de Jehan Du Molin gritava acima de todas, aguda como um apito:
– Comecem! Comecem! – berrava o estudante.
– Fora Júpiter e o Cardeal! – gritou Robin Poussepain, junto com os outros estudantes
que se empoleiravam na janela.
– Queremos a moralidade agora! Senão enforcaremos os atores e o Cardeal! – repetia
a multidão enfurecida.
Pobre Júpiter! Mesmo embaixo de toda a sua maquiagem, percebia-se sua palidez!
No fundo de seu coração, temia ser mesmo enforcado. Enforcado pela multidão, caso
esperasse; enforcado pelo Cardeal, caso não esperasse... De qualquer forma, já estava
condenado.
Por sorte, apareceu alguém para salvá-lo daquele constrangimento e assumir a
responsabilidade.
Uma figura esguia, completamente escondida atrás do largo pilar, revelou-se. Era
magro, alto, pálido, loiro e jovem, embora com rugas ao redor dos olhos e dos lábios,
vestindo um casaco preto, velho e demasiadamente usado, aproximou-se da mesa e
fez um gesto ao pobre Júpiter que, em seu desespero, não o enxergou.
Ele, então, gritou:
– Júpiter! Meu querido Júpiter!
Júpiter não o escutou.
Então, o loiro, impaciente, berrou:
– Michel Giborne!
– Quem me chama? – indagou Júpiter, assustado.
– Eu! – respondeu o homem de preto.
6
– Ah! – suspirou Júpiter.
– Comecem imediatamente! – pediu o outro. – Satisfaçam o público! Eu arranjo as
coisas com o Cardeal.
Júpiter respirou novamente e voltou a falar com a multidão:
– Senhores cidadãos! – gritou com toda a força de seus pulmões. – Começaremos
imediatamente!
Todos deram vivas, e os aplausos continuaram até Júpiter retornar às coxias.
A figura misteriosa de negro recolheu-se novamente na sombra atrás do pilar.
O som de váriosinstrumentos musicais começou a ressoar pelo salão, ao mesmo
tempo em que a tapeçaria subia e revelava os atores subindo ao palco e
cumprimentando o público.
Os quatros atores, dois homens e duas mulheres, começaram o prólogo. Mas a
plateia, assim como a plateia teatral de nossos dias, estava muito mais interessada nas
roupas e nos adornos do que no texto que os atores recitavam. Estavam certos: o
figurino dos atores dizia muito mais sobre seus personagens do que suas falas. A
primeira figura carregava uma espada na mão e trazia bordada em letras pretas em
sua roupa de brocado dourado a frase “Eu sou a Nobreza”; a segunda trazia bordada
em sua roupa de seda “Eu sou a Religião”; a terceira trazia bordada em sua roupa de
lã “Eu sou o Comércio”; e a quarta, em sua roupa de linho, “Eu sou o Trabalho”.
O “Trabalho” era casado com o “Comércio” e a “Nobreza” com a “Religião”.
Recitando poemas, metáforas e máximas, os atores conduziam a plateia, absorta na
interpretação empolada e na linguagem cheia de termos difíceis e incompreensíveis.
Atrás do pilar, o homem de negro dava alguns passos em direção ao palco, os olhos
brilhando, o coração cheio de orgulho: era Pierre Gringoire, o autor da peça.
Esse momento de êxtase, porém, foi interrompido com a aparição de uma figura
grotesca, coberta de andrajos. Um mendigo, que não havia conseguido coletar o que
queria dos bolsos vazios dos presentes, trepou numa coluna e ali ficou, sem dizer uma
palavra, tentando chamar a atenção para seu estado deplorável e seu braço coberto de
feridas. A plateia silenciosa seguia a peça, quando Jehan, o estudante, começou a rir
e, apontando a figura empoleirada na coluna, gritou:
– Olhem só aquele mendigo pedindo esmola!
Isso foi o suficiente para que a peça fosse interrompida e os atores e todos os outros
presentes virassem suas cabeças em direção ao mendigo, que agora implorava com
uma voz chorosa:
– Uma esmola, pelo amor de Deus!
Estendendo seu chapéu, começou a recolher as poucas moedas que lhe atiravam,
tornando-se a nova atração da multidão.
7
Gringoire, muito insatisfeito em ver sua obra em segundo plano, começou a gritar:
– Por que pararam? Continuem! Vamos, continuem!
Nesse momento, sentiu que lhe puxavam a manga do casaco. Era a linda Gisquette
que lhe chamava a atenção.
– Senhor, eles vão continuar a peça?
– Claro que sim!
– Nesse caso, o senhor faria a gentileza de me explicar...
– O que eles vão dizer? interrompeu Gringoire. Ora, preste atenção!
– Não, disse Gisquette. Queria saber o que eles disseram até agora.
Gringoire ficou chocado com o que ela disse.
– Menina estúpida! – rosnou entre os dentes.
A partir desse instante, Gisquette caiu totalmente em sua consideração.
Nesse meio tempo, porém, os atores voltaram a representar. O público, vendo que
eles tinham recomeçado, também voltaram a ouvir. Gringoire respirou, parcialmente
aliviado; os estudantes pararam de rir e o mendigo começou a contar as moedas que
havia recolhido.
A peça era um bom trabalho e serviria muito bem para o atual público, com algumas
pequenas mudanças. De repente, bem no meio de uma briga entre a senhorita
Comércio e a senhora Nobreza, a porta do salão, que estava inoportunamente
fechada, causando grande abafamento, foi inoportunamente aberta, e o guarda
abruptamente anunciou:
– Sua Eminência, o Senhor Cardeal de Bourbon!
8
P
Capítulo 2
obre Gringoire! Um tiro de canhão teria perturbado menos os seus ouvidos,
naquele momento tão solene e dramático da peça! A entrada de Sua Eminência
distraiu a plateia. Todos olhavam em volta e gritavam “O Cardeal!”, “O Cardeal!” e
se esticavam para vê-lo.
O Cardeal Charles parou por um momento para observar a multidão, lançando um
olhar de indiferença. Era um grande homem, vestido de maneira tão ostensiva quanto
os trajes dos personagens do mistério. Era um bom sujeito, levava uma vida
confortável, tomava vinho e gostava de fazer caridade a bonitas senhoritas. Por tudo
isso, a população gostava dele. Estava sempre cercado de bispos e padres, todos
galantes e joviais, à procura de festejos. À noite, quando os devotos passavam pela
sua janela com as luzes acesas, escandalizavam-se ao ouvir as mesmas vozes que há
pouco cantavam hinos religiosos, desafinando sob o efeito do vinho.
Foi essa fama que o salvou, naquele momento, da ira da população, tão insatisfeita de
ter esperado tanto tempo e agora ter sido interrompida. O povo não gostaria de
desrespeitar o Cardeal justamente naquele dia em que elegeriam seu próprio Papa.
Mas os parisienses também não gostavam de demonstrar fraqueza e logo foram
exigindo que a peça recomeçasse, sem, entretanto, vaiar a autoridade, sendo ele tão
lindo, na opinião da metade feminina da plateia, e tão elegante em seu manto
vermelho, na opinião da outra metade.
Ele entrou, cumprimentou a todos com aquele sorriso que só os que se sabem grandes
possuem e andou solenemente até seu trono de veludo, com um olhar distante como
se pensasse em outros assuntos. Seu séquito de bispos e padres acotovelava-se
tentando seguir seus passos, sob os olhares curiosos e confusos dos expectadores.
Perdidos que estavam entre o populacho, não conseguiram acompanhar os passos do
Cardeal, que estava muito mais preocupado com aqueles que o esperavam: os
embaixadores flamengos.
O Cardeal não era lá um homem muito chegado a assuntos políticos, mas era um dos
grandes sacrifícios de seu cargo ter que entreter esses estrangeiros bebedores de
cerveja. Ele, Charles de Bourbon!
Mesmo assim, virou-se para seus convidados com graça e simpatia (ele havia
treinado muito) quando foi anunciado: “Os enviados do Duque da Áustria!”. Toda a
multidão imitou o Cardeal, sorrindo e acenando.
Os quarenta e oito embaixadores entravam solenemente, depois que seus nomes eram
anunciados. A plateia mal controlava o riso, assistindo ao desespero do homem que
tentava pronunciar aqueles nomes estranhos da maneira correta e tornar mais nobres
os títulos quase plebeus dos que desfilavam.
Havia, porém, uma exceção: um homem com um rosto que transparecia inteligência,
que combinava a esperteza de um macaco com a sutileza de um diplomata. Em
direção a ele, o Cardeal deu três passos e se curvou, cumprimentando-o. Seu nome,
9
tão impressionante quanto sua aparência, foi anunciado sem dificuldade: “Guillaume
Rym, membro do conselho da cidade de Ghent”.
Poucas pessoas ali sabiam o gênio raro que era Guillaume. O populacho apenas se
maravilhou com a polidez demonstrada pelo Cardeal ao cumprimentar seu convidado
flamengo.
Enquanto o membro do conselho e o Cardeal curvavam-se, cumprimentando-se e
trocando algumas palavras em voz bem baixa, um homem alto, de rosto redondo e
ombros largos, entrou correndo e posicionou-se bem atrás de Guillaume. Sua jaqueta
de couro preto e seu chapéu de feltro contrastavam com os veludos e sedas que o
cercavam. O guarda que anunciava os nomes tratou de impedir a passagem.
– Ei, meu amigo, não pode passar por aqui!
– O que você quer dizer? – respondeu o homem do casaco de couro, empurrando-o. –
Não está vendo que eu estou com os embaixadores?
– E quem é o senhor? – perguntou o guarda.
– Jacques Coppenole, fabricante de meias, de Ghent.
O guarda engoliu em seco. Já era triste ter que anunciar simples aldeões com
pequenos títulos de nobreza; anunciar um fabricante de meias era demais. Mesmo
assim, o guarda se esforçou para enfeitar um pouco o anúncio e Coppenole em
seguida fez uma reverência ao Cardeal, observado por Guillaume Rym, que assistia à
cena com ar de superioridade.
