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Uma espiritualidade para o nosso tempo à luz do apóstolo Paulo - Valdir José de Castro

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Sumário
CAPA
ROSTO
APRESENTAÇÃO
1. ESPIRITUALIDADE CRISTÃ COMO “ESTILO DE VIDA”
1.1. Em busca do sentido da vida
1.2. Um caminho de transcendência
1.3. Espiritualidade cristã como um estilo de vida
1.4. O modo de ser de Paulo de Tarso
2. A CONDIÇÃO HUMANA
2.1. A realidade humana como ponto de partida
2.2. A visão integral do ser humano
2.3. Aceitar o limite é abraçar a realidade
2.4. A ação de Deus como “graça”
3. A EVANGELIZAÇÃO
3.1. Ser nova criatura em Cristo
3.2. Proclamar a Cristo Jesus, o Senhor
3.3. Quem é Jesus para Paulo?
3.4. Nos passos do Bom Pastor
3.5. O evangelho da liberdade
4. A COMUNIDADE
4.1. A comunidade como “corpo”
4.2. Amor: o dom maior
4.3. Fraternidade e a “Ceia do Senhor”
4.4. Semear com generosidade
4.5. O ministério da reconciliação
5. A COMUNICAÇÃO
5.1. Comunicação: experiência humana fundamental
5.2. O perfil de Paulo “comunicador”
5.3. Um emissor com mensagem clara
5.4. Fazer-se tudo para todos
5.5. Linguagem, canais e utopia
BIBLIOGRAFIA
COLEÇÃO
CRÉDITOS
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APRESENTAÇÃO
A felicidade é um anseio presente no íntimo de cada homem e mulher. Porém, parece
que quanto mais o ser humano busca a felicidade, mais ela se lhe escapa das mãos. A
felicidade, como conquista definitiva, ou como um estado de bem-estar geral, é um
objetivo muito difícil de ser alcançado, para não dizer impossível.
Nunca vamos atingir um nível de satisfação que englobe todos os aspectos de nossa
vida pessoal, familiar, social, profissional, religiosa etc. Sempre teremos algo a
preencher, pois, como seres humanos, nossa natureza é limitada, o que permite
experimentar apenas, no máximo, sensações agradáveis ou momentos felizes.
O que existe na verdade é o sentido. Podemos não alcançar a felicidade permanente,
mas sim dar sentido a cada momento de nossas vidas. As pessoas que conseguem
encontrar sentido para as situações concretas de sua existência sentem mais
intensamente a vida. Enquanto a busca da felicidade supõe apenas os aspectos
prazerosos, o sentido leva também em consideração o lado sombrio da existência.
Muitas pessoas encontraram conforto em suas vidas não correndo atrás da felicidade,
mas dando sentido aos momentos de alegria e de tristeza, de prazer e de dor, de
angústia e de bem-estar, de saúde e de doença.
A espiritualidade, seja qual for, tem a ver com a busca de sentido que naturalmente
leva à realização humana. Uma espiritualidade que não ajuda, antes de tudo, a
humanizar é questionável. De fato, diante da pergunta: nascemos para quê?, a
resposta não pode ser outra senão afirmar que nascemos, antes de tudo, para “viver”.
Parece uma conclusão óbvia, porém as agitações do cotidiano podem levar-nos a
esquecer essa obviedade. Muitas pessoas estão seguras de que nasceram para
trabalhar, para produzir, para consumir, para juntar dinheiro no banco, para ter
prestígio e poder ou, segundo as mais pessimistas, para sofrer. Esquecem que, antes
de tudo, nascemos para viver a vida que Deus nos deu como dom e encontrar um
sentido para ela.
A espiritualidade “cristã” tem como referência Jesus Cristo e sua mensagem. É um
dos caminhos possíveis para quem deseja encontrar um sentido para a vida e para a
morte, para os momentos felizes e de sofrimento. Jesus deixou claro, por meio de seu
testemunho, que valores tais como o amor, a fraternidade, o perdão, o respeito, a
acolhida, a partilha e a justiça nos proporcionam uma vida com mais sentido.
A proposta deste livro é refletir sobre a espiritualidade cristã à luz do apóstolo Paulo,
que a assumiu como um “modo de ser”. O encontro com Jesus levou-o a dar sentido à
sua vida e a trabalhar por um mundo novo, mais humano, mais justo, sem
discriminação. Sua missão teve por objetivo ajudar as pessoas a entender que,
independentemente da raça, sexo, profissão, categoria social, elas fazem parte da
grande família dos filhos e filhas de Deus, e que todos foram chamados a ser felizes
nesta vida e na eternidade.
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As reflexões serão desenvolvidas a partir de alguns temas que aparecem nas cartas de
Paulo, de modo especial nas duas epístolas aos coríntios, que, dentre os escritos do
apóstolo, apresentam pistas importantes e atuais para uma vida cristã comprometida
com a realidade. Serão tratados os seguintes temas: a “espiritualidade cristã como
estilo de vida”, a “condição humana”, a “evangelização”, a “comunidade” e a
“comunicação”.
No decorrer das páginas, vamos aprofundar que a espiritualidade cristã, ao estilo do
apóstolo Paulo, não é fuga para um intimismo ou individualismo religioso. Pelo
contrário, é uma proposta sólida, para os dias de hoje, para quem deseja encontrar
sentido à sua vida e buscar respostas aos problemas concretos. Paulo anunciava que,
“se alguém está em Cristo, é nova criatura. As coisas antigas passaram e uma
realidade nova apareceu” (2Cor 5,17). Para ele, essa “realidade nova” deve ser
construída a cada dia, já neste mundo.
O apóstolo Paulo, inspirado em Jesus de Nazaré, mostrou que é possível viver
intensamente a vida, com sentido. Sonhou com um mundo novo. Deu a vida por esse
sonho e deixou um testemunho maravilhoso que apresentamos nas páginas seguintes,
sem a pretensão de esgotá-lo.
O Autor
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1.
ESPIRITUALIDADE CRISTÃ COMO “ESTILO DE VIDA”
1.1. Em busca do sentido da vida
Vivemos numa cultura fortemente marcada pelo consumo, o que, de alguma maneira,
influencia o ser humano em suas opções mais profundas. Não nos referimos ao
consumo enquanto tal, como forma de sobrevivência. Mas à onda de consumo que se
torna “fim”, e não apenas “meio” de vida, que cria dependência psíquica e física,
consequência de uma sociedade cada vez mais materialista.
Esta situação, gerada pela primazia do mercado, tem criado pelo menos duas
tendências contrastantes. Uma delas é o culto às mercadorias que nasce da fé em suas
promessas de bem-estar e felicidade. A outra é a multidão de consumidores que,
quanto mais se enche de coisas, mais vazia se sente, e a felicidade é sempre adiada.
Dentre as pessoas que se dão conta das promessas não cumpridas, estão as que, de
alguma forma, buscam preencher o vazio interior. Desejam respostas que as “coisas”
que consomem não conseguem dar. Conforme afirma Victor Frankl, “sonhamos que
bastava fazer progredir as condições socioeconômicas de uma pessoa para que tudo
caminhasse bem, para que ela ficasse feliz. A verdade é que a luta pela sobrevivência
não se acaba, e ponto. De repente brota a pergunta: ‘Sobreviver? Mas para quê?’ Em
nossos dias um número cada vez maior de indivíduos dispõe de recursos para viver,
mas não de um sentido pelo qual viver” (Frankl, 1989).
O alimento, o conforto, a segurança, por mais importantes que sejam para a
sobrevivência humana, não são suficientes para dar sentido à vida. Até mesmo a
riqueza e o luxo não fazem desaparecer a sensação de vazio e de inutilidade da
existência. Por outro lado, não só a abundância, mas também a extrema necessidade
ou uma situação de enfermidade podem despertar perguntas sobre o sentido da vida.
A partir desses contextos humanos, a falta de sentido pode converter-se em depressão
e, em circunstâncias mais graves, pode conduzir à morte. Particularmente, as
situações-limite podem levar as pessoas a formular perguntas, como: “quem sou eu?”,
“para que existo?”, “por que isto está acontecendo comigo?”. O ser humano está
desafiado a preencher o vazio existencial a partir de respostas a indagações como
essas, as quais nunca serão conclusivas.
Na verdade, diferentemente dos outros animais, que já estão submetidos às respostas
permanentes, o ser humano não se conforma com o que é. Enquanto os animais e as
plantas são e serão sempre o que são, só o homem e a mulher devem ser o que ainda
não são. Todas as pessoas, especialmente as que passam por “crise existencial”,
necessitam de uma ampliação de sua visão de si mesmos e do mundo. Está constatado
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cientificamente que a experiência transcendental ajuda a dar sentido à vida e, em
muitos casos de doenças psíquicas ou físicas, leva à cura. A espiritualidade éum
caminho possível nessa busca.
 
