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O Concílio Vaticano II e os pobres - Maria Cecilia Domezi

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2
ÍNDICE
Capa
Rosto
Abreviaturas
Apresentação da coleção Marco Conciliar
Introdução – Glória de Deus é que o pobre viva!
Capítulo I - Desde as margens do mundo
1. Herança de João XXIII
2. O grupo Igreja dos Pobres
3. O Pacto das Catacumbas
Capítulo II - Desde o particular e o local
1. O tema da pobreza no Concílio Vaticano II
2. A Igreja dos pobres na América Latina
3. A opção pelos pobres
Capítulo III - Desde os pobres para a salvação universal
1. Os pobres no século XXI
2. Ainda há um Terceiro Mundo?
3. Opção pelos pobres na fidelidade ao Concílio
Considerações Finais
Anexo - Pacto das catacumbas – o pacto da igreja servidora e pobre
Referências Bibliográficas
Sobre a autora
Coleção
Ficha catalográfica
3
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ABREVIATURAS
AG Ad Gentes
DAp Documento de Aparecida
DP Documento de Puebla
EA Ecclesia in America
EG Evangelii Gaudium
EV Evangelium Vitae
GS Gaudium et Spes
LN Libertatis Nuntius
Med Documento de Medellín
OA Octogesima Adveniens
PO Presbyterorum Ordinis
PP Populorum Progressio
PT Pacem in Terris
SD Documento de Santo Domingo
4
O
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO
CONCILIAR
Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja católica em
muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João
XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em
várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de construção
assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo
vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e
perseverante desse Papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a
dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de
líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo
Concílio em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas.
Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da
Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da
chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se
e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo,
assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade,
reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida
como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o
mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém
inscrito no plano maior do amor de Deus, que nos cria e nos chama para a comunhão
consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se
referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e
autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo.
O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada
primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos
ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões
conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se
seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no
processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram
em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto
da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir
5
muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja
comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social
da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso,
sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio, e particularmente no hemisfério
sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas
da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma
conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas,
sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição
anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina
tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na
dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II,
do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista
geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas
por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres
conciliares.
Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso,
expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico
importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no
dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de
janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em
prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja
como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca
previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por
outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi
desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais
secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes
a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos
e esperançosos.
O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o
hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua
caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso”
completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitados por
todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia
com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas.
Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou,
6
entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências
que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos
tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da
verdade e na construção da fraternidade universal.
A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o
Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas,
nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada
em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande
Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e a análise crítica –
balanço e prospectiva – dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da
temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no
âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências
pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de
renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II
se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa
medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos
Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do
Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de
Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio
tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a
partir da Cúria Romana.
Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio
como um marco históricofundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo
de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados
pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada
autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para
os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em muitos aspectos radicalmente
diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de
1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente
válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua,
sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o
diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o
serviço desinteressado a toda a humanidade, particularmente aos mais necessitados.
O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida
das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o
7
espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos
do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram,
sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges
passaram ao status de “irmãos separados”, de distantes passaram a fazer parte do
grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a
Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente
desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João
XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro
e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as
demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de
um possível “pensamento conciliar”. O olhar ecumênico esteve presente como um
vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a
missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e
Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a
reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais
do Concílio (cf. UR 1).
Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não
somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma
doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma
simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao
fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo
para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da
Igreja. Em seu Discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: “Deus ‘quer
salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm
2,4)”. E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica
amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão
geral: “Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos
da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se
ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os
futuros impulsos do Espírito Santo” (n. 24).
De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja
havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no
Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento
histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas
denominações. A constatação comum dos cristãos de que as divisões internas da
8
mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão fazia
do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também
reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais
Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um
quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das
fronteiras católicas.
Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino
comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelaram avanços e estagnações.
O medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem
gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós-
conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o
diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas
precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a
diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a
convivência entre todos os povos. Em t empos de pluralidade cultural e religiosa, o
diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais
justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo
parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que
possibilita a construção de patamares para a convivência humana.
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos.
Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem
desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do
único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa
Francisco, Evangelii Gaudium, 244).
João Décio Passos
Wagner Lopes Sanchez
Coordenadores
9
N
INTRODUÇÃO
A GLÓRIA DE DEUS É QUE O POBRE VIVA!
a Praça de São Pedro, os olhares da multidão puseram-se ao mesmo tempo na
surpreendente aparição do novo Papa naquele 13 de março de 2013. Não menos
surpreendente fora a renúncia de seu antecessor, Bento XVI.
O sucessor de Pedro como bispo de Roma adotou o nome Francisco, escolheu
vestir-se com a simplicidade do branco e, com uma cruz de cobre a pender-lhe no
peito, humildemente inclinou-se pedindo a oração das pessoas ali irmanadas.
Como observou Agenor Brighenti,
Na inauguração de seu pontificado, inspirado em João XXIII e alicerçado no testemunho dos mártires das
causas sociais da Igreja na América Latina, o Papa Francisco expressou seu sonho incômodo: “Como eu
gostaria de uma Igreja pobre, para os pobres!”. E começou por ele mesmo: pagando suas contas no dia
seguinte à sua eleição, simplificando seus trajes, trocando o trono por uma cadeira, conservando sua cruz
peitoral e seus sapatos pretos, utilizando carro modesto... (BRIGHENTI, 2014, p. 17).
Essas atitudes de um Papa do início do século XXI trazem de volta importantes
intuições e propostas que se irradiaram do Concílio Vaticano II, gestadas
principalmente nas suas entrelinhas e em seus espaços não oficiais, mas que entraram
decisivamente no espírito e em algumas importantes formulações desse marcante
Concílio do século XX.
Além disso, cinquenta anos depois do evento conciliar, o sucessor do apóstolo
Pedro como bispo de Roma e servidor da comunhão universal da Igreja católica pela
primeira vez é um latino-americano. Com esse particular, ele traz experiências,
formulações e engajamentos de uma encarnação do espírito do Concílio Vaticano II
na Igreja local da América Latina e do Caribe. Esse detalhe aqui é importante por
tratar-se de uma Igreja que, na perspectiva e com aval do Concílio, assumiu
compromisso com a justiça social e fez opção preferencial pelos pobres.
Essa opção contextualiza e encarna a grande opção do Concílio, na perspectiva do
Evangelho, pela pessoa humana. A atenção prioritária da Igreja volta-se para cada ser
humano, situado em sua realidade histórica e cultural, em sua integralidade, enquanto
corpo, alma, coração, consciência, inteligência e vontade, com todo o seu potencial e
todas as suas relações. No âmbito comunitário, o foco se põe numa nova humanidade,
pautada nas relações de fraternidade universal entre pessoas humanas novas (GS 3 e
10
30).
No discursodo Papa Paulo VI, por ocasião do encerramento do Concílio, está a
convicção dessa opção:
A Igreja falou aos homens de hoje tais quais eles são [...] Uma outra coisa julgamos digna de
consideração: toda essa riqueza doutrinal orienta-se apenas a isto: servir o homem, em todas as
circunstâncias da sua vida, em todas as suas fraquezas, em todas as suas necessidades. A Igreja declarou-
se quase a escrava da humanidade, precisamente no momento em que tanto o seu magistério eclesiástico
como o seu governo pastoral adquiriram maior esplendor e vigor devido à solenidade conciliar; a ideia de
serviço ocupou o lugar central (PAULO VI, 1965).
Portanto, a Igreja que saiu do Concílio Vaticano II mudou radicalmente seu foco.
Desviou seu olhar do dogmatismo para tomar como a pupila de seus olhos a
humanidade como ela é em cada tempo. Nessa virada teológico-antropocêntrica,
conscientizou-se de sua vocação de servidora da humanidade.
Porém, não há pessoa humana genérica, sem rosto e sem história, como também
não há povo desvinculado de realidades históricas. Por isso, a opção do Concílio tem
que ser tomada segundo as necessidades de cada espaço humano particular. Ou seja, é
preciso fazer o espírito do Concílio encarnar-se nas realidades históricas, específicas
e situadas da humanidade.
Já durante o evento conciliar, clamores que chegavam das margens da
humanidade, do chamado Terceiro Mundo, fizeram o Concílio acrescentar uma
particularidade a essa opção pelo homem moderno, formulando-a como uma opção
“sobretudo” pelos pobres e por todos os que sofrem:
As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de
todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de
Cristo. Não se encontra nada verdadeiramente humano que não lhes ressoe no coração... (GS 1).
Então, a opção preferencial pelos pobres, assumida pela Igreja da América Latina,
vem do espírito do Concílio Vaticano II.
Sabemos que os padres conciliares, no Vaticano II, enfrentaram discordâncias e
conflitos até chegar a uma revolucionária compreensão da Igreja como serva da
humanidade, e serva preferencialmente dos pobres e sofredores. Durante pelo menos
um milênio e meio, a Igreja apareceu mais como um império, preocupada
preferencialmente consigo mesma, enquanto instituição societária. Em sua hierarquia
patriarcal, prolongou-se demais o gosto por privilégios e por ser servido, enquanto se
tentava esconder sob a indumentária medieval o afastamento do Evangelho.
