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Teologia do prazer - Ana Márcia Guilhermina de Jesus

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2
Índice
Prazeres
Introdução
I - O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER
1. Concepções científicas do prazer
Bases científicas do prazer
Definição de prazer
O prazer como meta da vida humana
Teologia do prazer
2. Dimensões do prazer
Dimensão intrapsíquica
Dimensão relacional ou interpessoal
Dimensão afetiva
Dimensão amorosa
Dimensão corporal
Dimensão sexual
Dimensão espiritual
Dimensão cultural
II. O ENSINAMENTO BÍBLICO SOBRE O PRAZER
1. O conceito bíblico de prazer
A concepção positiva do prazer
A concepção negativa do prazer
O prazer no Segundo Testamento
2. Os prazeres divinos
O prazer de criar e de se divertir
O prazer de agraciar e de perdoar
O prazer de dar a vida
Jesus: o prazer do povo
3. Os prazeres humanos
Vida prazerosa
O cultivo do prazer como vocação
O prazer sexual
Prazer sexual libertador
A abstenção do prazer sexual não é virtude
O prazer sexual como experiência espiritual
4. Os prazeres desumanos
A mercantilização do prazer
3
Os prazeres que desumanizam
Por que esses prazeres desumanizam?
III. O TEMA DO PRAXER NA HISTÓRIA DA IGREJA
1. Do seguimento prazeroso de Jesus à abolição do prazer
A incursão do dualismo grego
A maleficência do maniqueísmo
2. A relação entre prazer, sexo e pecado
Pedagogia do “quebra-molas”
Resgate do valor do prazer sexual
A mulher como símbolo do prazer degenerado
3. Um cristianismo triste e assustador
O resgate da beleza do prazer
O atual retorno ao dualismo e maniqueísmo
IV. AFIRMAÇÕES TEOLÓGICAS PARA UMA VIDA PRAZEROSA
1. Prazer: plenamente divino e plenamente humano
O valor da experiência de vida
Cristianismo: mística prazerosa
Cristianismo, prazer e ascese
2. Seguir Jesus com prazer
Prazer, discernimento e responsabilidade
Prazer ecologicamente correto
Conclusão
Bibliografia consultada
4
A Dom Angélico Sândalo Bernardino, nosso irmão bispo,
pastor amoroso, profeta da justiça e defensor dos pobres,
com quem temos o prazer de saborear uma gostosa amizade.
Às amigas e aos amigos de Araci (BA), Borda da Mata
(MG), Distrito Federal, Itaparica (BA), Frei Paulo (SE),
Nápoles (Itália), Pouso Alegre (MG), Riachão do Jacuípe
(BA), Rio de Janeiro (RJ), Roma (Itália), Salvador (BA),
“Bairro” Paredes em Tocos do Mogi (MG), Vitória da
Conquista (BA), com os quais temos o prazer de conviver
numa sincera e profunda amizade.
5
Prazeres
O primeiro olhar da janela de manhã.
O velho livro de novo encontrado.
Rostos animados.
Neve, o mudar das estações.
O jornal.
O cão.
A dialética.
Tomar banho, nadar.
Velha música.
Sapatos cômodos.
Compreender.
Música nova.
Escrever, plantar.
Viajar, cantar.
Ser amável.
Bertold Brecht, poeta e dramaturgo alemão
(1898 – 1956)
6
INTRODUÇÃO
Goza a vida... (Ecl 9,9)1*
O tema do prazer ainda é considerado um grande tabu pela maioria dos cristãos.
Embora a Bíblia judaico-cristã veja essa questão com otimismo, a influência
maniqueísta, infiltrada nas comunidades cristãs primitivas, terminou por se impor,
levando o cristianismo a ver o prazer com bastante pessimismo. Atualmente, mesmo
com os grandes avanços provocados por fatos como o Concílio Vaticano II e as
descobertas científicas, a perspectiva ainda é bastante negativa. Nas Igrejas cristãs, o
tema não é tratado explicitamente, a não ser em certas ocasiões e quase sempre para
combatê-lo. Até mesmo textos da ala mais avançada da Igreja Católica tratam o
assunto com muita desconfiança. O documento conclusivo da Conferência de Puebla
(1979), considerado um dos mais ousados da Igreja Católica Romana no pós-concílio
Vaticano II, ainda via o prazer como um ídolo erigido no mundo de hoje (n. 749).
Não faltam esforços, por parte de algumas pessoas e por parte de alguns teólogos,
no sentido de aprofundar a questão numa perspectiva mais positiva. Mas, apesar
desses esforços, o prazer ainda é visto de forma muito negativa e nunca mereceu um
tratado específico de teologia. Isso levou um franciscano, teólogo, bispo e psicólogo a
pedir, no finalzinho do século passado, que os teólogos pensassem numa “teologia do
prazer”.2
Dom Valfredo Tepe, que foi bispo de Ilhéus (BA), Brasil, e um pastor
profundamente identificado com a vida do povo, lamentava um tipo de cristianismo
amarrado a “antigas determinações morais repressivas”, incapazes de apresentar o
lado positivo da fé cristã em questões importantes como “a corporalidade, a
experiência da satisfação, do prazer”, as quais não são por si mesmas pecaminosas.
Em seu livro, que acabamos de citar, Tepe discorre com muita propriedade sobre o
tema do sofrimento humano e insiste muitas vezes na necessidade de se rever certo
ascetismo que tomou conta das Igrejas, especialmente da Igreja Católica Romana.
Denuncia a falácia desse ascetismo que acaba com a alegria de viver e que nos
ensinou a projetar todas as satisfações, gozos, prazeres e gratificações para a outra
vida. Isso fez com que o cristianismo se apresentasse sempre como “estresse
ascético”. Por causa da anatematização do prazer, o cristianismo se tornou a religião
dos “rostos tristonhos, sorumbáticos e macambúzios”.3 Uma religião que não
consegue mais fascinar as pessoas do mundo de hoje, as quais estão cada vez mais
conscientes do valor do prazer e de uma vida prazerosa e gozosa.
Nós resolvemos acolher o convite de Dom Valfredo Tepe e nos atrevemos a
refletir sobre o assunto. Depois de quase dois anos de pesquisas, leituras e estudos,
produzimos o presente texto que agora chega às suas mãos. Temos consciência de
que não esgotamos o assunto, mas esperamos que a nossa iniciativa estimule outros
estudiosos cristãos a aprofundarem ainda mais a questão, ajudando suas Igrejas a
reverem suas posições e a se abrirem mais à positividade da experiência do prazer.
7
O presente estudo começará com uma análise do conceito e do sentido do prazer.
Consideramos fundamental iniciar nossa reflexão apresentando as bases científicas
do prazer. Uma teologia do prazer precisa começar com a constatação de que tal
sensação ou experiência foi colocada no ser humano pelo Criador. As ciências, de
modo particular a Psicologia e a Neurociência, ao desvendarem o mistério do prazer,
nos revelaram a criatividade divina que, ao “modelar” (cf. Sl 139,13-15) a pessoa
humana, dotou-a de tão complexo dinamismo. As ciências nos ajudam a perceber que
o prazer faz parte da natureza humana, assim como foi pensada, sonhada e criada por
Deus. A partir dessa perspectiva, fazemos um estudo de algumas dimensões do
prazer, com a finalidade de ajudar os leitores e as leitoras a perceberem ainda mais a
bonita complexidade desse fantástico estado emocional humano.
Na segunda parte do nosso texto apresentaremos o ensinamento bíblico sobre o
prazer. Não foi fácil abordar esta questão, dada a escassez de pesquisas e publicações
específicas sobre o assunto, especialmente aqui no Brasil. As pesquisas que fizemos
apontam inicialmente que há na Bíblia uma concepção positiva do prazer, embora
não faltem textos que alertam sobre o risco de uma busca de prazer que desumaniza.
Porém, como veremos mais adiante, a Palavra de Deus não demoniza a experiência
prazerosa. Pelo contrário, convida o ser humano a viver prazerosamente sob a guia e
proteção divinas. Para evidenciar esse aspecto positivo, antes de mencionar os
prazeres humanos recomendados pela Bíblia, falamos dos “prazeres divinos”. Algo
muitas vezes inédito, já que o cristianismo do “ascetismo mórbido” (TEPE) nos
acostumou com a imagem de um Deus sempre irado e irritado com a possibilidade de
um ser humano alegre e feliz. Somente ao final desse capítulo apresentamos algumas
indicações bíblicas acerca de um tipo de prazer que pode alienar e desumanizar.
Após apresentar as bases científicas do prazer e a visão bíblica sobre o tema,
faremos uma reflexão sobre a forma como o prazer foi visto ao longo da história da
Igreja. Nesse capítulo, mostraremos como o cristianismo, de seguimento prazeroso
de Jesus, se transformou na religião da abolição do prazer. Veremos que isso se deu
pela incursão do dualismo grego e do maniqueísmo maledicente nas comunidades
cristãs. Alémdisso, refletiremos sobre a relação que se criou entre prazer, sexo e
pecado, fazendo com que as Igrejas introduzissem regras bem rígidas a esse respeito,
as quais passaram a funcionar como verdadeiros “quebra-molas” que visam frear o
gozo e o prazer. Depois dessas observações mostraremos que, em toda essa história, a
mulher pagou um preço amargo, uma vez que ela foi considerada o símbolo do prazer
degenerado. Concluiremos o capítulo afirmando que todas essas coisas
transformaram o cristianismo em uma experiência triste e assustadora e que
precisamos continuar vigilantes, uma vez que no atual contexto estão retornando
formas cristãs dualistas e maniqueístas.
No último capítulo, apresentaremos algumas afirmações teológicas acerca de uma
vida cristã prazerosa. Insistiremos na necessidade de ver o prazer como uma realidade
plenamente divina e plenamente humana e, em consequência, olhar para o
cristianismo como mística prazerosa. Mas, para que isso aconteça, será indispensável
repensar a relação entre seguimento de Jesus, prazer e ascese. Embora parte essencial
do discipulado, esta precisa ser revista, de tal modo que não tire do cristianismo a sua
dimensão gozosa. Isso significa que a vivência cristã do prazer inclui um processo de
8
discernimento e uma educação para a responsabilidade, de modo que se possa falar de
uma vida prazerosa ecologicamente correta, entendo por ecológico um estilo de
existência que humanize sempre e cada vez mais.