Para refletir:
1. Quais os aspectos positivos e negativos da “sociedade de consumo”?
2. Por que tanto a abundância de bens como a extrema necessidade podem levar à
perda de sentido? Quais são as causas do “vazio existencial” que muita gente sente
hoje?
3. Onde as pessoas estão buscando, hoje, as respostas para o “vazio existencial”? Por
que o fazem?
 
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1.2. Um caminho de transcendência
O desejo de sentido é uma genuína manifestação da realidade humana. Apesar de
nossa época ser marcada pelo avanço da ciência e da tecnologia, o ser humano não se
sente totalmente satisfeito. Eletrodomésticos, meios de comunicação, equipamentos
médicos de última geração e tantos outros recursos, frutos da engenharia humana,
ajudaram a melhorar a qualidade de vida; porém, não responderam às questões
fundamentais sobre o seu sentido.
Acentuamos, no capítulo anterior, que o consumismo desenfreado, consequência da
ânsia por lucro, é um dos fatores que podem levar à perda de sentido. É um aspecto
da sociedade atual que coincide com a própria cultura, na qual tudo tem o seu preço.
No entanto, o homem e a mulher não apenas reagem e obedecem aos estímulos dos
apelos consumistas. Desejam, também, responder às questões que a vida lhes coloca
e, por esse caminho, esperam encontrar os significados para a sua existência.
A espiritualidade, seja ela qual for, tem relação com a “busca de sentido”. A palavra
espiritualidade vem de “espírito”. O espírito é uma dimensão da vida humana que,
desenvolvida a partir do mundo interior pessoal, ajuda a captar profundamente a si
mesmo, a realidade concreta, a Deus. Pelo espírito, buscamos apreender a totalidade
da vida e a nós mesmos como parte desse todo, com o objetivo de integrar-nos e
harmonizar-nos com o universo que nos cerca e com as realidades que nos
transcendem.
Transcendência é uma palavra-chave em espiritualidade. Transcender significa sair de
si mesmo para enriquecer-se com a realidade exterior. Só é possível a autorrealização,
ou encontrar o sentido, quando alguém sai de si mesmo, ou seja, quando transcende
para alguma realidade do mundo que o circunda. Sair de si mesmo, com o objetivo de
servir a alguma causa nobre, ou a alguém, é a melhor forma de entrar dentro de si
mesmo e encontrar sentido.
A “espiritualidade cristã” é um caminho que motiva a “sair de si mesmo” e a “servir”,
e fundamenta-se em Jesus Cristo, nos valores que ele anunciou, tais como o amor, o
perdão, a solidariedade, a justiça, a partilha, o respeito à pessoa humana. Nasce da
experiência pessoal de Deus, que leva ao comprometimento com a realidade.
Não podemos ver a espiritualidade, mas sim sentir as suas manifestações. A
espiritualidade cristã não é uma realidade abstrata, mas se dá nas tramas da história,
por meio da liberdade e da responsabilidade. Aliás, aspectos negativos do nosso
cotidiano, como a violência, a fome, a miséria e outros, que afligem a humanidade,
não se reduzem a aspectos materiais da vida. No fundo, são situações também ligadas
à espiritualidade. Do ponto de vista da espiritualidade cristã, na origem dessas
situações está a falta de amor, de solidariedade, de justiça, de perdão, valores que
levam à realização espiritual e humana. Essa satisfação é um anseio do coração
humano e cabe a ele escolher o caminho a seguir.
 
Para refletir:
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1. Que relação existe entre “espiritualidade” e “sentido”?
2. Que entendemos por espiritualidade cristã?
3. Quais os valores cristãos? De que maneira podem ajudar a melhorar a qualidade de
vida?
 
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1.3. Espiritualidade cristã como um estilo de vida
A espiritualidade cristã tem Jesus Cristo como primeira referência, cuja missão não se
reduziu ao anúncio de um conjunto de doutrinas formais. Consistiu na proposta de um
projeto de vida que, no decorrer da história, foi assumido por homens e mulheres que
se abriram à sua mensagem e fizeram dos valores, que ele anunciou e viveu, um
modo de ser.
Jesus mostrou o rosto de Deus de uma forma profundamente humana, aproximando-o
das pessoas. Anunciou que Deus é Pai, que ama, que acolhe e que perdoa. Mostrou
que o sentido profundo de sua vida estava em anunciar a Boa Notícia do Reino de
Deus. Para isso é que ele foi enviado (Lc 4,43).
A “Boa Notícia” que Jesus anunciou está na base da construção do “Reino de Deus”.
Ela não se referia a um conjunto de informações, mas de atos concretos em benefício
das pessoas, de modo especial das que sofriam. A Boa Notícia que Jesus dava ao
doente era a cura; ao pecador, o perdão; ao faminto, o pão; ao que havia perdido o
sentido da vida, a esperança; ao que estava atormentado, a libertação.
A espiritualidade de Jesus consistia num “modo de ser” voltado à vida e à libertação
das pessoas inseridas nas realidades concretas da sociedade. Ele mesmo definiu o
programa de sua atividade quando afirmou: “O Espírito do Senhor está sobre mim,
porque ele me consagrou com a unção, para anunciar a Boa Notícia aos pobres;
enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista;
para libertar os oprimidos...” (Lc 4,18-19).
No contato com as pessoas, Jesus frequentemente usava palavras simples e histórias
do cotidiano, com o intuito de expressar verdades profundas. Não só as suas palavras,
mas também as suas obras, especialmente os seus milagres, eram atos de
comunicação, que indicavam a sua identidade e manifestavam o poder de Deus. Nas
suas comunicações, demonstrava respeito pelos seus ouvintes, simpatia pela sua
condição e necessidades, compaixão pelos seus sofrimentos, e determinação decidida
em dizer-lhes o que precisavam ouvir, de maneira a chamar a sua atenção e a ajudá-
los a receber a sua mensagem.
As palavras e as atividades de Jesus partiam de um único movente: o amor. Defendia
que a vida ganha sentido quando há amor. Por isso deixou um mandamento
insubstituível aos seus discípulos: “Amem-se uns aos outros, assim como eu amei
vocês”. E determinou a sua extensão: “Não existe amor maior do que dar a vida pelos
amigos” (Jo 15,12-13). Sua ordem era amar sem li-mites.
Sem a compreensão desse mandamento central, e sem entrar nesta lógica, é
impossível compreender por que Jesus insistiu no amor aos inimigos, por que falou
em perdoar sempre, por que afirmou que é necessário dar sem esperar retribuição, por
que pediu que não julguemos as pessoas. Sem entrar na lógica do amor, é impossível
entender por que, para Deus, cada pessoa é importante; por que vale mais pelo que é e
não pelo que aparenta ser. Na verdade, Jesus ensinou que a lógica de Deus nem
sempre coincide com a lógica dos homens.
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Jesus mesmo definiu o objetivo de sua missão: “Eu vim para que todos tenham vida,
e tenham vida em abundância” (Jo 10,10). Levou esse compromisso até o martírio
numa cruz, consequência de sua fidelidade ao projeto que Deus Pai lhe confiou. No
entanto, sua vida não terminou no madeiro. Pela ressurreição, continuou e prossegue
presente na história, na vida de todos os que se abrem ao seu Espírito e à sua
mensagem.
 