Por isso, as atitudes, gestos e palavras do Papa Francisco passaram a comover o
11
mundo. Entende-se que a Igreja servidora do ser humano em seu mundo moderno, e
servidora preferencialmente dos pobres e dos que sofrem, vai atualizando essa opção
nos novos contextos e novos tempos, a fim de praticar um amor de proximidade com
o povo e com cada pessoa humana, preferencialmente as mais vulneráveis,
empobrecidas, excluídas e sofredoras.
Como propõe o papa, essa opção implica entrar na vida cotidiana dos outros com
proximidade e, se for necessário, abaixar-se até a humilhação, para assumir a vida
humana e tocar a carne sofredora de Cristo no povo (EG 24).
São abundantes os testemunhos nessa direção, da parte de pessoas místicas e
engajadas na construção da justiça e da fraternidade universal, não só no cristianismo,
mas também em diversas outras religiões. Entre os cristãos pode-se retomar, por
exemplo, Francisco e Clara de Assis, João XXIII, Charles de Foucauld.
Entretanto, é preciso ter em conta que o segundo Concílio do Vaticano está em sua
longa etapa de recepção. E, como ocorreu com o Concílio de Trento, são diversas as
atitudes diante de sua proposta. Por rejeição ao seu espírito, ou por comodidade, há
quem busque na letra de seus documentos apenas recortes justificadores do
continuísmo, numa cristandade só zelosa de si mesma. Há até quem o recuse
totalmente. Felizmente, não são poucos os que se acercam dele como quem busca
água numa torrente.
Essa reflexão quer seguir o fluxo da recepção aberta e ativa, empenhada numa
constante atualização do Vaticano II em cada contexto e com os olhos postos nas
fontes do cristianismo.
A Igreja cristã nasceu na tessitura de comunidades de fé, em laços fraternos e em
redes de comunhão, assentadas na mensagem e na práxis de Jesus de Nazaré.
Advindos do seu movimento na Galileia dos gentios, os seguidores e as seguidoras do
Caminho tomavam como glória o escândalo e a ignomínia do martírio de Jesus numa
cruz, anunciando-o como o Filho de Deus ressuscitado da morte.
O iniciante cristianismo amadureceu, em meio a conflitos, sua opção pelos
chamados gentios, e preferencialmente pelos relegados à margem. À margem da
religião por serem não judeus; à margem da sociedade do império romano por serem,
na maioria, escravos, pobres, sem status. A sede com que eles buscavam o Evangelho
sinalizou ao apóstolo Paulo e à Igreja de Antioquia que Deus havia aberto as portas
da fé aos gentios.
Os cristãos dos primeiros tempos também aprenderam que só se ama a Deus
amando o próximo. O cristianismo solidificou-se como religião da fraternidade, da
12
proximidade, do perdão e da compaixão. Essa orientação da comunidade do apóstolo
João foi assumida por Policarpo, bispo de Esmirna, e por seu discípulo, o bispo Irineu
de Lyon. Antes de ser martirizado no ano 202, Irineu de Lyon havia condensado o
ensinamento da tradição primitiva na frase: “A glória de Deus consiste em que o
homem viva, mas a vida do homem é a visão de Deus”.
Quase dois mil anos depois, a máxima de santo Irineu teria eco e atualização na
América Central, especificamente em El Salvador, por ocasião do testemunho
martirial do padre Rutílio Grande, assassinado por militares em 12 de março de 1979.
Como narra Jon Sobrino, o arcebispo Dom Oscar Romero queria cancelar as missas
no domingo seguinte, para que todos se unissem numa só missa na catedral. Porém,
receava que com essa redução numérica de missas se diminuísse a glória devida a
Deus. Após longa discussão, padre César Jerez lembrou as palavras de Santo Irineu
de Lyon, “Gloria Dei vivens homo”, traduzindo-as por “a glória de Deus é o ser
humano vivo”. Dom Romero e todos os outros se convenceram de que deviam unir-se
numa única missa na catedral, e assim fizeram (SOBRINO, 1990, p. 25).
Nesse momento, Dom Romero fez mais que tomar uma decisão pastoral lúcida e
corajosa. Ele passou a guiar-se por uma nova formulação de sua fé e do que significa
a “glória de Deus”. Assim, durante a Conferência de Puebla, confidenciou ao teólogo
Leonardo Boff: “Em meu país, estão cometendo assassinatos de forma horrorosa. É
preciso defender o mínimo, que é o máximo dom de Deus: a vida”. E a sentença de
santo Irineu, reformulada pelo próprio Dom Romero, passou a ser: “Gloria Dei,
vivens pauper”, isto é, “a glória de Deus é que o pobre viva” (SOBRINO, 1990, p.
26).
Também o Papa João Paulo II retomou a afirmação de santo Irineu, aludindo à
“altíssima dignidade do ser humano”, no qual se reflete a realidade de Deus (EV 34 e
38).
E o Papa Francisco, ao insistir em que o dinheiro deve servir às pessoas humanas,
e não governar, cita outro Pai da Igreja, são João Crisóstomo: “Não fazer os pobres
participar dos seus próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida. Não são nossos, mas
deles, os bens que aferrolhamos” (EG 57).
Nessa direção, retomando as palavras de Jesus: “Eu vim para que tenham a vida e
a tenham em abundância” (Jo 10,10), podemos dizer: A glória de Deus é o pobre com
vida, e vida em abundância.
13
O
Capítulo I
DESDE AS MARGENS DO MUNDO
1. Herança de João XXIII
Concílio Vaticano II, enquanto evento, estava apenas começando. Nas altas
horas de vigília noturna, depois do dia pleno de atividades, Dom Helder
Câmara escrevia sua costumeira carta circular. Além de padre conciliar, que já na
etapa preparatória vinha atuando como membro da Comissão dos Bispos e do
Governo das Dioceses, esse bispo brasileiro nordestino era um eficiente articulador
das boas redes deapoio às renovações da Igreja.
Era com um tom de preocupação que ele se referia à solene celebração de abertura
do Concílio. Dizia-se com o coração apertado por ver o povo peregrino, vindo de
longe, ser colocado fora da Praça de São Pedro para dar lugar aos bispos, ao
patriciado romano, às três guardas pontificais uniformizadas, aos comendadores,
oficiais e grã-cruzes, aos diplomatas. O Papa João XXIII, certamente constrangido, de
tiara e com todo o aparato renascentista, era carregado na cadeira-trono por quatro
homens. E à hora do Evangelho, teve seu pé beijado pelo diácono. As pessoas do
povo ficaram fora do diálogo e sem poder participar dos cânticos, enquanto os
cardeais entraram na basílica arrastando a cauda de suas pomposas vestes. Isso “deve
ter feito um mal profundo à causa da união”, acrescentava, observando o contraste
das palavras de João XXIII, que refletiam a humildade, o servo dos servos, o pastor.
E concluía: “[...] sonho com o dia em que o Vigário de Cristo possa ser livre de um
fausto que faz o gáudio dos grã-finos e nobres, e escandaliza os pequenos e os sem
fé” (CÂMARA, Circular de 3/10/1962).
Sabemos que o Papa João XXIII acabou descendo da cadeira gestatória e seguindo
a pé até entrar na basílica (MARTINA, 1997, p. 293). Depois dele, também o Papa
Paulo VI fez um gesto simbólico corajoso em favor da pobreza e simplicidade, ao
abrir a terceira sessão do mesmo Concílio: abandonou sobre o altar sua tiara
pontifícia.
Entretanto, nem todos os padres conciliares queriam a renovação da Igreja. Ela
continuaria a ser entendida, ao menos por um segmento ao redor do arcebispo
Lefebvre, como uma entidade puramente espiritual, acima do mundo e fora da
história. E entre os muitos que queriam a sua renovação, nem todos manteriam o
14
olhar nos milhões de pessoas empobrecidas e oprimidas nas periferias do mundo.
Porém, ali estava um segmento bastante convicto, empenhado em fazer a Igreja ser
dos pobres para ser de todos.
Esse apelo viera de João XXIII. Com toda a sua experiência pastoral e
missionária, o bondoso Cardeal Roncalli, já idoso ao ser eleito papa, trazia a alegre
convicção de que a Igreja devia ser servidora de todos, não só dos católicos, e de que
devia atender aos direitos da pessoa humana, e não só aos da própria Igreja.
Ele havia aprendido ao longo da sua vida a prática do diálogo e do ecumenismo,
com sensibilidade às questões mundiais, buscando principalmente o fim do
colonialismo e a superação da Guerra Fria. Na Bulgária, especialmente, para onde
fora enviado por Pio XI como visitador apostólico, sua missão constituiu-se num
fértil aprendizado. Ali ele passou a rezar com os católicos orientais em língua eslava,
como também aproximou-se da Igreja ortodoxa com atitudes de respeito e de paz. Em
Istambul abriu-se ao diálogo com os muçulmanos.
Em Roma, por ocasião do seu aniversário natalício de oitenta anos, respondeu de
coração aberto à saudação do secretário-geral do Partido Comunista da União
Soviética, Nikita Kruschev, recebendo depois sua filha Rada e seu genro Adjubei
(HEBBLETHWAITE, 1984, p. 480-484).
Aos judeus devotou respeito e relação fraterna. No segundo ano de seu
pontificado, fez com que fosse retirada a expressão pro perfidis Judaeis, que se
referia aos judeus como “pérfidos” ou traiçoeiros, na tradicional intercessão universal
que faz parte da liturgia da Sexta-feira Santa. Além disso, recebeu pela primeira vez
um grupo de mais de cem judeus americanos, saudando-os com as palavras bíblicas
de José do Egito: “Eu sou José, seu irmão!”. Certa vez, espontaneamente, fez com
que parassem seu carro em frente à sinagoga de Roma, para poder abençoar os judeus
que dali saíam (KÜNG, 2002, p. 225).