Nosso estudo se concluirá com uma reflexão acerca da necessidade de que as
Igrejas renunciem à pretensão de querer controlar, a todo custo, a vida das pessoas.
Elas precisam mudar de pedagogia, uma vez que a atual pedagogia do controle e da
imposição não funcionou e terminou por lançar os fiéis nas mãos da indústria do
prazer. Propomos que as Igrejas sejam mais propositivas e educadoras, em vez de
funcionarem como agências de controle dos crentes. Eduquem seus fiéis para a
autonomia, para a condição de pessoas adultas, para a responsabilidade e, sobretudo,
para a sensibilidade à voz da consciência, tida como a voz de Deus dentro do ser
humano.
Este texto destina-se a todos os cristãos e a todas as cristãs de todas as Igrejas, sem
exceção, e que queiram aprofundar essa temática tão vital e tão marcante para a vida
humana. Destina-se também a todos os homens e a todas as mulheres de boa vontade
que, embora não professem a fé cristã, desejam ter uma compreensão mais positiva
do tema do prazer na perspectiva do cristianismo. Mesmo conscientes de que não
exaurimos a temática proposta, optamos por manter o simples título Teologia do
prazer, sem mais substantivos ou adjetivos qualificativos. Com isso queremos
ressaltar o caráter teológico do tema, diante de todo o desgaste a que foi submetida a
questão do prazer dentro do cristianismo e ao longo dos séculos.
Afirmamos, pois, que o conteúdo deste texto que você está para estudar é de
ordem teológica, ou seja, uma reflexão lógica e metódica sobre um tema que está
relacionado com a fé cristã e que associa o crer e o pensar. Está fundamentado na
Palavra de Deus, centrado na pessoa de Jesus Cristo, o Filho revelador do Pai, e busca
ser fiel a uma inspiração do Espírito Santo. Embora o próprio tema, o seu conteúdo e
as suas propostas pareçam dizer o contrário, nosso objetivo é submeter a questão do
prazer à razão dialética,4 argumentando segundo os princípios racionais, mas sempre
à luz da fé que aceita Jesus Cristo como o Salvador do mundo (cf. Jo 4,42). Desde os
tempos das primeiras comunidades cristãs foi ficando sempre mais evidente que os
discípulos e as discípulas de Jesus não só devem crer, mas precisam crer de maneira
inteligente. O ato de crer não é, como costumam afirmar alguns, um simples “salto no
escuro”, como se Deus quisesse a nossa adesão à sua vontade sem nenhum
questionamento e sem nenhum pedido de compreensão. Ao criar o ser humano à sua
imagem e semelhança, o Criador o dotou de razão e de inteligência. Por isso é mais
do que normal querer compreender enquanto se busca crer. A pregação sobre a
renúncia a tentar compreender os mistérios da fé cristã é mais uma dessas terríveis
falácias inventadas pelo sistema eclesiástico com a simples finalidade de manter o
povo cristão subjugado e resignado aos seus caprichos.5
Como pensamos este texto para todos os cristãos e para todas as cristãs e para as
pessoas de boa vontade, decidimos por incluir várias notas de rodapé, visando ajudar
aqueles e aquelas que não estão familiarizados com certos termos teológicos e
científicos a compreender melhor o seu conteúdo. Pedimos desculpas aos irmãos e às
irmãs iniciados ou especialistas no assunto por esse detalhe, mas estamos
convencidos de que vocês saberão compreender essa necessidade, solidarizando-se
9
com as pessoas que não estão acostumadas com o linguajar teológico e técnico.
Fazemos votos de que este livro toque o coração de muitas pessoas, desperte-nos
para a beleza do prazer, estimule em todos nós uma vida prazerosa, responsável e
solidária e suscite em muitas outras pessoas o desejo e a vontade de aprofundar ainda
mais essa temática tão bonita e profundamente cristã.
1 *As citações bíblicas são retiradas da Bíblia Tradução Ecumênica (TEB), São Paulo, Loyola, 1994,
exceto quando optamos por uma tradução mais livre, feita a partir dos originais ou da indicação de
determinados autores.
2 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 24-25.
3 Cf. ibid., p. 25-27.
4 Por razão dialética entendemos aqui uma reflexão conduzida de forma racional e processual e que leva em
conta a possibilidade de argumentações e reflexões diferentes que precisam ser ouvidas, acolhidas e
profundamente consideradas. Na reflexão racional dialética, as pessoas se posicionam de uma forma clara e
evidente, mas permanecem abertas para escutar o que outras têm a dizer sobre o assunto. Elas não acreditam
que suas palavras são as únicas verdadeiras, mas querem dialogar com posições diferentes. E essa é a nossa
intenção neste texto. Acerca do conceito de dialética, veja-se Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia,
São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 315-322.
5 Acerca da necessária relação entre crer e compreender o que se crê, veja-se Félix Alejandro PASTOR,
“Teologia e Modernidade: alguns elementos de epistemologia teológica”, em José TRASFERETTI e Paulo
Sérgio Lopes GONÇALVES (orgs.), Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática
e teórico-prática, São Paulo, Paulinas, 2003, p. 71-101.
10
I
O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER
A vocação natural do homem é o prazer, a satisfação e o divertimento, em todos os níveis de seu ser.
(Giacomo Dacquino)
Antes de nos adentrar na reflexão teológica propriamente dita sobre a temática do
prazer é indispensável compreendermos, da melhor maneira possível, o significado e
o sentido do prazer. Isso é necessário para não corrermos o risco de fazer uma
reflexão ambígua e superficial. Para realizar essa tarefa, vamos pedir o auxílio de
algumas ciências, de modo particular à Psicologia1 e à Neurociência.2 Ao tentar
descrever o conceito de prazer, temos presente que a pessoa humana foi criada à
imagem e semelhança de Deus também na sua constituição física e biológica (cf. Gn
1,26-27.31; Sl 139,13).3 Assim sendo, toda a complexa dinâmica do prazer,
constitutiva do ser humano, enquanto participante da condição biológica, faz parte do
projeto criador de Deus. Ele quis o homem e a mulher assim como são, também em
sua corporalidade. Por isso não se pode afirmar que o que vamos ver a seguir nada
tem a ver com o projeto de Deus. Isso é sumamente importante para superarmos
concepções arcaicas, ultrapassadas, fundamentalistas e maniqueístas que,
infelizmente, ainda povoam o nosso imaginário, especialmente o imaginário
religioso, quando falamos do tema do prazer.
1. Concepções científicas do prazer
Quando falamos de prazer normalmente temos em mente uma série de definições
e de concepções. Tais definições e concepções dependem muito das nossas
experiênciasde vida e da ideologia que norteia o nosso dia a dia. Mas, ao
perguntarmos às ciências, geralmente encontramos definições simples e claras. O
prazer seria a “sensação derivante da percepção sensitiva que se pode instaurar
quando se satisfaz uma necessidade ou se espera por sua satisfação”.4 Continuando a
sua reflexão, o autor citado afirma que o prazer está relacionado também com a
sensação de emoções, de estados de humor, percebidos como “aprazíveis e podem,
portanto, ser saboreados, gozados, ao contrário de seus opostos”.5
Bases científicas do prazer
O prazer se verifica segundo certo procedimento. Partindo dos órgãos do sentido,
os estímulos sensoriais chegam ao córtex (cérebro), que os coordena e os decodifica
como situação de prazer (ou o contrário) e ativa, via descendente, sistemas
autônomos de resposta.6 O toque e o tato possuem um papel significativo nesse
processo:
Entre os movimentos do corpo, o tocar-se e o contato corpóreo é um dos sinais mais significativos para
11
comunicar emoções: a criança assustada corre para os braços dos pais, e, também, entre adultos que se
amam, procura-se esse contato.7
A neurociência já conseguiu provar que o funcionamento do prazer se dá a partir
de diversas áreas cerebrais, da secreção de diversos hormônios e da ativação de
infinitos neurotransmissores. E o mais bonito de tudo isso é que tal processo já se
encontra na pessoa desde o seu nascimento. Em alguns casos, como o do prazer
sexual, o organismo humano espera pelo amadurecimento de outras áreas que irão
produzir determinados hormônios e preparar o ser humano para o prazer. Porém, com
relação à sexualidade, já seria possível inclusive falar de prazer sexual antes da
puberdade, mesmo que o organismo não esteja pronto para a reprodução.
Isso, de alguma forma, leva a supor que a sexualidade não estaria restrita ao aspecto reprodutivo nem ao
ato sexual propriamente dito, ainda que esses comportamentos possam corresponder à finalização do
processo maturacional seja ele ontogenético ou filogenético.8
Nesse processo, papel significativo cabe à ocitocina (ou oxitocina), um
componente da rede neurofisiológica que acompanha a resposta aos estímulos de
prazer e atua na produção de emoções e de sensações.9 A ocitocina é uma substância,
um hormônio nonapepídeo secretado no núcleo paraventricular do hipotálamo e
depois armazenado na neuro-hipófise e que atua principalmente no sistema límbico,
que é o sistema responsável pelas emoções. É, pois, uma substância química que está
por trás de sentimentos e de emoções que, na maioria das vezes, são vistos apenas de
maneira abstrata e meramente poéticas. Estudos de monitoramento de microdiálise
intracerebral no núcleo supraóptico e no núcleo paraventricular do hipotálamo
revelaram que as liberações de ocitocina ocorrem no interior da amígdala e do septo,
regiões do sistema límbico. Ficou provado o papel central da ocitocina sobre as
emoções e, consequentemente, sobre o prazer, não se tratando, portanto, de meros
sentimentos abstratos, como se chegou a pensar no passado.10
Podemos, então, afirmar que existe uma anatomia do prazer que, por sua vez, está
ligada à anatomia das emoções. Trata-se, na verdade, de respostas psicológicas a
determinados estímulos. No caso do prazer, temos uma resposta psicológica, nem
sempre consciente, que nos faz buscar aquilo que nos pode causar bem-estar,
harmonia e felicidade.