O fabricante de meias, entretanto, não foi o pior que aconteceria ao Cardeal naquela
noite. O leitor deve se lembrar daquele mendigo inconveniente da abertura do
prólogo. Pois bem, ele ainda não havia recebido toda a caridade que desejava e,
ousadamente, reclinou-se num pilar, com as pernas cruzadas, bem à vista de todos. E,
como que para não perder o hábito, repetia mecanicamente:
– Uma esmola, meus irmãos!
Naquele momento, Coppenole já estava se acomodando, sentando-se bem próximo ao
mendigo. Surpreendentemente,os dois se olharam e se reconheceram, começando
uma animada conversa, para admiração de todos e constrangimento absoluto do
Cardeal. A multidão se divertia assistindo ao cortejo de embaixadores, comentando
cada título e cada traje. Enquanto isso, do outro lado do salão, jaziam quatro figuras
tristes e um homem de negro, cabisbaixos. Ah, sim: eram Pierre Gringoire e seu
mistério, totalmente esquecidos.
Era exatamente isso que ele temia. Desde que o Cardeal entrara, Gringoire trabalhara
incansavelmente para salvar a apresentação. Primeiro instou com os atores para que
continuassem, mas ninguém parou para ouvir. Passados quinze minutos de
interrupção, começou a pular, a debater-se e a incitar pessoas próximas a protestarem.
Tudo em vão: ninguém queria perder um passo do Cardeal e dos embaixadores. As
discussões entre a Nobreza, o Comércio e a Religião estavam se tornando cansativas,
10
e a vida real, pulsando em carne e sangue, era um atrativo muito menos artificial do
que o verso empolado e os panos brocados.
Mesmo assim, quando Gringoire viu que a audiência estava começando a se aquietar,
começou a gritar a plenos pulmões para ver sua peça devidamente encenada:
– Continuem o mistério! Vamos! O mistério!
– Não! Abaixo o mistério! – gritaram os estudantes em coro.
– O mistério! O mistério! – gritou ainda mais alto Gringoire, ignorando o coro dos
estudantes.
O Cardeal, incomodado com aquela agitação, mas rindo muito, ordenou que
continuassem o mistério, afinal, durante a peça, leria seu breviário e nesse caso pouco
se importava.
A ordem foi dada, para decepção dos estudantes e alívio de Gringoire. Mas os
embaixadores continuavam entrando e desfilando pelo salão, tendo seus nomes
anunciados pela voz estridente do guarda, o que causava uma grande interferência na
compreensão do diálogo dos personagens. Gringoire ficava mais revoltado a cada
anúncio e temia que seu drama não fosse ouvido. Agora estavam no palco Vênus,
Júpiter e a Virgem Maria, todos vestidos ricamente. Mas seus brilhos não eram nada
perto da fama do Cardeal. Nada libertara a plateia do feitiço dos poderosos; ela ainda
observava aqueles que entravam e a postura daqueles que já se acomodavam. E
pensar que essa mesma multidão enfurecera-se diante do atraso para escutarem sua
obra! Agora que estava ali, desprezavam-na...
Os atores, entretanto, continuavam bravamente declamando suas falas. Vendo isso,
Coppenole levantou-se e começou um lamentável discurso:
– Senhores cidadãos de Paris, não sei o que estamos fazendo aqui, pela cruz de Deus!
Vejo que lá naquele canto estão algumas pessoas a se debater. É o que chamam de
“mistério”, mas acho que mistério mesmo é achar uma coisa dessas divertida! Esperei
até que aparecessem armas e acontecesse um duelo, mas esses covardes só sabem
duelar com palavras e insultos! Não vim aqui para ver isso! Disseram-me que haveria
uma festa de loucos e a eleição do Papa dos Tolos. Então, vamos fazer os dois ao
mesmo tempo, como na minha terra! Quem fizer a careta mais abominável será
declarado papa! Que tal, senhores cidadãos? Melhor que ficar ouvindo essas chatices,
será rir da cara feia de vocês!
Gringoire ficou mudo por alguns instantes. Surpresa, raiva e indignação roubaram-lhe
a fala. Além disso, a “comédia” foi tão bem recebida pela plebe que qualquer
oposição seria inútil. Não restava mais nada a não ser ceder. Gringoire desabou e
enterrou o rosto nas mãos.
Em um piscar de olhos, estava tudo pronto para o concurso proposto por Coppenole.
A pequena capela do outro lado do salão seria o palco para as caretas. Homens e
mulheres ficariam a postos e só mostrariam o rosto quando a cortina se abrisse.
11
Coppenole, sentado em sua cadeira, dirigia tudo. O Cardeal, tão descontente quanto
Gringoire, levantou-se e foi embora, seguido de seu séquito. A multidão, que assistiu
tão maravilhada à sua chegada, não prestou a menor atenção à sua partida. Não ficou
ninguém além dos embaixadores e da multidão vulgar.
As caretas começaram a aparecer. A cada monstruosidade, a multidão ria e aplaudia.
Cada expressão humana – raiva, luxúria, ira – aparecia em cada uma das faces, da
mais jovem à mais enrugada. Mas foi uma careta medonha que ganhou o concurso.
Até mesmo Coppenole levantou-se para aplaudir. A multidão aclamou o vencedor e o
elegeu o Papa dos Tolos. Ao retirarem o sujeito da capela, o assombro foi ainda
maior: ele não estava fazendo nenhuma careta. Aquela era mesmo a sua cara!
Rodeando-a, um cabelo ruivo numa cabeça redonda, uma corcunda entre os ombros e
uma grande barriga na frente para compensar; pernas arqueadas e dobradas como a de
um sapo, pés chatos, mãos enormes e, mesmo com toda essa deformidade, certo ar de
vigor, agilidade e coragem.
– É Quasímodo, o tocador do sino! É Quasímodo, o corcunda de Notre-Dame!
Quasímodo, aquele que tem um olho só! Viva! Viva! – gritavam vozes na multidão.
O pobre coitado tinha muitos apelidos.
– Eu não tenho sorte, pois moro ao lado de Notre-Dame e sempre o escuto uivando à
noite – dizia uma mulher.
– Ele anda pelos telhados! – dizia outra.
– Ele joga feitiços pelas chaminés!
– Ele nos assusta!
– É o próprio diabo!
Os homens, ao contrário, estavam encantados e aplaudiam. Quasímodo, o objeto de
toda a comoção, ainda estava em frente à capela, sério e compenetrado, deixando-se
admirar.
Coppenole aproximou-se dele:
– Por Deus, você é o monstro mais amável que eu já vi! – disse, colocando a mão
sobre o ombro de Quasímodo. – Vou convidá-lo a comemorar sua vitória comigo. O
que me diz?
Quasímodo continuava mudo.
– Por Deus, você não é surdo também, é?
Sim, ele era surdo. Impaciente que estava com a atitude do embaixador, começou a
ranger os dentes, o que fez com que todos se afastassem a uma distância de pelo
menos 5 metros. Uma senhora explicou ao convidado que Quasímodo era mesmo
surdo.
12
– Surdo? Por Deus, então é um Papa perfeito!
– Ele ficou surdo de tanto tocar os sinos – explicou a senhora. – Mas pode falar
quando quiser, pois não é nenhum bobo. E enxerga muito bem com o único olho!
– O homem que enxerga de um olho só é mais incompleto que um cego, pois sabe o
que lhe falta – filosofou Jehan Du Molin.
Todos os estudantes foram em procissão buscar o chapéu e as vestes do Papa dos
Tolos. Quasímodo deixou-se vestir, até com certa docilidade. Sentou-se sobre uma
cadeira como se fosse um trono, que foi erguido por doze homens que se
denominavam a Fraternidade dos Tolos. Uma alegria maldosa se apoderou do
corcunda, vendo todos aqueles rostos abaixo de seus pés, rostos que pertenciam a
homens bonitos, de costas retas e corpos bem-feitos. O séquito saiu do Grande Salão
para percorrer as ruas e praças públicas de Paris.
Durante toda essa cena, Gringoire e seus atores permaneceram fiéis ao mistério. Não
pararam de recitar seus versos enquanto o autor os aplaudia. Quando ele viu que a
multidão saíra para acompanhar o desfile do Papa, respirou aliviado:
– Ótimo! Isso vai nos livrar desses arruaceiros!
Infelizmente, os arruaceiros eram todo o público e, em poucos segundos, o salão
estava vazio.
Na verdade, ainda restavam alguns poucos expectadores, espalhados entre os pilares:
algumas mulheres, velhos e crianças, que não queriam saber de confusão. Alguns
estudantes também ficaram, empoleirados nas janelas.
– Bem, ainda há alguns aqui dispostos a ouvir minha peça até o final! – bradou
Gringoire. – Um público pequeno, mas seleto e intelectual!
O mistério recomeçou com a entrada da Virgem Maria, sem a música triunfal que a
acompanharia, já que o músico tinha seguido a procissão papal.
– Olhem! – gritou um estudante alguns minutos depois. – Esmeralda! Esmeralda está
na praça!
Todos os que estavam no salão correram para as janelas, tentando enxergar a praça,
de onde vinha uma onda de aplausos.
– Quem é essa Esmeralda agora? – perguntou-se Gringoire, apertando as mãos,
desesperado. Virou-se para os atores, vencido – Se eu for pago, vocês serão também
– e foi embora, com a cabeça baixa, mas com a certeza de um general que lutou até o
fim.
Descendoas escadas rumo à porta principal do palácio, murmurava:
– Que bando de jumentos e palhaços que são esses parisienses! Não deram a menor
importância para o mistério que vieram ver! E agora essa Esmeralda! Quem é essa
Esmeralda, afinal?
13
J
Capítulo 3
á era noite e as ruas estavam escuras quando Gringoire finalmente deixou o
palácio. Ele queria muito encontrar um local solitário, um beco onde pudesse
sentar e meditar sobre o que acontecera naquele dia. Suas meditações filosóficas eram
suas grandes amigas e seu único refúgio. Não ousaria retornar à hospedaria, onde já
devia seis meses de aluguel, sem ter recebido o dinheiro pela apresentação daquela
noite. Depois de parar por um momento sobre as colunas da Santa Capela, lembrou-
se de uma escadaria perto da porta de um político parisiense que seria muito
apropriada para um poeta.