Foi com essa abertura à alteridade, aos confins do mundo e aos diferentes que ele
consagrou a categoria teológica dos “sinais dos tempos”, isto é, dos acontecimentos
marcantes de cada época ou tempo, através dos quais Deus fala. Ele próprio indicou
três desses sinais: a gradual ascensão socioeconômica das classes trabalhadoras; o
ingresso da mulher na vida pública; o fim do colonialismo (PT 39-42).
A expressão “sinais dos tempos” está em diversos documentos do Vaticano II,
como: Gaudium et Spes (4; 11; 44); Presbyterorum Ordinis (9); Unitatis
Redintegratio (4); Apostolicam Actuositatem (14). Assim assumida pelo Concílio, a
abertura à revelação divina interpretando os sinais dos tempos é tarefa não só do
15
clero, mas de todo o Povo de Deus.
Na nova perspectiva inaugurada por esse papa, carinhosamente chamado de “Papa
bom”, ultrapassava-se aquela visão mais catastrófica de sinais dos tempos na
perspectiva do fim do mundo como destruição. Propunha-se, numa retomada da
tradição bíblica, patrística e do magistério da Igreja, uma concepção de valorização
de toda a criação e da transformação universal, bem como da humanidade em
constante renovação.
Em sua convocação do Concílio, através da Constituição Apostólica Humanae
Salutis, no Natal de 1961, estava clara a concepção de “sinais dos tempos” na
perspectiva da esperança, com otimismo para com a humanidade e o mundo. As
realidades terrenas e históricas eram reconhecidas como tais, com seu valor como
“lugar teológico”, isto é, como fonte de teologia.
Entretanto, na herança espiritual legada por João XXIII ao Concílio também
estava o foco do tema dos pobres e da Igreja que se faz pobre. Ele tinha uma profunda
convicção de que o testemunho de pobreza daria credibilidade ao cristianismo.
Embora com discrição, sua espiritualidade tinha os pobres em absoluta centralidade
(BEOZZO & ALBERIGO, 1993).
Ele próprio nunca escondeu sua origem humilde; ao contrário, sempre manteve os
costumes simples, herdados de sua família camponesa italiana. Isto ele escreveu
numa carta à sua mãe, irmãos e irmãs, em Istambul, em 29 de julho de 1935: “Sabeis
que uma das maiores consolações de minha vida é minha família, que eu sempre
elogio diante de todos: pobre, simples, humilde, mas boa e temente a Deus” (citado
por ALBERIGO, 1978, p. 494).
Foi assim que, um mês antes dessa abertura solene do Concílio, em sua
radiomensagem de 11 de setembro de 1962, ele lançou o tema da Igreja dos pobres.
Falava do serviço que a Igreja deve prestar ao mundo a partir de sua fé em Cristo, de
modo especial objetivando a igualdade de todos os povos no exercício de seus
direitos e deveres, na defesa da família e na responsabilidade social. E acrescentou:
“Outro ponto luminoso. Em face dos países subdesenvolvidos, a Igreja apresenta-se
tal qual é e quer ser – como a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”
(KLOPPENBURG, 1963, p. 301).
Lançar pela primeira vez o termo “Igreja dos Pobres” foi a maior contribuição de
João XXIII, diz Comblin. Sua proposição era a de que a Igreja se identificasse com os
pobres. Porém, o Concílio que daria bastante atenção aos temas do diálogo e do
ecumenismo não defenderia com tanta força os da pobreza no mundo, dos pobres e da
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Igreja pobre. Portanto, João XXIII foi mais longe que o Concílio (COMBLIN, 2002a,
p. 87; 2002b, p. 41).
De fato, a vontade de João XXIII, de que o tema dos pobres e da Igreja pobre
fosse o eixo da constituição sobre a Igreja, só foi captada e entendida por um
segmento bastante minoritário dos padres conciliares. Assim, mesmo com toda a sua
revolução eclesiológica, o Concílio Vaticano II esteve longe de tomar esse tema
como eixo. Como observou o Cardeal Lercaro, faltou destacar o lugar dos pobres no
Povo de Deus, enquanto protagonistas e sujeitos (GAUTHIER, 1965).
Não obstante, o “Papa bom”, com um breve pontificado, mas sendo precursor
sintonizado com a humanidade dos tempos modernos, deixava um espaço aberto para
o enfrentamento da problemática do Terceiro Mundo e para as teologias da
libertação, que logo viriam à tona. Como sabemos, ele faleceu após a primeira sessão
do Concílio, em 3 de junho de 1963.
Imediatamente, o Concílio herdava seu legado e programa, graças especialmente à
continuidade garantida por seu sucessor, Paulo VI. Isso influenciou para que a Igreja
se despisse davelha imagem de senhora autossuficiente, para entender-se e agir como
servidora da humanidade.
Esse novo posicionamento perpassou o discurso esperançoso de Paulo VI no
encerramento do Concílio, ao qual já aludimos: o Concílio, desafiado pelo
“humanismo laico e profano”, que apareceu “em toda a sua terrível estatura”, foi
totalmente penetrado por “um imenso amor para com os homens”. Fez descoberta e
consideração renovada das necessidades humanas. Centrou sua orientação no serviço
à pessoa humana como ela é, situada no tempo presente do seu mundo, em todas as
circunstâncias da sua vida. Ao voltar-lhe toda a atenção, abraçou um humanismo
novo. E já que a mentalidade moderna julga todas as coisas sob o aspecto da
utilidade, “deverá admitir que o valor do Concílio é grande ao menos por isso: todo
ele se orientou à utilidade humana”.
Entretanto, na visão de João XXIII, essa Igreja servidora da humanidade teria que
dar um passo além: ser Igreja dos pobres para ser de todos, encarnar-se na
particularidade para lançar-se na universalidade.
2. O grupo Igreja dos Pobres
Das periferias do mundo, e especialmente do chamado Terceiro Mundo, chegavam
ao Concílio clamores e esperanças dos milhões de pessoas relegadas à pobreza. Entre
seus porta-vozes estavam principalmente os que se organizaram e se articularam nas
17
bordas das comissões e da assembleia conciliar como redes gratuitas e eficazes de
intercâmbio, espiritualidade e influência.
Nessa efervescência de intercâmbios, em que cada padre conciliar já constituía um
nó de relações complexas, também chegaram ao Concílio muitas redes já existentes,
como a rede latino-americana do CELAM, as das conferências de bispos de diversos
países, aquelas por Ordens e Congregações religiosas, outras por nacionalidade, por
línguas, a rede de bispos ligados aos movimentos leigos. Mas também se formaram
outras redes não oficiais durante o Concílio. Pode-se destacar algumas que contaram
com maior participação de bispos brasileiros (BEOZZO, 2005, cap. 5).
A rede do Coetus Internationalis Patrum estava sob o comando de Monsenhor
Marcel Lefebvre, que acabou tornando-se cismático por rejeitar todas as renovações
do Concílio. Contava com dois brasileiros que tinham o apoio logístico da TFP
(movimento que defende a Tradição, Família e Propriedade): Dom Geraldo de
Proença Sigaud, arcebispo de Diamantina, que se dedicou como secretário-geral e
verdadeiro motor do grupo; o outro era Dom Antônio de Castro Mayer, bispo de
Campos, Rio de Janeiro. Embora contando com o apoio do Cardeal Siri, da Comissão
de Coordenação do Concílio, e do Cardeal Ruffini, do Conselho de Presidência, essa
rede acabou isolada por radicalizar suas posições contra todo aggiornamento e
renovação.
Numa espécie de contraponto ao Coetus, merecem menção o “Ecumênico”, o
“Opus Angeli” e a Igreja dos Pobres.
A rede do Ecumênico, articuladora de diversas conferências episcopais, teve
intensa participação do episcopado brasileiro. Estava junto com o Cardeal Malines,
de Bruxelas, e o Cardeal Suenens, um dos quatro moderadores do Concílio, além de
contar com o serviço de secretaria da Conferência Episcopal da França.
A do Opus Angeli (Obra dos Anjos) constituiu-se por iniciativa dos bispos latino-
americanos Helder Câmara e Manuel Larrain, além do padre belga François Houtart,
de Lovaina. Larrain era bispo de Talca, no Chile, e seria presidente do CELAM de
1963 a 1966. O Opus Angeli aglutinou os melhores teólogos e peritos empenhados na
renovação, presentes no Concílio, que se puseram a trabalhar juntos e numa estreita
relação com os grupos Ecumênico e Igreja dos Pobres. Seu importante serviço,
durante as sessões do Concílio e no intervalo entre elas, se fez principalmente através
de conferências na casa Domus Mariae, onde se hospedava a quase totalidade dos
bispos brasileiros. Mas o grupo também oferecia textos alternativos aos esquemas da
fase preparatória do Concílio, preparava intervenções para serem apresentadas na aula
18
conciliar, assessorava os bispos nas questões mais complexas e elaborava “modos”
para a hora da votação dos esquemas.