Emoções são geradas no sistema límbico: um conglomerado de estruturas situado abaixo do córtex. Esse
processo se deu muito cedo na história dos mamíferos. Nos humanos está conectado às áreas corticais,
desenvolvidas recentemente. O tráfego de duas vias entre o sistema límbico e o córtex permite que as
emoções sejam vivenciadas de forma consciente e que os pensamentos as afetem. Cada emoção é
produzida por uma rede diferente de módulos cerebrais, incluindo o hipotálamo e a hipófise; estes
controlam os hormônios que provocam reações físicas como aumento da frequência cardíaca e contração
muscular.11
O prazer tem origem num processo fantástico do corpo humano. A natureza – ou,
se quisermos, o Criador – dotou o ser humano com essa capacidade maravilhosa.
Substâncias aditivas ativam o sistema de recompensa e proporcionam a sensação de
bem-estar. O caminho do prazer “começa na área tegmentar ventral, e a liberação de
dopamina é desencadeada no núcleo accumbens. A partir daí, estende-se ao córtex
12
pré-frontal”.12 O accumbens é uma estrutura de cerca de um centímetro de diâmetro
que nos permite sentir prazer:
Quanto mais intensa for sua ativação, maior é a sensação alcançada, que vai da leve satisfação à franca
euforia. Ativar esse processo é algo simples e ao nosso alcance, que podemos fazer várias vezes por dia.
Basta fazer algo que o cérebro considere que deu certo: resolver mentalmente um problema, concluir um
trabalho, passar de fase no video game, beijar pessoas amadas, comer algo de que gostamos ou ouvir uma
boa música. Ao reconhecer que fomos bem-sucedidos em algo, que atendemos às expectativas ou
admitimos que somos interessantes por alguma razão, o córtex cerebral providencia uma dose de
dopamina para o núcleo accumbens. Quanto mais o núcleo recebe esse neurotransmissor, mais ativo ele
fica e mais prazer nos proporciona. Esse prazer com o que fazemos corretamente – proporcionado pelo
accumbens e estruturas associadas a ele, que formam o sistema de recompensa do cérebro – é a base
neurológica da satisfação e da autoestima.13
Mas nada disso seria possível se não fossem as sinapses elétricas que são “curtos-
circuitos controlados” provocados pelo contato das proteínas das membranas das
células, as quais, através das sinapses, formam uma espécie de canal que as liga umas
às outras. Isso faz com que o corpo humano disponha de contatos, chamados de
“junções comunicantes”, que levam uma determinada mensagem, a uma velocidade
de 300 km/h, dos órgãos dos sentidos ao cérebro e vice-versa. E como nas sinapses os
neurônios (células responsáveis pela condução do impulso nervoso) são separados
por uma pequena fenda, impedindo os impulsos elétricos de passarem diretamente
para o outro lado, estes são transportados por substâncias químicas chamadas de
neurotransmissores.14
Das definições apresentadas pode-se deduzir que o prazer é a experiência de bem-
estar vivida pela pessoa. Tal sensação de bem-estar pode ser permanente ou
transitória. Ela se origina da supressão da dor e da experiência de desprazer. O prazer
e o desprazer são considerados os princípios básicos da vida psíquica.15
Do ponto de vista da Psicanálise, o prazer é “a descarga automática das excitações
quando sua acumulação ultrapassa certo limiar, experimentado como desprazer”.16
Para a Psicanálise, as excitações de prazer e de desprazer revelam-se assim quase os
únicos elementos que permitem caracterizar uma transformação de energia no interior
do aparelho psíquico.17
É claro que não se deve esquecer que a sensação de prazer ou desprazer está
também relacionada com o ambiente, com os relacionamentos e com os
comportamentos humanos. Seria muito difícil uma vida prazerosa em ambientes
marcados pela ansiedade, pelo medo, pelo estresse, pela fuga e assim por diante.
Entre os fatores que influenciam a geração do prazer está o sentimento de confiança.
“O sentimento de confiança baseado na relação com o outro é condição essencial para
a sustentabilidade da vida, pelo menos na maioria dos mamíferos.”18
Estudiosos têm mostrado como traumas produzidos nos corpos pela violência
sistemática institucional afetam a saúde psicológica das pessoas e, em consequência,
também o sentimento de prazer. Isso porque há uma relação direta entre as sensações
do corpo e os lugares por onde caminhamos. Numa sociedade profundamente
marcada pelas agressões do capitalismo e do neoliberalismo, os corpos são
profundamente mutilados de forma desumana, retirando-se deles sensações essenciais
13
como o prazer. Isso porque o prazer é um sentimento natural e espontâneo que é
arrancado ou suprimido toda vez que os corpos sãosubmetidos a situações de
verdadeiras torturas ou padecimentos.19
Porém, não podemos esquecer que por trás de tudo isso estão sempre bases
neurofisiológicas, complexos neurobiológicos que envolvem necessariamente o
sistema límbico. Além da ocitocina, há também a atuação de “sinalizadores
serotonérgicos”, como a vasopressina e a dopamina. De modo que se pode concluir
que o prazer é desencadeado por uma reação química fenomenal do corpo humano. E
até mesmo certas crenças e certos comportamentos, como a confiança, que
influenciam na geração de uma vida prazerosa, não deixam de ter também suas bases
neurofisiológicas e biológicas.20
Definição de prazer
As considerações feitas anteriormente nos permitem afirmar que o prazer não é
apenas a satisfação de necessidades, como diria a concepção freudiana, mas vai além
disso. O prazer é a sensação de bem-estar, de integridade assegurada. Do ponto de
vista biológico, o prazer está relacionado ao fenômeno do crescimento. Há, sim, uma
relação com a excitação, mas tal excitação não se reduz aos órgãos sexuais. Esta diz
respeito a todo o organismo da pessoa, que responde aos estímulos provenientes do
meio ambiente. Quando há aumento da excitação tem-se o prazer; quando a excitação
diminui costuma aparecer o tédio e a depressão. O corpo humano, de modo especial
através da sua pele, responde aos estímulos externos sentindo prazer ou desprazer. Os
estudiosos costumam afirmar que não existe um estado “neutro” na natureza humana.
Por isso não é normal a ausência de prazer ou de desprazer. Se isso viesse a acontecer
seria sinal de um estado patológico.21
O prazer é, pois, uma experiência profunda de alegria, de felicidade que se
manifesta também através de uma sensação corporal gostosa. E por se encontrar
mergulhado no prazer, o corpo da pessoa se movimenta livremente e permite que tais
movimentos possam fluir tranquilamente dentro de um ritmo harmonioso de relação
com o ambiente. É preciso, portanto, cuidar bem para não reduzir o prazer a
determinadas coisas como o entretenimento, o ato de ingerir uma comida gostosa ou
até mesmo ao puro e simples ato sexual. Tudo isso pode fazer parte do prazer, mas
este não se reduz a isso. Quando reduzimos o prazer à realização de determinados
atos ou gestos, corremos o risco de ter dele uma visão irreal e ilusória. Embora se
possa dizer que uma vida sem prazer não é uma vida verdadeira, não é uma vida de
felicidade, se pode dizer também que a redução do prazer a certas coisas é pura
ilusão. Quando isso acontece, a pessoa tenta buscar o prazer a qualquer custo. E
quanto mais ela o busca de qualquer jeito, mais ele foge dela.22
O prazer é algo natural e as suas raízes estão na natureza do ser humano e na sua
relação com o ambiente onde ele vive. Por sermos organismos vivos, profundamente
conectados com a Terra, que também é um organismo vivo, vivenciamos a
experiência do prazer – e de outras sensações, como a alegria, a dor, a tristeza – de
maneira muito natural. A matéria humana está em constante movimento, disparando,
a partir do cérebro, rajadas de impulsos que geram os sentimentos, dentre eles o do
14
prazer. Por essa razão a sensação de prazer, tendo origem natural, abrange todas as
nossas atividades e todos os nossos relacionamentos.23 Por esse motivo se pode
afirmar que há uma relação direta entre prazer, inspiração e criatividade.
Todo prazer, em certo sentido, é um novo prazer. Segue-se, portanto, que qualquer ação ou qualquer
processo que aumente o prazer ou que aumente o aproveitamento da vida é parte de um processo criativo
[...]. O prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem
atitude criativa diante da vida não haverá prazer [...]. O prazer na vida encoraja a criatividade e a
comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver.24
Convém, porém, notar que existem diferentes formas de sentir prazer. O que para
algumas pessoas causa prazer, para outras pode significar dor e sofrimento. Existem,
pois, ritmos diferentes de prazer e, na maioria dos casos, tais diferenças estão
relacionadas também com as diferentes funções do corpo humano: respiração,
alimentação, sono etc. Por essa razão é preciso estar muito atentos na hora de
fazermos certas afirmações sobre o assunto, uma vez que muita coisa depende dos
estímulos e dos ritmos dos nossos corpos. Por ser algo natural, o prazer não depende
apenas da vontade da pessoa, mas do funcionamento do seu organismo. Tal cuidado
evitaria muitos problemas entre as pessoas, especialmente problemas de
relacionamento.25
Há, no entanto, uma coisa sobre a qual há cada vez mais consenso dos cientistas: o
prazer, embora seja um processo natural, no ser humano tem origem no amor. É o ato
de amar e de ser amado que desencadeia a sensação de prazer. “Se procurarmos as
raízes do prazer dentro de nós mesmos, iremos encontrá-las no fenômeno do
amor.”26 Pesquisas recentes na área da Biologia estão dando conta de que o amor é
também um fenômeno biológico e, enquanto fenômeno biológico, está na raiz do
sentimento de prazer. Tais pesquisas vêm demonstrando que não foi a luta pela
sobrevivência que garantiu a continuidade das espécies, mas o amor entre elas.
O amor é um fenômeno cósmico e biológico. Ao chegar ao nível humano, ele se revela como a grande
força de agregação, de simpatia, de solidariedade. As pessoas se unem e recriam pela linguagem amorosa
o sentimento de benquerença e de pertença a um mesmo destino e a uma mesma caminhada histórica.27
Eis porque o medo do prazer (masoquismo) causa estupor. Embora seja uma
experiência gostosa e de bem-estar, o prazer ainda causa medo.28 Por trás desse
medo estão vários fatores. Mais adiante veremos que o principal deles foi o fato de
nossa cultura ter criado uma relação estreita entre desejo, culpa, prazer e pecado. A
educação que recebemos na família, na escola, na sociedade e na Igreja associou o
prazer a algo ruim e temeroso.
