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2 Índice Prazeres Introdução I - O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER 1. Concepções científicas do prazer Bases científicas do prazer Definição de prazer O prazer como meta da vida humana Teologia do prazer 2. Dimensões do prazer Dimensão intrapsíquica Dimensão relacional ou interpessoal Dimensão afetiva Dimensão amorosa Dimensão corporal Dimensão sexual Dimensão espiritual Dimensão cultural II. O ENSINAMENTO BÍBLICO SOBRE O PRAZER 1. O conceito bíblico de prazer A concepção positiva do prazer A concepção negativa do prazer O prazer no Segundo Testamento 2. Os prazeres divinos O prazer de criar e de se divertir O prazer de agraciar e de perdoar O prazer de dar a vida Jesus: o prazer do povo 3. Os prazeres humanos Vida prazerosa O cultivo do prazer como vocação O prazer sexual Prazer sexual libertador A abstenção do prazer sexual não é virtude O prazer sexual como experiência espiritual 4. Os prazeres desumanos A mercantilização do prazer 3 Os prazeres que desumanizam Por que esses prazeres desumanizam? III. O TEMA DO PRAXER NA HISTÓRIA DA IGREJA 1. Do seguimento prazeroso de Jesus à abolição do prazer A incursão do dualismo grego A maleficência do maniqueísmo 2. A relação entre prazer, sexo e pecado Pedagogia do “quebra-molas” Resgate do valor do prazer sexual A mulher como símbolo do prazer degenerado 3. Um cristianismo triste e assustador O resgate da beleza do prazer O atual retorno ao dualismo e maniqueísmo IV. AFIRMAÇÕES TEOLÓGICAS PARA UMA VIDA PRAZEROSA 1. Prazer: plenamente divino e plenamente humano O valor da experiência de vida Cristianismo: mística prazerosa Cristianismo, prazer e ascese 2. Seguir Jesus com prazer Prazer, discernimento e responsabilidade Prazer ecologicamente correto Conclusão Bibliografia consultada 4 A Dom Angélico Sândalo Bernardino, nosso irmão bispo, pastor amoroso, profeta da justiça e defensor dos pobres, com quem temos o prazer de saborear uma gostosa amizade. Às amigas e aos amigos de Araci (BA), Borda da Mata (MG), Distrito Federal, Itaparica (BA), Frei Paulo (SE), Nápoles (Itália), Pouso Alegre (MG), Riachão do Jacuípe (BA), Rio de Janeiro (RJ), Roma (Itália), Salvador (BA), “Bairro” Paredes em Tocos do Mogi (MG), Vitória da Conquista (BA), com os quais temos o prazer de conviver numa sincera e profunda amizade. 5 Prazeres O primeiro olhar da janela de manhã. O velho livro de novo encontrado. Rostos animados. Neve, o mudar das estações. O jornal. O cão. A dialética. Tomar banho, nadar. Velha música. Sapatos cômodos. Compreender. Música nova. Escrever, plantar. Viajar, cantar. Ser amável. Bertold Brecht, poeta e dramaturgo alemão (1898 – 1956) 6 INTRODUÇÃO Goza a vida... (Ecl 9,9)1* O tema do prazer ainda é considerado um grande tabu pela maioria dos cristãos. Embora a Bíblia judaico-cristã veja essa questão com otimismo, a influência maniqueísta, infiltrada nas comunidades cristãs primitivas, terminou por se impor, levando o cristianismo a ver o prazer com bastante pessimismo. Atualmente, mesmo com os grandes avanços provocados por fatos como o Concílio Vaticano II e as descobertas científicas, a perspectiva ainda é bastante negativa. Nas Igrejas cristãs, o tema não é tratado explicitamente, a não ser em certas ocasiões e quase sempre para combatê-lo. Até mesmo textos da ala mais avançada da Igreja Católica tratam o assunto com muita desconfiança. O documento conclusivo da Conferência de Puebla (1979), considerado um dos mais ousados da Igreja Católica Romana no pós-concílio Vaticano II, ainda via o prazer como um ídolo erigido no mundo de hoje (n. 749). Não faltam esforços, por parte de algumas pessoas e por parte de alguns teólogos, no sentido de aprofundar a questão numa perspectiva mais positiva. Mas, apesar desses esforços, o prazer ainda é visto de forma muito negativa e nunca mereceu um tratado específico de teologia. Isso levou um franciscano, teólogo, bispo e psicólogo a pedir, no finalzinho do século passado, que os teólogos pensassem numa “teologia do prazer”.2 Dom Valfredo Tepe, que foi bispo de Ilhéus (BA), Brasil, e um pastor profundamente identificado com a vida do povo, lamentava um tipo de cristianismo amarrado a “antigas determinações morais repressivas”, incapazes de apresentar o lado positivo da fé cristã em questões importantes como “a corporalidade, a experiência da satisfação, do prazer”, as quais não são por si mesmas pecaminosas. Em seu livro, que acabamos de citar, Tepe discorre com muita propriedade sobre o tema do sofrimento humano e insiste muitas vezes na necessidade de se rever certo ascetismo que tomou conta das Igrejas, especialmente da Igreja Católica Romana. Denuncia a falácia desse ascetismo que acaba com a alegria de viver e que nos ensinou a projetar todas as satisfações, gozos, prazeres e gratificações para a outra vida. Isso fez com que o cristianismo se apresentasse sempre como “estresse ascético”. Por causa da anatematização do prazer, o cristianismo se tornou a religião dos “rostos tristonhos, sorumbáticos e macambúzios”.3 Uma religião que não consegue mais fascinar as pessoas do mundo de hoje, as quais estão cada vez mais conscientes do valor do prazer e de uma vida prazerosa e gozosa. Nós resolvemos acolher o convite de Dom Valfredo Tepe e nos atrevemos a refletir sobre o assunto. Depois de quase dois anos de pesquisas, leituras e estudos, produzimos o presente texto que agora chega às suas mãos. Temos consciência de que não esgotamos o assunto, mas esperamos que a nossa iniciativa estimule outros estudiosos cristãos a aprofundarem ainda mais a questão, ajudando suas Igrejas a reverem suas posições e a se abrirem mais à positividade da experiência do prazer. 7 O presente estudo começará com uma análise do conceito e do sentido do prazer. Consideramos fundamental iniciar nossa reflexão apresentando as bases científicas do prazer. Uma teologia do prazer precisa começar com a constatação de que tal sensação ou experiência foi colocada no ser humano pelo Criador. As ciências, de modo particular a Psicologia e a Neurociência, ao desvendarem o mistério do prazer, nos revelaram a criatividade divina que, ao “modelar” (cf. Sl 139,13-15) a pessoa humana, dotou-a de tão complexo dinamismo. As ciências nos ajudam a perceber que o prazer faz parte da natureza humana, assim como foi pensada, sonhada e criada por Deus. A partir dessa perspectiva, fazemos um estudo de algumas dimensões do prazer, com a finalidade de ajudar os leitores e as leitoras a perceberem ainda mais a bonita complexidade desse fantástico estado emocional humano. Na segunda parte do nosso texto apresentaremos o ensinamento bíblico sobre o prazer. Não foi fácil abordar esta questão, dada a escassez de pesquisas e publicações específicas sobre o assunto, especialmente aqui no Brasil. As pesquisas que fizemos apontam inicialmente que há na Bíblia uma concepção positiva do prazer, embora não faltem textos que alertam sobre o risco de uma busca de prazer que desumaniza. Porém, como veremos mais adiante, a Palavra de Deus não demoniza a experiência prazerosa. Pelo contrário, convida o ser humano a viver prazerosamente sob a guia e proteção divinas. Para evidenciar esse aspecto positivo, antes de mencionar os prazeres humanos recomendados pela Bíblia, falamos dos “prazeres divinos”. Algo muitas vezes inédito, já que o cristianismo do “ascetismo mórbido” (TEPE) nos acostumou com a imagem de um Deus sempre irado e irritado com a possibilidade de um ser humano alegre e feliz. Somente ao final desse capítulo apresentamos algumas indicações bíblicas acerca de um tipo de prazer que pode alienar e desumanizar. Após apresentar as bases científicas do prazer e a visão bíblica sobre o tema, faremos uma reflexão sobre a forma como o prazer foi visto ao longo da história da Igreja. Nesse capítulo, mostraremos como o cristianismo, de seguimento prazeroso de Jesus, se transformou na religião da abolição do prazer. Veremos que isso se deu pela incursão do dualismo grego e do maniqueísmo maledicente nas comunidades cristãs. Alémdisso, refletiremos sobre a relação que se criou entre prazer, sexo e pecado, fazendo com que as Igrejas introduzissem regras bem rígidas a esse respeito, as quais passaram a funcionar como verdadeiros “quebra-molas” que visam frear o gozo e o prazer. Depois dessas observações mostraremos que, em toda essa história, a mulher pagou um preço amargo, uma vez que ela foi considerada o símbolo do prazer degenerado. Concluiremos o capítulo afirmando que todas essas coisas transformaram o cristianismo em uma experiência triste e assustadora e que precisamos continuar vigilantes, uma vez que no atual contexto estão retornando formas cristãs dualistas e maniqueístas. No último capítulo, apresentaremos algumas afirmações teológicas acerca de uma vida cristã prazerosa. Insistiremos na necessidade de ver o prazer como uma realidade plenamente divina e plenamente humana e, em consequência, olhar para o cristianismo como mística prazerosa. Mas, para que isso aconteça, será indispensável repensar a relação entre seguimento de Jesus, prazer e ascese. Embora parte essencial do discipulado, esta precisa ser revista, de tal modo que não tire do cristianismo a sua dimensão gozosa. Isso significa que a vivência cristã do prazer inclui um processo de 8 discernimento e uma educação para a responsabilidade, de modo que se possa falar de uma vida prazerosa ecologicamente correta, entendo por ecológico um estilo de existência que humanize sempre e cada vez mais. Nosso estudo se concluirá com uma reflexão acerca da necessidade de que as Igrejas renunciem à pretensão de querer controlar, a todo custo, a vida das pessoas. Elas precisam mudar de pedagogia, uma vez que a atual pedagogia do controle e da imposição não funcionou e terminou por lançar os fiéis nas mãos da indústria do prazer. Propomos que as Igrejas sejam mais propositivas e educadoras, em vez de funcionarem como agências de controle dos crentes. Eduquem seus fiéis para a autonomia, para a condição de pessoas