Para refletir:
1. O que entendemos por “espiritualidade cristã” como “estilo de vida”?
2. Qual foi o programa da atividade de Jesus?
3. Quais as dificuldades que o cristão encontra, hoje, para viver concretamente a
espiritualidade cristã? Como superá-las?
 
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1.4. O modo de ser de Paulo de Tarso
Nos últimos dois mil anos de história, muitas pessoas fizeram da espiritualidade cristã
um estilo de vida. Dentre essas, está o apóstolo Paulo, que, em determinado momento
de sua vida, encontrou a razão da sua existência no seguimento de Jesus. Abraçou
livremente o cristianismo não como forma de entrar em “realidades espirituais”, para
fugir dos problemas concretos, mas, pelo contrário, com o fim de dar respostas às
situações reais de pessoas e de comunidades.
Uma chance apareceu em sua vida e Paulo deu um novo sentido à sua história.
Abraçou o cristianismo como um “modo de ser”, jamais como um conjunto de leis
frias a serem cumpridas. Assumiu uma missão impulsionada por uma paixão
indescritívelpela pessoa e pela mensagem de Jesus. Arrastou consigo pessoas. Viveu
uma espiritualidade profunda, que deu sentido ao seu modo de ser e de agir, muito
válida também para os dias de hoje.
Nascido em Tarso, capital da Cilícia, na Ásia Menor, entre os anos 5 e 10 da era
cristã, Paulo recebeu o influxo de duas culturas: a judia e a helenista. Por raça e
religião, era de origem judaica; porém, pertencia à comunidade da diáspora, ou seja, a
dos judeus que viviam fora da Palestina e que estavam em contato com o ambiente
grego, do qual ele assumiu a língua e muitos elementos que marcaram sua vida e seu
pensamento.
Antes de abraçar o cristianismo, Paulo era um fanático partidário das tradições do
povo judeu. Era irrepreensível no cumprimento da Lei. Foi educado em Jerusalém por
Gamaliel, um dos grandes rabinos de seu tempo. Devido à sua sólida formação
judaica, era um forte adversário dos discípulos de Jesus Cristo. Chegou a assistir ao
apedrejamento de Estêvão, o primeiro mártir cristão.
Por volta do ano 36, Paulo passou por uma profunda transformação. Teve um
encontro inusitado, que o fez mudar o rumo de sua vida, que o orientou a um novo
projeto. Enquanto seguia em direção à cidade de Damasco para aprisionar seguidores
de Cristo, viveu uma experiência extraordinária de encontro com Jesus, a qual
produziu uma mudança radical em sua história. De perseguidor passou a ser um de
seus maiores seguidores.
A mudança pela qual Paulo passou foi tão radical, a ponto de colocar em segundo
plano tudo o que havia aprendido até então. Sentiu-se tão “apóstolo”, ou “chamado”,
como todos os outros apóstolos que haviam conhecido pessoalmente Jesus. Paulo não
mudou de religião. Certamente teve de repensar muita coisa. Teve de rever muitas de
suas concepções sobre Deus, sobre o homem e sobre o mundo. Além disso, não
considerava o cristianismo uma nova religião, distinta do judaísmo, mas uma
continuação, ao qual deviam ser agregados novos elementos. Por isso, em vez de
considerar esse fato como conversão, convém entender essa mudança como um
episódio de vocação, ao qual respondeu “sim”, e que o orientou a dar respostas a uma
pergunta fundamental relacionada a Jesus, que ele mesmo se pôs: “Senhor, que
queres que eu faça?”.
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Com o tempo, Jesus foi lhe dizendo o que devia fazer. E respondendo aos seus
apelos, Paulo tornou-se um incansável anunciador do evangelho com palavras e com
o testemunho da própria vida. Priorizou os pagãos, justamente as pessoas que ele
antes discriminava. Passou a ser um “construtor” e “formador” de comunidades. Fez
quatro viagens cheias de perigo, se levamos em consideração as condições de
segurança da época. Visitou inúmeras cidades. A última de suas viagens foi de
Jerusalém a Roma, onde sofreu o martírio. Vamos aprofundar, nas próximas páginas,
algumas das grandes heranças que deixou. São traços importantes para quem quer
fazer da espiritualidade cristã um “estilo de vida”.
 
Para refletir:
1. Que aspectos conhecemos da vida do apóstolo Paulo?
2. Que significado teve a “conversão” na vida de Paulo?
3. Por quais mudanças necessitamos passar, hoje, para viver mais profundamente os
ensinamentos de Jesus (em níveis pessoal, comunitário, eclesial e social)?
 
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2.
A CONDIÇÃO HUMANA
2.1. A realidade humana como ponto de partida
Assumir com naturalidade a realidade humana é uma das formas de fazer da
espiritualidade cristã um estilo de vida. É a partir da própria situação existencial que
o homem e a mulher são chamados a fazer a experiência de Deus. Só é possível
crescer “espiritualmente” quando os aspectos humanos mais profundos são assumidos
e desenvolvidos, não obstante os defeitos pessoais.
Antes de tornar-se um dos seguidores mais fiéis de Jesus, Paulo viveu a
espiritualidade como um caminho da prática da Lei e como busca de perfeição. Era
convencido de que o cumprimento rigoroso dos mandamentos de Deus já lhe dava o
passaporte para uma eternidade feliz. Considerava-se tão íntegro e justo a ponto de
procurar fazer justiça com as próprias mãos.
O contato com Jesus fez Paulo repensar e dar-se conta de sua prepotência e de seu
orgulho religioso. Aprendeu que na aceitação das debilidades está o início do
caminho para uma vida mais humana e também, mais “espiritual”. À medida que
adquiria consciência de que sua missão nascia de um chamado de Deus, crescia nele a
convicção de suas limitações. Em certo momento de sua vida, fez a seguinte
pergunta: “Quem está à altura dessa missão?” (2Cor 2,16). Se levasse em conta a
realidade humana somente a partir dos aspectos negativos, reconheceria não estar
apto a essa grande aventura missionária.
Por isso, em uma passagem de suas cartas, ao evocar o texto do profeta Jeremias (cf.
Jr 18,4.6), compara-se a um “vaso de barro”. Esse vaso simboliza a fragilidade
humana. Deus, qual um oleiro, faz e desfaz a vasilha em suas mãos. Além disso, o
barro é um material frágil que, dependendo de como é tratado ou conservado, pode
romper-se. Paulo é consciente, porém, de que o vaso de barro, frágil, contém um
“tesouro” (cf. 2Cor 4,7).
O tesouro a que ele se refere é Jesus e a mensagem do Reino que, por graça, recebeu
de Deus. Como diz o evangelho de Mateus, “o Reino do Céu é como um tesouro
escondido no campo. Um homem o encontra, e o mantém escondido. Cheio de
alegria, ele vai, vende todos os seus bens, e compra esse campo. O Reino do Céu é
também como um comprador que procura pérolas preciosas. Quando encontra uma
pérola de grande valor, ele vai, vende todos os seus bens, e compra essa pérola” (Mt
13,44-46).
Paulo encontrou esse “tesouro” no caminho de Damasco, quando perseguia os
cristãos. Inesperadamente, o próprio Jesus tomou a iniciativa de aproximar-se dele,
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conforme ele mesmo expõe: “Aconteceu que, na viagem, estando já perto de
Damasco, aí pelo meio-dia, de repente uma luz que vinha do céu brilhou ao redor de
mim. Então caí por terra e ouvi uma voz que me dizia: ‘Saulo, Saulo, por que você
me persegue?’. Eu perguntei: ‘Quem és tu, Senhor?’. Ele me respondeu: ‘Eu sou
Jesus, o Nazareu, a quem você está perseguindo’... Então perguntei: ‘Senhor, o que
devo fazer?’” (At 22,6-10).
Esse episódio, conhecido comumente como “conversão”, foi, na verdade, a
experiência de um encontro inesperado, que transformou a vida de Paulo, que lhe deu
um novo sentido. Desse fato, originou-se um novo conhecimento de Deus. Ou seja,
antes de conhecer Jesus, Paulo já acreditava em Deus. Era judeu. Ele mesmo afirma
que, no judaísmo, superava todos os compatriotas de sua geração em seu fervoroso
zelo pelas tradições de seus antepassados (cf. Gl 1,14). Seguia a Lei em seus mínimos
detalhes. A novidade que ocorreu em sua vida é que passou a conceber a Deus a
partir da pessoa de Jesus, a ponto de afirmar que tudo o que considerava antes como
lucro a partir daquele momento passou a considerar como perda (cf. Fl 3,7).
Paulo descobriu que Deus se “revela” ou se “comunica” em Jesus de maneira plena.
O Nazareno, que morreu e ressuscitou, passou a dar sentido à sua vida, a ponto de ele
afirmar: “Esta vida que agora vivo, eu a vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou
e se entregou por mim” (Gl 2,20). Paulo fez a experiência de Deus, em Jesus Cristo,
desde sua realidade pessoal, a partir de seus limites, como “vaso de barro” que leva
um tesouro! Descobriu que Cristo o aceitou como era e, a partir de então, mudou o
rumo de sua vida.
 