A rede da Igreja dos Pobres nasceu já na primeira sessão do Concílio. Seu grupo
inicial constituía-se num contingente maior de bispos da América Latina: vinte, dos
quais nove eram do Brasil. O grupo de brasileiros logo passaria a ser o mais
numeroso, com dezesseis bispos. Eram onze os de língua francesa, entre belgas,
franceses e africanos. Da Ásia eram cinco, e da África, quatro, sendo que esses
asiáticos e africanos estavam ligados à França por herança cultural da colonização.
Dentre os do continente europeu estavam onze franceses, um belga, um alemão e um
espanhol. E da América do Norte chegaram dois canadenses.
O grupo todo, que alcançaria um total de 86 padres conciliares, contava com
algumas vozes mais influentes nos espaços oficiais, como a de um dos quatro
moderadores do Concílio, o Cardeal Giacomo Lercaro, arcebispo de Bolonha. Havia
outros influentes, como os bispos Georges Mercier, de Laghouat, no Saara; Charles-
Marie Himmer, de Tournai, Bélgica; de Lyon, na França, o cardeal arcebispo Gerlier
e o bispo auxiliar Alfred Ancel; Gérard Marie Corderre, de Saint-Jean, Québec,
Canadá; George Hakim, de Nazaré. Era um peso importante de bispos do Terceiro-
Mundo, apesar de limitado, porque eles estavam numa certa marginalidade
institucional e eram pouco familiares em Roma.
Já na primeira reunião, em 26 de outubro de 1962, fixou-se o objetivo, através da
fala do Cardeal Gerlier: fazer com que o problema da evangelização dos pobres e do
apostolado no meio operário estivesse no centro das preocupações conciliares.
Para termos uma compreensão dessa rede, seguimos aqui principalmente a
interpretação histórica de Denis Pelletier (1966).
Embora contando com as intervenções do Cardeal Lercaro na aula conciliar, a rede
Igreja dos Pobres nunca teve status oficial no âmbito do Concílio. Também não viu
realizado o seu grande sonho, o de conseguir que fosse constituído no Concílio um
secretariado oficialmente dedicado à pobreza. Contudo, sua atuação nas margens da
redação dos esquemas e textos conciliares foi muito significativa, principalmente pelo
empenho em colocar no coração do processo conciliar questões nevrálgicas, como as
do apostolado dos pobres e da pobreza da Igreja.
O núcleo inicial estava em torno de Paul Gauthier, que trazia um livreto de sua
autoria com o título Jesus, a Igreja e os pobres, para ser difundido entre os padres
conciliares aos cuidados de Hakim, o bispo melquita de Nazaré, da Galileia.
Gauthier era um padre operário francês. Havia sido professor de teologia no
19
grande seminário de Dijon, mas em 1954 deixara esse trabalho para engajar-se no
meio dos operários, inspirado na Ação Católica Especializada. A convite de Hakim,
de Dijon foi a Nazaré, como missionário entre os refugiados proletários judeus,
muçulmanos e cristãos. Ali, numa experiência de convívio com as fraternidades de
Charles de Foucauld, entrou na mística desse irmão universal. Depois de conhecer o
foucauldiano Padre Voillaume, durante seis meses visitou muitos kibboutzim,
enquanto vivia a pobreza e a fraternidade universal nas pegadas de Foucauld. Nazaré,
da Galileia, foi para ele um lugar inspirador para trabalhar na renovação da Igreja.
Em 1958 fundou a Fraternidade dos Companheiros e Companheiras de Jesus
Carpinteiro e organizou, através de cooperativas de operários, a construção de uma
cidade que agrupou cerca de duzentas famílias.
No Concílio, Gauthier conseguiu sensibilizar um segmento importante de bispos e
peritos, inclusive o sacerdote dominicano Yves Congar, que havia escrito o livro
Pour une Église servante et pauvre (Para uma Igreja servidora e pobre).
A participação de algumas mulheres merece ser lembrada. Com Gauthier estava
Marie-Therèse Lescase, uma religiosa carmelita egressa e que também fora viver
pobremente em Nazaré. Ambos dedicaram-se ao serviço de secretaria do grupo. E
junto de Helder Câmara e da CNBB (a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)estava a brasileira Aglaia Peixoto, também ela num dedicado e eficiente serviço de
secretaria.
Mas o grupo Igreja dos Pobres certamente tinha a sintonia e mesmo a comunhão
de outras mulheres. É o caso de Marguérite-Marie, irmã do bispo do Saara, Mercier.
A ela se referiu Helder Câmara, explicando que, mesmo sem ser membro de uma
congregação religiosa, foi trabalhar no Saara, mas com a condição de ficar ao menos
cinquenta quilômetros distante do irmão bispo e de qualquer outra religiosa. E ele
acrescentou: “É queridíssima dos maometanos. Mercier a considera duplamente irmã:
pelo sangue e pelo amor aos pobres” (CÂMARA, circular de 7/11/1962).
O tema da pobreza congregava sensibilidades diferentes que, apesar das tensões,
se completavam, de modo que o grupo se manteve coeso. A proposta foi iniciada
pelos foucauldianos, isto é, praticantes da espiritualidade de Charles de Foucauld,
mais representados por Hakim, Mercier e Riobé.
Charles de Foucauld (1858-1916), beatificado pelo Papa Bento XVI em 2005, era
um francês de Estrasburgo que nasceu visconde e ficou órfão ainda menino. Seguiu
carreira militar e aristocrática e viveu parte de sua juventude na busca de luxo e
prazeres. Em 1880 viveu uma experiência de trabalho como tenente do regimento de
20
Hussardos na Argélia, então colônia francesa do norte africano. O contato com o
deserto deu-lhe novas perspectivas de vida, ao mesmo tempo em que ele se dedicou
ao trabalho científico como geógrafo. O Saara da imensidão e do silêncio
proporcionou-lhe ser tocado pela fé dos muçulmanos de vida simples e despertar-se
para a fé cristã em nova perspectiva.
De volta à França, sob orientação do padre Huvelin, pôs-se num caminho de
conversão que incluiu uma experiência como trapista e a busca de cada vez mais
viver como Jesus, o carpinteiro escondido na remota e desprezada aldeia de Nazaré.
Em 1901, já ordenado sacerdote, instalou-se no oásis de Benni-Abbés, na fronteira
entre Argélia e Marrocos, no meio dos muçulmanos. Três anos depois foi viver entre
os muçulmanos mais pobres, os tuaregs nômades, dos quais ganhou respeito e
admiração. Foi assassinado em 1º de dezembro de 1916, no contexto da Primeira
Guerra Mundial, por ocasião de um fogo cruzado entre franceses e alemães.
Charles de Foucauld deixou o legado de uma verdadeira espiritualidade do
escondimento, do completo abandono de si mesmo nas mãos de Deus ao serviço dos
mais pobres e humildes, na perspectiva da fraternidade universal. A partir da primeira
biografia escrita por René Bazin em 1921, um grande número de seguidores da sua
proposta passou a constituir fraternidades de irmãozinhos e irmãzinhas.
A esses foucauldianos uniram-se padres da missão operária, representados
principalmente por Himmer e Ancel e empenhados na revalorização dos padres
operários.
A experiência dos padres operários tinha ali boa repercussão. Fora impulsionada
em 1943 pelo Cardeal Emanuel Celestino Suhard, arcebispo de Paris. Sob o
pontificado de Pio XII, em 1954, a Cúria Romana proibiu a esses padres o trabalho
manual como operários. Mas houve uma retomada em 1965. Os foucauldianos davam
todo o apoio, como se constata numa carta de René Voillaume, em 9 de novembro de
1959 (VOILLAUME, 1967).
Outro segmento era o dos terceiro-mundistas, que tinham em Helder Câmara o
maior expoente. Denunciavam o subdesenvolvimento e, voltados para uma ética
cristã do desenvolvimento, contavam com ajuda de humanistas e sociólogos,
principalmente belgas, como o padre Lebret, além de alguns sociólogos e teólogos
brasileiros.
No início, buscava-se recrutar membros engajados nas comissões oficiais e os que
poderiam ser ouvidos “em aula”. Porém, a dinâmica conciliar desencontrava-se das
propostas do grupo que, além disso, logo constatou que não conseguiria colocar o
21
tema da Igreja dos pobres no centro da reflexão do Concílio.
Então, o grupo Igreja dos Pobres empenhou-se desde o seu espaço periférico,
fazendo suas reflexões e propostas circular entre os padres conciliares e aparecer em
debates e intervenções na aula conciliar. Por exemplo, insistiam em que se pusesse
fim ao luxo episcopal. De fato, o que se fomentava no grupo expandia-se em
iniciativas mais amplas.
Era como um “sagrado complot”, afirmava jocosamente Helder Câmara,
entusiasmado com a colegialidade que ali se punha em prática. Havia uma crescente
comunhão dos que vinham da missão nas fronteiras do mundo, sintonizados com os
dois terços da humanidade que, no seu dizer, “jazem” no subdesenvolvimento e na
fome:
Tenho um consolo profundo ao conversar com Bispos-missionários de todas as partes do mundo: nem têm
dúvida – embora se sintam impelidos a levar a todos a Boa-Nova, estão convictos de que o grosso de suas
ovelhas (não só maometanos ou budistas, mas pagãos) se salvará. Pertencem à alma da Igreja. Têm
implícito o desejo de tudo o que é necessário à salvação (inclusive o batismo). Claro que eu conhecia a
doutrina: mas é um consolo vê-la confirmada pelos que estão no front. Deus, aliás, pedirá tão pouco a
quem receber quase nada... Todos eles me confirmaram o horror dos famosos dois terços que jazem (a
expressão é esta) no subdesenvolvimento e na fome. Como nos entendemos no ar e como cresce, dia a dia,
o sagrado complot! (CÂMARA, circular de 28/10/1962).