adultas, para a responsabilidade e, sobretudo, para a sensibilidade à voz da consciência, tida como a voz de Deus dentro do ser humano. Este texto destina-se a todos os cristãos e a todas as cristãs de todas as Igrejas, sem exceção, e que queiram aprofundar essa temática tão vital e tão marcante para a vida humana. Destina-se também a todos os homens e a todas as mulheres de boa vontade que, embora não professem a fé cristã, desejam ter uma compreensão mais positiva do tema do prazer na perspectiva do cristianismo. Mesmo conscientes de que não exaurimos a temática proposta, optamos por manter o simples título Teologia do prazer, sem mais substantivos ou adjetivos qualificativos. Com isso queremos ressaltar o caráter teológico do tema, diante de todo o desgaste a que foi submetida a questão do prazer dentro do cristianismo e ao longo dos séculos. Afirmamos, pois, que o conteúdo deste texto que você está para estudar é de ordem teológica, ou seja, uma reflexão lógica e metódica sobre um tema que está relacionado com a fé cristã e que associa o crer e o pensar. Está fundamentado na Palavra de Deus, centrado na pessoa de Jesus Cristo, o Filho revelador do Pai, e busca ser fiel a uma inspiração do Espírito Santo. Embora o próprio tema, o seu conteúdo e as suas propostas pareçam dizer o contrário, nosso objetivo é submeter a questão do prazer à razão dialética,4 argumentando segundo os princípios racionais, mas sempre à luz da fé que aceita Jesus Cristo como o Salvador do mundo (cf. Jo 4,42). Desde os tempos das primeiras comunidades cristãs foi ficando sempre mais evidente que os discípulos e as discípulas de Jesus não só devem crer, mas precisam crer de maneira inteligente. O ato de crer não é, como costumam afirmar alguns, um simples “salto no escuro”, como se Deus quisesse a nossa adesão à sua vontade sem nenhum questionamento e sem nenhum pedido de compreensão. Ao criar o ser humano à sua imagem e semelhança, o Criador o dotou de razão e de inteligência. Por isso é mais do que normal querer compreender enquanto se busca crer. A pregação sobre a renúncia a tentar compreender os mistérios da fé cristã é mais uma dessas terríveis falácias inventadas pelo sistema eclesiástico com a simples finalidade de manter o povo cristão subjugado e resignado aos seus caprichos.5 Como pensamos este texto para todos os cristãos e para todas as cristãs e para as pessoas de boa vontade, decidimos por incluir várias notas de rodapé, visando ajudar aqueles e aquelas que não estão familiarizados com certos termos teológicos e científicos a compreender melhor o seu conteúdo. Pedimos desculpas aos irmãos e às irmãs iniciados ou especialistas no assunto por esse detalhe, mas estamos convencidos de que vocês saberão compreender essa necessidade, solidarizando-se 9 com as pessoas que não estão acostumadas com o linguajar teológico e técnico. Fazemos votos de que este livro toque o coração de muitas pessoas, desperte-nos para a beleza do prazer, estimule em todos nós uma vida prazerosa, responsável e solidária e suscite em muitas outras pessoas o desejo e a vontade de aprofundar ainda mais essa temática tão bonita e profundamente cristã. 1 *As citações bíblicas são retiradas da Bíblia Tradução Ecumênica (TEB), São Paulo, Loyola, 1994, exceto quando optamos por uma tradução mais livre, feita a partir dos originais ou da indicação de determinados autores. 2 Cf. Valfredo TEPE, Para que tanto sofrimento?, Petrópolis, Vozes, 1996, p. 24-25. 3 Cf. ibid., p. 25-27. 4 Por razão dialética entendemos aqui uma reflexão conduzida de forma racional e processual e que leva em conta a possibilidade de argumentações e reflexões diferentes que precisam ser ouvidas, acolhidas e profundamente consideradas. Na reflexão racional dialética, as pessoas se posicionam de uma forma clara e evidente, mas permanecem abertas para escutar o que outras têm a dizer sobre o assunto. Elas não acreditam que suas palavras são as únicas verdadeiras, mas querem dialogar com posições diferentes. E essa é a nossa intenção neste texto. Acerca do conceito de dialética, veja-se Nicola ABBAGNANO, Dicionário de Filosofia, São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 315-322. 5 Acerca da necessária relação entre crer e compreender o que se crê, veja-se Félix Alejandro PASTOR, “Teologia e Modernidade: alguns elementos de epistemologia teológica”, em José TRASFERETTI e Paulo Sérgio Lopes GONÇALVES (orgs.), Teologia na Pós-Modernidade. Abordagens epistemológica, sistemática e teórico-prática, São Paulo, Paulinas, 2003, p. 71-101. 10 I O CONCEITO E O SENTIDO DO PRAZER A vocação natural do homem é o prazer, a satisfação e o divertimento, em todos os níveis de seu ser. (Giacomo Dacquino) Antes de nos adentrar na reflexão teológica propriamente dita sobre a temática do prazer é indispensável compreendermos, da melhor maneira possível, o significado e o sentido do prazer. Isso é necessário para não corrermos o risco de fazer uma reflexão ambígua e superficial. Para realizar essa tarefa, vamos pedir o auxílio de algumas ciências, de modo particular à Psicologia1 e à Neurociência.2 Ao tentar descrever o conceito de prazer, temos presente que a pessoa humana foi criada à imagem e semelhança de Deus também na sua constituição física e biológica (cf. Gn 1,26-27.31; Sl 139,13).3 Assim sendo, toda a complexa dinâmica do prazer, constitutiva do ser humano, enquanto participante da condição biológica, faz parte do projeto criador de Deus. Ele quis o homem e a mulher assim como são, também em sua corporalidade. Por isso não se pode afirmar que o que vamos ver a seguir nada tem a ver com o projeto de Deus. Isso é sumamente importante para superarmos concepções arcaicas, ultrapassadas, fundamentalistas e maniqueístas que, infelizmente, ainda povoam o nosso imaginário, especialmente o imaginário religioso, quando falamos do tema do prazer. 1. Concepções científicas do prazer Quando falamos de prazer normalmente temos em mente uma série de definições e de concepções. Tais definições e concepções dependem muito das nossas experiênciasde vida e da ideologia que norteia o nosso dia a dia. Mas, ao perguntarmos às ciências, geralmente encontramos definições simples e claras. O prazer seria a “sensação derivante da percepção sensitiva que se pode instaurar quando se satisfaz uma necessidade ou se espera por sua satisfação”.4 Continuando a sua reflexão, o autor citado afirma que o prazer está relacionado também com a sensação de emoções, de estados de humor, percebidos como “aprazíveis e podem, portanto, ser saboreados, gozados, ao contrário de seus opostos”.5 Bases científicas do prazer O prazer se verifica segundo certo procedimento. Partindo dos órgãos do sentido, os estímulos sensoriais chegam ao córtex (cérebro), que os coordena e os decodifica como situação de prazer (ou o contrário) e ativa, via descendente, sistemas autônomos de resposta.6 O toque e o tato possuem um papel significativo nesse processo: Entre os movimentos do corpo, o tocar-se e o contato corpóreo é um dos sinais mais significativos para 11 comunicar emoções: a criança assustada corre para os braços dos pais, e, também, entre adultos que se amam, procura-se esse contato.7 A neurociência já conseguiu provar que o funcionamento do prazer se dá a partir de diversas áreas cerebrais, da secreção de diversos hormônios e da ativação de infinitos neurotransmissores. E o mais bonito de tudo isso é que tal processo já se encontra na pessoa desde o seu nascimento. Em alguns casos, como o do prazer sexual, o organismo humano espera pelo amadurecimento de outras áreas que irão produzir determinados hormônios e preparar o ser humano para o prazer. Porém, com relação à sexualidade, já seria possível inclusive falar de prazer sexual antes da puberdade, mesmo que o organismo não esteja pronto para a reprodução. Isso, de alguma forma, leva a supor que a sexualidade não estaria restrita ao aspecto reprodutivo nem ao ato sexual propriamente dito, ainda que esses comportamentos possam corresponder à finalização do processo maturacional seja ele ontogenético ou filogenético.8 Nesse processo, papel significativo cabe à ocitocina (ou oxitocina), um componente da rede neurofisiológica que acompanha a resposta aos estímulos de prazer e atua na produção de emoções e de sensações.9 A ocitocina é uma substância, um hormônio nonapepídeo secretado no núcleo paraventricular do hipotálamo e depois armazenado na neuro-hipófise e que atua principalmente no sistema límbico, que é o sistema responsável pelas emoções. É, pois, uma substância química que está por trás de sentimentos e de emoções que, na maioria das vezes, são vistos apenas de maneira abstrata e meramente poéticas. Estudos de monitoramento de microdiálise intracerebral no núcleo supraóptico e no núcleo paraventricular do hipotálamo revelaram que as liberações de ocitocina ocorrem no interior da amígdala e do septo, regiões do sistema límbico. Ficou provado o papel central da ocitocina sobre as emoções e, consequentemente, sobre o prazer, não se tratando, portanto, de meros sentimentos abstratos, como se chegou a pensar no passado.10 Podemos, então, afirmar que existe uma anatomia do prazer que, por sua vez, está ligada à anatomia das emoções. Trata-se, na verdade, de respostas psicológicas a determinados estímulos. No caso do prazer, temos uma resposta psicológica, nem sempre consciente, que nos faz buscar aquilo que nos pode causar bem-estar, harmonia e felicidade. Emoções são geradas no sistema límbico: um conglomerado de estruturas situado abaixo do córtex. Esse processo se deu muito cedo na história dos mamíferos. Nos humanos está conectado às áreas corticais, desenvolvidas recentemente. O tráfego de duas vias entre o sistema límbico e o córtex permite que as emoções sejam vivenciadas de forma consciente e que os pensamentos as afetem. Cada emoção é produzida por uma rede diferente de módulos cerebrais, incluindo o hipotálamo e a hipófise; estes controlam os hormônios que provocam reações físicas como aumento da frequência cardíaca e contração