O prazer causa medo porque representa alguma coisa que não se conhece com clareza, também sob o
plano cultural. Embora seja uma prática fundamental da experiência humana, o pensamento que até agora
dominou, no Ocidente, sempre negligenciou o problema do prazer. Por conseguinte, o homem moderno
ocidental teme o amor, o sacrifício e também o prazer.29
Como sabemos, o masoquismo é motivado pelo desejo de aprovação e não pelo
desejo do prazer. O medo do prazer é medo da dor que a expansão e a alegria podem
15
provocar. Por isso há o fechamento ao prazer. O masoquista tem medo de que o
prazer leve ao “descontrole” e que ele não tenha mais o domínio de si mesmo e haja o
“rompimento da diga” da sua severidade e seriedade. Mas, ao fazer isso, ele rompe
com um dos aspectos mais elementares da natureza humana e é então que há o
verdadeiro “descontrole”, uma vez que ele termina por negar a sua própria natureza e
essência.30
O prazer como meta da vida humana
Podemos, então, concluir que o prazer é a meta da vida humana. É claro que,
como vimos pouco antes, existem pessoas que desenvolvem defesas em relação à
busca do prazer. Há aquelas que negam a sua existência ou chegam a vê-lo como algo
negativo e pecaminoso. Mas nada disso consegue bloquear totalmente os impulsos e a
busca do prazer. Se houvesse o bloqueio total do prazer isso significaria que a pessoa
já estaria morta, uma vez que a ausência de prazer é, de certa maneira, uma
modalidade de morte.31
O prazer, como vimos, tem raízes biológicas e corporais e é o responsável pelo
bem-estar da pessoa, elemento fundamental para uma existência tranquila e feliz.
Como tal, o prazer, dizíamos antes, é também algo que envolve o amor e o coração,
estando, assim, em comunicação direta com a realidade e com o mundo. Uma pessoa
sem prazer é alguém que não se conecta com a realidade. De fato, o prazer envolve os
sentidos e coloca a pessoa em contato com a humanidade e com o universo.32
Embora haja formas diferentes e áreas diferentes do prazer nos homens e nas
mulheres, ele é sempre comunicação e gerador de comunicabilidade.A falta desse
aspecto é sinal evidente de que o indivíduo não possui uma personalidade saudável.
Isso cria bloqueios à livre manifestação de sentimentos e à satisfação de seus desejos
e, consequentemente, a sua capacidade de sentir prazer fica profundamente
reduzida.33
Sendo um movimento de expansão corporal, o prazer gera abertura, busca,
vontade de relação e de comunicação. O fechamento, a retração, a indiferença não são
experiências relacionadas com o prazer. A ausência do prazer contribui para que a
pessoa se torne ineficiente, uma vez que ela permanece bloqueada e reprimida. O ser
humano que não tem prazer é alguém sem contato e sem interação com a humanidade
e com a realidade. Sua pertinência, seu senso de pertença e sua participação são
atingidos e profundamente limitados. Isso afeta inclusive o âmbito da espiritualidade,
pois não é possível tal experiência sem vida prazerosa. A pessoa que tem reduzida a
sua experiência de prazer é um esquizoide, ou seja, alguém que tem diminuído o
senso de si mesmo, reduzido o contato com o seu corpo e os seus sentimentos. É
alguém incapaz de interagir com a realidade.34
Teologia do prazer
A teologia, tendo como pressuposto o fato de que a pessoa humana, na sua
totalidade (corpo, alma e espírito),35 é criatura de Deus, acolhe como divina toda
essa dinâmica do prazer, constitutiva de todo ser humano vivo, revelada pelos estudos
16
científicos. De modo que se pode afirmar, sem medo de errar, que o prazer, enquanto
humano, é também divino.
O atual estágio da biologia nos ensina que a vida é continuamente auto-organização com troca de
informações, portanto, em comunhão. Mesmo a vida individual depende de teias cada vez mais complexas
de informações e alimentação.36
O que acabou de ser dito mostra que o prazer está relacionado com a genética do
ser humano. O próprio prazer sexual, diferentemente do que se pensou no passado,
está relacionado com o sexo cromossômico, gonádico, endócrino, enzimático,
psicológico, afetivo, intelectual, social e gramatical. Substâncias complexas acionam
o sexo gonádico para que produza secreções hormonais que, lançadas no sangue,
impregnam o organismo e mobilizam o sexo psicológico, afetivo e intelectual,
levando ao sexo funcional, ou seja, à vontade e a capacidade de ter uma relação
sexual. Porém, tal desejo e capacidade vão se concretizar ou não de acordo com a
configuração social que o sexo adquire na sociedade onde vive a pessoa e de acordo
com o que se aprende sobre o sexo. Portanto, a busca do prazer independe
inicialmente de uma vontade e de uma decisão racional do sujeito. Pode, sim, ser
racionalizada e controlada de acordo com as “censuras” impostas pela cultura à qual
pertence o ser humano. O controle social pode ser positivo quando ajuda as pessoas a
cultivarem o prazer de maneira responsável, mas pode também funcionar como
mecanismo de desequilíbrio e de patologias psicológicas que terminam por afetar a
vida saudável dos indivíduos.37
Ora, o Concílio Vaticano II nos ajudou a ver as questões humanas a partir de
novas perspectivas.38 Para tanto, o concílio nos estimulou a considerar os dados mais
recentes das diversas ciências. Assim sendo, o prazer não deve ser visto apenas pela
perspectiva teológico-filosófica, mas também na dinâmica das ciências que estudam a
constituição físico-biológica do ser humano, criado à imagem e semelhança divina.
Dessa forma, o prazer se reveste de profundo significado, valor e dignidade, uma vez
que essas ciências nos revelam os segredos e a beleza da complexidade corpórea do
ser humano, querida e criada por Deus. O prazer e o gozo, inclusive quando brotam
da relação sexual, não podem ser vistos como consequências do pecado original, mas
como ato profundamente humano, querido por Deus, e que contribui para a plena
realização humana.39
2. Dimensões do prazer
Sendo uma experiência tão rica e tão profunda, o prazer se expressa de vários
modos e de várias maneiras e pode ser vivido e percebido de várias formas. Isso quer
dizer que tal experiência humana possui várias dimensões. Por dimensão entendemos
aqui não só os espaços e a intensidade com as quais e nas quais ocorre o prazer, mas
também os parâmetros avaliativos para verificação da ocorrência dessa sensação. Isso
significa, como de certa forma já foi mencionado, que o prazer tem implicações não
somente físicas ou biológicas, mas também psíquicas e profundamente humanas.
Atinge não só a corporalidade, mas também a individualidade e as relações das
17
pessoas com as outras e com o mundo. Como tal “é indispensável à saúde e ao
equilíbrio psicofísico, sendo um componente indispensável para a economia
psíquica”.40
Dimensão intrapsíquica
Uma primeira dimensão do prazer é a intrapsíquica. Vivido intensamente e de
maneira equilibrada, permite que a pessoa se firme como indivíduo e tenha uma
identidade bem definida. Uma vida prazerosa é fundamental e decisiva para a
autoafirmação da pessoa e para a sua saúde psicofísica.
A dimensão intrapsíquica do prazer parte do pressuposto de que o ser humano é
alma. Ele é singularidade, individualidade, interioridade e transcendência, mas tudo
isso na temporalidade.41 Por esse motivo, o sentimento de prazer afeta a pessoa
naquilo que nela há de mais singular e único. Essa constatação é fundamental para
entendermos que cada ser humano possui um modo todo particular de viver o prazer.
Querer forçar alguém a ter prazer segundo os nossos critérios e, pior ainda, segundo
os nossos caprichos é violentá-la naquilo que nela há de mais sagrado: a sua
individualidade inviolável.42
Para entender esse aspecto do prazer é indispensável superar a noção biologista de
pessoa, ou seja, a pura e simples aproximação do ser humano ao animal, feita pelas
doutrinas evolucionistas populares. Se, por um lado, há certa aproximação genética
(primatas), por outro lado, é preciso evidenciar as peculiaridades do ser humano.
Uma simples aproximação zoológica entre seres humanos e demais animais tiraria
deles a condição de seres inacabados e negaria determinados limites típicos dos
animais irracionais. Tal “mistificação” da biologia despreza uma série de elementos
que diferenciam os humanos dos demais animais. É um argumento facilmente
manipulável, usado para justificar a exploração do mais fraco, para justificar a
competição e as mais cruéis injustiças.43 Muitas vezes a manipulação e a exploração
das pessoas mais fracas se dão pela via do “desejo de sentir prazer” e tendo como
base essa concepção biologista do ser humano.
Além disso, a dimensão intrapsíquica revela que a vivência humana do prazer se
dá ao longo da caminhada da pessoa; não é algo momentâneo e imediato. Supõe
maturidade afetiva, entendida como superação da dependência infantil, e que leva a
pessoa a investir suas energias afetivas numa vida real, que inclui elementos como
solidão e sofrimento.44 Aprender a sentir prazer e a sentir de maneira plena exige
tempo e paciência. Por isso a própria pessoa e aqueles que com ela se relacionam
precisam saber esperar. Há uma progressiva aprendizagem também nesse campo.