Para refletir:
1. O que aconteceu com Paulo depois do encontro com Jesus, no que diz respeito à
vivência da religião?
2. O que significa assumir com naturalidade a realidade humana?
3. Como podemos interpretar a expressão: “esse tesouro nós o levamos em vasos de
barro” (2Cor 4,7)?
 
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2.2. A visão integral do ser humano
O apóstolo Paulo tinha consciência de sua condição humana e, a partir de sua
situação existencial, procurou responder aos desígnios de Deus. O passo decisivo em
sua vida no seguimento de Jesus foi dado a partir de sua realidade humana e limitada.
Por isso escreveu: “Se é preciso gabar-se... é de minha fraqueza que voume gabar”
(2Cor 11,30).
A espiritualidade cristã, entendida como estilo de vida, leva em consideração a
limitação humana, aspecto que emerge na vida de Paulo e de tantos outros
personagens bíblicos. De fato, se vamos à Bíblia, não encontraremos como modelos
de fé pessoas perfeitas e sem falhas, mas de carne e osso, que reconheciam suas
debilidades. Algumas biografias de santos ou de pessoas que buscaram viver em
profundidade o Evangelho, às vezes, acentuam de tal modo os aspectos positivos que
parece que eles ou elas não foram homens e mulheres “reais” e com limites. Isso é
fruto do ideal de “perfeição”, a partir de um conceito herdado do mundo grego, que
penetrou na cultura em que vivemos e, de modo especial, na espiritualidade.
A limitação humana está dentro de um contexto maior, que é a pessoa em sua
realidade integral. Para Paulo, o ser humano é corpo, alma e espírito (1Ts 5,23). Ao
nosso modo moderno de ver, essa concepção pode parecer um pouco estranha.
Predomina ainda em nossa sociedade, incidindo na espiritualidade (ou vice-versa), a
ideia dualista de ser humano dividido em corpo e alma. Porém, não se trata de uma
simples divisão. Com ela, vem agregada a concepção de que tudo o que se relaciona
ao corpo é negativo. Em consequência, é necessário fazer de tudo para salvar a alma,
desprezando e mortificando o corpo, se necessário.
O ser humano, para Paulo, é corpo (em grego: sarx), ou seja, é uma pessoa
corporificada em determinado ambiente, que é mais que simplesmente o corpo físico.
É no corpo que a pessoa vive no seu ambiente e o experimenta. É com o corpo que a
pessoa se insere no “corpo social”. Quando, por exemplo, Paulo fala de engrandecer a
Cristo no seu corpo (cf. Fl 1,20), tem presente mais que a dimensão física. Refere-se
a glorificar Cristo através de toda a vida.
No corpo, está o coração. A palavra “coração” (kardia) aparece 52 vezes nos escritos
de Paulo (um terço do seu uso no NT); 15 vezes, somente em Romanos. É mais
caracteristicamente hebraica, mas igualmente grega, e em ambos os casos denota a
parte mais íntima da pessoa, a sede das emoções, mas também do pensamento e da
vontade. O uso de Paulo reflete essa amplitude de significado, quando, por exemplo
afirma que “Deus é aquele que perscruta os corações” (Rm 8,27) ou que a lei e a
circuncisão precisam penetrar no coração (cf. Rm 2,15.29).
Na visão de corpo em perspectiva paulina, não pode ser menosprezada a dimensão
social. As pessoas, para Paulo, são seres sociais, definidas pelos seus
relacionamentos. Desse modo, os seres humanos são como são em virtude do seu
relacionamento com Deus e com seu mundo. A salvação, a que todos são chamados,
é a salvação do homem e da mulher concretos, sendo restaurados à imagem de Deus
em Cristo.
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Além do corpo, o ser humano é dotado de alma e espírito. A alma (em hebraico:
nefesh) é outra dimensão, entendida como a pessoa enquanto ser vivo, enquanto
participa do princípio da vida que vem de Deus, o Criador. Espírito (em hebraico:
ruah) é a dimensão da pessoa humana por meio da qual ela se relaciona mais
diretamente com Deus. Pode se referir ao espírito humano ou ao Espírito de Deus.
Segundo Paulo: “O próprio Espírito assegura ao nosso espírito que somos filhos de
Deus” (Rm 8,16). Outra passagem que elucida esse conceito está na Primeira Carta
aos Coríntios, quando ele afirma: “O Espírito sonda todas as coisas, até mesmo as
profundidades de Deus. Quem conhece a fundo a vida íntima do homem é o espírito
do homem que está dentro dele. Da mesma forma, só o Espírito de Deus conhece o
que está em Deus. Quanto a nós, não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito
que vem de Deus, para reconhecermos os dons da graça de Deus” (1Cor 2,10-12).
Na cultura judaica, que é a cultura de Paulo, a vida não é uma abstração. O mundo, as
pessoas, o próprio Deus são expressos com ideias concretas. Foi dessa forma que
também Jesus entendeu o mundo. De fato, as curas que realizava eram sinais de que
ele não só dava valor à vida eterna, mas também a esta vida aqui e agora. Se Jesus
não valorizasse a vida na sua totalidade, não teria motivo para livrar as pessoas de
seus sofrimentos. Paulo tem essa mesma concepção de mundo e segue o mesmo
caminho. Por isso tem presente as limitações humanas. Anuncia que o destino final
do homem e da mulher é a vida em Jesus Ressuscitado; porém, esse destino passa
pela mediação humana em sua integralidade, para redimi-la, na história.
 