muscular.11 O prazer tem origem num processo fantástico do corpo humano. A natureza – ou, se quisermos, o Criador – dotou o ser humano com essa capacidade maravilhosa. Substâncias aditivas ativam o sistema de recompensa e proporcionam a sensação de bem-estar. O caminho do prazer “começa na área tegmentar ventral, e a liberação de dopamina é desencadeada no núcleo accumbens. A partir daí, estende-se ao córtex 12 pré-frontal”.12 O accumbens é uma estrutura de cerca de um centímetro de diâmetro que nos permite sentir prazer: Quanto mais intensa for sua ativação, maior é a sensação alcançada, que vai da leve satisfação à franca euforia. Ativar esse processo é algo simples e ao nosso alcance, que podemos fazer várias vezes por dia. Basta fazer algo que o cérebro considere que deu certo: resolver mentalmente um problema, concluir um trabalho, passar de fase no video game, beijar pessoas amadas, comer algo de que gostamos ou ouvir uma boa música. Ao reconhecer que fomos bem-sucedidos em algo, que atendemos às expectativas ou admitimos que somos interessantes por alguma razão, o córtex cerebral providencia uma dose de dopamina para o núcleo accumbens. Quanto mais o núcleo recebe esse neurotransmissor, mais ativo ele fica e mais prazer nos proporciona. Esse prazer com o que fazemos corretamente – proporcionado pelo accumbens e estruturas associadas a ele, que formam o sistema de recompensa do cérebro – é a base neurológica da satisfação e da autoestima.13 Mas nada disso seria possível se não fossem as sinapses elétricas que são “curtos- circuitos controlados” provocados pelo contato das proteínas das membranas das células, as quais, através das sinapses, formam uma espécie de canal que as liga umas às outras. Isso faz com que o corpo humano disponha de contatos, chamados de “junções comunicantes”, que levam uma determinada mensagem, a uma velocidade de 300 km/h, dos órgãos dos sentidos ao cérebro e vice-versa. E como nas sinapses os neurônios (células responsáveis pela condução do impulso nervoso) são separados por uma pequena fenda, impedindo os impulsos elétricos de passarem diretamente para o outro lado, estes são transportados por substâncias químicas chamadas de neurotransmissores.14 Das definições apresentadas pode-se deduzir que o prazer é a experiência de bem- estar vivida pela pessoa. Tal sensação de bem-estar pode ser permanente ou transitória. Ela se origina da supressão da dor e da experiência de desprazer. O prazer e o desprazer são considerados os princípios básicos da vida psíquica.15 Do ponto de vista da Psicanálise, o prazer é “a descarga automática das excitações quando sua acumulação ultrapassa certo limiar, experimentado como desprazer”.16 Para a Psicanálise, as excitações de prazer e de desprazer revelam-se assim quase os únicos elementos que permitem caracterizar uma transformação de energia no interior do aparelho psíquico.17 É claro que não se deve esquecer que a sensação de prazer ou desprazer está também relacionada com o ambiente, com os relacionamentos e com os comportamentos humanos. Seria muito difícil uma vida prazerosa em ambientes marcados pela ansiedade, pelo medo, pelo estresse, pela fuga e assim por diante. Entre os fatores que influenciam a geração do prazer está o sentimento de confiança. “O sentimento de confiança baseado na relação com o outro é condição essencial para a sustentabilidade da vida, pelo menos na maioria dos mamíferos.”18 Estudiosos têm mostrado como traumas produzidos nos corpos pela violência sistemática institucional afetam a saúde psicológica das pessoas e, em consequência, também o sentimento de prazer. Isso porque há uma relação direta entre as sensações do corpo e os lugares por onde caminhamos. Numa sociedade profundamente marcada pelas agressões do capitalismo e do neoliberalismo, os corpos são profundamente mutilados de forma desumana, retirando-se deles sensações essenciais 13 como o prazer. Isso porque o prazer é um sentimento natural e espontâneo que é arrancado ou suprimido toda vez que os corpos sãosubmetidos a situações de verdadeiras torturas ou padecimentos.19 Porém, não podemos esquecer que por trás de tudo isso estão sempre bases neurofisiológicas, complexos neurobiológicos que envolvem necessariamente o sistema límbico. Além da ocitocina, há também a atuação de “sinalizadores serotonérgicos”, como a vasopressina e a dopamina. De modo que se pode concluir que o prazer é desencadeado por uma reação química fenomenal do corpo humano. E até mesmo certas crenças e certos comportamentos, como a confiança, que influenciam na geração de uma vida prazerosa, não deixam de ter também suas bases neurofisiológicas e biológicas.20 Definição de prazer As considerações feitas anteriormente nos permitem afirmar que o prazer não é apenas a satisfação de necessidades, como diria a concepção freudiana, mas vai além disso. O prazer é a sensação de bem-estar, de integridade assegurada. Do ponto de vista biológico, o prazer está relacionado ao fenômeno do crescimento. Há, sim, uma relação com a excitação, mas tal excitação não se reduz aos órgãos sexuais. Esta diz respeito a todo o organismo da pessoa, que responde aos estímulos provenientes do meio ambiente. Quando há aumento da excitação tem-se o prazer; quando a excitação diminui costuma aparecer o tédio e a depressão. O corpo humano, de modo especial através da sua pele, responde aos estímulos externos sentindo prazer ou desprazer. Os estudiosos costumam afirmar que não existe um estado “neutro” na natureza humana. Por isso não é normal a ausência de prazer ou de desprazer. Se isso viesse a acontecer seria sinal de um estado patológico.21 O prazer é, pois, uma experiência profunda de alegria, de felicidade que se manifesta também através de uma sensação corporal gostosa. E por se encontrar mergulhado no prazer, o corpo da pessoa se movimenta livremente e permite que tais movimentos possam fluir tranquilamente dentro de um ritmo harmonioso de relação com o ambiente. É preciso, portanto, cuidar bem para não reduzir o prazer a determinadas coisas como o entretenimento, o ato de ingerir uma comida gostosa ou até mesmo ao puro e simples ato sexual. Tudo isso pode fazer parte do prazer, mas este não se reduz a isso. Quando reduzimos o prazer à realização de determinados atos ou gestos, corremos o risco de ter dele uma visão irreal e ilusória. Embora se possa dizer que uma vida sem prazer não é uma vida verdadeira, não é uma vida de felicidade, se pode dizer também que a redução do prazer a certas coisas é pura ilusão. Quando isso acontece, a pessoa tenta buscar o prazer a qualquer custo. E quanto mais ela o busca de qualquer jeito, mais ele foge dela.22 O prazer é algo natural e as suas raízes estão na natureza do ser humano e na sua relação com o ambiente onde ele vive. Por sermos organismos vivos, profundamente conectados com a Terra, que também é um organismo vivo, vivenciamos a experiência do prazer – e de outras sensações, como a alegria, a dor, a tristeza – de maneira muito natural. A matéria humana está em constante movimento, disparando, a partir do cérebro, rajadas de impulsos que geram os sentimentos, dentre eles o do 14 prazer. Por essa razão a sensação de prazer, tendo origem natural, abrange todas as nossas atividades e todos os nossos relacionamentos.23 Por esse motivo se pode afirmar que há uma relação direta entre prazer, inspiração e criatividade. Todo prazer, em certo sentido, é um novo prazer. Segue-se, portanto, que qualquer ação ou qualquer processo que aumente o prazer ou que aumente o aproveitamento da vida é parte de um processo criativo [...]. O prazer e a criatividade estão relacionados dialeticamente. Sem prazer, não haverá criatividade. Sem atitude criativa diante da vida não haverá prazer [...]. O prazer na vida encoraja a criatividade e a comunicação, e a criatividade aumenta o prazer e a alegria de viver.24 Convém, porém, notar que existem diferentes formas de sentir prazer. O que para algumas pessoas causa prazer, para outras pode significar dor e sofrimento. Existem, pois, ritmos diferentes de prazer e, na maioria dos casos, tais diferenças estão relacionadas também com as diferentes funções do corpo humano: respiração, alimentação, sono etc. Por essa razão é preciso estar muito atentos na hora de fazermos certas afirmações sobre o assunto, uma vez que muita coisa depende dos estímulos e dos ritmos dos nossos corpos. Por ser algo natural, o prazer não depende apenas da vontade da pessoa, mas do funcionamento do seu organismo. Tal cuidado evitaria muitos problemas entre as pessoas, especialmente problemas de relacionamento.25 Há, no entanto, uma coisa sobre a qual há cada vez mais consenso dos cientistas: o prazer, embora seja um processo natural, no ser humano tem origem no amor. É o ato de amar e de ser amado que desencadeia a sensação de prazer. “Se procurarmos as raízes do prazer dentro de nós mesmos, iremos encontrá-las no fenômeno do amor.”26 Pesquisas recentes na área da Biologia estão dando conta de que o amor é também um fenômeno biológico e, enquanto fenômeno biológico, está na raiz do sentimento de prazer. Tais pesquisas vêm demonstrando que não foi a luta pela sobrevivência que garantiu a continuidade das espécies, mas o amor entre elas. O amor é um fenômeno cósmico e biológico. Ao chegar ao nível humano, ele se revela como a grande força de agregação, de simpatia, de solidariedade. As pessoas se unem e recriam pela linguagem amorosa o sentimento de benquerença e de pertença a um mesmo destino e a uma mesma caminhada histórica.27 Eis porque o medo do prazer (masoquismo) causa estupor. Embora seja uma experiência gostosa e de bem-estar, o prazer ainda causa medo.28 Por trás desse medo estão vários fatores. Mais adiante veremos que o principal deles foi o fato de nossa cultura ter criado uma relação estreita entre desejo, culpa, prazer e pecado. A educação que recebemos na família, na escola, na sociedade e na Igreja associou o prazer a algo ruim e temeroso. O prazer causa medo porque representa alguma coisa que não se