Entre os que vinham das fronteiras do mundo, impressionavam-no especialmente
a figura e a atuação de Abbè Pierre, da Argélia, no Saara, que chegou a propor um
gesto simbólico da parte dos padres conciliares: fazer uma oferta das suas cruzes
peitorais e substituí-las por cruzes de madeira (CÂMARA, circular de 24/10/1962).
O nome de batismo desse sacerdote católico francês, que optou por viver como
trapeiro entre os trapeiros, catador e reciclador para sobreviver e sustentar seus
trabalhos de solidariedade, era Henri Antoine Groués, mas ele próprio adotou o nome
Abbè Pierre. Dedicou toda a sua vida ao serviço dos mais pobres e deserdados. Em
1949, fundou as Comunidades de Emaús.
A proposta de Abbè Pierre, posta em campanha, também foi assumida como um
“sagrado complot”, em outubro de 1962. Todos os padres conciliares depositariam no
altar seus crucifixos peitorais ostentadores de riqueza, recebendo em troca crucifixos
pobres. A redação do texto foi assumida por Mercier, com a ajuda do Opus Angeli. E
Helder Câmara, que se pôs na articulação, em sua vigília noturna deixou registrada a
preparação da ousada campanha, encerrando assim sua carta circular: “Perdoem os
sonhos. Há tanta pureza de intenção, tanto amor à Igreja, tanto sonho de vê-la à frente
da luta pelos humildes e pelos pobres!” (CÂMARA, circular de 24/10/1962). O gesto
22
proposto por Abbè Pierre não se realizou. Exatamente um mês depois, nos escritos de
Helder Câmara, transpareceu o humilde reconhecimento do grupo de que deviam
respeitar seus irmãos bispos “ainda não trabalhados pela graça do amor à pobreza”
(CÂMARA, circular de 26/11/1962).
Para a criação do Secretariado da Pobreza, porém, o empenho continuou forte.
Enquanto abria diálogos de bispos do mundo subdesenvolvido com os do mundo
desenvolvido, ainda na primeira sessão do Concílio, Helder Câmara emocionou-se
com a atuação favorável do cardeal Leo Suenens, o arcebispo belga de Malines-
Bruxellas que era também moderador do Concílio.
Suenens, em uma palestra, declarou seu propósito de insistir junto à Comissão de
Assuntos Extraordinários na criação do Secretariado da Pobreza. Faria isso já no dia
seguinte e com o melhor da sua inteligência e coração. Seu argumento era o de que o
mundo desenvolvido estava descobrindo, com espanto, riquezas espirituais no mundo
subdesenvolvido. Daí que o importante não era levar riquezas aos outros, mas
despertar as riquezas que neles estão adormecidas. E Helder Câmara, lembrando
também que Mercier, o bispo do Saara argelino, fizera uma colocação magnífica a
respeito dos pobres, acrescentou em seu escrito epistolar: “Fizemos o pacto entre o
Saara e o Ceará” (CÂMARA, circular de 28-29/11/1962).
Muitas das temáticas aprofundadas no grupo Igreja dos Pobres foram acolhidasno
Esquema XVII, que tratava das questões do diálogo entre a Igreja e o mundo
contemporâneo. O problema era que esse esquema, como um laboratório, foi
acolhendo diversos outros esquemas referentes à ordem econômica e social e aos
novos apelos do Terceiro Mundo, bem como proposições de segmentos do
episcopado europeu sensíveis a essas causas. Em suas muitas redações acabou
perdendo boa parte das proposições referentes ao Terceiro Mundo, até desembocar na
Constituição Pastoral Gaudium et Spes (BEOZZO, 2005, p. 264).
Por vezes, o grupo também dirigiu-se diretamente a instâncias dirigentes, inclusive
fazendo chegar ao Papa duas cartas. Nelas sugeria a criação de um secretariado
específico, dedicado ao papel da Igreja ante os grandes problemas do mundo
contemporâneo. Expressava a esperança de que o Concílio focasse a Igreja dos
pobres e tratasse da justiça social, do subdesenvolvimento, da paz, da evangelização
dos pobres e da necessidade de uma renovação evangélica na perspectiva de
comunidade com os pobres.
Na segunda sessão do Concílio, sob o pontificado de Paulo VI, o grupo
intensificou sua pressão e atuação como laboratório de proposições. Organizou-se em
23
três equipes de estudo: uma, constituída principalmente pelos voltados à missão
operária, dedicou-se à doutrina; outra, com predominância dos terceiro-mundistas,
dedicou-se ao desenvolvimento; e a terceira, com predominância dos foucauldianos,
dedicou-se à pastoral. As constantes assembleias asseguravam uma coesão do grupo,
ainda que mínima.
A equipe de pastoral, incentivada por Mercier e Gauthier, lançou entre os padres
conciliares uma enquete, voltada principalmente para a questão da riqueza e da
pobreza na Igreja. Apesar das fortes críticas recebidas, seu questionário fez alargar-se
a audiência da Igreja dos Pobres, especialmente entre bispos franceses, desejosos de
uma mística da pobreza.
Na terceira sessão do Concílio, o grupo passou por crises, notadamente por certa
oposição entre formulação teológica e pastoral. As sensibilidades diferentes foram
sentidas, por exemplo, nas divergências entre Ancel e Mercier.
Mercier propunha fazerem atos simbólicos junto aos pobres. Lutava contra o
aparato episcopal, reivindicava a fundação de um Secretariado para o Ministério dos
Pobres e trazia três sugestões imediatas a serem submetidas ao Papa: a visita
espontânea do Papa a um povo pobre; uma cerimônia expressiva que reunisse na
basílica de São Pedro pobres e operários ao redor do Papa; que o bispo de cada
diocese incentivasse, por ocasião do Natal, a oferta de uma casa a uma família pobre.
Já Ancel defendia a prévia formulação teológica, insistindo na reflexão teológica
sobre a noção de pobreza. Assim, opôs-se aos atos simbólicos propostos por Mercier,
alegando que poderiam ser gestos espetaculares, sem trazer qualquer mudança
profunda. Essa preocupação com a prévia formulação doutrinal era estranha à maioria
dos participantes do grupo Igreja dos Pobres, mais voltado para a pastoral centrada no
apostolado dos pobres e nas formas concretas da pobreza da Igreja e na Igreja. Houve
ainda outros atritos com Ancel, que acabou distanciando-se do grupo.
Durante todo o Concílio, o grupo Igreja dos Pobres atuou como força de
proposição e lugar de discussão sobre a pobreza, embora na terceira e quarta sessões
tenha diminuído o seu ritmo, já que os trabalhos dos bispos se davam mais através
das comissões e de suas conferências episcopais. Não obstante, chegaram novos
participantes, como Monsenhor Bettazzi, que era auxiliar do Cardeal Lercaro em
Bolonha, além de Monsenhor Gand, coadjutor de Lille, e Monsenhor Haddad, bispo
melquita de Beirute.
Não faltou uma sensação de frustração, dado o pouco peso dessa rede na
elaboração dos esquemas do Vaticano II. Porém, no complexo processo conciliar, que
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incluiu sucessivas redações e também proposições contraditórias, sua contribuição
essencial esteve na própria dinâmica de atar as pontas de um segmento minoritário de
bispos na teia de sociabilidade desse grande Concílio. Além disso, a enquete da
pastoral encontrou um forte eco entre os padres conciliares.
As últimas intervenções coletivas da rede Igreja dos Pobres no processo conciliar,
por iniciativa de Mercier, consistiram em duas moções, já orientadas para o pós-
Concílio. Eram voltadas à obtenção de assinaturas dos padres conciliares e foram
lançadas em 9 de outubro de 1964. A primeira, intitulada “Simplicidade e pobreza
evangélica”, ligada à encíclica Ecclesiam Suam, de Paulo VI, propunha um
compromisso de renúncia aos títulos honoríficos e também a conformação da liturgia
e do aparato da vida episcopal à exigência de uma Igreja pobre e com os pobres. A
segunda também referia-se a essa encíclica, bem como aos discursos de abertura de
Paulo VI na segunda e terceira sessões do Concílio, e se intitulava “Prioridade para a
evangelização dos pobres”. Propunha também que se relançasse a experiência dos
padres operários.
Essas iniciativas, agora de forma mais discreta e silenciosa, prolongavam a
mobilização iniciada na sessão anterior pela equipe de pastoral, que teve notável
adesão. Em 13 de novembro atingiu-se um total de quinhentas assinaturas, número
que ainda cresceria nos dias subsequentes.
O ideal de renascer com a Igreja primitiva moveu o empenho do grupo Igreja dos
Pobres durante a quarta e última sessão do Concílio. Junto com Mercier, o segmento
dos foucauldianos voltou a ter atuação preponderante como tivera no início.
Essa rede atuou como um lugar de debate e uma força de proposições, avançando
naquilo que a redação dos esquemas não conseguia absorver. Seus esforços
culminaram num pacto concelebrado, o pacto da Igreja servidora e pobre, mais
conhecido como “o pacto das catacumbas”.