Isso também revela que o prazer significativo está relacionado com o papel
exercido pelas emoções. A emoção é a atração ou a aversão por alguma coisa
considerada boa ou ruim. Na emoção a pessoa sente um impulso a agir, aproximando-
se ou afastando-se de algo, independentemente da razão. Nesse processo, a memória
afetiva exerce uma função significativa fazendo uma avaliação intuitiva, a partir dos
dados sensoriais captados e decodificados pelo cérebro. Se faltar a maturidade
afetiva, a pessoa ficará nesse âmbito do intuitivo. Porém, se o sujeito desenvolveu a
maturidade afetiva, ele será capaz de fazer também uma avaliação reflexiva. Nessa
18
avaliação reflexiva, que geralmente acontece após a intuitiva, a pessoa faz abstração
da emoção por meio de um juízo de valor, acrescentando o querer racional e o desejo
racional. Dá-se, então, a integração entre avaliação intuitiva e a racional, e a emoção
passa a ser realmente e plenamente humana.45
A formacomo sentimos ou não sentimos prazer e o modo como o encaramos e
avaliamos estão ligados a diversas situações da nossa vida. São essas situações que
acionam o cérebro e fazem o sistema nervoso central “plastificar” o sentimento ou a
ausência de prazer.46 Entre os diversos elementos extrafisiológicos estão, por
exemplo, as experiências da idade infantil com a atuação do id, do ego e do
superego.47 Cabe verificar de que maneira a criança lidou com os “instintos
egoístas” nos seus primeiros anos de vida. Além disso, é preciso conhecer de que
maneira a criança foi tomando consciência da realidade exterior e foi realizando o
equilíbrio entre as exigências dos instintos e necessidades e aquelas da realidade. Por
fim, é preciso verificar também como se deu o processo de “idealização” do prazer.
Tal idealização pode ter acontecido por um caminho narcisista, com a satisfação
plena dos instintos, ou por via de identificação, a chamada via parental, através da
qual a criança introjeta ou interioriza determinadas normas de educação por meio do
círculo familiar onde vive. Trata-se, pois, de ter presente o processo evolutivo da
afetividade, das emoções, vivido pela criança nos seus primeiros anos de vida.48
Esses dados científicos nos permitem afirmar que o sentimento de prazer é muito
mais complexo do que se imagina. Tais conhecimentos devem nos ajudar a evitar
julgamentos precipitados e a emissão de sentenças radicais de juízos de valor. Aliás,
os atuais conhecimentos científicos nos permitem ir mais longe, afirmando que a
forma de sentir prazer tem a ver com a concepção e a vida intrauterina da pessoa. O
modo como a mãe e o pai acolheram e esperaram a chegada do bebê pode ter
influências significativas no modo de viver o prazer.49
Particular significância têm as diversas fases infantis (oral, anal, genital, edípica,
de latência). O prazer e a forma de senti-lo dependem muito da maneira como a
criança viveu essas fases da vida. Dependendo da situação, um simples ato como, por
exemplo, o desmame pode acarretar sofrimentos, traumas e frustrações para a vida
afetiva da criança e interferir na sua maneira de encarar o prazer.50 Convém voltar a
salientar que há uma diferença significativa entre a forma do homem e da mulher
sentirem prazer. A sensibilidade emocional da mulher é diferente do homem. Os
estímulos e as reações são diferentes. A própria anatomia é caracterizada por
diferenças significativas. Essa diferença de anatomia, por exemplo, faz com que o
prazer na mulher esteja ligado à totalidade de sua corporalidade, enquanto no homem
o prazer é mais localizado a certas regiões do corpo. A mulher tende mais a relacionar
o prazer com o ato de ser amada e com a sua capacidade receptiva. O homem, por sua
vez, relaciona o prazer com sua capacidade de ser ativo.51
Portanto, falar do prazer, avaliar o prazer e, acima de tudo, emitir um juízo ético
sobre o prazer exige considerar tais diferenças, ou seja, a masculinidade e a
feminilidade como dois modos distintos de ser e de realizar a nossa humanidade.52
Nesse sentido, é preciso ter presente o significado, a importância, o lugar e o valor do
19
corpo no prazer. Do ponto de vista da antropologia, o corpo é o modo de perceber,
aproximar-se, comunicar-se e relacionar-se com o outro. Assim sendo, pode-se
afirmar que o prazer é o que dá possibilidade e realiza a intersubjetividade humana.53
É verdade que, por diversas razões altruístas, alguém pode entrar em comunicação
com outras pessoas. Mas, mesmo nesses casos, o encontro se dá porque houve uma
dose de prazer que mobilizou a pessoa na direção da outra, ou das outras. O desejo de
encontrar a outra pessoa é motivado pelo prazer que esse movimento na direção de
outra pessoa produz dentro de nós.54
Dimensão relacional ou interpessoal
A referência a um modo próprio de sentir prazer do masculino e do feminino, ao
desejo de encontro com o outro ou com os outros mostra que o prazer possui uma
dimensão relacional ou interpessoal. O feminino e o masculino revelam que o ser
humano é mutuamente incompleto, ou, se quisermos, relativamente completo. Isso
quer dizer que o prazer por si é incompleto se não tem presente a relação com a outra
pessoa. Para que o prazer seja completo é indispensável a completude, a presença e a
abertura para com a outra pessoa. O prazer está intimamente relacionado com a
estrutura fundamental do ser humano, o qual só se encontra consigo mesmo quando
se encontra com o outro, com alguém diferente dele.55
O prazer requer intimidade, ou seja, um espaço e um momento em que a pessoa
possa “sentir-se em casa com alguém”. A intimidade é a condição na qual alguém é
totalmente reconhecido, sem a preocupação de ser rejeitado. Intimidade é a
capacidade de aceitação da outra pessoa assim como ela é. É uma aceitação mútua.
Essa intimidade permite tratar o outro com carinho, gerando o prazer de estar juntos,
não sufocando os desejos, mas também não bajulando, não impondo, não se exibindo,
não abusando.56
Intimidade significa afundar profundamente uma relação dentro de si, submergir e, ao mesmo tempo,
também flutuar, fazer uma imersão e depois vir acima. Intimidade significa ter a coragem de ser
plenamente envolvidos, mas, ao mesmo tempo, manter a própria autonomia.57
Trata-se, pois, de “encontrar prazer em dar prazer aos outros”.58 O prazer que
nasce da relação com outra pessoa, da amizade, não deve ser visto de forma angelical
ou maniqueísta. Mesmo quando não se trata do prazer sexual genital, não se deve
nem se pode excluir a sexualidade, parte integrante normal da natureza humana. A
amizade prazerosa não pode ser condicionada ou dominada pelo medo. Isso porque o
medo impede a pessoa de assumir os riscos de amar e de amar prazerosamente.
Assim sendo, é indispensável que numa amizade entre duas pessoas ambas estejam
dispostas a aceitar a real possibilidade de envolvimento emocional. É claro que, nesse
dinamismo, é preciso aceitar e respeitar o processo, uma vez que, como já dissemos,
as pessoas são diferentes e não chegam juntas ao mesmo tempo.59 Porém, “uma
pessoa só é plenamente ela mesma quando se relaciona amorosamente com
outras”.60
20
O que acabou de ser dito mostra que existe um “prazer de estar junto”.61 O
cultivo da relação de forma prazerosa é fundamental para a saúde mental das pessoas.
Como a própria etimologia da palavra já nos revela, a relação quer dizer ter alguém
como referência. Se nos falta essa pessoa, nós começamos a ficar perdidos,
desestimulados e sozinhos. E tal sensação nos faz adoecer e perder o equilíbrio. Por
esse motivo, todas as vezes que deixamos de cultivar uma relação ou a perdemos por
qualquer motivo é indispensável reatá-la o quanto antes ou buscar construir uma nova
relação. Mesmo porque a relação nos permite devolver o prazer de ser amado, de
receber amor. E também isso é muito importante para a saúde psicoafetiva das
pessoas.
É claro que é necessário cuidar para que a relação seja marcada pela
reciprocidade, ou seja, pela capacidade de devolver à outra pessoa, e com a mesma
intensidade, o prazer de ser amado. O prazer da relação é algo de “mão dupla”,
permitindo uma profunda interação entre as duas partes. Se isso não acontece corre o
risco de se tornar uma relação possessiva, tirânica e dependente. Por esse motivo, a
relação, para ser realmente prazerosa, terá que ser também profundamente confidente
ou confiável. Isso significa que entre as duas pessoas que cultivam a relação deve
existir um clima de confiança muito grande que permita total abertura e condições
para que as duas pessoas amigas partilhem, sem grandes segredos, aquelas coisas que
estão bem guardadas no fundo do coração de cada uma delas.
Essa necessidade do cultivo de relações profundas, sinceras e autênticas tem se
tornado uma urgência em nossos dias, uma vez que a nossa cultura, como veremos
mais adiante, é marcada pelo individualismo e pela solidão. Muitas vezes chegamos
até a estar juntos, a ficar juntos, mas não conseguimos nos comunicar. Cada vez mais
nos isolamos dos outros e não vivemoso prazer do encontro e da comunicação.
Apesar do uso cada vez maior de tecnologias da informação e da comunicação,
somos sempre mais uma geração de pessoas isoladas e solitárias. Cada um de nós,
plugado em seu aparelho moderníssimo de comunicação, se isola cada vez mais dos
outros e sofre porque não tem o prazer de se comunicar com alguém. De fato, o “estar
junto não significa necessariamente comunicar-se e o adjetivo ‘solitária’ qualifica de
modo bem expressivo o que é esse tipo de agregação”.62
A ausência do prazer da comunicação cria uma sociedade de pessoas
desenraizadas e sem referenciais. Pessoas inquietas e profundamente inseguras, cada
vez mais mergulhadas num tipo de privacidade que leva ao desespero do mimetismo.
Quanto mais isoladas e sem real comunicação mais as pessoas tendem a imitar as
“estrelas” e a expor nas redes sociais as suas intimidades. E quanto mais expõem suas
intimidades mais isoladas ficam, uma vez que apenas um pequeno grupo tem acesso a
essas informações intimistas que, dada a sua baixa qualidade, logo são descartadas
pelos que as acessam. O isolamento se dá porque, normalmente, as informações
partilhadas nas redes são de cunho individualista e não possuem impacto social
significativo.
A dimensão relacional ou interpessoal do prazer é significativa porque educa a
pessoa para o ato de transcender-se, isto é, para a saída da privacidade, do intimismo,
indo ao encontro de outro que é real e não virtual. E à medida que vamos ao encontro
de pessoas reais, nós nos projetamos, ou seja, nos lançamos na ousadia corajosa de
21
recriar a nossa existência. Isso faz com que nos encontremos com nós mesmos, com
nossas raízes. A amizade prazerosa nos faz voltar às nossas origens profundamente
humanas e nos permite encontrarmos o caminho pelo qual devemos andar na busca
daquilo que realmente queremos ser no amanhã. O prazer da relação interpessoal é,
ao mesmo tempo, o prazer de escutar e de ser escutado, de comunicar-se e de receber
uma boa comunicação.