Para refletir:
1. Que entendemos por visão integral do ser humano?
2. Temos presente algum personagem bíblico (ou pessoas que testemunharam sua fé)
nas quais percebemos também limitações?
3. Quais são os sinais de luzes e de sombras de nossa história? Como podemos
iluminar as sombras?
 
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2.3. Aceitar o limite é abraçar a realidade
Aceitar as situações de limite é abarcar a realidade humana como ela é. A partir do
encontro que Paulo teve com Jesus, no caminho de Damasco, entendeu que por suas
forças jamais poderia dar o passo importante que deu em sua vida. Lá onde percebeu
que não podia fazer melhor, é que pôde começar uma nova relação pessoal com Deus.
Conforme vimos, na concepção paulina de ser humano está o conjunto de três
dimensões: corpo, alma e espírito. Não é uma dualidade corpo versus alma, como
duas realidades que se contrapõem. Paulo não tem uma visão dualista ou
fragmentada, seja da realidade ou do ser humano. Na sua visão integral, considera o
homem e a mulher com seus aspectos positivos e negativos, com suas luzes e
sombras. Ele próprio não se apresenta às comunidades como homem perfeito, como
provavelmente se considerava quando era fariseu, mas com limitações, necessitado
do amor e da graça de Deus.
De fato, a debilidade, que leva ao pecado, faz parte da realidade humana. Isaac de
Nínive, monge do século IV, chegou a afirmar que “quando Deus não tem mais saída,
ele permite o pecado. Permite-o para levar o homem à sua total fraqueza”. Segundo
esse místico, “este é o último recurso possível. Mas, às vezes, Deus recorre a este
caminho, porque só nele é que se revela a sua força”. Como afirma Paulo, “onde foi
grande o pecado, foi bem maior a graça” (Rm 5,20). Isso não significa que o homem
e a mulher devem aceitar os erros e conformar-se com os limites, mas ter presente
que a condição humana é limitada e que os erros podem aparecer na vida de qualquer
pessoa. Reconhecer o limite é aceitar a realidade de que somos pecadores e de que
necessitamos da misericórdia de Deus.
Paulo falou também das limitações físicas. Ele mesmo admitiu que era portador de
uma doença, como afirmou aos gálatas: “Sabem que foi por causa de uma doença
física que eu os evangelizei na primeira vez. E vocês não me desprezaram nem me
rejeitaram, apesar do meu físico ser para vocês uma provação. Pelo contrário, me
acolheram como a um anjo de Deus ou até como a Jesus Cristo” (Gl 4,13-14). Não se
sabe ao certo qual era essa enfermidade. Podia ser epilepsia, surdez, lepra ou outra.
Em todo caso, tratava-se de uma doença humilhante e misteriosa. Na Segunda Carta
aos Coríntios, Paulo faz referência a um “espinho na carne” (2Cor 12,7), que
provavelmente era um “problema pessoal” que multiplicava as dificuldades de sua
vida apostólica.
Vivemos, hoje, numa sociedade marcada pelo perfeccionismo. Desde criança,
sofremos a exigência social para buscar a perfeição em tudo. O resultado dessa
tendência, segundo os psicólogos, é uma sociedade neurótica. O esforço de buscar ser
o primeiro da classe, o mais produtivo no trabalho, o melhor no esporte, o mais
eficiente em tudo o que fazemos, pode levar à neurose. As cobranças são fortes.
Muitos profissionais ficam doentes por causa das pressões que recebem para ser
“infalíveis”. Quantas crianças sofrem a pressão dos pais para conquistar o “primeiro
lugar”. Há pais que exigem de seus filhos uma atuação tão perfeita em sua vida que
nem mesmo eles conseguiram alcançar. Não se trata de estar contra o crescimento das
pessoas, mas em ter presente que cada pessoa tem um ritmo e suas limitações. O
18
desrespeitoaos limites pode levar a sérias lesões.
O mesmo se dá na busca do corpo perfeito e da beleza. As academias de ginástica se
multiplicam. Cresce a produção de cosméticos, oferecendo produtos que prometem a
eterna juventude. Complementos alimentares, energéticos e vitaminas fazem parte da
mesa dos consumidores que desejam uma saúde inabalável. Um dos resultados da
busca desenfreada da perfeição física é a anorexia, que em alguns casos tem levado
jovens à morte. Não há mal em cuidar da saúde e do corpo para manter uma boa
qualidade de vida. O problema é quando a busca do “corpo perfeito” se torna uma
obsessão, a ponto de transformar-se em “enfermidade”.
Ao perfeccionista, em qualquer aspecto, também na espiritualidade, custa a ele ser o
que é porque vive sempre em função do que deveria ser. Pelo contrário, aceitar o
limite é abraçar a realidade humana. Não se pode crescer como pessoa, e,
consequentemente, não é possível tornar-se humano, se se recusa o próprio limite e se
não se aceita o limite dos outros. Nesse sentido, Paulo é profundamente humano, pois
sabe que a debilidade não é obstáculo para estar a serviço do Reino de Deus e que é a
partir de sua realidade humana que deve avançar no seu caminho de fé. É justamente
na fraqueza que ele se sente forte (2Cor 12,10). E essa força não é mérito humano,
mas graça que vem de Deus.
 
Para refletir:
1. Como Paulo enfrentou a condição frágil da realidade humana?
2. Quais são os riscos do “perfeccionismo”?
3. Quais as limitações (em níveis pessoal, comunitário, eclesial, social) que
encontramos? Como buscamos superá-las?
 