conhece com clareza, também sob o plano cultural. Embora seja uma prática fundamental da experiência humana, o pensamento que até agora dominou, no Ocidente, sempre negligenciou o problema do prazer. Por conseguinte, o homem moderno ocidental teme o amor, o sacrifício e também o prazer.29 Como sabemos, o masoquismo é motivado pelo desejo de aprovação e não pelo desejo do prazer. O medo do prazer é medo da dor que a expansão e a alegria podem 15 provocar. Por isso há o fechamento ao prazer. O masoquista tem medo de que o prazer leve ao “descontrole” e que ele não tenha mais o domínio de si mesmo e haja o “rompimento da diga” da sua severidade e seriedade. Mas, ao fazer isso, ele rompe com um dos aspectos mais elementares da natureza humana e é então que há o verdadeiro “descontrole”, uma vez que ele termina por negar a sua própria natureza e essência.30 O prazer como meta da vida humana Podemos, então, concluir que o prazer é a meta da vida humana. É claro que, como vimos pouco antes, existem pessoas que desenvolvem defesas em relação à busca do prazer. Há aquelas que negam a sua existência ou chegam a vê-lo como algo negativo e pecaminoso. Mas nada disso consegue bloquear totalmente os impulsos e a busca do prazer. Se houvesse o bloqueio total do prazer isso significaria que a pessoa já estaria morta, uma vez que a ausência de prazer é, de certa maneira, uma modalidade de morte.31 O prazer, como vimos, tem raízes biológicas e corporais e é o responsável pelo bem-estar da pessoa, elemento fundamental para uma existência tranquila e feliz. Como tal, o prazer, dizíamos antes, é também algo que envolve o amor e o coração, estando, assim, em comunicação direta com a realidade e com o mundo. Uma pessoa sem prazer é alguém que não se conecta com a realidade. De fato, o prazer envolve os sentidos e coloca a pessoa em contato com a humanidade e com o universo.32 Embora haja formas diferentes e áreas diferentes do prazer nos homens e nas mulheres, ele é sempre comunicação e gerador de comunicabilidade.A falta desse aspecto é sinal evidente de que o indivíduo não possui uma personalidade saudável. Isso cria bloqueios à livre manifestação de sentimentos e à satisfação de seus desejos e, consequentemente, a sua capacidade de sentir prazer fica profundamente reduzida.33 Sendo um movimento de expansão corporal, o prazer gera abertura, busca, vontade de relação e de comunicação. O fechamento, a retração, a indiferença não são experiências relacionadas com o prazer. A ausência do prazer contribui para que a pessoa se torne ineficiente, uma vez que ela permanece bloqueada e reprimida. O ser humano que não tem prazer é alguém sem contato e sem interação com a humanidade e com a realidade. Sua pertinência, seu senso de pertença e sua participação são atingidos e profundamente limitados. Isso afeta inclusive o âmbito da espiritualidade, pois não é possível tal experiência sem vida prazerosa. A pessoa que tem reduzida a sua experiência de prazer é um esquizoide, ou seja, alguém que tem diminuído o senso de si mesmo, reduzido o contato com o seu corpo e os seus sentimentos. É alguém incapaz de interagir com a realidade.34 Teologia do prazer A teologia, tendo como pressuposto o fato de que a pessoa humana, na sua totalidade (corpo, alma e espírito),35 é criatura de Deus, acolhe como divina toda essa dinâmica do prazer, constitutiva de todo ser humano vivo, revelada pelos estudos 16 científicos. De modo que se pode afirmar, sem medo de errar, que o prazer, enquanto humano, é também divino. O atual estágio da biologia nos ensina que a vida é continuamente auto-organização com troca de informações, portanto, em comunhão. Mesmo a vida individual depende de teias cada vez mais complexas de informações e alimentação.36 O que acabou de ser dito mostra que o prazer está relacionado com a genética do ser humano. O próprio prazer sexual, diferentemente do que se pensou no passado, está relacionado com o sexo cromossômico, gonádico, endócrino, enzimático, psicológico, afetivo, intelectual, social e gramatical. Substâncias complexas acionam o sexo gonádico para que produza secreções hormonais que, lançadas no sangue, impregnam o organismo e mobilizam o sexo psicológico, afetivo e intelectual, levando ao sexo funcional, ou seja, à vontade e a capacidade de ter uma relação sexual. Porém, tal desejo e capacidade vão se concretizar ou não de acordo com a configuração social que o sexo adquire na sociedade onde vive a pessoa e de acordo com o que se aprende sobre o sexo. Portanto, a busca do prazer independe inicialmente de uma vontade e de uma decisão racional do sujeito. Pode, sim, ser racionalizada e controlada de acordo com as “censuras” impostas pela cultura à qual pertence o ser humano. O controle social pode ser positivo quando ajuda as pessoas a cultivarem o prazer de maneira responsável, mas pode também funcionar como mecanismo de desequilíbrio e de patologias psicológicas que terminam por afetar a vida saudável dos indivíduos.37 Ora, o Concílio Vaticano II nos ajudou a ver as questões humanas a partir de novas perspectivas.38 Para tanto, o concílio nos estimulou a considerar os dados mais recentes das diversas ciências. Assim sendo, o prazer não deve ser visto apenas pela perspectiva teológico-filosófica, mas também na dinâmica das ciências que estudam a constituição físico-biológica do ser humano, criado à imagem e semelhança divina. Dessa forma, o prazer se reveste de profundo significado, valor e dignidade, uma vez que essas ciências nos revelam os segredos e a beleza da complexidade corpórea do ser humano, querida e criada por Deus. O prazer e o gozo, inclusive quando brotam da relação sexual, não podem ser vistos como consequências do pecado original, mas como ato profundamente humano, querido por Deus, e que contribui para a plena realização humana.39 2. Dimensões do prazer Sendo uma experiência tão rica e tão profunda, o prazer se expressa de vários modos e de várias maneiras e pode ser vivido e percebido de várias formas. Isso quer dizer que tal experiência humana possui várias dimensões. Por dimensão entendemos aqui não só os espaços e a intensidade com as quais e nas quais ocorre o prazer, mas também os parâmetros avaliativos para verificação da ocorrência dessa sensação. Isso significa, como de certa forma já foi mencionado, que o prazer tem implicações não somente físicas ou biológicas, mas também psíquicas e profundamente humanas. Atinge não só a corporalidade, mas também a individualidade e as relações das 17 pessoas com as outras e com o mundo. Como tal “é indispensável à saúde e ao equilíbrio psicofísico, sendo um componente indispensável para a economia psíquica”.40 Dimensão intrapsíquica Uma primeira dimensão do prazer é a intrapsíquica. Vivido intensamente e de maneira equilibrada, permite que a pessoa se firme como indivíduo e tenha uma identidade bem definida. Uma vida prazerosa é fundamental e decisiva para a autoafirmação da pessoa e para a sua saúde psicofísica. A dimensão intrapsíquica do prazer parte do pressuposto de que o ser humano é alma. Ele é singularidade, individualidade, interioridade e transcendência, mas tudo isso na temporalidade.41 Por esse motivo, o sentimento de prazer afeta a pessoa naquilo que nela há de mais singular e único. Essa constatação é fundamental para entendermos que cada ser humano possui um modo todo particular de viver o prazer. Querer forçar alguém a ter prazer segundo os nossos critérios e, pior ainda, segundo os nossos caprichos é violentá-la naquilo que nela há de mais sagrado: a sua individualidade inviolável.42 Para entender esse aspecto do prazer é indispensável superar a noção biologista de pessoa, ou seja, a pura e simples aproximação do ser humano ao animal, feita pelas doutrinas evolucionistas populares. Se, por um lado, há certa aproximação genética (primatas), por outro lado, é preciso evidenciar as peculiaridades do ser humano. Uma simples aproximação zoológica entre seres humanos e demais animais tiraria deles a condição de seres inacabados e negaria determinados limites típicos dos animais irracionais. Tal “mistificação” da biologia despreza uma série de elementos que diferenciam os humanos dos demais animais. É um argumento facilmente manipulável, usado para justificar a exploração do mais fraco, para justificar a competição e as mais cruéis injustiças.43 Muitas vezes a manipulação e a exploração das pessoas mais fracas se dão pela via do “desejo de sentir prazer” e tendo como base essa concepção biologista do ser humano. Além disso, a dimensão intrapsíquica revela que a vivência humana do prazer se dá ao longo da caminhada da pessoa; não é algo momentâneo e imediato. Supõe maturidade afetiva, entendida como superação da dependência infantil, e que leva a pessoa a investir suas energias afetivas numa vida real, que inclui elementos como solidão e sofrimento.44 Aprender a sentir prazer e a sentir de maneira plena exige tempo e paciência. Por isso a própria pessoa e aqueles que com ela se relacionam precisam saber esperar. Há uma progressiva aprendizagem também nesse campo. Isso também revela que o prazer significativo está relacionado com o papel exercido pelas emoções. A emoção é a atração ou a aversão por alguma coisa considerada boa ou ruim. Na emoção a pessoa sente um impulso a agir, aproximando- se ou afastando-se de algo, independentemente da razão. Nesse processo, a memória afetiva exerce uma função significativa fazendo uma avaliação intuitiva, a partir dos dados sensoriais captados e decodificados pelo cérebro. Se faltar a maturidade afetiva, a pessoa ficará nesse âmbito do intuitivo. Porém, se o sujeito desenvolveu a maturidade afetiva, ele será capaz de fazer também uma avaliação reflexiva. Nessa 18 avaliação reflexiva, que geralmente acontece após a intuitiva, a pessoa faz abstração da emoção por meio de um juízo de valor, acrescentando o querer racional e o desejo racional. Dá-se, então, a integração entre avaliação intuitiva e a racional, e a emoção passa a ser realmente e plenamente humana.45 A formacomo