Tomou o rumo do local escolhido entre o labirinto de ruas tortuosas da cidade e
deparou-se, ao virar uma esquina, com a procissão do papa dos tolos. Gritos e
aplausos eram acompanhados por música. A sua música. A música que compusera
para o mistério.
Foi o golpe fatal em sua autoestima. Fugiu. Passou correndo pela Ponte Saint Michel,
onde algumas crianças soltavam fogos.
– Ao diabo com os fogos! – gritou, ao passar por elas.
Ao atravessar a ponte, uma rua abria-se diante dele, tão deserta e escura, que parecia
uma caverna oferecendo abrigo da tempestade. Correndo, Gringoire tropeçou em algo
e caiu. Levantou-se rapidamente e continuou correndo, passando por jardins com
lama até a canela e chegando ao lado oeste da cidade. Ali, encontrou uma paisagem
bucólica: avistava apenas a cabana do vaqueiro.
– Oh, vaqueiro feliz! – suspirou Gringoire. – Você nunca sonhou com glória e fama!
Você só conhece o pasto de suas vacas e as margaridas que crescem no campo! Sua
cabana descansa meus olhos!
Minutos depois, o vaqueiro sai da cabana e lança um foguete explosivo e colorido.
– Maldito festival! Maldito dia! – amaldiçoou Gringoire, rangendo os dentes.
Olhando o rio Sena aos seus pés, suspirou:
– Ah, quem me dera poder me afogar... Mas a água está tão fria...
Passada essa vontade de atentar contra a própria vida, respirou fundo e tomou a
decisão mais improvável de todas: já que não conseguia fugir dos folguedos, então
iria se atirar de cabeça neles! Decidiu ir até a Praça de Grève.
– Pelo menos – raciocinou – poderei tomar algum vinho e me esquentar.
Quando chegou lá, estava desfigurado: as pernas enlameadas até os joelhos, o casaco
encharcado, o rosto abatido. O frio que sentia tornava-se ainda maior devido ao seu
estado de espírito abatido.
Abriu caminho entre os transeuntes para tentar se aquecer na grande fogueira que
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havia bem no centro da praça.
– Malditos parisienses! – vociferava enquanto abria o caminho a cotoveladas. – Ao
inferno com o Cardeal, os embaixadores e o papa!
Chegando perto do fogo, viu que a multidão aglomerava-se ali não somente pelo
calor: entre o fogo e a multidão, uma garota dançava.
Se era uma mulher, uma fada ou um anjo, Gringoire, com toda a sua filosofia cínica e
sua poesia, não conseguiu decidir. Por um momento parou, congelado diante de tão
esplêndida visão.
Ela não era alta, mas tinha uma postura esguia e orgulhosa. A pele era escura, mas à
luz do dia tinha aquele brilho dourado tão característico das romanas e espanholas.
Seus pezinhos também eram andaluzes, ágeis dentro dos sapatinhos delicados, cheios
de laçarotes. Ela dançava e girava em cima de um tapete persa, jogado
displicentemente aos seus pés. Cada vez que ela passava perto, seus olhos negros
lançavam raios de luz.
Todos ficavam boquiabertos ao vê-la dançar, batendo no pandeiro que trazia junto à
cintura, levantando, ao girar, sua saia ampla e colorida, mostrando as pernas
torneadas. As mangas caídas revelavam os ombros, cobertos pelo cabelo negro. Nem
parecia mortal.
– Oh, é uma salamandra! – balbuciou Gringoire. – Uma ninfa, uma deusa, uma
bacante!
Mas, observando bem, Gringoire logo percebeu: era uma cigana.
Agora, ela pegava duas espadas e as girava no ar. O fogo refletia o brilho do metal,
projetando reflexos e sombras na multidão. A dançarina finalmente encerrou sua
dança, ofegante, e a multidão aplaudiu calorosamente.
– Djali! – chamou ela.
Gringoire virou-se e viu uma linda cabritinha branca, vivaz, com o pelo brilhante e os
chifres e os cascos dourados, que tinha ficado deitada durante toda a apresentação na
ponta do tapete.
– Djali, é a sua vez agora! – disse a dançarina.
A cabritinha sentou-se quando a cigana colocou o pandeiro na sua frente.
– Djali, em que mês do ano estamos?
A cabritinha bateu uma vez com a pata no pandeiro. Era realmente o primeiro mês do
ano. A multidão aplaudiu.
– Djali, em que dia do mês estamos?
A cabritinha bateu seis vezes no pandeiro.
– Djali, que horas são?
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A cabritinha bateu sete vezes no mesmo instante em que o relógio da torre dava sete
badaladas.
A multidão ficou maravilhada! E a cigana passou para recolher os presentes que as
pessoas ofereciam: pequenas e grandes moedas de prata, moedas de menor valor e
outras prendas eram colocadas dentro do pandeiro. Logo a jovem estava ali, ao lado
de Gringoire, que procurava angustiado alguma coisa dentro de seus bolsos vazios
enquanto ela esperava, sorrindo e estendendo o pandeiro, encarando-o com seus
grandes olhos negros.
Por sorte, um evento inesperado o tirou daquele constrangimento:
– Vá embora daqui, sua cigana nojenta!
A jovem cigana virou-se, horrorizada. O grito era de uma mulher e, embora tenha
assustado a cigana, fez um bando de crianças se divertirem. Gringoire aproveitou a
distração para se afastar dali e lembrou-se de que, não tendo dinheiro, não poderia
comer. Era horrível ter que ir dormir sem ter jantado. Não tinha abrigo nem comida.
Entretido que estava em sua melancolia e com a sinfonia de seu estômago, foi
interrompido por uma música: a cigana agora cantava.
Sua voz era como a sua dança e a sua beleza. Era linda e pura, quase etérea,
ondulando na cadência suave. Sua expressão facial seguia os humores da melodia
com uma flexibilidade singular, da mais livre inspiração à mais casta dignidade. Ela
passava de louca a rainha em uma única nota. Gringoire sentiu lágrimas lhe brotarem
nos olhos. A canção era cheia de alegria e ela cantava como um pássaro voando alto e
solto.
Gringoire a ouvia numa espécie de êxtase, que o fez esquecer de todo o resto do
mundo. Era o primeiro instante, em horas, em que não sentia nenhuma dor.
Mas esse momento durou pouco.
A mesma voz que perturbara antes voltou a gritar, a plenos pulmões:
– Cale a boca, seu grilo infernal! – veio o berro da penumbra de um dos cantos da
praça.
O pobre “grilo” parou de cantar imediatamente. Gringoire ficou desolado. A multidão
em volta também. Todos começaram a procurar a dona daquela voz irritante. Mas ela
conseguiu se livrar a tempo, pois a procissão do Papa dos Tolos chegava agora à
praça.
A procissão, que o leitor se recorda de ter saído do Palácio da Justiça, já tinha
agregado todo tipo de vagabundos e transeuntes, além de uma boa parcela dos ladrões
das ruas de Paris. Então, pode-se imaginar a aparência “respeitável” desse cortejo e o
barulho que faziam.
É difícil descrever o orgulho e o grau de enlevo que o rosto horroroso e triste de
Quasímodo assumira com o decorrer da marcha. Era a primeira vez na vida que sentia
alguma vaidade. Desde então, só conhecera humilhação, desdém e nojo. Mesmo
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surdo, agradava-lhe, como um papa verdadeiro, o aplauso da multidão que ele odiara,
pois pensava que o odiavam também. O que lhe importava seus súditos serem tolos,
aleijados, ladrões e mendigos? Ele ainda era o soberano deles e eles seus
subordinados! Estava levando a sério todos os aplausos irônicos e todo o respeito
satírico da multidão, que, no entanto, sentia de fato certo medo, pois o corcunda era
forte, ágil e mau, três qualidades que contrabalançam o ridículo.
Não pensemos que o Papa dos Tolos conhecia bem os sentimentos daquela multidão
e os seus próprios. A mentealojada naquele corpo imperfeito era incompleta e tola.
Naquele instante, seus sentimentos eram confusos, vagos e indistintos. Entretanto, o
rosto sombrio e infeliz estava definitivamente radiante, banhado de orgulho.
Foi quando um homem, que Gringoire reconheceu como Dom Claude Frollo, o
religioso que dava aulas na universidade, abriu caminho por entre a multidão e,
conseguindo chegar perto do Papa dos Tolos, arrancou-lhe das mãos a cruz dourada.
A multidão começou a gritar quando Quasímodo saltou de seu trono, certa de que o
corcunda iria fazer o homem em pedaços.
Mas, para a surpresa de todos, o corcunda ajoelhou-se diante do padre, que
prontamente lhe arrancou a coroa e o manto, rasgando-o em seguida.
Quasímodo, de joelhos, prostrado, humilde, erguia as mãos em súplica enquanto o
homem gesticulava, com o rosto severo, o corpo ereto e rígido, ameaçador e
impetuoso. Mesmo assim, podia-se ter certeza de que Quasímodo poderia tê-lo
esmagado com o polegar.
Finalmente, depois desse diálogo sem palavras, o padre chacoalhou o ombro do
infeliz e gesticulou para que o seguisse, o que Quasímodo fez imediatamente, abrindo
caminho a cotoveladas entre a multidão. Seus súditos, que tão abruptamente foram
destituídos de seu rei, ainda tentaram segurar o padre e foram atacados a mordidas
por Quasímodo.
Os dois seguiram por uma rua estreita e escura, que saía da praça. Ninguém ousou
segui-los ao ver Quasímodo ranger os dentes como uma besta.
– Que coisa mais estranha! – exclamou Gringoire.
Mas logo voltou ao que mais lhe preocupava:
– Onde eu posso achar alguma coisa para comer?
Além da comida, Gringoire só tinha mais uma coisa em mente: estava disposto a
seguir a cigana, não importava o que custasse. Tinha visto que ela e a cabritinha
pegaram a Rua de La Coutellerie e lá foi ele.
– Por que não? – perguntou-se.
Nada era mais próximo de um sonho poético do que perseguir uma mulher exótica
pelas ruas escuras. A garota começou a apressar o passo e os passos da cabritinha
quando percebeu que as pessoas voltavam para suas casas e os poucos
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estabelecimentos abertos no feriado já estavam fechando.