3. O Pacto das Catacumbas
Era a etapa final do Concílio e, dentro de poucos dias, os bispos entrariam em
clausura para as últimas votações. A intensidade dos trabalhos, porém, não impediu
que o grupo Igreja dos Pobres coroasse com uma iniciativa discreta, mas não menos
ousada, a atuação que havia exercido nos bastidores ao longo de quatro anos. Era o
Pacto das Catacumbas.
Feita a convocação pelo bispo belga de Tournai, Charles Marie Himmer, entre
cinquenta e sessenta bispos reuniram-se na rústica e subterrânea basílica das
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Catacumbas de Domitila, em Roma, na manhã do dia 16 de novembro de 1965. Ali
sacramentaram, numa concelebração eucarística, o pacto da Igreja servidora e pobre.
O próprio Himmer, que presidiu essa missa e pronunciou a homilia, guardou em
sua memória o ambiente de grande recolhimento e fraternidade, como se vê nas
observações acrescentadas por Claude Soetens, professor de História da Igreja em
Louvain-la-Neuve, que guardou duas listas organizadas por Himmer: uma manuscrita
e uma cópia desta, datilografada.
Como interpreta Beozzo, que recebeu de Soetens essas listas de nomes dos
participantes do Pacto, acréscimos manuscritos feitos por Himmer no local da
celebração objetivaram a inclusão de outros nomes, a identificação, a sinalização do
comparecimento e o modo de participação, como concelebrante ou não (BEOZZO,
Doc. 91 dos Archives Conciliares C. Himmer).
A listagem de Himmer deixou registrados os nomes de trinta e nove bispos.
Acrescentando-se o seu nome, que ele ali omitiu, temos assim distribuídos por
continente os quarenta bispos que concelebraram o Pacto das Catacumbas: da Ásia
eram doze, sendo cinco da Índia, quatro da China, um da Coreia do Sul, um da
Indonésia e um das Ilhas Seychelles. Eram nove da América Latina e do Caribe. Dois
da Argentina: Alberto Devoto, bispo de Goya, e Enrico Angellei Carletti, bispo
auxiliar de Córdoba, que em 1968 passaria a ser bispo de La Rioja. Havia um de
Cuba, Eduardo Tomás Boza Masvidal, bispo auxiliar de San Cristóbal de la Habana.
O outro era de Dominica, nas Antilhas: Antoon Demets, nascido na Bélgica e
pertencente à congregação do Santíssimo Redentor.
Os do Brasil, em número maior, eram cinco bispos: João Batista da Mota e
Albuquerque, arcebispo de Vitória, Espírito Santo; FranciscoAustregésilo de
Mesquita Filho, bispo de Afogados de Ingazeira, Pernambuco; José Alberto Lopes de
Castro Pinto, bispo auxiliar do Rio de Janeiro; Henrique Golland Trindade, arcebispo
de Botucatu, São Paulo; Antonio Fragoso, bispo de Crateús, Ceará.
Da África eram oito bispos, um de cada uma das respectivas localidades: Togo,
Argélia, Congo, Egito, Chade, Zâmbia, Congo Brazzaville, Djibouti.
Também eram oito os da Europa, sendo dois da França e um de cada um desses
países: Espanha, Grécia, Itália, Alemanha, Croácia (Iugoslávia) e Bélgica.
Acrescentando-se aqui mais um da Bélgica, Himmer, o número de europeus se eleva
para nove.
Da América do Norte havia um, do Canadá.
Também havia um do Oriente Médio, especificamente de Israel.
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Entretanto, deve-se considerar fatores contingentes como a pressa e as anotações
incompletas. Sabemos da participação do bispo brasileiro Dom José Maria Pires.
Também houve a presença participativa de pessoas não membros do episcopado. É o
caso do padre Paul Gauthier e da religiosa Therèse Lescase, que, além de mentores do
grupo Igreja dos Pobres, também haviam discutido e elaborado o Pacto das
Catacumbas.
Além disso, ainda outros bispos assinaram o pacto. Helder Câmara, um dos seus
mentores e articuladores mais entusiasmados, e que foi um dos primeiros a assiná-lo,
não pôde participar daquela missa nas Catacumbas de Domitila devido às suas
últimas tarefas no Concílio.
A dinâmica da rede Igreja dos Pobres possibilitou uma continuidade na adesão,
mesmo após o encerramento do Concílio. Dos dois mil e quinhentos bispos do
Concílio, cerca de quinhentos aderiram, ou seja, vinte por cento. E, de um modo
especial, esse pacto inspirou as conferências do episcopado latino-americano-
caribenho em Medellín e Puebla, que consagraram a opção dessa Igreja local pelos
pobres.
No entanto, esse pacto selado junto aos túmulos de muitos dos mártires dos
primeiros tempos da Igreja cristã entrou para a história desta pelas beiradas. Com
discrição, longe da imprensa, constituiu-se num gesto marcado pela não oficialidade,
assim como havia sido toda a trajetória do grupo Igreja dos Pobres nos quatro anos do
evento conciliar. A discrição e o despojamento pautavam-se no cuidado de evitar que
seu gesto pudesse ser interpretado como uma espécie de lição aos demais bispos.
A imprensa não noticiou o fato. Somente três semanas depois, por ocasião do
encerramento do Concílio, o jornal Le Monde publicou uma nota de Henri Fesquet
com o título: “Um groupe d’évêques anonymes s’engage à donner le témoignage
extérieur d’une vie de stricte pauvreté”. E não citava nomes (FESQUET, 1966, p.
1110-1113).
O texto do Pacto das Catacumbas (KLOPPENBURG, 1966, p. 526-528; ver anexo
no final deste livro) tem doze contundentes parágrafos. Na introdução, os bispos
afirmam ter se esclarecido acerca das deficiências do episcopado na vida de pobreza
evangélica. Declaram-se unidos a todos os irmãos no episcopado, ao mesmo tempo
que assumem o pacto por iniciativa própria, incentivados uns pelos outros.
Em síntese, pode-se ver assim os compromissos dos bispos através deste pacto:
• Conversão na vida pessoal: viver a simplicidade evangélica, à maneira do povo,
no que diz respeito à moradia, locomoção e alimentação; buscar ser
27
humanamente presente, acolhedor, aberto a todos sem distinção de religião;
renunciar às insígnias de riqueza e privilégios, bem como a possuir riqueza
material no próprio nome; não bajular os ricos.
• Conversão na vida eclesial, ministerial e pastoral: confiar a pessoas leigas a
gestão financeira, de modo a ser mais pastor e apóstolo que administrador;
dedicar aos pobres e aos trabalhadores o melhor do seu coração, seu tempo,
meios e reflexão; amparar os que evangelizam, compartilhando a vida com essas
pessoas; compartilhar a vida e o ministério episcopal com os irmãos em Cristo,
inclusive do laicato, na caridade pastoral; fazer com eles revisão de vida; suscitar
liderança de animadores mais que de chefes.
• Conversão na ação social: transformar a beneficência em obras sociais, na
perspectiva de nova ordem social e dignidade humana; empenhar-se numa global
superação da miséria, fazendo valer a colegialidade dos bispos e movendo os
organismos internacionais.
Ainda, ali estava o compromisso de dar a conhecer aos diocesanos esse pacto.
Como se pode ver, o Pacto das Catacumbas não nasceu simplesmente de um
entusiasmo momentâneo, mas foi fruto de uma intensa participação no Concílio com
o olhar e o coração no mundo dos pobres e no exercício constante da colegialidade.
Resultou também de uma dedicação incansável, com muitas tardes de encontro,
noites de vigília, partilha do vivido e dos sonhos, num espírito fraterno capaz de
superar os conflitos.
Esse pacto se inscreve no profetismo de minorias – “abraâmicas”, no dizer de
Helder Câmara – que em diversos rincões do mundo viviam inseridas
evangelicamente entre as vítimas do empobrecimento causado, como os operários, os
tuaregs do deserto do Saara e tantas outras categorias de pessoas excluídas do
usufruto das riquezas da terra. Mesmo sendo minoritário entre os padres conciliares,
esse segmento foi forte na irradiação do seu compromisso.
Como observa Pelletier, não foi a partir do nada que, ao término do Concílio, vinte
bispos reuniram-se numa fraternidade foucauldiana em torno de Monsenhor Riobé.
Dez deles haviam participado do Grupo Igreja dos Pobres (PELLETIER, 1966, p.
89).
Na América Latina, a solidariedade real com os empobrecidos aparecia
especialmente na questão da terra, não simplesmente como ajuda caritativa, mas
como participação no próprio movimento popular (DUSSEL, 1989, p. 44-45).
Com o aval do Concílio, multiplicaram-se iniciativas corajosas. O Papa Paulo VI,
28
em seu discurso de abertura da Conferência de Medellín, afirmou estar informado dos
“gestos generosos realizados em algumas dioceses, que puseram à disposição das
populações necessitadas as propriedades de terrenos que lhes restavam, seguindo bem
estudados planos de reforma agrária que estão se realizando” (PAULO VI, 1968, p.
22).
Também quanto ao testemunho pessoal de viver pobremente e na solidariedade
com os pobres, poderíamos falar de muitos bispos. Podemos lembrar alguns do
Brasil.