sentimos ou não sentimos prazer e o modo como o encaramos e avaliamos estão ligados a diversas situações da nossa vida. São essas situações que acionam o cérebro e fazem o sistema nervoso central “plastificar” o sentimento ou a ausência de prazer.46 Entre os diversos elementos extrafisiológicos estão, por exemplo, as experiências da idade infantil com a atuação do id, do ego e do superego.47 Cabe verificar de que maneira a criança lidou com os “instintos egoístas” nos seus primeiros anos de vida. Além disso, é preciso conhecer de que maneira a criança foi tomando consciência da realidade exterior e foi realizando o equilíbrio entre as exigências dos instintos e necessidades e aquelas da realidade. Por fim, é preciso verificar também como se deu o processo de “idealização” do prazer. Tal idealização pode ter acontecido por um caminho narcisista, com a satisfação plena dos instintos, ou por via de identificação, a chamada via parental, através da qual a criança introjeta ou interioriza determinadas normas de educação por meio do círculo familiar onde vive. Trata-se, pois, de ter presente o processo evolutivo da afetividade, das emoções, vivido pela criança nos seus primeiros anos de vida.48 Esses dados científicos nos permitem afirmar que o sentimento de prazer é muito mais complexo do que se imagina. Tais conhecimentos devem nos ajudar a evitar julgamentos precipitados e a emissão de sentenças radicais de juízos de valor. Aliás, os atuais conhecimentos científicos nos permitem ir mais longe, afirmando que a forma de sentir prazer tem a ver com a concepção e a vida intrauterina da pessoa. O modo como a mãe e o pai acolheram e esperaram a chegada do bebê pode ter influências significativas no modo de viver o prazer.49 Particular significância têm as diversas fases infantis (oral, anal, genital, edípica, de latência). O prazer e a forma de senti-lo dependem muito da maneira como a criança viveu essas fases da vida. Dependendo da situação, um simples ato como, por exemplo, o desmame pode acarretar sofrimentos, traumas e frustrações para a vida afetiva da criança e interferir na sua maneira de encarar o prazer.50 Convém voltar a salientar que há uma diferença significativa entre a forma do homem e da mulher sentirem prazer. A sensibilidade emocional da mulher é diferente do homem. Os estímulos e as reações são diferentes. A própria anatomia é caracterizada por diferenças significativas. Essa diferença de anatomia, por exemplo, faz com que o prazer na mulher esteja ligado à totalidade de sua corporalidade, enquanto no homem o prazer é mais localizado a certas regiões do corpo. A mulher tende mais a relacionar o prazer com o ato de ser amada e com a sua capacidade receptiva. O homem, por sua vez, relaciona o prazer com sua capacidade de ser ativo.51 Portanto, falar do prazer, avaliar o prazer e, acima de tudo, emitir um juízo ético sobre o prazer exige considerar tais diferenças, ou seja, a masculinidade e a feminilidade como dois modos distintos de ser e de realizar a nossa humanidade.52 Nesse sentido, é preciso ter presente o significado, a importância, o lugar e o valor do 19 corpo no prazer. Do ponto de vista da antropologia, o corpo é o modo de perceber, aproximar-se, comunicar-se e relacionar-se com o outro. Assim sendo, pode-se afirmar que o prazer é o que dá possibilidade e realiza a intersubjetividade humana.53 É verdade que, por diversas razões altruístas, alguém pode entrar em comunicação com outras pessoas. Mas, mesmo nesses casos, o encontro se dá porque houve uma dose de prazer que mobilizou a pessoa na direção da outra, ou das outras. O desejo de encontrar a outra pessoa é motivado pelo prazer que esse movimento na direção de outra pessoa produz dentro de nós.54 Dimensão relacional ou interpessoal A referência a um modo próprio de sentir prazer do masculino e do feminino, ao desejo de encontro com o outro ou com os outros mostra que o prazer possui uma dimensão relacional ou interpessoal. O feminino e o masculino revelam que o ser humano é mutuamente incompleto, ou, se quisermos, relativamente completo. Isso quer dizer que o prazer por si é incompleto se não tem presente a relação com a outra pessoa. Para que o prazer seja completo é indispensável a completude, a presença e a abertura para com a outra pessoa. O prazer está intimamente relacionado com a estrutura fundamental do ser humano, o qual só se encontra consigo mesmo quando se encontra com o outro, com alguém diferente dele.55 O prazer requer intimidade, ou seja, um espaço e um momento em que a pessoa possa “sentir-se em casa com alguém”. A intimidade é a condição na qual alguém é totalmente reconhecido, sem a preocupação de ser rejeitado. Intimidade é a capacidade de aceitação da outra pessoa assim como ela é. É uma aceitação mútua. Essa intimidade permite tratar o outro com carinho, gerando o prazer de estar juntos, não sufocando os desejos, mas também não bajulando, não impondo, não se exibindo, não abusando.56 Intimidade significa afundar profundamente uma relação dentro de si, submergir e, ao mesmo tempo, também flutuar, fazer uma imersão e depois vir acima. Intimidade significa ter a coragem de ser plenamente envolvidos, mas, ao mesmo tempo, manter a própria autonomia.57 Trata-se, pois, de “encontrar prazer em dar prazer aos outros”.58 O prazer que nasce da relação com outra pessoa, da amizade, não deve ser visto de forma angelical ou maniqueísta. Mesmo quando não se trata do prazer sexual genital, não se deve nem se pode excluir a sexualidade, parte integrante normal da natureza humana. A amizade prazerosa não pode ser condicionada ou dominada pelo medo. Isso porque o medo impede a pessoa de assumir os riscos de amar e de amar prazerosamente. Assim sendo, é indispensável que numa amizade entre duas pessoas ambas estejam dispostas a aceitar a real possibilidade de envolvimento emocional. É claro que, nesse dinamismo, é preciso aceitar e respeitar o processo, uma vez que, como já dissemos, as pessoas são diferentes e não chegam juntas ao mesmo tempo.59 Porém, “uma pessoa só é plenamente ela mesma quando se relaciona amorosamente com outras”.60 20 O que acabou de ser dito mostra que existe um “prazer de estar junto”.61 O cultivo da relação de forma prazerosa é fundamental para a saúde mental das pessoas. Como a própria etimologia da palavra já nos revela, a relação quer dizer ter alguém como referência. Se nos falta essa pessoa, nós começamos a ficar perdidos, desestimulados e sozinhos. E tal sensação nos faz adoecer e perder o equilíbrio. Por esse motivo, todas as vezes que deixamos de cultivar uma relação ou a perdemos por qualquer motivo é indispensável reatá-la o quanto antes ou buscar construir uma nova relação. Mesmo porque a relação nos permite devolver o prazer de ser amado, de receber amor. E também isso é muito importante para a saúde psicoafetiva das pessoas. É claro que é necessário cuidar para que a relação seja marcada pela reciprocidade, ou seja, pela capacidade de devolver à outra pessoa, e com a mesma intensidade, o prazer de ser amado. O prazer da relação é algo de “mão dupla”, permitindo uma profunda interação entre as duas partes. Se isso não acontece corre o risco de se tornar uma relação possessiva, tirânica e dependente. Por esse motivo, a relação, para ser realmente prazerosa, terá que ser também profundamente confidente ou confiável. Isso significa que entre as duas pessoas que cultivam a relação deve existir um clima de confiança muito grande que permita total abertura e condições para que as duas pessoas amigas partilhem, sem grandes segredos, aquelas coisas que estão bem guardadas no fundo do coração de cada uma delas. Essa necessidade do cultivo de relações profundas, sinceras e autênticas tem se tornado uma urgência em nossos dias, uma vez que a nossa cultura, como veremos mais adiante, é marcada pelo individualismo e pela solidão. Muitas vezes chegamos até a estar juntos, a ficar juntos, mas não conseguimos nos comunicar. Cada vez mais nos isolamos dos outros e não vivemoso prazer do encontro e da comunicação. Apesar do uso cada vez maior de tecnologias da informação e da comunicação, somos sempre mais uma geração de pessoas isoladas e solitárias. Cada um de nós, plugado em seu aparelho moderníssimo de comunicação, se isola cada vez mais dos outros e sofre porque não tem o prazer de se comunicar com alguém. De fato, o “estar junto não significa necessariamente comunicar-se e o adjetivo ‘solitária’ qualifica de modo bem expressivo o que é esse tipo de agregação”.62 A ausência do prazer da comunicação cria uma sociedade de pessoas desenraizadas e sem referenciais. Pessoas inquietas e profundamente inseguras, cada vez mais mergulhadas num tipo de privacidade que leva ao desespero do mimetismo. Quanto mais isoladas e sem real comunicação mais as pessoas tendem a imitar as “estrelas” e a expor nas redes sociais as suas intimidades. E quanto mais expõem suas intimidades mais isoladas ficam, uma vez que apenas um pequeno grupo tem acesso a essas informações intimistas que, dada a sua baixa qualidade, logo são descartadas pelos que as acessam. O isolamento se dá porque, normalmente, as informações partilhadas nas redes são de cunho individualista e não possuem impacto social significativo. A dimensão relacional ou interpessoal do prazer é significativa porque educa a pessoa para o ato de transcender-se, isto é, para a saída da privacidade, do intimismo, indo ao encontro de outro que é real e não virtual. E à medida que vamos ao encontro de pessoas reais, nós nos projetamos, ou seja, nos lançamos na ousadia corajosa de 21 recriar a nossa existência. Isso faz com que nos encontremos com nós mesmos, com nossas raízes. A amizade prazerosa nos faz voltar às nossas origens profundamente humanas e nos permite encontrarmos o caminho pelo qual devemos andar na busca daquilo que realmente queremos ser no amanhã. O prazer da relação interpessoal é, ao mesmo tempo, o prazer de escutar e de ser escutado, de comunicar-se e de receber uma boa comunicação. Significa concretamente