Gringoire tinha outro tipo de interesse naquela perseguição: sem saber onde iria
dormir, pensava que os ciganos, em sua lendária generosidade, pudessem lhe oferecer
uma cama. E algumas ideias flutuavam em sua mente como pontos reticentes...
A garota e a cabritinha andavam graciosas nas pontas dos pés nas ruas cada vez mais
escuras e desertas. Vez ou outra, a cigana virava-se para olhar para ele, estudando-o.
Aproveitando um facho de luz que saía de uma janela, ela olhou para trás e sorriu.
Era tudo o que Gringoire precisava para começar a sonhar. Ela andava cada vez mais
rápido e ele atrasava-se, demorando em seus devaneios. Foi assim que a perdeu de
vista numa esquina.
Ouviu, em seguida, um grito de horror.
Saiu correndo e deparou-se com a garota contorcendo-se nas mãos de dois homens,
que tentavam contê-la e abafar seus gritos. A cabritinha, impotente diante da cena,
apenas baixou os chifres e balia piedosamente.
– Por aqui, senhores da guarda noturna! – bradou Gringoire, avançando em direção
aos três a passos largos.
Um dos homens se virou. Era Quasímodo. Gringoire não fugiu; tampouco continuou
andando.
O corcunda aproximou-se e lhe deu um tapa que o fez cair no chão, voltou
rapidamente para pegar a cigana e colocou-a por cima do ombro como se fora uma
echarpe de seda. O outro homem o acompanhou e a cabritinha também foi atrás,
balindo como se suplicasse.
– Assassinos! Vão me matar! – berrava a cigana.
– Parem, imprestáveis, e deixem a mulher! – gritou abruptamente uma voz de trovão,
vinda de um cavaleiro que apareceu de repente na encruzilhada.
Era o capitão dos arqueiros do Rei, armado dos pés à cabeça.
Ele arrancou a garota dos braços de um Quasímodo impressionado e colocou-a sobre
a sela, virando o cavalo para ir embora. Quasímodo recuperou-se do susto e correu
atrás de sua presa. Foi quando chegaram outros quinze ou dezesseis arqueiros e
cercaram o corcunda. O outro homem fugira.
Se estivesse à luz do dia, sem dúvida que a cara monstruosa do corcunda teria
espantado os homens. Sua feiura era sua arma mais poderosa.
A cigana, agora sentada na sela do cavaleiro, olhava enlevada seu herói, que chegara
na hora exata para salvá-la. Quebrando o silêncio, perguntou:
– Qual é o seu nome, oficial?
– Capitão Phebus de Châteaupers, a seu serviço! – respondeu o oficial, assumindo
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posição de sentido.
– Obrigada!
E enquanto o oficial cofiava seu bigode, ela descia do cavalo como uma flecha desce
ao chão e fugia. Um raio não poderia ser mais rápido.
– Ora! Queria que ela tivesse ficado comigo! – exclamou o capitão, logo depois de
dar ordens para que amarrassem Quasímodo com mais força.
– O que se pode fazer? – disse um dos oficiais que o amarrava. – O pássaro voou,
mas o morcego está aqui.
Gringoire, zonzo da queda, jazia deitado na rua. Pouco a pouco, recobrou seus
sentidos, sonhando acordado com a cigana e sua cabritinha, ainda sentindo a força do
golpe de Quasímodo. De repente, uma sensação de frio lhe gelou a espinha. Foi
quando percebeu que estava caído numa poça de lama.
– Maldito corcunda! – murmurou, tentando se levantar.
Mas suas pernas não obedeciam e ele foi forçado a esperar ali por mais alguns
minutos, machucado e ainda muito zonzo. Pensou na cena que acabara de ver: a
cigana se debatendo nos braços de Quasímodo, que tinha um companheiro. A face do
padre aparecia no meio de tudo. “Que estranho”, pensou. Seus pensamentos foram
interrompidos por uma nova onda de frio.
– Estou congelando! – exclamou.
Foi nesse momento que um bando de moleques de rua passou correndo e gritando,
sem mostrar o mínimo respeito pelo descanso alheio. Também carregavam um saco
que parecia cheio de madeira, cujo barulho seria capaz até de levantar os mortos.
Gringoire ainda estava vivo e sentou-se assim que ouviu o grupo se aproximar.
– O velho Eustáquio da esquina acabou de morrer! E nós pegamos seu colchão de
palha para fazer uma grande fogueira em sua homenagem!
Dizendo isso, lançaram o colchão sobre Gringoire, mas na verdade não tinham visto
que ele estava ali. Ao mesmo tempo, já colocavam fogo num pedaço de palha.
– Pelo corpo de Cristo! – bradou Gringoire. – Será que vou passar de congelado a
frito?
Era um momento crítico: logo o colchão estaria em chamas. Com um esforço
sobrenatural, levantou-se, arremessou o colchão contra os travessos e fugiu.
– Pela Virgem! – gritaram os meninos. – O velho Eustáquio ressuscitou!
E saíram correndo.
O colchão continuou ali na praça e foi recolhido no dia seguinte pelo padre. Levado à
Capela da Santa Oportunidade, onde ficou até 1789, deu uma vida bem confortável
ao sacristão, pois atraía pessoas que pagavam para ver o colchão milagroso da
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Virgem que ressuscitara o velho Eustáquio naquela noite de 6 de janeiro de 1482.
Depois de muito correr, em pânico, por becos escuros, as pernas do nosso poeta não
aguentaram mais. Ofegante, ele parou, recuperou-se do susto e continuou andando.
Seus ouvidos estavam alertas e seus olhos procuravam um colchão ou um cobertor
abandonado. Mas só via casas escuras e ruas desertas.
Foi aí que aconteceu. Entrando na Praça dos Milagres, foi cercado por um grupo de
marginais e, impotente, levado ao “Rei dos Mendigos” para ser julgado. Dentro de
um bar fétido e bagunçado, foi apresentado ao tal rei, que era nada mais nada menos
do que o mendigo que atrapalhara a apresentação do seu mistério no Palácio da
Justiça, naquela manhã.
Ao saber quem era o prisioneiro, o julgamento foi rápido:
– Vou enforcá-lo por ter me chateado com aquela peça! À forca com ele!
Gringoire pouco pôde falar ou fazer. A corda já estava preparada e ele já estava sobre
um pedaço de madeira, quando o rei disse:
– Aqui temos pessoas de todos os credos e de todos os lugares. Há uma lei, uma lei
dos ciganos, que diz que um homem pode ser salvo por uma mulher disposta a casar-
se com ele. Então, vamos perguntar às mulheres presentes se estão interessadas.Apareceu uma mulher jovem, de rosto quadrado, e pôs-se a examinar as roupas de
Gringoire. Insatisfeita com a aparência pobre e as roupas rasgadas, afastou-se. A
segunda, uma velha, achou-o magro demais. A terceira, uma jovem que nem era
assim tão feia, olhou-o nos olhos.
– Salve-me! – sussurrou o pobre diabo.
– Não! Acho que você bate em mulheres! Podem enforcá-lo!
Gringoire já prendia a respiração enquanto a multidão de mendigos e bandidos
gritava e aplaudia, quando ouviu um nome familiar.
– Esmeralda!
Sim, era a cigana.
– Esmeralda! – disse Gringoire, abismado.
Altiva e determinada, ela abria caminho entre os vândalos. Sua cabritinha branca a
seguia.
– Esse homem será enforcado? – perguntou ela ao rei dos mendigos.
– Sim! – respondeu ele. – A não ser que você o aceite como marido.
– Eu o aceito.
Nesse momento, Gringoire teve a certeza de que, desde que começara o dia, estivera
sonhando. O nó em volta de seu pescoço foi desfeito e ele apressou-se em descer de
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seu lugar de martírio, mesmo com as pernas bambas.
Trouxeram um jarro e solenemente o arremessaram ao chão.
– O jarro se quebrou em quatro pedaços – disse o rei dos mendigos. – Vocês ficarão
casados por quatro anos. Agora, saiam daqui!
Em apenas alguns minutos, nosso poeta se encontrava num quarto aconchegante,
sozinho com uma linda garota. Parecia que tinha entrado numa história mágica, onde
ele era o herói de um conto de fadas.
A garota andava de um lado para o outro, sem prestar muita atenção nele. Cochichava
e ria com sua cabritinha, arrumava algumas coisas e, depois de algum tempo,
finalmente sentou-se à mesa, onde Gringoire pôde examiná-la à vontade.
“Esta é Esmeralda!”, pensou Gringoire, sentindo-se perdido num devaneio. “Uma
cigana, uma dançarina de rua! Um demônio e um anjo! O anjo bom que salvou a
minha vida! Uma linda mulher! Ela certamente me ama!”
Pensando assim, levantou-se e dirigiu-se a Esmeralda:
– Eu não sei bem o que aconteceu, mas eu sou seu marido agora!
Dizendo isso, aproximou-se, não escondendo a paixão que transbordava em seu corpo
e em seus olhos.
– O que você quer? – perguntou a moça, afastando-se.
– Ora... Já não somos casados? – disse ele, colocando as mãos sobre a sua cintura.
Em segundos, a cigana se desvencilhou como uma cobra e rapidamente empunhou
um pequeno punhal, que Gringoire nem teve tempo de ver de onde saíra. A cabritinha
se colocou na frente da dona, balindo e apontando os chifres.
– Pela Virgem Maria! – exclamou o poeta. – São duas contra mim!
– Você é um pilantra! – disse a cigana, quebrando o silêncio.
– Perdoe-me, senhorita. Mas foi a senhora que se casou comigo.
– Deveria deixar que morresse enforcado?
– Você só se casou comigo para poupar minha vida?
– E por que outro motivo o faria?
Gringoire suspirou. Ele não era o tal herói dos contos de fadas, afinal.
– Juro que não tocarei em você a não ser que você me permita ou me peça. Quero
apenas um favor: você pode me dar algo para comer?