Significa concretamente buscar a memória histórica do nosso agir, da nossa vida, saber recuperar e aceitar
o nosso passado para poder aprender com ele. Significa reencontrar um núcleo de referência interno ou
externo próprio no estar juntos. Significa viver uma radicalidade de vida que deseja também orientar-se
por modelos, não para copiá-los, mas para inspirar escolhas livres e autônomas.63
Urge, pois, superarmos essa cultura do “ficar juntos” e caminharmos na direção de
uma relação verdadeiramente prazerosa que transmita afeto, carinho e amor.
Precisamos superar a “cultura do rebanho”, que junta pessoas em determinados
lugares (shoppings, igrejas, estádios, escolas etc.), mas não lhes dá a real
possibilidade do prazer da comunicação. Precisamos redescobrir o prazer de estar
juntos, porém numa comunicação profunda que nos faça pessoas verdadeiramente
amadas e amantes. Mas para que isso aconteça é necessário cultivar o “prazer da
solidão”, que consiste em entrar em si mesmo para se redescobrir e para dialogar
consigo mesmo. Somente quem toca a própria interioridade em profundidade
consegue “apertar a mão de alguém”.64
Lamentavelmente a solidão aumenta porque as pessoas têm medo de entrar dentro
delas mesmas e de olhar para a própria interioridade. A solidão neurótica, de que
sofrem hoje as pessoas, decorre da falta de coragem de dialogar com o próprio eu. A
maioria de nós prefere desviar sempre de si mesmo e culpar os outros pelo que
acontece. Não resta dúvida de que a solidão do ser humano moderno decorre também
de injustiças e da exclusão social a que é submetida a maioria absoluta das pessoas.
Porém, é também correto afirmar que muitos não querem olhar para a própria
interioridade e escutar o próprio mundo interior.
Dimensão afetiva
Ficou claro no parágrafo anterior que uma relação verdadeiramente prazerosa
transmite afeto, carinho e amor. Por esse motivo se pode falar de uma dimensão
afetiva do prazer.
Vimos anteriormente como o prazer, junto com a dor, são os afetos que mais
assinalam a convivência humana, diferenciando-a daquela dos animais. Vimos ainda
que o prazer tem o seu princípio genético, mesmo não esquecendo os componentes
culturais que o caracterizam. O modo como lidamos com o prazer está relacionado
com a maneira como lidamos com a nossa afetividade desde o nosso tempo de
criança. A questão do prazer tem a ver também com a forma como fazemos a
integração de nossos sentimentos com a razão. Porém, não devemos esquecer que a
razão não age se o dinamismo da afetividade estiver bloqueado.65
Cabe salientar, porém, que a afetividade, estimulante do prazer, é alimentada
continuamente por representações conservadas pelo sujeito de forma consciente ou
inconsciente. Além disso, o tempo no qual se vive também influencia a vida
22
intrapsíquica, especialmente naquilo que diz respeito às relações cultivadas no espaço
e no tempo.66 O modo de entender e viver o prazer tem muito a ver com a forma
através da qual se deu ou não a autonomia da criança. Quando a criança não encontra
um clima progressivo de liberdade, sua autonomia pode ser afetada. Nesse caso
haverá fixações e a forma de ver e de entender o prazer pode sofrer deformações. As
pessoas são empurradas para situações-limite que dificultam uma justa e correta
compreensão do prazer. Entre as dificuldades está aquela de perceber a real diferença
entre prazer, prazer sexual e atividade sexual. A consequência é uma tendência ao
controle (repressão) das manifestações fisiológicas da sexualidade e a falta de
percepção de que há um elemento psíquico que ultrapassa a atividade orgânica. Por
causa disso, a pessoa tem sérias dificuldades de integrar o prazer e o prazer sexual no
projeto pessoal de vida.67
Por essa razão, toda pedagogia educativa com relação ao prazer deve ter presente
esse aspecto. Deve ter presente que o prazer não se reduz ao puramente biológico.
Além disso, precisa considerar a relação e a diferença entre homem e mulher. Muitas
vezes, como vimos anteriormente, ao refletirmos sobre o tema do prazer não levamos
em conta esses elementos que inclusive fazem parte da revelação divina. Há uma
igualdade fundamental, mas também uma diferença significativa entre homem e
mulher e que não pode ser desconsiderada no momento de se refletir sobre questões
como o prazer.68
Nesse sentido cabe também lembrar a teoria de Jung segundo a qual todo homem
e toda mulher carregam na sua psique o animus e a anima. O “animus” é a disposição
para a ação proveniente da convicção. É a capacidade de lutar, de insistir e de
persistir. A “anima” é a irrupção na pessoa dos sentimentos, do humor, da capacidade
amorosa, da ternura, da compaixão e assim por diante.69
Retomando o que já foi dito antes, é preciso relembrar que o sentimento de prazer
está intimamente relacionado com a corporalidade. Na cultura hebraica, na qual
nasce o cristianismo, a corporalidade tem um significado profundo.70 O prazer que
inebria o corpo é a condição para que a pessoa viva a sua relação com os outros.
Relação essa que caracteriza a pessoa humana criada à imagem e semelhança divina.
Jamais alguém entraria em comunhão com outra pessoa se não fosse animado pelo
sentimento de prazer e de felicidade. Por isso é fundamental a consciência de que
somos seres de relação e que a relação se dá no encontro de seres sexuados que se
atraem, mesmo quando a atração não inclui a atividade sexual genital. Como seres
corporais, seres nos quais a identidade pessoal e o corpo formam uma só coisa,
necessitamos do prazer para passarmos da intenção para a ação. Não nos
comunicamos se não somos motivados pelo prazer do encontro com a outra pessoa. É
verdade que a ética e a moral podem chegar a pedir, em determinados momentos, a
distância dos corpos, entendida como respeito e cuidado para não violar a intimidade
da pessoa. Porém, isso não significa que as relações humanas precisam ser frias e sem
sentimentos.71
A fé não exclui a afetividade e o prazer, mesmo porque não é apenas um ato
puramente racional, mas também uma pulsãoafetiva e prazerosa. Aliás, as
23
verdadeiras experiências místicas, consideradas máximas expressões de fé, são
experiências de pessoas apaixonadas, nas quais o prazer ocupa um lugar prioritário.72
É bastante conhecida a experiência de muitos místicos e de muitas místicas na qual o
êxtase inclui momentos profundamente prazerosos com olhares, abraços, beijos e
uma situação na qual todo o corpo está envolvido na relação com quem chamam de
“meu Dileto”.73 A pessoa mística costuma vivenciar uma experiência de céu, de
eternidade. E em tal experiência o prazer e o gozo são sentimentos que predominam o
tempo todo.74
É preciso cuidar bem e prestar atenção ao risco de repressão do prazer, mesmo
quando isso é feito de forma voluntária, livre e consciente. De fato, quando acontece
a desvalorização do prazer e a sua consequente repressão, a pessoa tende a substituir
o prazer do prazer por elementos compensativos nem sempre libertadores. A lei, a
norma, a proibição tendem a prevalecer sobre a liberdade e a autonomia e a se tornar
absolutos que escravizam. Em função disso, o espírito de amor e a generosidade
terminam por desaparecer. A pessoa passa a fazer as coisas por dever e não por amor.
É preciso não se esquecer, antes de tudo, do valor positivo da vida, de que dentro da vida também se
inclui a experiência do prazer como elemento importante, ainda que não primordial. A incapacidade de
usufruir experiências agradáveis nunca é sinal de maturidade, e sim indício de rigidez e mal-estar. Essa
dificuldade é encontrada geralmente em uma consciência imatura, inflexível, severa e intolerante [...]. Não
se pode esquecer de que o prazer é fugaz, sempre se refere a uma experiência passada ou breve, que,
consequentemente, deve ser continuamente repetida.75
A ausência de prazer passa a determinar a conduta do ser humano. E disso podem
resultar três atitudes perversas.76 A primeira é a falta de sensibilidade e de
humanidade. A pessoa se torna um monstro guiado pela lei do dever, não tendo
misericórdia e compaixão diante da fragilidade alheia. A segunda é o despertar dos
instintos mais baixos que o sujeito acreditava controlar. Sufocado e reprimido pela lei
e pelo dever, o prazer se transforma em bestialidade ou em conflitos interiores contra
os quais a pessoa não tem solução a não ser deixar que extravasem. Disso resulta uma
terceira atitude, que é a hipocrisia. Vivendo de forma animalesca, o sujeito tende a
ser moralista e cruel para esconder, sob tal aparência, a sua ambiguidade. Vivendo no
inferno, a pessoa, mesmo inconscientemente, tende a transformar a vida dos outros
num inferno. Vivendo sem prazer de viver, odeia quem vive prazerosamente e tudo
fará para desmanchar o prazer de viver dos outros.77
A ausência, ou melhor, a repressão do prazer, leva o sujeito a fechar-se na
autossuficiência. E quando isso acontece, temos, com certeza, um coração e uma
consciência infelizes, nos quais Deus não pode habitar. E onde Deus não pode habitar
há destruição e desintegração. Do ponto de vista psicológico, cria-se espaço para o
dinamismo das representações. Nascem as fobias e a sensação de impotência, que são
expressas em atitudes de violência, autoritarismo e dominação. Surge, então, o desejo
de sucesso social, de fama e de controle sobre as pessoas. E quando se chega a esse
nível de vida não há mais lugar para a ação divina, pois a pessoa não tem mais
condições de ouvir os apelos de Deus. Nesse caso, o “santo” se torna um ambicioso
que não procura a glória de Deus, mas a sua, embora ele mesmo acredite piamente
24
que a sua vida seja uma manifestação do amor divino.78
Desde os tempos de Aristóteles, sabe-se que o prazer e a vida formam uma
unidade: sentir prazer é viver e viver é sentir prazer.79 Por isso, “o prazer não pode
ser contrário à vida moral e espiritual, uma vez que é o sinal da vida que se
expande”.80 Porém, para que o prazer seja vida e a vida seja prazerosa, é
indispensável que não seja considerado fim em si mesmo. Se o prazer é visto como
fim em si mesmo, corre-se o risco de vivermos da busca de prazeres imediatos e
momentâneos. E quando se vive em função disso podemos nos tornar vítimas de
pulsões cegas e descontroladas, as quais terminam por destruir e fragmentar a pessoa,
reduzindo-a a pedaços. O sujeito cai no narcisismo e frustra-se, uma vez que a
realização plena só acontece no encontro com o outro. Fica, então, evidente que
embora o prazer seja um princípio vital, ele só aparece na vida quando não é
procurado diretamente. Aquele ou aquela que vive à procura do prazer termina por
não encontrá-lo, como já havíamos dito anteriormente.81
Dimensão amorosa
Eis porque o prazer precisa ser visto e vivido na perspectiva do amor.82 O prazer
supõe um amor maduro capaz de gerar amizade e doação aos outros. Quando alguém
vive superficialmente, a relação com os outros é frustrante e o prazer é apenas
aparente. A pessoa vive de busca de compensações e de satisfações imediatas. Sem
amor o prazer reverte-se em procura de poder, vícios e desejo de relações ocasionais,
inclusive de relações sexuais sem compromisso e sem respeito pela outra pessoa.