19
2.4. A ação de Deus como “graça”
O apóstolo Paulo jamais se envergonhou de suas fraquezas, dos limites físicos, das
situações de ridículo pelas quais passou ou mesmo de seus fracassos. “Pela graça de
Deus sou o que sou” (1Cor 15,10), afirmou. Desde que encontrou novo sentido para a
sua vida, não mediu esforços em levar a proposta cristã às pessoas, individualmente, e
às comunidades. Ele relata algumas provações pelas quais passou: “Fui flagelado três
vezes; uma vez fui apedrejado; três vezes naufraguei; passei um dia e uma noite em
alto- mar. Fiz muitas viagens. Sofri perigos nos rios, perigos por parte dos ladrões,
perigos por parte dos meus irmãos de raça, perigos por parte dos pagãos, perigos na
cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos por parte dos falsos irmãos” (2Cor
11,25-27).
Paulo sentiu que a “graça” de Deus atuou em sua história pessoal, principalmente
quando esteve em situações de perigo. Expressou: “Me alegro nas fraquezas,
humilhações, necessidades, perseguições e angústias, por causa de Cristo. Pois
quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,9-10). A alegria pelo sofrimento a
que se refere não é resultado de um espírito masoquista, ou seja, de quem sente prazer
em sofrer. Todas as situações de sofrimento e constrangimento pelas quais passou
eram consequência de um estilo de vida que havia assumido. Sua alegria não estava
em sofrer por sofrer, mas em sofrer por uma causa: Jesus Cristo, que veio em seu
auxílio com sua “graça”.
Nenhum outro apóstolo refletiu tanto nem falou tão profundamente sobre a graça
como Paulo. Derivado do termo grego charis, graça significa “favor”,
“benevolência”, “bondade”. É o amor de Deus derramado na vida de cada pessoa e na
história. Paulo sentiu de perto a graça: “Deus, porém, me escolheu antes de eu nascer
e me chamou por sua graça”, afirmou o apóstolo aos gálatas (Gl 1,15).
Paulo não aprendeu o significado do termo “graça” na escola ou em livros de
teologia. Experimentou a graça de Deus em sua vida e, como afirmamos
anteriormente, em sua realidade humana. Desde então, passou a entendê-la como
ação da bondade de Deus, sem mérito de sua parte. Sentiu a graça de Deus de forma
tão profunda que, quando faz referência ao encontro que teve com Jesus em
Damasco, situa-o no mesmo nível da experiência pascal dos apóstolos que haviam
convivido com ele: “Por acaso não sou livre? Não sou apóstolo? Não vi nosso
Senhor?” (1Cor 9,1). A expressão “vi o Senhor” evoca as experiências pós-pascais de
homens e mulheres próximos de Jesus. Maria Madalena (cf. Jo 20,11-18) e os outros
discípulos (cf. Jo 20,25) também afirmaram ter “visto o Senhor” depois de sua morte
e ressurreição.
Por meio da experiência do “encontro”, ou de “ver o Senhor”, Paulo sentiu o amor de
Deus manifestado em sua vida por “graça”, o que lhe deu forças para superar os
obstáculos do caminho: “Quem nos poderá separar do amor de Cristo? A tribulação, a
angústia, a perseguição, a fome, a nudez, o perigo, a espada?... Nada nos poderá
separar do amor de Cristo, manifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor” (Rm 8,35.39).
Assim como Deus derramou sua graça na vida de Paulo, o Senhor deseja também agir
20
em nosso tempo. Não é fácil entender o sentido de “graça”, especialmente numa
sociedade onde tudo tem o seu preço. Vivemos numa época em que o “mercado” se
transformou no grande ídolo. Parece que quase tudo é feito para servi-lo, como se
fosse uma “pessoa” que necessitasse de atenção e de agrado. São comuns expressões
como o “humor do mercado”, “a reação do mercado”, “o aplauso do mercado”, ou
seja, atribuem ao “mercado” características humanas. No entanto, sabemos que, por
trás do “sujeito mercado”, estão as grandes corporações industriais e financeiras que
querem lucro, ainda que para isso seja necessário sacrificar vidas de pessoas e
degradar a natureza.
Deus deseja agir gratuitamente em cada pessoa, mesmo em meio às “des-graças”. A
porta de entrada da graça é uma só: a humildade. Humildade vem de “húmus”, que
significa “terra”. Sem humildade, Deus não pode agir. Sem humildade, não há como
aceitar a realidade humana com todos os seus riscos. A pessoa que se acha perfeita
não é humilde. Se não é humilde, não é humana. Se não é humana, como pode ser
cristã? Para Paulo, graça gera graça. A charis se expressa em dom para a
comunidade, em benefício para o bem comum (1Cor 12,7).
 
Para refletir:
1. Que entendemos por “graça”? Como a graça se manifestou na vida do apóstolo
Paulo?
2. Em que momento de nossa vida sentimos a graça de Deus agir?
3. Como vivemos a “gratuidade” na sociedade de consumo, na qual tudo tem o seu
preço?
 
21
3.
A EVANGELIZAÇÃO
3.1. Ser nova criatura em Cristo
A graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa. Essa é uma afirmação de Santo
Tomás de Aquino que serve para ilustrar o que se passou na vida do apóstolo Paulo.
O que ocorreu com ele pode também se dar na vida de todas as pessoas que se abrem
à graça de Deus. A graça não deforma a natureza humana, mas a ilumina, a fortalece,
a transforma e a enriquece.
Paulo passou por essa profunda transformação que repercutiu em seu modo de agir. A
partir de sua experiência pessoal, chegou a afirmar que, “se alguém está em Cristo, é
nova criatura”, e acrescentou, “as coisas antigas passaram; eis que uma realidade
nova apareceu” (2Cor 5,17). Ser “nova criatura” significa olhar a si mesmo, o mundo,
as outras pessoas de maneira diferente, positivamente, como parte do projeto de
Deus, que deseja vida para todos.
A experiência de ser nova criatura em Cristo fez Paulo romper com estruturas
pessoais, religiosas e sociais fechadas em si mesmas. A transformação que ocorreu
em sua vida consistiu em ver e valorizar o mundo como um conjunto de povos, com
suas diferentes culturas, que formam a grande família dos filhos e filhas de Deus.
Esse é um dado importante se levamos em consideração o orgulho com que ele falava
de sua origem judaica. Não se tratava de um orgulho nacionalista ou racial, mas
nascia da consciência lúcida de pertencer, por nascimento, ao povo eleito por Deus
para uma história de salvação. O encontro com Jesus o ajudou a entender que a
salvação não se dá somente no âmbito do povo judeu, mas acontece em favor de toda
a humanidade.
Efetivamente, Paulo dirigiu inicialmente a mensagem cristã aos judeus. Somente com
a recusa destes, voltou-se aos pagãos, como ele afirma nos Atos dos Apóstolos: “Era
preciso anunciar a palavra de Deus,em primeiro lugar para vocês que são judeus.
Porém, como vocês a rejeitam e não se julgam dignos da vida eterna, saibam que nós
vamos dedicar-nos aos pagãos” (At 13,45-46). Convém considerar que a abertura aos
pagãos não foi tão difícil como se possa imaginar. Sendo judeu da diáspora, Paulo era
de ambiente cultural grego ou “pagão”. Conhecia bem essa cultura. Sabia falar e
escrever corretamente o grego.
O objetivo de sua evangelização aos pagãos, como aprofundaremos mais adiante, não
se reduzia a transmitir a informação sobre a morte e ressurreição de Cristo, mas em
proclamar que Jesus de Nazaré, morto e ressuscitado, é sinal de uma mudança
decisiva na história da humanidade. Essa nova história começa com a ruptura dos
preconceitos que criam divisão e oprimem. Quem está em Cristo é nova criatura a
22
partir das relações interpessoais.
Por isso, chegou a afirmar aos gálatas que “o que conta já não é a circuncisão ou a
não-circuncisão, mas a fé que age por meio do amor” (Gl 5,6). Em outra passagem,
ele confirmou: “O que importa não é a circuncisão ou a não- circuncisão, e sim a
nova criação” (Gl 6,15-16). Sua abertura aos pagãos, ou aos não-circuncidados, foi
decisiva para a expansão do cristianismo.
Para entrar na nova dinâmica da vida inaugurada por Cristo, portanto, é necessário
deixar as coisas antigas que impedem o seguimento. Dentre esses elementos, Paulo
destaca a tradição. Não se trata de desprezar a história vivida e os valores herdados da
religião. Ele se referia aos aspectos secundários que foram de tal forma valorizados a
ponto de obscurecer o que era essencial. Ele fez a passagem de deixar o que era
“velho” para acolher a novidade trazida por Cristo: “Por causa de Cristo, porém, tudo
o que eu considerava como lucro, agora eu o considero como perda. [...] Por causa
dele perdi tudo, e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo, e estar com ele”
(Fl 3,7-9).
Além dessa consciência nova de si mesmo e de uma percepção profunda do sentido
da história, a experiência mística de Damasco deu a Paulo um impulso para uma nova
compreensão das relações sociais. Ser nova criatura em Cristo leva a relações novas,
como irmãos e irmãs, que derrubam todas as barreiras do preconceito: “Não há mais
diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher,
pois todos são um só em Jesus Cristo” (Gl 3,28).
Foi difícil para Paulo convencer seus contemporâneos dessa mudança forte que havia
ocorrido nele. Os Atos dos Apóstolos registram que “todos tinham medo dele, pois
não acreditavam que ele fosse discípulo” (At 9,26b). Muitos não se convenciam de
sua “conversão” e de sua abertura ao que antes rejeitava. Além disso, como podia
fazer essa afirmação se não havia conhecido pessoalmente Jesus e se não fez parte do
grupo dos doze apóstolos? É com persistência e paciência, e sobretudo com o seu
testemunho, que Paulo será reconhecido como autoridade pelas comunidades, que
irão ver nele o “apóstolo de Jesus Cristo por vontade e chamado de Deus” (1Cor 1,1).
 