Vendo que Gringoire não era nenhum Don Juan e que ela não teria que se preocupar
com sua segurança, a cigana caiu na risada e guardou o punhal, não se sabe onde. Em
poucos minutos, preparou um pouco de carne e serviu-a com um pedaço de pão, uma
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caneca de cerveja e algumas maçãs. Gringoire começou a comer desesperadamente.
Pelo seu furor diante do prato de comida, toda a sua paixão tinha se convertido em
fome.
A garota sentou-se perto dele em silêncio, absorta em seus próprios pensamentos,
sorrindo ocasionalmente enquanto acariciava a cabecinha inteligente da cabritinha,
que descansava apoiada em seus joelhos.
Uma vela amarela iluminava essa cena de voracidade e devaneio.
– Não quer comer nada, senhorita? – perguntou Gringoire, vendo que restava apenas
uma maçã.
Mas Esmeralda olhava para o arco do teto, perdida em pensamentos.
“O que será que ela está pensando?”, perguntou-se Gringoire, olhando para cima
também.
– Senhorita! – chamou.
Ela não o ouviu.
– Senhorita Esmeralda! – chamou mais alto.
A garota não estava mais ali, naquele quarto, e a voz de Gringoire não tinha a
capacidade de trazê-la de volta. Por sorte, a cabritinha pareceu entender a situação e
suavemente puxou a manga da blusa da sua dona.
– O que foi, Djali? – perguntou a cigana, assustando-se.
– A criatura está com fome – declarou Gringoire, feliz de ter conseguido um começo
de conversa.
Esmeralda amassou um pedaço de pão e ofereceu à cabritinha, que comeu na palma
de sua mão.
– Então você não me quer como marido? – apressou-se a perguntar Gringoire, antes
que a cigana voltasse a sonhar.
– Não – respondeu ela, olhando-o firmemente nos olhos.
– Como amante?
– Não.
– Como amigo?
– Talvez – respondeu, depois de pensar um pouco.
– Você sabe o que é amizade, não sabe?
– Claro, é como ser um irmão, dois dedos na mesma mão.
– E o amor?
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– Amor é ser dois e apenas um. Um homem e uma mulher unidos num corpo de anjo.
É o paraíso.
Enquanto falava de amor, a dançarina assumia uma beleza quase irreal, com seu meio
sorriso nos lábios rosados.
– O que é necessário ser para ganhar seu coração?
– É necessário ser um homem...
– E eu sou o quê?
– É necessário ser um homem com um capacete, uma espada e esporas douradas nas
botas.
– Ah, então é a roupa que faz o homem! Você já ama alguém?
– Vou saber logo...
– Por que não saber esta noite? Agora? Comigo? – perguntou o poeta, ternamente.
– Só posso amar um homem que consiga me proteger – respondeu, séria.
Gringoire sentiu sua face ficar ruborizada. Era óbvio que não seria ele, franzino e
fraco. Lembrou-se, naquele momento, do que vira naquela noite.
– Senhorita, devia ter começado a conversa do começo. Como você conseguiu
escapar das garras de Quasímodo?
– Oh, aquele corcunda horrível! – gritou, escondendo a face nas mãos, tremendo.
– Horrível mesmo – continuou Gringoire. – Mas, conte-me: como conseguiu?
Esmeralda apenas sorriu, suspirou e não respondeu.
– Você sabe por que ele a perseguiu? – insistiu Gringoire.
– Eu não sei. Mas você também estava me seguindo. Por quê?
– Para ser honesto, eu não me lembro.
Ficaram os dois em silêncio. Gringoire começou a riscar a mesa com a faca e
Esmeralda começou a acariciar Djali.
– Sua cabritinha é muito bonita – disse Gringoire.
– É minha irmã – respondeu Esmeralda.
– O que significa seu nome, “Esmeralda”?
– Não sei, é uma palavra cigana – disse, tirando de dentro da blusa o pingente do
colar, que parecia uma pequena bolsa de seda verde, com um pedaço de vidro na
frente, imitando uma esmeralda. – Talvez me chamem Esmeralda por causa disso. É
um amuleto.
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– Seus pais estão vivos?
Ela não respondeu.
– Quando você veio para a França?
– Quando era bem pequena. Mas cheguei a Paris no ano passado. E você? Eu nem ao
menos sei o seu nome.
– É meu nome, mas também pode ser seu se quiser: Pierre Gringoire.
– Conheço um nome mais bonito.
– Que crueldade a sua! Talvez você me ame depois de me conhecer melhor. Eu sei
sua história e agora ouça a minha: há vinte anos, durante o cerco de Paris, meus pais
foram mortos. Fiquei órfão aos seis anos, sobrevivi de migalhas. Fui soldado e
aprendiz de carpinteiro. Mas quando vi que não conseguia fazer nada certo, virei
poeta. Fui eu que escrevi a peça representada hoje no Palácio da Justiça. Também
escrevi um livro de seiscentas páginas sobre a passagem do cometa em 1465, que
deixou um homem louco. Meu livro e minha peça me darão muito dinheiro e estou
disposto a dividi-lo com você, se vivermos juntos como marido e mulher, ou como
amigos, se preferir.
Gringoire esperou a reação dela, mas a cigana não tirou os olhos do chão.
– Phebus... – disse ela, baixinho. E, virando-se para o poeta: – O que significa
Phebus?
Gringoire não entendeu qual era a relação entre o que havia acabado de falar e aquela
pergunta, mas fez questão de demonstrar sua erudição.
– É uma palavra latina que significa “sol”.
– Sol? – repetiu ela.
– Sim, é o nome de um deus arqueiro.
– Um deus! – repetiu a garota, num tom de voz que demonstrava surpresa e paixão.
Nesse momento,ela deixou cair um de seus braceletes. Gringoire abaixou-se para
pegá-lo e, quando levantou a cabeça, a cigana e sua cabritinha tinham desaparecido.
Ele ainda chegou a ouvir o barulho da porta sendo trancada por fora.
– Pelo menos, tenho onde me deitar – suspirou o poeta, testando a superfície de um
baú de madeira. – Esta é a noite de núpcias mais estranha que eu já vi.
24
D
Capítulo 4
ezesseis anos antes do começo da nossa história, no ano de Nosso Senhor de
1467, na primeira manhã de domingo depois da Páscoa, hoje conhecido como
“o domingo de Quasímodo”, foi colocada uma cesta, com uma criatura dentro, na
porta da Igreja de Notre-Dame.
Essa criatura atiçou a curiosidade das pessoas, que se reuniam ao redor da cesta. A
maioria das pessoas eram mulheres idosas.
– O que é isso, irmã? – perguntou uma.
– Parece uma criança, mas é assim que são as crianças hoje em dia? – perguntou a
outra.
– Não sei nada sobre as crianças de hoje, mas deveria ser pecado olhar para isso.
– Isso não é uma criança.
– É um macaco deformado.
– É um monstro deformado, algo que não é certamente cristão. Deve ser morto.
– Só espero que as boas freiras não queiram adotar essa coisa. Eu preferiria cuidar de
um bebê vampiro.
– Isso não é um bebê. Esse pequeno monstro tem pelo menos quatro anos.
Realmente, o “pequeno monstro” era uma criança esquelética, enrolada num pedaço
de linho, marcada com o monograma de M. Guillaume Chartier, então Bispo de Paris.
Apenas a cabeça era visível e já causava grande comoção: era totalmente deformada,
tinha um tufo de cabelos ruivos e apenas um olho, além da boca torta. O olho
chorava, a boca gritava e mostrava os dentes ansiosos por uma mordida. O corpo todo
se sacudia e contorcia dentro da bolsa de linho. Tanto barulho atraía cada vez mais
pessoas.
Alguns já anunciavam as possíveis pragas que esse monstro traria; outros, o
culpavam pela praga do ano que passara. Além disso, os ingleses planejavam uma
nova invasão e, agora que aparecera essa abominação, a vitória dos britânicos era
dada como certa!
Foi quando uma das mulheres velhas sugeriu que queimassem vivo o “pequeno
feiticeiro”, sugestão que agradou a todos, menos a um jovem padre, que até aquele
momento ouvira tudo à distância e não tinha se pronunciado. Ele atravessou a
multidão silenciosamente, afastou as pessoas e observou o “pequeno feiticeiro”.
Passou a mão sobre ele, enquanto as mulheres já lambiam os beiços à espera do
espetáculo da fogueira.
– Eu adotarei essa criança – disse o jovem padre, já abraçando o casulo de linho e
levando-o embora.
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Os espectadores olharam assombrados um para o outro, enquanto o padre entrava na
igreja.
– Eu sempre soube, irmã – disse uma das anciãs –, que esse padre Claude Frollo era
um feiticeiro.
Na verdade, Claude era apenas um sujeito comum. Sua família era da classe média e,
desde bem pequeno, traçara seu destino dedicado ao clero. Sabia ler latim e foi
treinado a olhar para baixo e quase não falar. Desde muito jovem, estudou no
convento da Universidade. Era sério, triste e sóbrio, amava estudar e aprendia rápido.
Aos dezesseis anos, já conseguia debater com maestria sobre teologia mística e
canônica com qualquer padre e sobre escolástica com qualquer doutor da Sorbonne.
Estudou também medicina e farmacologia, tornando-se especialista em febres e
pequenos arranhões, feridas e inchaços. Era também cirurgião. Adorava as artes e
formou-se em línguas – latim, grego e hebraico –, além de ciências. Aos dezoito, já
completara quatro faculdades. A vida, para esse jovem, era aprender.
Foi mais ou menos nessa época, em 1466, que um surto de calor causou uma grande
epidemia de peste, que levou consigo mais de quatro mil almas na cidade de Paris.
Rumores na Universidade diziam que a rua Tirechappe estava especialmente
condenada pela doença. Era onde moravam os pais de Claude. Ele correu até lá, mas
só a tempo de ver que o pai e a mãe tinham morrido na noite anterior e seu
irmãozinho caçula ainda chorava no berço. Com o irmão nos braços, ele foi embora.
Até aquele dia, tinha vivido para a ciência; agora, era a vida real que o chamava.