Quando não há um amor maduro, o prazer é confundido com narcisismo e egoísmo:
busca-se a outra pessoa para satisfazer a si mesmo.83 Geralmente, nesses casos há
sérios problemas patológicos. Inclusive se pode afirmar que não há amor a si mesmo,
mas ódio de si que se transforma em ódio dos outros.84
Quando há um quadro patológico, não há verdadeira experiência de prazer. O
sujeito chama de prazer o que é, antes de tudo, exibicionismo, fixação, fantasia,
agressividade ou indiferença. Na comunicação com os outros – espaço prazeroso por
natureza – falta empatia. Em seu lugar temos a pretensão, a busca de favores, a
exploração da outra pessoa, a autoafirmação e o comportamento oscilante entre
euforia e depressão.85
Nos casos de narcisismo patológico o prazer se degenera em incapacidade de
amar. E isso acontece porque não há o prazer absoluto, uma vez que todo desejo
humano não pode ser satisfeito plenamente. Diante disso, o narcisista patológico se
concentra na insatisfação do prazer e faz a sua infelicidade depender disso.
Consequentemente, não sendo atendido em sua necessidade de prazer absoluto, passa
a viver de forma desinteressada, não se importando com o bem comum e com a
situação dos outros. Ocupado com sua ânsia de prazer absoluto, o narcisista
patológico corre atrás de uma liberdade que não existe, vivendo sem limites,
buscando o sucesso imediato.86
Como o prazer não chega a um nível absoluto, o narcisista patológico passa a
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descuidar da vida, dos valores e não consegue criar laços verdadeiros de amizade e de
amor. Nisso está inclusive a razão do falimento de vários casamentos. Não atingindo
o absoluto do prazer desesperadamente procurado, o narcisista vive enjoado, sempre
querendo mais prazer, mais sensações emotivas, porém sem nenhum compromisso.
Vive um vazio interior e uma busca ávida de admiração. Mas quanto mais busca o
prazer, mais se sente insatisfeito. E, em razão de sua insatisfação, tende a manipular e
instrumentalizar os outros na tentativa desesperada de obter o que procura. Sua
incapacidade de amar e sua insaciável sede de obter o prazer de forma absoluta são
mascaradas por atitudes falsas de altruísmo e amor ao próximo. Para tais pessoas e
para quem vive próximo delas a vida se torna um inferno. Um inferno de pervertidos,
de loucos, de conflitos e fugas, de mentiras e de falsidades.87
O que foi dito acima deixa muito claro que há um limite para toda forma de
prazer. O prazer, quando verdadeiro, é limitado, mas apesar disso traz alegria e
felicidade. A pessoa sabe gozar e viver intensamente cada momento de prazer que a
vida lhe oferece. Não vive desesperadamente em busca de um tipo de prazer que não
existe. O prazer, quando compreendido e vivido plenamente, traz plena alegria e
felicidade verdadeira. A pessoa permanece aberta e disposta a acolher novos
momentos prazerosos da vida, os quais normalmente são surpresas, mas sem aquela
ânsiade chegar e de permanecer no absoluto ou no máximo grau de prazer. Esse
estilo de vida só é possível quando se vive com sentido a própria existência. Vida sem
sentido é vida sem prazer e sem alegria. E o sentido vem da vivência intensa do
amor.88
Por isso a dimensão amorosa do prazer consiste em “restituir à pessoa humana a
integração harmônica que se assemelha a uma grande polifonia em que nada é
desafinado”.89 Para viver prazerosamente a pessoa precisa, antes de tudo, viver
integrada, ou seja, centrada não só nela mesma, mas na comunhão com as demais e
com todos os elementos da natureza que a circunda. E a integração só acontece
quando decidimos livremente e autonomamente gastar a nossa vida com algo que
vale a pena. Além disso, nessa integração, o ser humano precisa deixar espaço para
que as demais pessoas e as demais realidades existam com independência e com
liberdade. Quem pretende segurar e aprisionar para si os outros e a realidade termina
sufocado e não tendo a alegria do prazer.
De fato, o amor maduro preserva a integridade e a individualidade dos parceiros; permite à pessoa
permanecer ela mesma e até crescer na sua própria identidade.
E eis o paradoxo: no amor maduro, os dois se tornam um só e, todavia, permanecem dois... Uma operação
estranha se concebida em termos matemáticos, mas extremamente verdadeira se concebida em termos
psicológicos e espirituais [...].
O amor é a força que produz outro amor; não tê-lo vivido torna pobre e dolente o coração; será muito
duro recuperar aquele que não se teve, se bem que não é impossível.90
Nesse sentido, a dimensão amorosa do prazer quer dizer amor zeloso, ou seja,
amor que se interessa pela vida e pelo crescimento daqueles, daquelas e daquilo que
amamos. Isso significa tornar-se responsável pelo outros e pelo que acontece com os
outros. Ser responsável não é dominar e controlar, mas ser sensível aos gritos e aos
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apelos dos demais.91 Responsabilidade é estar pronto para dar sempre uma resposta
positiva ao chamado da outra pessoa e a acolhê-la na sua singularidade e diversidade,
ou seja, “capacidade de ver uma pessoa como ela é, aceitá-la em seu crescimento, em
sua individualidade, sem reduzi-la à própria imagem e semelhança”.92
Hoje, como lembramos pouco antes, há cada vez mais pessoas à cata desesperada
de prazer ou, quem sabe, de prazeres. Mas quanto mais buscam menos encontram o
que procuram. E isso se dá exatamente porque falta essa dimensão amorosa na busca
do prazer. O que se tem, na verdade, na maioria das vezes, é uma coisificação do
outro, das relações. E quando há coisificação o prazer também se coisifica e se
desmancha como fumaça no ar. Para que o prazer seja ao mesmo tempo intenso e
permanente é preciso amar as pessoas, amar o que fazemos e amar a vida. Mas amar é
conhecer, ou seja, “entrar na vida de uma pessoa respeitando-lhe os âmbitos de
privacidade e de reserva”,93 ou seja, aquela zona profundamente única e singular que
somente a própria pessoa conhece. Às vezes, o prazer não chega ou se acaba porque a
pessoa pretende arrancar tudo da outra. Para que o prazer na relação seja intenso e
duradouro, é preciso permitir ao outro que ele seja um “tu”, mesmo porque esse “tu”
é indispensável para que alguém seja um “eu”. Alguém só é alguém quando permite
que outro alguém seja um “tu”.94
O prazer está relacionado com o ato de amar, ato esse que constitui a essência do
ser humano. Por isso a pessoa precisa aprender a amar, e tal aprendizagem passa pela
capacidade de ter prazer. É verdade, como já foi dito outras vezes, que o amor ao
próximo pode exigir, em certas situações, a superação do simples prazer, mas dentro
da normalidade é impossível amar sem sentir prazer. A superação simples do prazer,
indispensável em certas ocasiões, é a superação da dependência afetiva, muitas vezes
erroneamente chamada de “amor”. Por isso, para que o prazer esteja integrado com o
autêntico amor, é fundamental que a pessoa tenha a capacidade de controlar os
instintos e os impulsos, não agindo por automatismo. Trata-se de ser dono de si
mesmo e não vítima dos próprios instintos.
Porém, esse processo não pode ser mero mimetismo ou imitação de modelos, uma
vez que cada pessoa é única. É bom ter referenciais, mas sempre com a liberdade de
agir diferentemente, sempre que a realidade pessoal e ambiental exigir. Nesse sentido
deve-se dizer que, junto com a capacidade de sentir prazer, é necessário que a pessoa
seja também capaz de suportar situações desagradáveis e de sofrimento, sem fazer
disso um drama, especialmente quando o ato do prazer contrastar claramente com a
ética, com o Evangelho e com os valores que a pessoa escolheu para nortear a sua
vida. É preciso, pois, uma maturidade capaz de levar a pessoa a renunciar formas de
prazer que são opostas aos valores escolhidos. É bom, portanto, não exagerar nem na
inflexibilidade nem na permissividade. Não ver pecado em tudo, mas também não
permitir-se tudo.95
Dimensão corporal
O amor humano não é abstrato. É feito ao mesmo tempo de corpo e de alma. Por
esse motivo, o prazer possui uma dimensão corporal.96 Sendo o prazer algo
27
constitutivo do amor humano e vice-versa, ambos se expressam através de gestos
sensíveis e psíquicos. O amor humano se exprime também através da relação sexual,
como veremos logo em seguida. Por enquanto, basta afirmar que o prazer não é
evasão do corpo, mas ato de afeto e de união gozosa corporal. Precisamos, pois,
libertar o prazer do “complexo de inferioridade” a que foi submetido durante tanto
tempo e reconhecer o seu valor.97
É claro que não podemos esquecer que na sociedade capitalista, agora neoliberal,
há uma desintegração do amor por conta da concepção de que se pode comprar tudo
com o dinheiro, inclusive a satisfação e o prazer. Tal concepção, talvez influenciada
por Freud, reduz o amor e o prazer ao ato sexual. Prazer, nesse contexto, seria a
satisfação plena dos instintos e dos desejos. Pensa-se que tal satisfação gera saúde
mental, felicidade e prazer. Mas o que temos visto nos últimos anos é a afirmação de
atitudes e comportamentos desumanizantes como o machismo. Além disso, a falsa
ideia de que é possível comprar tudo o que se quer com o dinheiro fez com que o
prazer só fosse experimentado como fantasia e nunca como experiência concreta. Daí
a ânsia e a frustração constante, experimentadas pela maioria absoluta das pessoas.98
Essa compreensão ideologizada do corpo é responsável também pela
instrumentalização do ser humano. Serviu para justificar a escravidão, o controle e a
submissão sociocultural por parte dos grupos dominantes.99
Por esse motivo, é fundamental ter presente que o corpo é mistério e, como tal, ele
precisa ser, antes de tudo, venerado. Venerado aqui não significa nem idolatrado nem
rejeitado. Significa acolhê-lo na sua realidade, na sua intensidade, nas suas
manifestações, nos seus ritmos, naquilo que ele é, sem idealizações e sem negações.