buscar a memória histórica do nosso agir, da nossa vida, saber recuperar e aceitar o nosso passado para poder aprender com ele. Significa reencontrar um núcleo de referência interno ou externo próprio no estar juntos. Significa viver uma radicalidade de vida que deseja também orientar-se por modelos, não para copiá-los, mas para inspirar escolhas livres e autônomas.63 Urge, pois, superarmos essa cultura do “ficar juntos” e caminharmos na direção de uma relação verdadeiramente prazerosa que transmita afeto, carinho e amor. Precisamos superar a “cultura do rebanho”, que junta pessoas em determinados lugares (shoppings, igrejas, estádios, escolas etc.), mas não lhes dá a real possibilidade do prazer da comunicação. Precisamos redescobrir o prazer de estar juntos, porém numa comunicação profunda que nos faça pessoas verdadeiramente amadas e amantes. Mas para que isso aconteça é necessário cultivar o “prazer da solidão”, que consiste em entrar em si mesmo para se redescobrir e para dialogar consigo mesmo. Somente quem toca a própria interioridade em profundidade consegue “apertar a mão de alguém”.64 Lamentavelmente a solidão aumenta porque as pessoas têm medo de entrar dentro delas mesmas e de olhar para a própria interioridade. A solidão neurótica, de que sofrem hoje as pessoas, decorre da falta de coragem de dialogar com o próprio eu. A maioria de nós prefere desviar sempre de si mesmo e culpar os outros pelo que acontece. Não resta dúvida de que a solidão do ser humano moderno decorre também de injustiças e da exclusão social a que é submetida a maioria absoluta das pessoas. Porém, é também correto afirmar que muitos não querem olhar para a própria interioridade e escutar o próprio mundo interior. Dimensão afetiva Ficou claro no parágrafo anterior que uma relação verdadeiramente prazerosa transmite afeto, carinho e amor. Por esse motivo se pode falar de uma dimensão afetiva do prazer. Vimos anteriormente como o prazer, junto com a dor, são os afetos que mais assinalam a convivência humana, diferenciando-a daquela dos animais. Vimos ainda que o prazer tem o seu princípio genético, mesmo não esquecendo os componentes culturais que o caracterizam. O modo como lidamos com o prazer está relacionado com a maneira como lidamos com a nossa afetividade desde o nosso tempo de criança. A questão do prazer tem a ver também com a forma como fazemos a integração de nossos sentimentos com a razão. Porém, não devemos esquecer que a razão não age se o dinamismo da afetividade estiver bloqueado.65 Cabe salientar, porém, que a afetividade, estimulante do prazer, é alimentada continuamente por representações conservadas pelo sujeito de forma consciente ou inconsciente. Além disso, o tempo no qual se vive também influencia a vida 22 intrapsíquica, especialmente naquilo que diz respeito às relações cultivadas no espaço e no tempo.66 O modo de entender e viver o prazer tem muito a ver com a forma através da qual se deu ou não a autonomia da criança. Quando a criança não encontra um clima progressivo de liberdade, sua autonomia pode ser afetada. Nesse caso haverá fixações e a forma de ver e de entender o prazer pode sofrer deformações. As pessoas são empurradas para situações-limite que dificultam uma justa e correta compreensão do prazer. Entre as dificuldades está aquela de perceber a real diferença entre prazer, prazer sexual e atividade sexual. A consequência é uma tendência ao controle (repressão) das manifestações fisiológicas da sexualidade e a falta de percepção de que há um elemento psíquico que ultrapassa a atividade orgânica. Por causa disso, a pessoa tem sérias dificuldades de integrar o prazer e o prazer sexual no projeto pessoal de vida.67 Por essa razão, toda pedagogia educativa com relação ao prazer deve ter presente esse aspecto. Deve ter presente que o prazer não se reduz ao puramente biológico. Além disso, precisa considerar a relação e a diferença entre homem e mulher. Muitas vezes, como vimos anteriormente, ao refletirmos sobre o tema do prazer não levamos em conta esses elementos que inclusive fazem parte da revelação divina. Há uma igualdade fundamental, mas também uma diferença significativa entre homem e mulher e que não pode ser desconsiderada no momento de se refletir sobre questões como o prazer.68 Nesse sentido cabe também lembrar a teoria de Jung segundo a qual todo homem e toda mulher carregam na sua psique o animus e a anima. O “animus” é a disposição para a ação proveniente da convicção. É a capacidade de lutar, de insistir e de persistir. A “anima” é a irrupção na pessoa dos sentimentos, do humor, da capacidade amorosa, da ternura, da compaixão e assim por diante.69 Retomando o que já foi dito antes, é preciso relembrar que o sentimento de prazer está intimamente relacionado com a corporalidade. Na cultura hebraica, na qual nasce o cristianismo, a corporalidade tem um significado profundo.70 O prazer que inebria o corpo é a condição para que a pessoa viva a sua relação com os outros. Relação essa que caracteriza a pessoa humana criada à imagem e semelhança divina. Jamais alguém entraria em comunhão com outra pessoa se não fosse animado pelo sentimento de prazer e de felicidade. Por isso é fundamental a consciência de que somos seres de relação e que a relação se dá no encontro de seres sexuados que se atraem, mesmo quando a atração não inclui a atividade sexual genital. Como seres corporais, seres nos quais a identidade pessoal e o corpo formam uma só coisa, necessitamos do prazer para passarmos da intenção para a ação. Não nos comunicamos se não somos motivados pelo prazer do encontro com a outra pessoa. É verdade que a ética e a moral podem chegar a pedir, em determinados momentos, a distância dos corpos, entendida como respeito e cuidado para não violar a intimidade da pessoa. Porém, isso não significa que as relações humanas precisam ser frias e sem sentimentos.71 A fé não exclui a afetividade e o prazer, mesmo porque não é apenas um ato puramente racional, mas também uma pulsãoafetiva e prazerosa. Aliás, as 23 verdadeiras experiências místicas, consideradas máximas expressões de fé, são experiências de pessoas apaixonadas, nas quais o prazer ocupa um lugar prioritário.72 É bastante conhecida a experiência de muitos místicos e de muitas místicas na qual o êxtase inclui momentos profundamente prazerosos com olhares, abraços, beijos e uma situação na qual todo o corpo está envolvido na relação com quem chamam de “meu Dileto”.73 A pessoa mística costuma vivenciar uma experiência de céu, de eternidade. E em tal experiência o prazer e o gozo são sentimentos que predominam o tempo todo.74 É preciso cuidar bem e prestar atenção ao risco de repressão do prazer, mesmo quando isso é feito de forma voluntária, livre e consciente. De fato, quando acontece a desvalorização do prazer e a sua consequente repressão, a pessoa tende a substituir o prazer do prazer por elementos compensativos nem sempre libertadores. A lei, a norma, a proibição tendem a prevalecer sobre a liberdade e a autonomia e a se tornar absolutos que escravizam. Em função disso, o espírito de amor e a generosidade terminam por desaparecer. A pessoa passa a fazer as coisas por dever e não por amor. É preciso não se esquecer, antes de tudo, do valor positivo da vida, de que dentro da vida também se inclui a experiência do prazer como elemento importante, ainda que não primordial. A incapacidade de usufruir experiências agradáveis nunca é sinal de maturidade, e sim indício de rigidez e mal-estar. Essa dificuldade é encontrada geralmente em uma consciência imatura, inflexível, severa e intolerante [...]. Não se pode esquecer de que o prazer é fugaz, sempre se refere a uma experiência passada ou breve, que, consequentemente, deve ser continuamente repetida.75 A ausência de prazer passa a determinar a conduta do ser humano. E disso podem resultar três atitudes perversas.76 A primeira é a falta de sensibilidade e de humanidade. A pessoa se torna um monstro guiado pela lei do dever, não tendo misericórdia e compaixão diante da fragilidade alheia. A segunda é o despertar dos instintos mais baixos que o sujeito acreditava controlar. Sufocado e reprimido pela lei e pelo dever, o prazer se transforma em bestialidade ou em conflitos interiores contra os quais a pessoa não tem solução a não ser deixar que extravasem. Disso resulta uma terceira atitude, que é a hipocrisia. Vivendo de forma animalesca, o sujeito tende a ser moralista e cruel para esconder, sob tal aparência, a sua ambiguidade. Vivendo no inferno, a pessoa, mesmo inconscientemente, tende a transformar a vida dos outros num inferno. Vivendo sem prazer de viver, odeia quem vive prazerosamente e tudo fará para desmanchar o prazer de viver dos outros.77 A ausência, ou melhor, a repressão do prazer, leva o sujeito a fechar-se na autossuficiência. E quando isso acontece, temos, com certeza, um coração e uma consciência infelizes, nos quais Deus não pode habitar. E onde Deus não pode habitar há destruição e desintegração. Do ponto de vista psicológico, cria-se espaço para o dinamismo das representações. Nascem as fobias e a sensação de impotência, que são expressas em atitudes de violência, autoritarismo e dominação. Surge, então, o desejo de sucesso social, de fama e de controle sobre as pessoas. E quando se chega a esse nível de vida não há mais lugar para a ação divina, pois a pessoa não tem mais condições de ouvir os apelos de Deus. Nesse caso, o “santo” se torna um ambicioso que não procura a glória de Deus, mas a sua, embora ele mesmo acredite piamente 24 que a sua vida seja uma manifestação do amor divino.78 Desde os tempos de Aristóteles, sabe-se que o prazer e a vida formam uma unidade: sentir prazer é viver e viver é sentir prazer.79 Por isso, “o prazer não pode ser contrário à vida moral e espiritual, uma vez que é o sinal da vida que se expande”.80 Porém, para que o prazer seja vida e a vida seja prazerosa, é indispensável que não seja considerado fim em si mesmo. Se o prazer é visto como fim em si mesmo, corre-se o risco de vivermos