Essa catástrofe foi um marco em sua existência: era órfão, era o mais velho e agora
chefe de família aos dezenove anos. Era o fim dos sonhos estudantis e o começo da
vida adulta. Movido pela compaixão, sentiu seu coração ser preenchido de amor e
devoção por essa criança, que era seu irmão. Era estranho sentir afeição por um ser
humano, pois em toda a sua vida só amara os livros. Tanto estudou e nunca aprendeu
que tinha um coração que podia amar.
O pequeno Jehan recebia do irmão toda a afeição e infinita compaixão, pois Claude o
encarava como uma responsabilidade divina. Aos vinte anos, ordenou-se padre e
enterrou-se novamente nos livros.
Sua reclusão e seu silêncio fizeram com que as pessoas começassem a falar que ele
era um feiticeiro. Por isso, assim que a multidão o viu sair do claustro e recolher
aquele monstro, o boato recomeçou. Claude, entretanto, apenas vira ali mais uma
criança que poderia ser objeto de sua afeição e caridade.
Quando o padre desembrulhou a criança, viu que ela era mesmo deformada. As
costas arqueadas, as pernas tortas, a cabeça enterrada no pescoço. Mas parecia querer
viver como qualquer criança normal e berrava, faminta. A piedade de Claude apenas
aumentava ao ver tamanha feiura. Ele o batizou de Quasímodo, em homenagem
àquele dia em que se lia em latim uma passagem da carta de São Pedro que começava
assim: “quasimodo infantes”, ou para mostrar a incompletude e imperfeição daquela
26
criatura. Um olho, corcunda, pernas tortas... Realmente, Quasímodo era “quase” um
ser humano normal.
Em 1482, 15 anos depois daquele encontro na porta da igreja, Quasímodo já tinha
crescido. Há alguns anos, trabalhava como tocador do sino de Notre-Dame. Com o
tempo, desenvolveu-se um laço de intimidade entre o tocador e a igreja. Separado do
mundo por sua aparência horrenda, sem saber quem foram seus pais e confinado
desde a infância aos ambientes sacros, o pobre coitado não via nada além dos muros
que o cercavam. A sombra de Notre-Dame fora para ele, enquanto crescia, ovo,
ninho, casa, país e universo.
Quando pegara, mecanicamente, a corda do sino e o fez tocar, parecera, aos olhos de
seu pai adotivo, Claude, que a língua daquele pequeno ser se soltara e ele começara a
falar.
Grato que estava por sua eloquência, Quasímodo, ora deitando-se aqui, ora
recostando-se ali, nunca se libertara da misteriosa influência daqueles capitéis
românicos e de seus ângulos agudos.
Havia certa harmonia e uma profunda simpatia entre Quasímodo e a velha igreja. Ele
conhecia cada canto, cada coluna, cada trecho da fachada. Não havia um pedaço do
edifício que ele ainda não havia explorado. Seu corpo e seu espírito tinham sido
moldados ali.
Foi com grande sacrifício que Claude o ensinara a falar. Mas uma fatalidade acabou
por destruir todo o esforço do padre: desde os catorze anos, Quasímodo tocava os
sinos, o que destruíra seus tímpanos. Surdo, a única porta que possuía com o mundo
exterior tinha se fechado.
Ficaram para fora também os raios de luz e felicidade que ainda chegavam
ocasionalmente à alma de Quasímodo. Sua melancolia tornou-se tão completa e
desesperada quanto sua deformidade. Sua tristeza embotou também sua inteligência e
ele trancou a língua que Claude se esforçara tanto para libertar.
Nascido com apenas um olho, sua visão não era apenas parcial, mas também
distorcida. O mundo lhe era distante e embaçado, diríamos praticamente
imperceptível. Mas sua natureza era também danosa, porque era selvagem; era
selvagem porque era horrível. Havia certa lógica em sua maldade. Tudo isso
acrescido de uma vitalidade e força sobre-humanas.
Devemos ser justos e reconhecer que sua maldade não era original, pois desde muito
pequeno aprendeu o que era ódio, repulsa e maldade. Para ele, uma conversa
significava insultos e zombaria. Acabou por adotar a própria arma com a qual foi
ferido.
Por isso, dentro da catedral, ele estava a salvo. As estátuas de mármore,os reis e
santos nunca riram dele nem o odiaram. Ao contrário, sempre o olhavam com um
olhar benevolente, cheio de paz. As gárgulas, os monstros da fachada, riam dos
homens. Eram seus amigos, o protegiam. Ali ficavam os monstros de pedra e
27
Quasímodo, em longas conversas.
A catedral era sua mãe, os sinos seus irmãos queridos. Quinze irmãos, que
pacientemente esperavam que sua mão os fizesse cantar.
Os egípcios o chamariam de “deus do templo”; os medievais o chamaram de
“demônio”; eu o chamo de “alma” da catedral. Tanto era a alma, que os que viveram
na época de Quasímodo acham que, hoje em dia, Notre-Dame é apenas um esqueleto
deserto, inanimado e morto. Algo não está mais ali. O enorme prédio está vazio,
destituído de espírito.
Havia, entretanto, um ser humano que Quasímodo amava mais do que sua catedral:
seu pai adotivo, Claude Frollo.
Era entre suas pernas que ele se escondia quando os outros garotos lhe jogavam
pedras e os cachorros latiam. Foi ele que o ensinou a ler, a falar e a escrever. Foi ele
que o nomeou tocador dos sinos.
Por isso, a gratidão de Quasímodo era profunda, apaixonada e sem limites. Apesar do
rosto sempre severo de seu pai, apesar de suas poucas e ríspidas palavras, era sempre
o mais gentil dos servos, o mais submisso dos escravos e o mais atento dos vigilantes.
Quando ficou surdo, os dois inventaram uma linguagem de sinais incompreensível
para qualquer outra pessoa. Por isso, Claude era o único ser humano com quem o
corcunda conseguia se comunicar.
A devoção de Quasímodo era integral ao padre e à catedral. Não havia nada neste
mundo que pudesse impedir Quasímodo de satisfazer um desejo de seu pai. E nada o
impediria de proteger o território sacro de sua igreja “mãe”.
Quando Quasímodo completou vinte anos, Claude Frollo completou trinta e seis. Um
tinha crescido, o outro envelhecido.
Nesse meio-tempo, Claude não era mais aquele jovem sonhador com uma criança nos
braços. Já era o padre Frollo, ainda mais austero e dedicado. Mas seu irmão, Jehan,
não seguira o caminho que o irmão religioso planejara: tornara-se um exemplo de
preguiça, ignorância e desobediência. Aos dezesseis anos, entregou-se a noitadas e
desatinos.
Isso entristeceu o coração de Claude e o desencorajou de se entregar às afeições
humanas. Buscou conforto nos braços da Ciência e da Igreja. Foi quando suas
experiências o levaram à alquimia e às experimentações. O povo logo percebeu a
fumaça e as luzes estranhas que podiam ser vistas no alto da torre, num quartinho
onde ninguém nunca tinha entrado. Bastou isso para que a fama se espalhasse:
Quasímodo era o demônio, e Claude, o feiticeiro.
Ao vê-los andando juntos, as pessoas sempre se esmeravam em seus comentários:
– Vejam! Um tem a alma tão deformada quanto o corpo do outro!
– A tortura de um é a loucura do outro!
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Nenhum dos dois escutava: um, porque era surdo, o outro, porque vivia em seu
próprio mundo de reflexões científicas.
O comportamento de Claude, ao contrário dos boatos, nunca foi tão exemplar como
nessa época. Se antes afastava-se das mulheres, agora as odiava, principalmente as
ciganas. Havia pedido ao bispo que expressamente proibisse a trupe de ciganos de
dançar e cantar na praça. Também recolheu todos os registros de bruxos e bruxas que
pudessem ter parte com o demônio por cumplicidade com bestas tais como cabritos,
porcos e carneiros.
29
V
Capítulo 5
oltemos à manhã daquela fatídica noite de núpcias do nosso poeta Gringoire. O
leitor deve se recordar que Quasímodo fora preso por bater em Esmeralda e
agora era levado a julgamento.
Obviamente, uma multidão o aguardava, a mesma multidão que, no dia anterior, o
aclamara o Papa dos Tolos. Quasímodo surgiu acorrentado, amarrado, garroteado e
bem vigiado, pelo mesmo pelotão que o prendera na noite anterior. Não havia nada
em Quasímodo que justificasse tamanho aparato, a não ser sua deformidade. Ele
estava quieto e calmo. Seu olho solitário apenas lançava, de vez em quando, um olhar
de ódio às correntes que o seguravam. Mas, quando os erguia, tinha a mesma
expressão de estupidez e sonolência que fazia as pessoas rirem.
Mestre Florian, o juiz, examinava os papéis que continham a acusação contra
Quasímodo. Quando acabou de ler, levantou a cabeça e olhou para o acusado com os
olhos semicerrados, para parecer mais majestoso e imparcial, e nesse momento, além
de surdo – um pequeno defeito para um juiz –, ficou também cego.
– Seu nome? – perguntou o juiz ao acusado.
Quasímodo, que nem tomara conhecimento da pergunta, continuou a olhar fixamente
para o juiz e nada respondeu. O juiz, surdo, e sem saber que o réu também o era,
pensou que já tinha obtido sua resposta e continuou com seu questionário
mecanicamente:
– Bom! Sua idade?
Quasímodo não respondeu.
– E agora, qual é o seu trabalho?
De novo, o silêncio. As pessoas começaram a cochichar.
– Tudo bem, já é o suficiente – disse o juiz, que pensava já ter dado tempo suficiente
para uma resposta. – Você é acusado de perturbação à paz, assédio a uma moça e
desrespeito aos oficiais. O que você tem a dizer em sua defesa? Aliás, pergunto aos
meus escrivães se já anotaram tudo o que o prisioneiro disse.
Ao ouvir a última pergunta do juiz, a multidão caiu na gargalhada.
Um dos escrivães, Senhor Robert d’Estouteville, levantou-se e tentou impor um
mínimo de ordem, chamando a atenção de Quasímodo para o questionamento.
– Por que você está aqui hoje, infeliz? – perguntou, severamente.
O coitado, pensando ter entendido outra pergunta, rompeu seu silêncio e respondeu
numa voz gutural:
– Meu nome é Quasímodo.