Dizer isso é fundamental, uma vez que o corpo transformado em mercadoria na atual
sociedade vem passando por uma série de massacres e de violências. Assim sendo,
precisamos tomar alguns cuidados com o nosso corpo ou com partes dele, a fim de
que a nossa experiência de prazer seja intensa e perpasse toda a nossa corporalidade.
Estamos convencidos de que algumas civilizações mais antigas e mais experientes
podem nos ajudar na reconciliação com o nosso corpo. Essas culturas nos ajudam a
entender a relação do nosso corpo com a terra, com a fecundidade e com a
sexualidade. O hábito de alguns povos, por exemplo, de andarem descalços, mesmo
no frio intenso, revela o cuidado com essa relação. Para tais culturas o corpo é
símbolo da totalidade e da vitalidade. Cada parte do corpo (cabelos, cabeça, anus,
boca, vagina, pênis etc.) expressa uma dimensão dessa grandeza. Até os excrementos,
a cera do ouvido, o suor, os pelos humanos, a saliva são carregados de valor e de
significado. O corpo nunca é visto como objeto e muito menos como objeto de
prazer. O corpo é a pessoa e a energia que nela circula. Nessa perspectiva,não se tem
um corpo para ter prazer, mas vive-se prazerosamente no corpo e enquanto corpo. Por
essa razão, alguns atos, como vestir-se, dançar, comer são vistos como
prolongamento do corpo, carregados de simbologia e vividos intensamente com
muito prazer.100
Nessas culturas, a maternidade não era vista apenas como fator biológico, como é
comum acontecer na cultura ocidental capitalista e neoliberal. Para esses povos, a
maternidade era expressão do desencadeamento da vida, simbolizada pela placenta e
28
pelo cordão umbilical, e convite à comunhão e à reciprocidade. A maternidade liberta
a vida. Na mesma linha era vista a feminilidade. Entender a percepção cultural da
maternidade e da feminilidade própria dessas culturas nos ajuda a superar o marco
“feminista” radical e se torna um convite à valorização da vida humana integral.
Porém, é fundamental, hoje, não apenas recordar saudosamente essas culturas, mas
construir, a partir dessas experiências do passado, uma nova identidade humana em
que haja uma relação equilibrada entre mulheres e homens.101
Nas culturas afro-americanas, o corpo e a sexualidade são uma melodia
harmoniosa que expande a alegria de viver e de existir. O corpo expressa harmonia e
ritmo capazes de manifestar a sua beleza. Mesmo quando maltratados pela
escravidão, os corpos negros não perderam o gingado e a plenitude da alegria. Os
corpos afro-americanos são verdadeiras esculturas que contém poesia e vida. Por isso
são corpos que geram comunhão, estimulando a vida e o existir. Isso não significa
que devamos esquecer a forma violenta de controle, de submissão e de dependência
praticada contra esses povos, de modo particular contra suas mulheres. Não significa
esquecer a maneira brutal com a qual essas pessoas foram tratadas, gerando frustração
por causa da negação da humanidade dessas pessoas. O que estamos querendo
afirmar é que a potência dessas culturas foi superior ao massacre e elas souberam
superar a dor com muita resistência e persistência.102
Mais adiante, quando abordarmos o aspecto bíblico do prazer, veremos que,
segundo a Bíblia, o ser humano não tem corpo, mas é corpo, uma vez que ele é um
ser no mundo, no tempo e no espaço. Esse dado, biblicamente falando, não é um
complemento, mas elemento decisivo da essência da pessoa. Por ser corpo, o ser
humano é também ser sexuado, e no corpo manifesta a si mesmo.103 Assim sendo,
também do ponto de vista teológico, o prazer se expressa através da corporalidade da
pessoa. Prazer e corporalidade estão profundamente relacionados, mesmo porque,
como vimos anteriormente ao falarmos das bases científicas do prazer, há em nosso
corpo um magnífico conjunto de sinapses elétricas, de “curtos-circuitos controlados”
provocados pelo contato das proteínas das membranas das células, que fazem com
que o corpo humano disponha de contatos, de “junções comunicantes” do prazer.
Como veremos também mais adiante, isso significa que precisamos superar de
forma definitiva a relação que o dualismo e o maniqueísmo criaram entre prazer,
corpo e pecado. Precisamos entender que, segundo a Bíblia, a corporeidade e, em
consequência, também o prazer não são por si mesmos negativos. Do ponto de vista
bíblico, o corpo (e o prazer que o envolve) é a pessoa e enquanto tal é extremamente
positivo. A pecaminosidade pode, sim, atingir o corpo humano, mas isso não significa
que, por causa disso, a corporalidade e o prazer sejam negativos.
A negatividade não está ligada à corporeidade como tal, enquanto história de pecado que, a partir de
Adão, dominou sobre todos. O reflexo da situação de morte no corpóreo demonstra exatamente que este é
o lugar no qual todo o ser da pessoa se manifesta e no qual se decide a sorte: o corpo é o sinal que revela a
dignidade da pessoa por causa da sua origem divina e, ao mesmo tempo, a situação de escravidão na qual
é lançada. O corpo exprime a pessoa em todas as suas situações vitais e históricas.104
Como o prazer é sempre corporal, precisamos libertar o corpo de toda essa
negatividade na qual ele foi submergido ao longo dos últimos séculos. É claro que
29
precisamos estar atentos para não cairmos nas armadilhas do mito da salvação através
do corpo, como se toda a realidade do ser humano se reduzisse a um punhado de
células e de moléculas. Não podemos passar da excomunhão do corpo para o culto
religioso do corpo. A atual obsessão por um “corpo sarado” revela essa tentação.105
Porém, já é hora de descobrirmos a beleza do corpo humano, descobrir a sua
linguagem e a linguagem do prazer. Precisamos conhecer o nosso corpo, uma vez que
a ignorância sobre ele tem um impacto psicológico muito grande. A falta de
conhecimento da fantástica dinâmica do nosso corpo tem gerado medo, insegurança,
sofrimento, frustração e bloqueado energias saudáveis que estão na base de
relacionamentos sadios e mais humanos. Continuar tratando o corpo e o prazer como
se fossem nossos inimigos e fontes tentadoras significa violentar o ser humano e
depredar a natureza humana na sua beleza originária querida pelo Criador.106
Dimensão sexual
Dizer que o prazer possui uma dimensão corporal implica aceitar também a sua
dimensão sexual. E por sexual não entendemos aqui a relação sexual genital.
Entendemos afirmar que na sensação de prazer está presente também a condição
sexuada do ser humano. Em termos mais claros e mais explícitos queremos afirmar
que, ao sentir prazer, a pessoa goza de tal sentimento como macho ou como fêmea e
não apenas como masculino e como feminino.107 Tal afirmação é indispensável
desde o início para evitarmos concepções ingênuas ou maliciosas, bem como
percepções distorcidas que derivam do maniqueísmo e do dualismo.
O prazer, quando verdadeiro, mexe com toda a pessoa; inunda todo o seu ser. Por
isso mexe também com a sua dimensão sexuada. Isso porque o prazer é, enquanto
expressão da corporeidade do ser humano, algo que toca em profundidade também o
corpo da pessoa e os seus órgãos vitais, incluindo aqui também os órgãos sexuais
com todas as suas funções e reações. Embora a sensação de prazer não leve
necessariamente ao ato sexual, invade e permeia a sua condição sexuada. A sensação
de prazer, que pelo próprio dinamismo das sinapses chega ao intrapsíquico, escorre
por todo o corpo humano e envolve também o sexual. Expressa-se não somente no
olhar, no sorriso, na fala, mas também no desejo de ficar perto de alguém que
amamos. E esse desejo de ficar perto significa quase sempre o desejo de tocar
alguém. O tato passa então a ter uma função significativa na busca e na realização do
prazer e, pela sua natureza, desperta naturalmente uma forte conexão com a condição
sexual da pessoa, que pode até ficar excitada ao tocar e ser tocada. Embora isso não
signifique necessariamente um toque que leve os dois para a cama, para a
consumação do ato sexual. Porém, se a pessoa é normal, sentir-se-á envolvida e
mexida na sua condição sexuada. Não sentir nada sexualmente significa estar numa
situação de anormalidade e de desequilíbrio, mesmo sabendo que também a imediata
busca do prazer venéreo pode significar igualmente desequilíbrio afetivo e sexual.
“Também o encontro tátil pode converter-se numa forma de encontro humano. A
função do tato é uma forma rudimentar do encontro interpessoal, quando tal encontro
fica reduzido ao plano das meras sensações táteis”.108
Não se trata, é claro, de apenas tocar ou de ser tocado, mas de perceber como as
30
“aferências sensoriais” que atingem o nosso corpo biológico se transformam em
experiências subjetivas que, por sua vez, chegam até as outras pessoas. Essa
necessidade de contato corporal, tátil, é tão importante quanto a necessidade que o
corpo tem de se alimentar. O contato físico carrega consigo não só um sentido
fisiológico, mas também um sentido psíquico. Por isso algumas pessoas doentes
psicologicamente evitam obsessivamente o contato físico com outras pessoas, mesmo
que seja apenas aquele de se dar as mãos.
Todo homem tem necessidade de contato físico e cutâneo, de calor do corpo alheio para apaziguar

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