da busca de prazeres imediatos e momentâneos. E quando se vive em função disso podemos nos tornar vítimas de pulsões cegas e descontroladas, as quais terminam por destruir e fragmentar a pessoa, reduzindo-a a pedaços. O sujeito cai no narcisismo e frustra-se, uma vez que a realização plena só acontece no encontro com o outro. Fica, então, evidente que embora o prazer seja um princípio vital, ele só aparece na vida quando não é procurado diretamente. Aquele ou aquela que vive à procura do prazer termina por não encontrá-lo, como já havíamos dito anteriormente.81 Dimensão amorosa Eis porque o prazer precisa ser visto e vivido na perspectiva do amor.82 O prazer supõe um amor maduro capaz de gerar amizade e doação aos outros. Quando alguém vive superficialmente, a relação com os outros é frustrante e o prazer é apenas aparente. A pessoa vive de busca de compensações e de satisfações imediatas. Sem amor o prazer reverte-se em procura de poder, vícios e desejo de relações ocasionais, inclusive de relações sexuais sem compromisso e sem respeito pela outra pessoa. Quando não há um amor maduro, o prazer é confundido com narcisismo e egoísmo: busca-se a outra pessoa para satisfazer a si mesmo.83 Geralmente, nesses casos há sérios problemas patológicos. Inclusive se pode afirmar que não há amor a si mesmo, mas ódio de si que se transforma em ódio dos outros.84 Quando há um quadro patológico, não há verdadeira experiência de prazer. O sujeito chama de prazer o que é, antes de tudo, exibicionismo, fixação, fantasia, agressividade ou indiferença. Na comunicação com os outros – espaço prazeroso por natureza – falta empatia. Em seu lugar temos a pretensão, a busca de favores, a exploração da outra pessoa, a autoafirmação e o comportamento oscilante entre euforia e depressão.85 Nos casos de narcisismo patológico o prazer se degenera em incapacidade de amar. E isso acontece porque não há o prazer absoluto, uma vez que todo desejo humano não pode ser satisfeito plenamente. Diante disso, o narcisista patológico se concentra na insatisfação do prazer e faz a sua infelicidade depender disso. Consequentemente, não sendo atendido em sua necessidade de prazer absoluto, passa a viver de forma desinteressada, não se importando com o bem comum e com a situação dos outros. Ocupado com sua ânsia de prazer absoluto, o narcisista patológico corre atrás de uma liberdade que não existe, vivendo sem limites, buscando o sucesso imediato.86 Como o prazer não chega a um nível absoluto, o narcisista patológico passa a 25 descuidar da vida, dos valores e não consegue criar laços verdadeiros de amizade e de amor. Nisso está inclusive a razão do falimento de vários casamentos. Não atingindo o absoluto do prazer desesperadamente procurado, o narcisista vive enjoado, sempre querendo mais prazer, mais sensações emotivas, porém sem nenhum compromisso. Vive um vazio interior e uma busca ávida de admiração. Mas quanto mais busca o prazer, mais se sente insatisfeito. E, em razão de sua insatisfação, tende a manipular e instrumentalizar os outros na tentativa desesperada de obter o que procura. Sua incapacidade de amar e sua insaciável sede de obter o prazer de forma absoluta são mascaradas por atitudes falsas de altruísmo e amor ao próximo. Para tais pessoas e para quem vive próximo delas a vida se torna um inferno. Um inferno de pervertidos, de loucos, de conflitos e fugas, de mentiras e de falsidades.87 O que foi dito acima deixa muito claro que há um limite para toda forma de prazer. O prazer, quando verdadeiro, é limitado, mas apesar disso traz alegria e felicidade. A pessoa sabe gozar e viver intensamente cada momento de prazer que a vida lhe oferece. Não vive desesperadamente em busca de um tipo de prazer que não existe. O prazer, quando compreendido e vivido plenamente, traz plena alegria e felicidade verdadeira. A pessoa permanece aberta e disposta a acolher novos momentos prazerosos da vida, os quais normalmente são surpresas, mas sem aquela ânsiade chegar e de permanecer no absoluto ou no máximo grau de prazer. Esse estilo de vida só é possível quando se vive com sentido a própria existência. Vida sem sentido é vida sem prazer e sem alegria. E o sentido vem da vivência intensa do amor.88 Por isso a dimensão amorosa do prazer consiste em “restituir à pessoa humana a integração harmônica que se assemelha a uma grande polifonia em que nada é desafinado”.89 Para viver prazerosamente a pessoa precisa, antes de tudo, viver integrada, ou seja, centrada não só nela mesma, mas na comunhão com as demais e com todos os elementos da natureza que a circunda. E a integração só acontece quando decidimos livremente e autonomamente gastar a nossa vida com algo que vale a pena. Além disso, nessa integração, o ser humano precisa deixar espaço para que as demais pessoas e as demais realidades existam com independência e com liberdade. Quem pretende segurar e aprisionar para si os outros e a realidade termina sufocado e não tendo a alegria do prazer. De fato, o amor maduro preserva a integridade e a individualidade dos parceiros; permite à pessoa permanecer ela mesma e até crescer na sua própria identidade. E eis o paradoxo: no amor maduro, os dois se tornam um só e, todavia, permanecem dois... Uma operação estranha se concebida em termos matemáticos, mas extremamente verdadeira se concebida em termos psicológicos e espirituais [...]. O amor é a força que produz outro amor; não tê-lo vivido torna pobre e dolente o coração; será muito duro recuperar aquele que não se teve, se bem que não é impossível.90 Nesse sentido, a dimensão amorosa do prazer quer dizer amor zeloso, ou seja, amor que se interessa pela vida e pelo crescimento daqueles, daquelas e daquilo que amamos. Isso significa tornar-se responsável pelo outros e pelo que acontece com os outros. Ser responsável não é dominar e controlar, mas ser sensível aos gritos e aos 26 apelos dos demais.91 Responsabilidade é estar pronto para dar sempre uma resposta positiva ao chamado da outra pessoa e a acolhê-la na sua singularidade e diversidade, ou seja, “capacidade de ver uma pessoa como ela é, aceitá-la em seu crescimento, em sua individualidade, sem reduzi-la à própria imagem e semelhança”.92 Hoje, como lembramos pouco antes, há cada vez mais pessoas à cata desesperada de prazer ou, quem sabe, de prazeres. Mas quanto mais buscam menos encontram o que procuram. E isso se dá exatamente porque falta essa dimensão amorosa na busca do prazer. O que se tem, na verdade, na maioria das vezes, é uma coisificação do outro, das relações. E quando há coisificação o prazer também se coisifica e se desmancha como fumaça no ar. Para que o prazer seja ao mesmo tempo intenso e permanente é preciso amar as pessoas, amar o que fazemos e amar a vida. Mas amar é conhecer, ou seja, “entrar na vida de uma pessoa respeitando-lhe os âmbitos de privacidade e de reserva”,93 ou seja, aquela zona profundamente única e singular que somente a própria pessoa conhece. Às vezes, o prazer não chega ou se acaba porque a pessoa pretende arrancar tudo da outra. Para que o prazer na relação seja intenso e duradouro, é preciso permitir ao outro que ele seja um “tu”, mesmo porque esse “tu” é indispensável para que alguém seja um “eu”. Alguém só é alguém quando permite que outro alguém seja um “tu”.94 O prazer está relacionado com o ato de amar, ato esse que constitui a essência do ser humano. Por isso a pessoa precisa aprender a amar, e tal aprendizagem passa pela capacidade de ter prazer. É verdade, como já foi dito outras vezes, que o amor ao próximo pode exigir, em certas situações, a superação do simples prazer, mas dentro da normalidade é impossível amar sem sentir prazer. A superação simples do prazer, indispensável em certas ocasiões, é a superação da dependência afetiva, muitas vezes erroneamente chamada de “amor”. Por isso, para que o prazer esteja integrado com o autêntico amor, é fundamental que a pessoa tenha a capacidade de controlar os instintos e os impulsos, não agindo por automatismo. Trata-se de ser dono de si mesmo e não vítima dos próprios instintos. Porém, esse processo não pode ser mero mimetismo ou imitação de modelos, uma vez que cada pessoa é única. É bom ter referenciais, mas sempre com a liberdade de agir diferentemente, sempre que a realidade pessoal e ambiental exigir. Nesse sentido deve-se dizer que, junto com a capacidade de sentir prazer, é necessário que a pessoa seja também capaz de suportar situações desagradáveis e de sofrimento, sem fazer disso um drama, especialmente quando o ato do prazer contrastar claramente com a ética, com o Evangelho e com os valores que a pessoa escolheu para nortear a sua vida. É preciso, pois, uma maturidade capaz de levar a pessoa a renunciar formas de prazer que são opostas aos valores escolhidos. É bom, portanto, não exagerar nem na inflexibilidade nem na permissividade. Não ver pecado em tudo, mas também não permitir-se tudo.95 Dimensão corporal O amor humano não é abstrato. É feito ao mesmo tempo de corpo e de alma. Por esse motivo, o prazer possui uma dimensão corporal.96 Sendo o prazer algo 27 constitutivo do amor humano e vice-versa, ambos se expressam através de gestos sensíveis e psíquicos. O amor humano se exprime também através da relação sexual, como veremos logo em seguida. Por enquanto, basta afirmar que o prazer não é evasão do corpo, mas ato de afeto e de união gozosa corporal. Precisamos, pois, libertar o prazer do “complexo de inferioridade” a que foi submetido durante tanto tempo e reconhecer o seu valor.97 É claro que não podemos esquecer que na sociedade capitalista, agora neoliberal, há uma desintegração do amor por conta da concepção de que se pode comprar tudo com o dinheiro, inclusive a satisfação e o prazer. Tal concepção, talvez influenciada por Freud, reduz o amor e o prazer ao ato sexual. Prazer, nesse contexto, seria a satisfação plena dos instintos e dos desejos. Pensa-se que tal satisfação gera saúde mental, felicidade e prazer. Mas o que temos visto nos últimos anos é a afirmação de atitudes e comportamentos