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A resposta não tinha nada a ver com a pergunta, o que causou uma nova onda de
risadas pelo salão e fez com que o Senhor Robert berrasse, vermelho de raiva:
– Você está me zombando, seu inútil?
– Sou o tocador de sinos de Notre-Dame – disse o corcunda, orgulhoso de declarar
sua profissão perante o juiz.
–Tocador de sinos! Por isso não me ouve, não é?
– Se quer saber minha idade, farei vinte anos no dia de São Martin.
Isso foi demais para o escrivão, que prontamente sugeriu sua punição:
– Levem-no até a Praça de Grèves, deem-lhe uma boa surra e coloquem-no no tronco
por uma hora. Proclamem isso por toda a cidade!
O juiz não ouvira uma única palavra dita por Robert d’Estouteville, mas esforçava-se
tanto para que não percebessem sua surdez que fazia todo um teatro para convencer a
todos. Desta vez, depois de fingir ter percebido o que o escrivão tinha acabado de
falar, ainda acrescentou:
– Oh, eu não sabia disso! Então, coloque-o no tronco por mais uma hora!
A sentença foi deferida e a multidão aplaudiu. Quasímodo parecia indiferente ou
surpreso, não se tinha muita certeza.
Na Praça, todos já haviam escutado o anúncio e aguardavam impacientemente o
prisioneiro. Já acostumada a execuções e punições públicas, a multidão admirava o
objeto da tortura: uma grande roda de madeira, onde o prisioneiro era amarrado pelos
pés e pelas mãos, que girava sem parar. Essa punição era chamada de “rodar” um
prisioneiro.
Um cortejo chegou à praça e não demorou muito para a multidão reconhecer
Quasímodo. Era estranho estar para ser torturado na mesma praça onde tinha sido
aclamado Papa. O trompeteiro impôs silêncio e declarou que a punição deveria ser
aplicada imediatamente. O prisioneiro continuou impassível, sem piscar. As correntes
e cordas abriam feridas em sua pele e ele se deixava ser empurrado, carregado,
desamarrado e amarrado. Seu rosto era o de um selvagem: sabia-se que era surdo;
podia-se pensar que também era cego.
Colocado de frente para a roda, não ofereceu resistência. Tiraram sua camisa, ele não
se mexeu. Colocado em algemas e tornozeleiras, não se debateu. De tempos em
tempos, suspirava profundamente, aparentando cansaço. A multidão, avistando suas
costas peludas e deformadas, gargalhava. O carrasco colocou-se ao seu lado.
Enquanto isso, Jehan Frollo gritava, no meio da multidão:
– Venham ver, senhoras e senhores! Vão transformar Quasímodo, o tocador dos sinos
de Notre-Dame, onde vive meu irmão, num estranhoedifício oriental, com uma
cúpula redonda e colunas tortas!
31
Todos riram, especialmente as mulheres jovens e as crianças.
O carrasco pôs a roda a girar. A expressão de espanto do corcunda com o girar do
instrumento fez rir quem ainda não tinha se divertido o suficiente. Quando já tinha
completado meia volta, o carrasco ergueu o braço e açoitou-o com tiras de couro
cobertas de espinhos.
Foi como se Quasímodo tivesse acordado de um sonho. A partir desse momento,
começou a se debater. A cada giro da roda, mais um açoite. O sangue escorria pelas
costas e ombros. Ele tentava se livrar das algemas que o prendiam à roda
desesperadamente, com todas as suas forças. Seu olho piscava, seus músculos
ficavam enrijecidos. Por fim, deixou-se largar, exausto. Fechou o olho, encostou a
cabeça no ombro e não se mexeu mais.
Nada o fazia sair daquela lassidão: nem seu sangue, que agora escorria livremente,
nem os açoites, cada vez mais furiosos pela excitação e intoxicação do carrasco pela
sua tarefa, nem a zombaria da multidão que a tudo assistia.
Finalmente, um dos membros da corte estendeu o braço e ordenou o fim do castigo.
A roda parou. O olho de Quasímodo abriu-se lentamente.
O flagelo havia terminado. Dois assistentes do carrasco o retiraram da roda, limparam
suas feridas e cobriram-nas com um pedaço de algodão, enquanto o carrasco
descansava seu chicote ensanguentado.
A punição, entretanto, não havia acabado. Quasímodo ainda teria de passar mais duas
horas no tronco.
Sendo objeto de ódio da população, todos estavam gostando do espetáculo. Seu
flagelo, seu sangue, seu estado deplorável e a perspectiva de mais duas horas de
sofrimento, ao invés de abrandar o coração de todos, incitava-os ainda mais a um
ódio assassino. Era uma “vingança pública”, especialmente das mulheres, que tinham
pavor do “monstro de Notre-Dame”, do “anticristo”, do “bruxo”, do “demônio”.
As pessoas o xingavam, cuspiam e atiravam pedras nele. Pouco a pouco, sua
paciência, que suportara calada o chicote do carrasco, não conseguiu resistir às
provocações da multidão.
Ele ergueu o olhar para a praça, mas, com o tronco e o pescoço presos firmemente,
não avistava longe. As moscas pousavam em suas feridas e ele sacudia o corpo
tentando afastá-las. A multidão, vendo sua luta contra os pequenos insetos, entregava-
se a risos convulsivos.
O coitado, exausto e com o tronco imobilizado, aquietou-se. Em seu rosto, não havia
nenhum traço de vergonha. De tempos em tempos, um suspiro de raiva enchia seu
peito. Raiva, uma emoção primitiva, bestial, era tudo o que podia sentir, afastado da
sociedade como vivia. Raiva, ódio e desespero cobriam seu rosto como uma nuvem
que a cada minuto ficava mais cinzenta.
A nuvem, porém, foi se dissipando no momento em que um padre atravessou a praça
32
montado num burrinho. Quando avistou o burrinho e o padre, o rosto do infeliz
adquiriu uma suavidade quase impossível e sua fúria deu lugar a um sorriso estranho,
cheio de uma doçura inefável, afeição e ternura. Quanto mais o padre se aproximava,
mais o sorriso se mostrava radiante. Era como o sorriso de um pecador avistando seu
Salvador.
Mas quando o burrinho chegou perto o suficiente para o padre reconhecer o
prisioneiro, o religioso baixou os olhos, virou-se abruptamente e, chicoteando o
animal de montaria, dirigiu-se o mais rapidamente possível para longe dali, com
medo da humilhação e de ser reconhecido.
O padre era Dom Claude Frollo.
A multidão espantou-se com o rosto de Quasímodo. O sorriso permaneceu por um
tempo, mas se tornou amargo, abatido e profundamente triste.
Uma hora e meia se passou e ele permaneceu ali, ferido, maltratado,
ininterruptamente ridicularizado e quase apedrejado até a morte.
De repente, começou a lutar contra as correntes que o seguravam com um desespero
renovado. Quebrando o silêncio que até então obstinadamente conservara, gritou com
uma voz rouca e furiosa, que mais parecia um rugido do que uma expressão humana:
– Água!
Essa manifestação clara de sofrimento, longe de inspirar a compaixão dos bons
parisienses, apenas aumentou ainda mais sua diversão. Nesse momento, Quasímodo
estava ainda mais grotesco e repulsivo do que digno de pena: o olho esbugalhado, a
boca espumando, a língua pendurada.
Depois de alguns minutos, Quasímodo lançou mais um olhar em direção à multidão
e, com a voz ainda mais embargada, gritou:
– Água!
Todos riram.
– Seu monstro surdo! – gritou uma mulher, arremessando uma pedra contra a cabeça
do corcunda. – Isso é para você aprender a não nos acordar no meio da noite com
seus malditos sinos!
– Bem, garoto! – um aleijado aproximou-se para bater nele com sua bengala. – Será
que depois disso ainda lançará seus feitiços do alto da torre de No- tre-Dame?
– Aqui está uma vasilha para beber, maldito! – disse outro homem, atirando-lhe uma
jarra no peito. – Você passou perto da minha mulher e ela deu à luz um bebê de duas
cabeças!
– E minha gata teve um filhote com seis patas! – berrou uma velha, atirando-lhe um
tijolo.
– Água! – berrou Quasímodo, quase sufocado, pela terceira vez.
33
Nesse momento, notou que a multidão abria caminho para uma moça, que trajava
uma roupa estranha, carregava um pandeiro e estava acompanhada de uma cabritinha
de chifres dourados.
O olho de Quasímodo brilhou. Era a garota cigana que atacara na noite anterior e pela
qual estava sendo punido agora, depois de ser julgado por um juiz tão surdo quanto
ele. Naquele momento, ocorreu-lhe que ela vinha apenas para se vingar e machucá-lo,
como todos os que estavam ali.
Ele observou-a subir as escadas. Fúria e desprezo tomavam conta dele, que se sentia
capaz de destruí-la apenas com um olhar.
Sem dizer uma única palavra, ela aproximou-se do sofredor, que, em vão, debatia-se
para evitá-la. Retirando da cintura seu cantil, gentilmente aproximou-o dos lábios
ressecados do prisioneiro.
Daquele olho, tão seco e ardente, brotou uma grande lágrima, que rolou
vagarosamente pela face deformada, ainda mais torta depois de tanto sofrimento. Era,
talvez, a primeira lágrima que derramara na vida.
Ele até esqueceu-se de beber. A cigana fez um pequeno gesto de impaciência e,
novamente, derramou um pouco de água sobre os lábios ressecados de Quasímodo,
que bebeu grandes goles.
Quando terminou, o pobre diabo esticou-se, talvez para beijar as belas mãos piedosas
que o tinham salvado. Mas a garota, ainda assustada pelo que tinha acontecido na
noite anterior, recolheu rapidamente a mão, como uma criança que teme ser mordida
por um animal feroz. Então, o pobre surdo lançou-lhe um olhar de inexprimível
tristeza.
Era uma cena tocante ver uma jovem tão bela, tão pura e elegante, ao mesmo tempo
tão frágil, ajudando piedosamente algo tão assustadoramente deformado e miserável.
As pessoas que assistiam à cena estavam também comovidas.
Foi nesse momento que a mulher reclusa viu, pela janela de sua cela, a garota cigana,
e lançou uma maldição:
– Maldita seja, filha do Egito! Maldita! Maldita!