Para refletir:
1. O que significa “ser nova criatura em Cristo”?
2. Quais são as “coisas antigas” que impedem, hoje, o seguimento de Jesus?
3. Como vivemos as relações interpessoais? Como nos relacionamos com as pessoas
de outras raças e religiões? Como criar relações novas?
 
23
3.2. Proclamar a Cristo Jesus, o Senhor
O apóstolo Paulo era consciente de sua fragilidade humana, mas sabia que isso não
era impedimento para iniciar uma nova vida. Descobriu que Deus o amava como ele
era, com suas qualidades e seus defeitos. Era seguro de que o Criador, com seu poder
e bondade, era quem lhe dava a força necessária para superar as dificuldades da vida
e da missão. Tendo Jesus como referência, descobriu que o caminho para Deus estava
na valorização da humanidade no sentido mais profundo, que se manifestava na
prática do amor, do perdão, da acolhida e do respeito às pessoas, da solidariedade e
da justiça.
Todos esses valores são frutos da graça; são dons de Deus. Nesse caminho espiritual,
Paulo descobriu que graça gera graça. Entendeu que os dons que Deus lhe deu
gratuitamente tinham por finalidade ser compartilhados com as outras pessoas. Por
isso, chegou a afirmar que a graça dada a ele não foi estéril (1Cor 15,10). De fato, a
graça tornou sua vida fecunda em ações a favor dos demais. Além de dar um sentido
novo à sua vida, a graça que recebeu converteu-se em obras, em benefício do bem
comum, o que chamamos de evangelização.
De todas as graças que Paulo recebeu, a maior, sem dúvida, foi o encontro com Jesus
Cristo. Foi Jesus que fez Paulo mudar a direção de sua história. A partir do encontro
com ele, deu-se conta de que o centro do anúncio era a pessoa de Jesus, que morreu
numa cruz por amor e ressuscitou. Escreveu, convencido: “Não pregamos a nós
mesmos, mas Cristo Jesus, Senhor” (2Cor 4,5). Afirmou também: “ninguém pode
colocar um alicerce diferente daquele que já foi posto: Jesus Cristo” (1Cor 3,11). A
partir dessa fé, sua ação missionária se desenvolveu nos grandes centros urbanos da
época, como as cidades de Corinto, Filipos, Tessalônica e Éfeso.
Várias vezes, Paulo faz alusão aos “falsos apóstolos” que circulavam pelas diversas
comunidades e tentavam minar a sua autoridade. Esses pregadores atuavam com
destreza, falsificando a Palavra de Deus e anunciando a si mesmos. Apoiavam-se nas
tradições do Antigo Testamento e na Lei escrita. Pretendiam destruir o trabalho de
evangelização, desenvolvido por ele com muita fadiga. Afirmavam que, para ser
cristão, era necessário, antes, assumir a Lei. Além disso, eram oportunistas.
Cobravam por seus serviços. Buscavam privilégios. Usavam de retórica para
convencer. Viviam das aparências.
O apóstolo Paulo, por sua vez, anunciava que em Jesus realizava-se uma nova aliança
de Deus com a humanidade. Denunciava os falsos apóstolos que pregavam um Jesus
diferente (cf. 2Cor 11,4). Acusava-os de operários fraudulentos, disfarçados de
apóstolos de Cristo (cf. 2Cor 11,13). Mostrava que o caminho para Deus não era mais
a Lei, mas uma pessoa, Jesus, o Messias. Em outras palavras, e descendo à realidade,
afirmava que toda a Lei encontra a sua plenitude num só mandamento: no amor ao
próximo como a si mesmo (cf. Gl 5,14); “o amor é o pleno cumprimento da Lei” (Rm
13,10).
O que se passava nas comunidades no tempo de Paulo era semelhante ao que sucede
nos dias de hoje, em nossa sociedade, quando muitos pregadores, que se dizem
24
“evangelizadores”, fazem da fé um negócio rentável. Transformam a igreja numa
casa de comércio. Aliás, a era da imagem em que vivemos é propícia para convencer
pelas aparências. Esses mercenários da fé buscam, na aparência e em técnicas de
comunicação, fazer da relação com Deus um comércio. Ao contrário, Paulo se
apresentava como o apóstolo autêntico, chamado a ser outro Cristo, não nas
aparências, não superficialmente, mas centrado na transparência. Inclusive procurava
não ser economicamente pesado às comunidades, exercendo a profissão de fabricante
de tendas.
Vivemos numa cultura na qual o importante não é mais “ser”, mas “ter e parecer”.
Infelizmente o sistema capitalista necessita do mundo das aparências. O nosso tempo
prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência
ao ser. Mesmo não havendo, na época de Paulo, os modernos meios de comunicação
que reproduzem a imagem, esta era também uma das formas de explorar e buscar
sucesso. Porém, Paulo não se deixou levar por esse modismo. Sua vida e seu
testemunho estavam centralizados no Evangelho, que ilumina e transforma as pessoas
a partir do coração.
 
Para refletir:
1. Qual é o centro do anúncio de Paulo?
2. Que significa “graça gera graça”? Como isso se dá concretamente?
3. Quais as características dos falsos evangelizadores?
 
25
3.3. Quem é Jesus para Paulo?
O apóstolo Paulo estava seguro de que sua missão era anunciar o evangelho de Jesus
Cristo. Mas quem era Jesus para Paulo? Essa é uma pergunta fundamental. O próprio
Jesus chegou a fazer aos seus discípulosesta indagação sobre a sua identidade:
“Quem dizem os homens que sou eu?”. Sabemos que Pedro acertou a resposta
quando respondeu: “Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo”, o que levou Jesus a
elogiá-lo. Porém, quando Jesus começou a dizer que teria de sofrer, Pedro se opôs.
Então, Jesus o repreendeu, dizendo: “Fique longe de mim, Satanás” (Cf. Mt 16,13-
23).
Pedro reconhecia a origem divina de Jesus, mas não aceitava a cruz. Certamente,
depois desse episódio, Pedro fez um longo e doloroso caminho para entender, com os
fatos que se sucederam, que o sofrimento e a morte também faziam parte da missão
de Jesus. E que esse trágico desfecho seria consequência da entrega de Jesus, por
amor, ao projeto de Deus-Pai.
Não vamos descer em pormenores na concepção que Paulo tinha de Jesus. Isso
porque, tratando-se de coisas de Deus, é impossível explicar com exatidão todos os
acontecimentos que contribuíram para a construção dessa imagem. As palavras
humanas não são suficientes para expressar a profundidade, a grandeza e o
significado da experiência que Paulo fez de Deus. Porém, a boa notícia que Paulo
proclamava tinha por princípio apresentar também a face de Jesus que Pedro relutou
em aceitar: Jesus crucificado.
Convém enfatizar que o Cristo crucificado que Paulo anunciava com tanto ardor era
um “escândalo para os judeus e loucura para os pagãos” (1Cor 1,23). Para um judeu
que esperava um Messias triunfante era impossível concebê-lo terminando sua vida
terrena numa cruz. Ao grego, como poderia conceber que Deus, a sabedoria suprema,
pudesse fracassar, com morte trágica? Porém, é esse Jesus que Paulo anuncia: “fez-se
pobre para enriquecer-nos com sua pobreza” (2Cor 8,9), “esvaziou-se a si mesmo,
assumindo a condição de servo” (Fl 2,7), porém, que “Deus exaltou grandemente, e
lhe deu o Nome que está acima de qualquer outro nome” (Fl 2,9). Paulo seguiu o
caminho de Jesus, que se fez servo. É como servo que também se apresentou às
comunidades, por um ideal que passou a dar sentido à sua vida (cf. 2Cor 4,5-6).
O anúncio de Jesus crucificado ressaltava, para Paulo, uma dimensão importante de
sua fé, que é a fé na encarnação do Filho de Deus. Ao aceitar esse aspecto, ele estava
considerando Jesus em sua realidade integral, diferentemente dos chamados
“espirituais”, que era um grupo de cristãos de seu tempo que costumava separar o
Salvador crucificado do Cristo da fé. Ou seja, negavam o Jesus histórico e,
consequentemente, a realidade da cruz. Preferiam pensar apenas em Jesus como o
Senhor da Glória.
Paulo reconhecia a Jesus como o Senhor da Glória, mas também defendia sua
historicidade humana. Para ele, Jesus salvou a humanidade ao mesmo tempo em que
fazia parte dela, aceitando suas condições e transformando-a. Assim, sofreu e morreu
como os outros morrem, embora de modo algum merecesse essa atribulação.
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Expressou o núcleo da fé, a essência do que acreditava, ao afirmar: “Por primeiro, eu
lhes transmiti aquilo que eu mesmo recebi, isto é: Cristo morreu por nossos pecados,
conforme as Escrituras; ele foi sepultado, ressuscitou ao terceiro dia, conforme as
escrituras; apareceu a Pedro e depois aos Doze....” (1Cor 15,3-5).
Paulo é considerado o primeiro teólogo cristão e o criador da teologia cristã. Ele não
construiu uma suma teológica. Seus escritos narram as soluções que o apóstolo
procurou dar, a partir da mensagem cristã, às situações concretas das comunidades.
Era uma maneira teologicamente fundamentada de resolver os problemas particulares
de fé e da vida cristã que se impunham progressivamente a seus interlocutores e a ele
mesmo. Paulo mostrou que a mensagem de Jesus não é somente para ser escutada,
mas praticada, para gerar uma sempre melhor qualidade de vida.
 