desumanizantes como o machismo. Além disso, a falsa ideia de que é possível comprar tudo o que se quer com o dinheiro fez com que o prazer só fosse experimentado como fantasia e nunca como experiência concreta. Daí a ânsia e a frustração constante, experimentadas pela maioria absoluta das pessoas.98 Essa compreensão ideologizada do corpo é responsável também pela instrumentalização do ser humano. Serviu para justificar a escravidão, o controle e a submissão sociocultural por parte dos grupos dominantes.99 Por esse motivo, é fundamental ter presente que o corpo é mistério e, como tal, ele precisa ser, antes de tudo, venerado. Venerado aqui não significa nem idolatrado nem rejeitado. Significa acolhê-lo na sua realidade, na sua intensidade, nas suas manifestações, nos seus ritmos, naquilo que ele é, sem idealizações e sem negações. Dizer isso é fundamental, uma vez que o corpo transformado em mercadoria na atual sociedade vem passando por uma série de massacres e de violências. Assim sendo, precisamos tomar alguns cuidados com o nosso corpo ou com partes dele, a fim de que a nossa experiência de prazer seja intensa e perpasse toda a nossa corporalidade. Estamos convencidos de que algumas civilizações mais antigas e mais experientes podem nos ajudar na reconciliação com o nosso corpo. Essas culturas nos ajudam a entender a relação do nosso corpo com a terra, com a fecundidade e com a sexualidade. O hábito de alguns povos, por exemplo, de andarem descalços, mesmo no frio intenso, revela o cuidado com essa relação. Para tais culturas o corpo é símbolo da totalidade e da vitalidade. Cada parte do corpo (cabelos, cabeça, anus, boca, vagina, pênis etc.) expressa uma dimensão dessa grandeza. Até os excrementos, a cera do ouvido, o suor, os pelos humanos, a saliva são carregados de valor e de significado. O corpo nunca é visto como objeto e muito menos como objeto de prazer. O corpo é a pessoa e a energia que nela circula. Nessa perspectiva,não se tem um corpo para ter prazer, mas vive-se prazerosamente no corpo e enquanto corpo. Por essa razão, alguns atos, como vestir-se, dançar, comer são vistos como prolongamento do corpo, carregados de simbologia e vividos intensamente com muito prazer.100 Nessas culturas, a maternidade não era vista apenas como fator biológico, como é comum acontecer na cultura ocidental capitalista e neoliberal. Para esses povos, a maternidade era expressão do desencadeamento da vida, simbolizada pela placenta e 28 pelo cordão umbilical, e convite à comunhão e à reciprocidade. A maternidade liberta a vida. Na mesma linha era vista a feminilidade. Entender a percepção cultural da maternidade e da feminilidade própria dessas culturas nos ajuda a superar o marco “feminista” radical e se torna um convite à valorização da vida humana integral. Porém, é fundamental, hoje, não apenas recordar saudosamente essas culturas, mas construir, a partir dessas experiências do passado, uma nova identidade humana em que haja uma relação equilibrada entre mulheres e homens.101 Nas culturas afro-americanas, o corpo e a sexualidade são uma melodia harmoniosa que expande a alegria de viver e de existir. O corpo expressa harmonia e ritmo capazes de manifestar a sua beleza. Mesmo quando maltratados pela escravidão, os corpos negros não perderam o gingado e a plenitude da alegria. Os corpos afro-americanos são verdadeiras esculturas que contém poesia e vida. Por isso são corpos que geram comunhão, estimulando a vida e o existir. Isso não significa que devamos esquecer a forma violenta de controle, de submissão e de dependência praticada contra esses povos, de modo particular contra suas mulheres. Não significa esquecer a maneira brutal com a qual essas pessoas foram tratadas, gerando frustração por causa da negação da humanidade dessas pessoas. O que estamos querendo afirmar é que a potência dessas culturas foi superior ao massacre e elas souberam superar a dor com muita resistência e persistência.102 Mais adiante, quando abordarmos o aspecto bíblico do prazer, veremos que, segundo a Bíblia, o ser humano não tem corpo, mas é corpo, uma vez que ele é um ser no mundo, no tempo e no espaço. Esse dado, biblicamente falando, não é um complemento, mas elemento decisivo da essência da pessoa. Por ser corpo, o ser humano é também ser sexuado, e no corpo manifesta a si mesmo.103 Assim sendo, também do ponto de vista teológico, o prazer se expressa através da corporalidade da pessoa. Prazer e corporalidade estão profundamente relacionados, mesmo porque, como vimos anteriormente ao falarmos das bases científicas do prazer, há em nosso corpo um magnífico conjunto de sinapses elétricas, de “curtos-circuitos controlados” provocados pelo contato das proteínas das membranas das células, que fazem com que o corpo humano disponha de contatos, de “junções comunicantes” do prazer. Como veremos também mais adiante, isso significa que precisamos superar de forma definitiva a relação que o dualismo e o maniqueísmo criaram entre prazer, corpo e pecado. Precisamos entender que, segundo a Bíblia, a corporeidade e, em consequência, também o prazer não são por si mesmos negativos. Do ponto de vista bíblico, o corpo (e o prazer que o envolve) é a pessoa e enquanto tal é extremamente positivo. A pecaminosidade pode, sim, atingir o corpo humano, mas isso não significa que, por causa disso, a corporalidade e o prazer sejam negativos. A negatividade não está ligada à corporeidade como tal, enquanto história de pecado que, a partir de Adão, dominou sobre todos. O reflexo da situação de morte no corpóreo demonstra exatamente que este é o lugar no qual todo o ser da pessoa se manifesta e no qual se decide a sorte: o corpo é o sinal que revela a dignidade da pessoa por causa da sua origem divina e, ao mesmo tempo, a situação de escravidão na qual é lançada. O corpo exprime a pessoa em todas as suas situações vitais e históricas.104 Como o prazer é sempre corporal, precisamos libertar o corpo de toda essa negatividade na qual ele foi submergido ao longo dos últimos séculos. É claro que 29 precisamos estar atentos para não cairmos nas armadilhas do mito da salvação através do corpo, como se toda a realidade do ser humano se reduzisse a um punhado de células e de moléculas. Não podemos passar da excomunhão do corpo para o culto religioso do corpo. A atual obsessão por um “corpo sarado” revela essa tentação.105 Porém, já é hora de descobrirmos a beleza do corpo humano, descobrir a sua linguagem e a linguagem do prazer. Precisamos conhecer o nosso corpo, uma vez que a ignorância sobre ele tem um impacto psicológico muito grande. A falta de conhecimento da fantástica dinâmica do nosso corpo tem gerado medo, insegurança, sofrimento, frustração e bloqueado energias saudáveis que estão na base de relacionamentos sadios e mais humanos. Continuar tratando o corpo e o prazer como se fossem nossos inimigos e fontes tentadoras significa violentar o ser humano e depredar a natureza humana na sua beleza originária querida pelo Criador.106 Dimensão sexual Dizer que o prazer possui uma dimensão corporal implica aceitar também a sua dimensão sexual. E por sexual não entendemos aqui a relação sexual genital. Entendemos afirmar que na sensação de prazer está presente também a condição sexuada do ser humano. Em termos mais claros e mais explícitos queremos afirmar que, ao sentir prazer, a pessoa goza de tal sentimento como macho ou como fêmea e não apenas como masculino e como feminino.107 Tal afirmação é indispensável desde o início para evitarmos concepções ingênuas ou maliciosas, bem como percepções distorcidas que derivam do maniqueísmo e do dualismo. O prazer, quando verdadeiro, mexe com toda a pessoa; inunda todo o seu ser. Por isso mexe também com a sua dimensão sexuada. Isso porque o prazer é, enquanto expressão da corporeidade do ser humano, algo que toca em profundidade também o corpo da pessoa e os seus órgãos vitais, incluindo aqui também os órgãos sexuais com todas as suas funções e reações. Embora a sensação de prazer não leve necessariamente ao ato sexual, invade e permeia a sua condição sexuada. A sensação de prazer, que pelo próprio dinamismo das sinapses chega ao intrapsíquico, escorre por todo o corpo humano e envolve também o sexual. Expressa-se não somente no olhar, no sorriso, na fala, mas também no desejo de ficar perto de alguém que amamos. E esse desejo de ficar perto significa quase sempre o desejo de tocar alguém. O tato passa então a ter uma função significativa na busca e na realização do prazer e, pela sua natureza, desperta naturalmente uma forte conexão com a condição sexual da pessoa, que pode até ficar excitada ao tocar e ser tocada. Embora isso não signifique necessariamente um toque que leve os dois para a cama, para a consumação do ato sexual. Porém, se a pessoa é normal, sentir-se-á envolvida e mexida na sua condição sexuada. Não sentir nada sexualmente significa estar numa situação de anormalidade e de desequilíbrio, mesmo sabendo que também a imediata busca do prazer venéreo pode significar igualmente desequilíbrio afetivo e sexual. “Também o encontro tátil pode converter-se numa forma de encontro humano. A função do tato é uma forma rudimentar do encontro interpessoal, quando tal encontro fica reduzido ao plano das meras sensações táteis”.108 Não se trata, é claro, de apenas tocar ou de ser tocado, mas de perceber como as 30 “aferências sensoriais” que atingem o nosso corpo biológico se transformam em experiências subjetivas que, por sua vez, chegam até as outras pessoas. Essa necessidade de contato corporal, tátil, é tão importante quanto a necessidade que o corpo tem de se alimentar. O contato físico carrega consigo não só um sentido fisiológico, mas também um sentido psíquico. Por isso algumas pessoas doentes psicologicamente evitam obsessivamente o contato físico com outras pessoas, mesmo que seja apenas aquele de se dar as mãos. Todo homem tem necessidade de contato físico e cutâneo, de calor do corpo alheio para apaziguar
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