Esmeralda empalideceu e desceu as escadas com passos trêmulos. A voz da mulher
ainda a perseguia:
– Agora você pode descer, mas há de chegar o dia em que morrerá aí em cima!
A multidão não ousava interromper os gritos da mulher. Não é prudente atacar
aqueles que oram dia e noite.
Mais uma hora se passou e Quasímodo saiu do tronco. Ele foi desamarrado e a
multidão se dispersou.
Temos que parar por um momento aqui e explicar quem era a tal reclusa.
34
Vamos retornar à Praça de Grève. Havia ali uma pequena cela, construída nos porões
de uma das casas mais bonitas da cidade. Todos conheciam esse lugar: fora
construído por Madame Roland para chorar pelo seu falecido pai. Por vinte anos
ficara ali, naquele túmulo antecipado, de apenas uma janela, devotando-se a orações
dia e noite, e dando todo o resto de sua propriedade aos pobres. Deitava-se numa
cama de cinzas, não tinha nem uma pedra para servir-lhe de travesseiro, vestia um
saco de algodão cru e vivia dos pedaços de pão e do pouco de água que os passantes
lhe ofereciam. Quando estava prestes amorrer, declarou que dedicava aquele lugar a
qualquer mulher, mãe, filha ou viúva, que tivesse necessidade de orar por si mesma
ou por outros, que quisesse se enterrar viva para aliviar suas dores.
Paquette La Chantefleurie, a dona atual do “túmulo”, encontrava-se ali para chorar e
orar pela filha. Conhecida como Irmã Gudule, era apenas um trapo humano, que tinha
de seu apenas um sapatinho de bebê. Tudo o que fazia era olhar e acariciar o
sapatinho, chorar e orar. Sua história era triste: aos dezoito anos, apaixonou-se e
engravidou de um homem que depois a abandonou. Não chorou por ele, pois já tinha
a única razão que pedira para viver: sua linda filha, Agnès. O mundo de Paquette
girava em torno da pequena e sua vida resumia-se à filha. Numa noite, um grupo de
ciganos que se apresentava na cidade hospedou-se no mesmo albergue onde ela vivia.
As ciganas viram a menina e, impressionadas com sua beleza, disseram à mãe que ela
seria uma rainha e que iria, um dia, sentar-se à mesa com o rei da Inglaterra. Naquela
mesma noite, Paquette saiu de seu quarto para contar à vizinha o futuro grandioso da
filha, previsto pelas ciganas. Retornando ao quarto, estranhou que o bebê, que dormia
na mesma cama que ela, não estivesse chorando, sentido sua falta. Mas, pobre mãe! A
pequena não estava mais lá, nem suas roupas, nada mais, apenas um sapatinho.
Desesperada, pôs-se a gritar: “Minha filha! Minha filha! Onde está minha filha!
Quem pegou minha filha?”. No albergue, ninguém vira nada. Ela saiu pelas ruas
gritando: “Minha linda filha! Por favor, entreguem-me minha filha! Serei
eternamente escrava de quem me devolver minha filha!”.
Depois de gritar e andar a noite inteira, ela se deixou cair na calçada, imóvel, com os
olhos esbugalhados. Começou a beijar desesperadamente a única relíquia que tinha
sobrado: o sapatinho. Era noite de sábado e dizia-se que, nessa noite, os ciganos
costumavam matar e devorar as criancinhas num ritual satânico.
Já sem esperanças, a pobre mãe voltou ao quarto onde tudo acontecera e encontrou
um pequeno monstro sobre a cama. Alguns moradores do albergue viram quando
duas ciganas, no meio da noite, subiram até o quarto de Paquette e deixaram ali uma
criança deformada, em troca da menina perfeita. Determinada a sair pelo mundo em
busca da filha, Paquette recolheu seus pertences e o embrulho contendo aquele ser
que nem sabia se era humano, e dirigiu-se primeiramente a Notre-Dame, onde
colocou a cesta com o embrulho, e depois sumiu no mundo.
Por muito tempo, ninguém ouviu falar dela. Mas, um dia, uma figura fantasmagórica
e apática apossou-se da pequena cela dedicada àquelas que querem se enterrar vivas e
orar. E ali permanecera, vivendo de esmolas e amaldiçoando os ciganos, que haviam
roubado sua razão de viver. Todos a conheciam como “a reclusa”.
35
V
Capítulo 6
árias semanas se passaram. Estávamos em meados de março, num lindo dia de
sol, no momento em que a fachada de Notre-Dame ficava dourada e sua sombra
cheia de ângulos era projetada no chão, criando inúmeras figuras, enquanto a grande
rosácea, como o olho de um ciclope, criava um caleidoscópio de luz e cores.
Nessa hora, do outro lado da rua, em frente à catedral, havia uma mansão em estilo
gótico, com um balcão de pedra, onde simpáticas jovens riam e conversavam. Pelo
comprimento dos véus, pelos bordados em suas roupas e pelas mãos macias, via-se
que eram filhas de nobres. A dona da casa, a viúva Madame Aloise de Gondelaurier,
recebia todas as meninas sorridente. As meninas, também sorridentes, sabiam que
deviam se esforçar ao máximo para agradar a rica viúva de um oficial do rei e sua
única filha.
As damas estavam todas sentadas ao redor da tapeçaria na qual trabalhavam e, a cada
ponto do bordado, davam uma risadinha e faziam um comentário em voz baixa. Tudo
porque também estava presente um jovem, noivo de uma daquelas moças, Flor de
Lis, que parecia mais interessado em lustrar a fivela do cinto de seu uniforme militar
com as luvas impecavelmente brancas do que em prestar atenção na conversa que se
desenrolava ao seu redor.
De tempos em tempos, a senhora falava algo com ele em voz baixa e ele tentava ser o
mais cortês possível, numa atitude forçada e esquisita. Era óbvio que falava do
casamento da filha com o capitão, mas, pela reação fria e constrangida do noivo, não
havia ali nenhum sinal de amor.
Naquele momento, Bérangère, uma menina muito ativa de sete anos, que estava
admirando a vista do balcão, entrou correndo na sala:
– Veja, minha madrinha Flor de Lis, aquela cigana dançando e tocando pandeiro!
– Vamos ver! Vamos ver! – gritaram todas as moças e correram até o balcão. Flor de
Lis foi atrás.
Ao olhar a garota, lembrou-se do acidente envolvendo seu noivo:
– Meu querido, você se lembra daquele episódio que nos contou, quando socorreu
aquela garota cigana na sua ronda noturna?
– Acho que sim – responde ele.
– Bem, parece a mesma garota dançando lá embaixo, na praça. Venha ver se a
reconhece, Phebus!
O capitão Phebus de Châteaupers aproximou-se do balcão.
– É ela? – perguntou Flor de Lis, carinhosamente apoiando a mão sobre o braço do
noivo.
36
– Sim, reconheço pela cabritinha.
– Que linda cabritinha! – exclamou Bérangère, batendo palmas. – Será que seus
chifres são realmente de ouro? – Olhando em volta, a criança percebeu algo estranho.
– Quem é aquele homem de preto lá em cima?
– Acho que é o padre que mora em Notre-Dame – respondeu Flor de Lis. – É melhor
essa garota tomar cuidado. Ele não gosta de ciganos.
Virando-se para o capitão, pediu-lhe:
– Phebus, já que você a conhece, chame-a para vir aqui dançar! Ficaríamos
encantadas!
– É verdade! – exclamaram todas as outras garotas, batendo palmas.
– Ei, pequena! – gritou Phebus, do balcão, sinalizando para que chegasse perto.
A cigana parou de tocar seu pandeiro e, procurando quem a chamava, encontrou
Phebus. Sentiu que suas bochechas queimavam enquanto andava até a porta da casa
de onde Phebus a chamara. Ao entrar na sala, estava corada, ofegante, com seus
grandes olhos aflitos apontados para o chão.
Bérangère bateu palmas, mas a dançarina não deu nem mais um passo. Sua presença
provocou um desconforto nas mulheres da casa: era tão linda que parecia brilhar.
Parecia ainda mais bela do que sob o sol da praça. Era como se fosse uma tocha que
trazia a luz do sol para a escuridão. Todas ficaram perplexas e reconheceram,
imediatamente e sem dizer uma só palavra, que estavam diante de uma rival.
Por isso, receberam-na com frieza. Mediram-na dos pés à cabeça, olharam-se e
pronto, entenderam. Mas a cigana apenas esperava que falassem algo e não ousava
erguer os olhos.
O capitão foi o primeiro a quebrar o silêncio:
– Com certeza, uma linda criatura. Não concorda, Flor de Lis?
– Não é das piores – respondeu a dama, com desdém.
Madame Aloise não era tão ciumenta quanto a filha e chamou a cigana:
– Venha cá, menina!
– Venha cá, menina! – repetiu Bérangère, como um eco.
Esmeralda aproximou-se da nobre senhora.
– Minha linda menina – disse Phebus, dando alguns passos em direção a ela. – Não
sei se tenho a suprema honra de ser reconhecido por você...
– Oh, sim! – interrompeu Esmeralda, com um sorriso e um olhar de infinita doçura.
– Que boa memória ela tem! – exclamou Flor de Lis.
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– Ora, você escapou correndo naquela noite. Assustou-se comigo? – perguntou
Phebus.
– Oh, não! – respondeu a cigana.
– Você viu quem acabou ficando comigo? Um corcunda, surdo e com um olho só, o
tocador dos sinos de Notre-Dame. Dizem que ele é o filho de Dom Claude e que é um
demônio. O que ele queria com você, hein? Diga-me!
– Eu não sei. Mas é um pobre homem...
Enquanto isso, as outras garotas comentavam sobre a cigana. Impedidas de atacarem
sua beleza, encontraram o alvo perfeito: suas roupas.
– Onde você aprendeu a se vestir assim, menina? Sem um lenço sobre os ombros? –
comentou uma delas.
– De fato – comentou a outra, encorajada pelo comentário da primeira. – Sua saia é
tão curta que mal protege as pernas do frio.
– Se você usasse luvas sobre os braços,

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