Helder Câmara, que já havia expressado numa de suas cartas o anseio para que “se
acabasse de vez a casta de bispos-príncipes e se firmasse para sempre a figura do
pastor, do servidor, do Pai” (CÂMARA, Circular de 1/11/1962), como arcebispo de
Olinda e Recife, deixou o palácio episcopal de Manguinhos para viver à maneira dos
pobres na sacristia da Igreja das Fronteiras, na cidade de Recife. Com sua surrada
batina branca e uma cruz de madeira pendendo-lhe no peito, jamais possuiu
automóvel nem motorista. Também entregou propriedades de terra da arquidiocese a
camponeses pobres, garantindo-lhes assistência técnica, jurídica e social, para que
conquistassem autonomia e cidadania (BEOZZO, 2009).
O espanhol catalão Pedro Casaldáliga, um religioso claretiano, chegou em missão
ao Brasil em 1968. Escolheu viver no sertão do Mato Grosso, onde o Vaticano
instituiu a Prelazia de São Félix do Araguaia. Trata-se de uma área de 150 mil
quilômetros quadrados, que atualmente abrange quinze municípios. Desde 1971,
quando foi sagrado bispo, Casaldáliga vive e exerce seu pastoreio ali, numa casa
rústica, com mobília simples e com portas e janelas abertas para a rua. Ao fundo há
uma capela, também aberta a quem quiser entrar. Seu testemunho, que atravessa
várias décadas, é marcado por despojamento e pobreza, identificação com a Igreja
dos pobres e profetismo, na solidariedade com os pobres e principalmente com
indígenas e lavradores oprimidos por latifundiários.
Em 1973, o cardeal arcebispo de São Paulo, Paulo Evaristo Arns, vendeu o palácio
episcopal e foi residir numa casa comum, de muro baixo. O dinheiro dessa venda foi
empregado na campanha que ele lançou, a “Operação Periferia”, que abordaremos
mais adiante. Isso possibilitou a inúmeras comunidades eclesiais de base a aquisição
de seu centrocomunitário, para o culto, a conscientização, a promoção humana e todo
tipo de solidariedade entre os pobres. Essa notícia, fartamente veiculada pela
imprensa, foi dada com detalhes pelo Radiogiornale da Rádio Vaticano.
A raiz dessa opção pela Igreja pobre e servidora tinha um profundo sentido
29
evangélico.
30
N
Capítulo II
DESDE O PARTICULAR E O LOCAL
1. O tema da pobreza no Concílio Vaticano II
o grande acervo dos documentos conciliares estão importantes afirmações em
favor dos pobres, embora de modo esparso. Para chegar a elas é preciso tomar a
perspectiva hermenêutica do próprio Vaticano II, a de mergulhar no coração da
história com todas as realidades temporais e aí perceber Deus na experiência humana,
o Deus da Bíblia, que ama a todos sem excluir ninguém. Com essa nova
hermenêutica, o Concílio situa-se no humano, reconhecendo que o existencial, a
subjetividade e a experiência humana se tornam fonte de interpretação da Palavra de
Deus. Valoriza a pessoa humana como sujeito, com sua liberdade de escolha e sua
dimensão social (LIBÂNIO, 2005a, p. 73-85, 201).
Para essa nova perspectiva, foi importante a contribuição de um grande grupo de
teólogos, chamados ao Concílio como consultores. Pode-se lembrar Chenu, Henri de
Lubac, Yves Congar, Karl Rahner, Hans Küng, entre outros, sobre os quais a cúria
romana havia posto o manto da suspeita e até da proibição. O Concílio os convocou
justamente porque aliavam à sua retidão intelectual uma coragem de inovar. E eles
ajudaram a Igreja a recolocar seus pés na história e a assumir sua vocação de serva da
humanidade.
Com essa virada antropocêntrica, acompanhada de uma revalorização das
realidades históricas, o Vaticano II marcou a superação do essencialismo e do
dogmatismo medieval, para centrar a preocupação no ser humano situado no mundo,
embora sem tomar como caminho obrigatório o ser humano em situação de pobreza.
Aliás, o Concílio não chegou a realizar o ideal de João XXIII, de que a Igreja dali
saísse tão próxima dos pobres a ponto de eles se sentirem nela como em sua casa.
João XXIII deixou-nos uma chave de compreensão desse ideal em suas encíclicas
Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963).
Na Mater et Magistra, a pobreza é entendida num sentido humano e realista (n. 4),
não só na perspectiva da compaixão humana, mas também das causas do
empobrecimento e do empenho na transformação do quadro de injustiças. Trata-se de
um problema político e social: os pobres são vítimas de relações econômicas injustas.
Então, é preciso denunciar a falta de justiça e equidade na remuneração do trabalho,
31
que submete os trabalhadores e suas famílias a condições de vida infra-humanas (n.
65). A saída da pobreza não será a esmola, mas sim salários justos, acompanhados de
uma adequação do progresso econômico ao progresso social (n. 70 e 80) (LENZ,
2012).
Na Pacem in Terris, a pobreza é tratada na perspectiva dos direitos humanos, da
pessoa humana e dos povos. Toda pessoa humana tem igual dignidade e é sujeito de
direitos e deveres (n. 8). Nesse prisma, João XXIII aponta como o primeiro dos sinais
dos tempos a gradual ascensão econômico-social das classes trabalhadoras (n. 40). E
apela às nações desenvolvidas para que auxiliem, por todos os meios, as mais pobres,
sem qualquer pretensão de domínio, mas com respeito à liberdade e às características
de cada povo (n. 123 e 125).
Quanto ao Concílio, já no transcorrer da sua primeira sessão, o tema da Igreja dos
pobres constituiu-se num ponto de encontro dos debates acerca da Igreja e da liturgia.
O grupo Igreja dos Pobres discutiu a questão do luxo episcopal desde sua primeira
reunião, organizando uma conferência que foi pronunciada pelo teólogo Yves Congar
em 30 de novembro. E no espaço oficial da aula conciliar, tratando-se da liturgia,
uma intervenção de Monsenhor Gouyon propôs que os bispos renunciassem à cappa
magna e a outros sinais exteriores de prestígio. O vivo eco dessa intervenção de
Gouyon, que não era um membro do grupo, evidenciava que o tema estava circulando
entre os padres conciliares.
Como sabemos, o grupo Igreja dos Pobres não teve um peso concreto, enquanto
instância coletiva, na elaboração dos textos conciliares, por isso recorreu à mediação
de quem teria sua palavra ouvida em “aula” conciliar. Entre os mediadores destacou-
se o cardeal arcebispo de Bolonha, Giacomo Lercaro.
Aberto o Concílio em 11 de outubro de 1962, não demorou a ser distribuído aos
padres conciliares o esquema de uma constituição dogmática, então chamado De
Ecclesia (Sobre a Igreja), elaborado pela Comissão Teológica pré-conciliar, sob a
responsabilidade do Cardeal Ottaviani. Ao explicá-lo ao plenário do Concílio, na 31ª
congregação geral, em 1º de dezembro, Ottaviani afirmou com palavras duras que já
se vinha travando uma batalha antes mesmo que esse esquema chegasse às mãos dos
padres conciliares, e que outro substituiria o seu.
O fato é que ali estava o ponto nodal do Concílio, tanto assim que as figuras mais
representativas dos episcopados do mundo todo empenhavam-se nas discussões,
especialmente Lercaro e Suenens, e também Montini, que viria a ser o Papa Paulo VI.
O próprio Ottaviani reconhecia que ouvira muitas críticas dizendo que o texto por ele
32
apresentado, de estilo escolástico, não era como se pedia, pastoral, bíblico e acessível
às massas contemporâneas (VALLS; DOTOLO; PASQUALE, 2004, cap. II).
Num momento de debates em torno do De Ecclesia, em 4 de dezembro de 1962, o
cardeal Suenens fez uma intervenção incisiva, realçando a necessidade de atuação da
Igreja não só ad intra, mas também ad extra, ou seja, não só no seu interior e a seu
próprio serviço, mas no mundo e a serviço da humanidade. Suenens também
reclamou a instituição de um secretariado para tratar dos problemas da atualidade.
Seus argumentos tiveram boa repercussão.
Um apoio mais direto a Suenens veio do Cardeal Montini. Pouco tempo depois, já
como Papa Paulo VI, ele lançou sua primeira encíclica, a Ecclesiam Suam. Centrada
no tema do diálogo, essa encíclica representou uma decisiva contribuição para o que
viria a ser a Constituição Pastoral Gaudium et Spes.
É interessante lembrar que, em sua radiomensagem pronunciada a todos um mês
antes da abertura oficial do Concílio, João XXIII reapresentara a Igreja solidária aos
pobres e a pertença dos pobres à Igreja. Desse modo, fizera-se porta-voz do segmento
profético do episcopado que, durante todo o Concílio, em meio a partilhas e
confrontos de realidades e necessidades de toda ordem, daria forma à Gaudium et
Spes. Nesse segmento estava Suenens, que tinha com João XXIII uma comunhão de
pensamento a respeito da Igreja ad intra e ad extra, o que era fruto de diálogos com
ele, especialmente a partir de uma carta pastoral que o Papa dirigira à sua
arquidiocese, tratando do futuro Concílio (RIEDMATTEN, 1969, p. 35-49).
O esquema De Ecclesia recebeu fortes críticas e passou por crivos e múltiplas
transformações até ser votado por inteiro na 126ª congregação geral, em 19 de
novembro de 1964, e decretado no dia seguinte como Constituição Dogmática Lumen
Gentium.
Paulo VI, em sintonia com os que se empenhavam em que o Concílio proclamasse
a Igreja como a Igreja dos pobres, comprometeu-se a escrever uma encíclica voltada
para o tema do desenvolvimento dos povos, com foco no chamado Terceiro Mundo.
Cumpriria a promessa logo após o término do Concílio, com sua encíclica Populorum
Progressio, publicada em março de 1967. E na aula conciliar interveio de maneira
discreta e eficaz, propondo que se aceitasse o texto tal como resultava, ao final do
constante trabalho empreendido desde o início (VALLS; DOTOLO; PASQUALE,
2004, p. 107-108).
No entanto, já na primeira sessão do Concílio, mais precisamente em sua 35ª
congregação geral, em 6 de dezembro de 1962, o tema dos pobres esteve numa
33
incisiva intervenção do cardeal Lercaro. Retomando as palavras de João XXIII, ele
afirmou: “Se a Igreja é de todos, hoje é especialmente a Igreja dos pobres”. E
explicou ser aquela a hora dos milhõesde pobres da terra, hora do mistério da Igreja
mãe dos pobres e do mistério de Cristo, sobretudo no pobre (LERCARO, 1984, p.
109-122).
Para o arcebispo de Bolonha, a ausência desse tema nos esquemas preparatórios
do Concílio constituía uma grave lacuna, pois não se tratava de um entre tantos outros
temas tratados no Concílio, mas sim do grande tema, a Igreja. Ele entendia que o
tema era a Igreja enquanto, sobretudo, Igreja dos pobres. Assim, do ponto de vista
teológico, lançou-o a partir do mistério de Cristo no coração da Igreja, que é mistério
de Cristo nos pobres.
Era dever do Concílio, insistia Lercaro, dar centralidade ao mistério de Cristo nos
pobres e ao anúncio do Evangelho aos pobres. Tratava-se do aspecto essencial do
mistério de Cristo, pré-anunciado pelos profetas como sinal inconfundível de sua
consagração e missão messiânica, magnificado pela mãe do Salvador no momento da
encarnação do Verbo, promulgado desde o nascimento de Jesus, sua infância, vida
escondida e ensinamento público. Além disso, essa essencialidade constitui a lei do
Reino de Deus e condiciona todo o fluxo da graça e da vida da Igreja, desde a
comunidade apostólica até todas as grandes horas de renovação. E será sancionado na
eternidade com a recompensa ou o castigo.
Ele apontava as evidências de que esse dever se tornava mais imperativo que
noutras épocas: os pobres aparecem como alienados e estranhos ao mistério de Cristo
e da Igreja; a consciência da humanidade faz dramáticas interrogações sobre o porquê
da pobreza e o destino dos pobres, sejam indivíduos ou povos inteiros, que agora
adquirem uma nova consciência dos seus direitos; a pobreza de dois terços da
humanidade se faz à custa da desmesurada riqueza de poucos.
Lercaro ainda sugeriu que, para a sessão seguinte do Concílio, se priorizasse a
formulação da doutrina evangélica da divina pobreza de Cristo na Igreja, como
também da eminente dignidade dos pobres, como membros eleitos da Igreja, porque
neles preferencialmente o Verbo de Deus encarnado esconde o fulgor de sua glória,
que se revelará no final dos tempos. Naquela constituição dogmática e em todos os
trabalhos conciliares, era preciso dar clareza e solidez a essa doutrina essencial,
realçando-se a estreita ligação ontológica entre a presença de Cristo nos pobres e a
presença de Cristo na Igreja.
Em todos os trabalhos conciliares, para cada problema prático de renovação da
34
instituição eclesiástica e dos modos de evangelização, dizia Lercaro, teriam que
buscar tornar clara a estreitíssima conexão histórica entre o reconhecimento sincero e
coerente da eminente dignidade dos pobres no Reino de Deus e na Igreja, de uma
parte, e da outra parte as reais possibilidades e obstáculos da evangelização em nosso
tempo.
Entre os obstáculos estavam a aparência de riqueza da autoridade eclesiástica e as
estruturas patrimoniais como resíduos do feudalismo. Não sendo verdadeiramente
úteis à obra da Igreja, deviam ceder a um novo estilo e nova definição, em vista da
sensibilidade das pessoas humanas contemporâneas e especialmente dos pobres. E as
congregações religiosas deviam ser fiéis à santa pobreza.
Finalizando a sua intervenção, Lercaro citou as palavras do apóstolo Paulo:
“Cristo, sendo rico, por nós se fez pobre para nos enriquecer” com sua graça e sua
glória (cf. 2Cor 8,9).
A contribuição de Lercaro, fazendo suas as propostas dos cardeais Suenens e
Montini, foi a de dissertar a respeito do mistério de Cristo nos pobres
(KLOPPENBURG, 1966, p. 259). Na segunda sessão do Concílio, já nomeado como
um dos moderadores, recebeu de Paulo VI o encargo de redigir um texto de reflexão
teológica a respeito da pobreza na Igreja. No entanto, Lercaro tinha pouco contato e
uma tênue convergência com o grupo Igreja dos Pobres, de modo que suas
intervenções ganhavam um cunho próprio.
Por sua vez, o grupo Igreja dos Pobres era um laboratório de ideias e atitudes.
Suas contribuições foram abraçadas, de modo esparso, por diversos dos documentos
do Vaticano II, sendo que nenhum dos documentos conciliares ordenou-se realmente
num reconhecimento da Igreja dos pobres. Por outro lado, dois deles dedicaram
algum parágrafo para abordar o tema de maneira direta e aprofundada: Lumen
Gentium e Ad Gentes (PELLETIER, 1966). O tema dos pobres se explana mais na
Gaudium et Spes, especialmente em sua segunda parte, mais especificamente no
capítulo III, que trata da vida econômico-social.
A Constituição Dogmática Lumen Gentium consagrou a Igreja como servidora de
todas as pessoas humanas, à luz do testemunho bíblico do Cristo que se fez pobre.
Sob essa iluminação, traz de modo contundente a formulação cristológica: “[...] assim
como o Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a
Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho, a fim de comunicar aos homens os
frutos da salvação” (n. 8).
Esse mesmo parágrafo traz uma riqueza de citações bíblicas:
35
Cristo Jesus, “como subsistisse na condição de Deus, despojou-se a si mesmo, tomando a condição de
servo” (Fl 2,6) e por nossa causa “fez-se pobre embora fosse rico” (2Cor 8,9); da mesma maneira a Igreja,
embora necessite dos bens humanos para executar sua missão, não foi instituída para buscar a glória
terrestre, mas para proclamar, também pelo seu próprio exemplo, a humildade e a abnegação. Cristo foi
enviado pelo Pai para “evangelizar os pobres, sanar os contritos de coração” (Lc 4,18), “procurar e salvar
o que tinha perecido” (Lc 19,10); semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os afligidos pela fraqueza
humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador pobre e sofredor. Faz o
possível para mitigar-lhes a pobreza e neles procura servir a Cristo. Mas enquanto Cristo, “santo, inocente,
imaculado” (Hb 7,26), não conhece o pecado (cf. 2Cor 5,21), mas veio para expiar apenas os pecados do
povo (cf. Hb 2,17), a Igreja, reunindo em seu próprio seio os pecadores, ao mesmo tempo santa e sempre
na necessidade de purificar-se, busca sem cessar a penitência e a renovação.
Justamente da nossa fé em Cristo que se fez pobre e que sempre se aproximou dos
pobres e marginalizados deriva a preocupação pelo desenvolvimento integral dos
mais abandonados da sociedade. Essa afirmação é do Papa Francisco (EG 186).
Nos documentos do Vaticano II não encontramos a expressão Igreja dos pobres.
Porém, no Decreto Ad Gentes está formulada uma afirmação que dá conteúdo
teológico ao tema da Igreja pobre, inclusive até o testemunho martirial:
Esta missão no decurso da história continua e desdobra a missão do próprio Cristo, enviado a evangelizar
os pobres. Eis por que a Igreja impelida pelo Espírito de Cristo deve trilhar a mesma senda de Cristo, isto
é, o caminho da pobreza, da obediência, do serviço e da imolação de si até a morte, da qual saiu vencedor
por Sua ressurreição. Pois assim na esperança caminharam todos os Apóstolos, e por suas muitas
tribulações e paixões completaram o que falta aos sofrimentos de Cristo por Seu Corpo, a Igreja. Muitas
vezes foi também semente o sangue dos cristãos (AG 5).
Também no Decreto Presbyterorum Ordinis encontramos algumas formulações
como pérolas esparsas. Ao tratar da justa remuneração dos presbíteros, o Concílio aí
lembra que “o serviço aos pobres, a Igreja o teve sempre em grande estima, desde os
seus primórdios” (n. 20), e faz apelo a que jamais se perca de vista o exemplo dos
membros da Igreja primitiva de Jerusalém, na qual “tudo era comum entre eles” e
“distribuíam a cada qual segundo a necessidade” (At 4,32 e 35). Nesse espírito,
recomenda às Igrejas locais e regiões constituir um fundo comum de bens, como
também que as dioceses com maiores recursos socorram aquelas que estão na pobreza
(n. 21).
No mesmo documento, o Concílio lembra que o único ministério sacerdotal,
embora em tarefas diversas, é exercido em favor das pessoas humanas. Assim, entre
as tarefas diversas a desempenhar está também a de “trabalhos manuais, participando
da sorte dos próprios operários, onde isso parecer vantajoso, com a aprovação da

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