Para refletir:
1. Quem é Jesus para o apóstolo Paulo?
2. Quem é Jesus para nós?
3. Por que é importante ter clara a identidade de Jesus? Que Jesus anunciamos e como
colocamos em prática a sua mensagem?
 
27
3.4. Nos passos do Bom Pastor
A pergunta sobre a identidade de Jesus é importante para cada pessoa que deseja
seguir seus passos. A resposta pode, a princípio, parecer fácil, mas não é tão simples.
Isso porque Jesus é um mistério. Mistério não no sentido de uma realidade pessoal
que não podemos conhecer, mas sim como uma pessoa que podemos conhecer e que
jamais conseguiremos esgotar.
A mesma coisa podemos dizer de qualquer ser humano e de nós mesmos. Cada
pessoa é um mistério para si mesma. Ninguém pode dizer que se conhece totalmente.
Prova disso são as vezes que nos surpreendemos com nós mesmos a ponto de dizer-
nos: “Eu fiz isso?”; “Eu tive coragem de dizer aquilo?”. Jesus é mistério porque
jamais o conheceremos em sua totalidade. Vamos conhecendo-o à medida que nos
abrimos à ação de sua graça, quando nos colocamos a meditar sua Palavra, quando
nos abrimos às pessoas, especialmente às mais necessitadas.
É impossível esgotar o conhecimento de Jesus. Ele é o Filho de Deus, o Messias, o
Senhor, o Salvador. Ele se definiu como Luz, como a Videira, como o Pão da Vida.
Para Paulo, como vimos, Jesus era o crucificado. Porém, entendia a cruz não como
sinal de derrota, mas da vitória sobre a morte. A linguagem da cruz, afirmava Paulo, é
poder de Deus (cf. 1Cor 1,18). É por meio de Jesus, morto e ressuscitado, e através da
fé, que temos acesso à graça (cf. Rm 5,2).
Para responder à pergunta sobre quem é Jesus, no contexto da evangelização, é
oportuno buscar inspiração na alegoria do Bom Pastor. Jesus definiu-se, no evangelho
de João, como o pastor que cuida de suas ovelhas com carinho e que as defende de
todos os perigos. Ele afirmou sobre si mesmo: “Eu sou o bom pastor. O bom pastor
dá a vida por suas ovelhas” (Jo 10,11). Ao pastor, ele contrapôs o mercenário: “O
mercenário, que não é pastor e a quem as ovelhas não pertencem, quando vê o lobo
chegar, abandona as ovelhas e sai correndo. Então o lobo ataca e dispersa as ovelhas.
O mercenário foge porque trabalha só por dinheiro, e não se importa com as ovelhas.
Eu sou o bom pastor: conheço minhas ovelhas, e elas me conhecem, assim como o
Pai me conhece e eu conheço o Pai. Eu dou a vida pelas minhas ovelhas” (Jo 10,12-
15).
Ao afirmar que é o “Bom Pastor”, em contraste com os “ladrões e bandidos”, Jesus
estava mostrando que nele se encontra a verdadeira vida. Ele não só conhece
profundamente cada ovelha, mas também se sacrifica por elas, porque as ama e as
quer salvas de todos os perigos. Interpretando essa comparação, podemos dizer que
Jesus não busca seus próprios interesses, mas dá vida a todos aqueles que se propõem
seguir seus passos.
É interessante olhar o apóstolo Paulo do ponto de vista do “bom pastor”. Obviamente,
antes de ser “pastor”, Paulo é a “ovelha obediente” que segue de perto Jesus, o grande
Pastor. Deixa-se cuidar e guiar por ele. Dele, aprende que a fonte da vida é o amor.
“A vida que ago- ra vivo”, afirmou o Apóstolo, “eu a vivo pela fé no Fi- lho de Deus,
que me amou e se entregou por mim” (Gl 2,20).
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Somente quem faz a experiência profunda de ser discípulo, de escutar a voz do
Pastor, pode ser evangelizador de verdade. E aqui convém fazer referência novamente
aos falsos apóstolos que no, tempo de Paulo, buscavam explorar, em nome do
evangelho. Eram como lobos e mercenários que não pensavam na vida das ovelhas,
mas apenas em explorá-las. Paulo não se guiou por aparências ou privilégios. Não
procurou os bens das pessoas, mas as próprias pessoas (2Cor 12,14). “Quanto a mim,
de boa vontade me gastarei e desgastarei totalmente a favor de vocês”, chegou a
afirmar (2Cor 12,15). É o bom pastor preocupado unicamente com a vida das
pessoas. É o pregador que tem como único interesse anunciar o evangelho, caminho
da verdadeira liberdade e da vida plena.
 
Para refletir:
1. O que entendemos quando afirmamos que Jesus é um “mistério”?
2. O que Jesus quer dizer quando afirma que é o “Bom Pastor”?
3. Que relação existe entre a evangelização de Paulo e a figura do Bom Pastor? O que
a imagem do Bom Pastor nos inspira, hoje, em nosso trabalho de evangelização?29
3.5. O evangelho da liberdade
Ao tratar de evangelização, podemos perguntar-nos qual é a mensagem central do
Evangelho. Sabemos que, para Paulo, o centro do anúncio é a pessoa de Jesus, que
morreu e ressuscitou. Porém, ser evangelizado não consiste somente em crer em Jesus
como o enviado de Deus, mas principalmente em praticar a sua palavra, que liberta e
gera liberdade. Disse Jesus: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’, entrará
no Reino do Céu. Só entrará aquele que põe em prática a vontade do meu Pai, que
está no céu” (Mt 7,21).
O evangelho de Paulo é, antes de tudo, o evangelho da liberdade. Essa temática
aparece em várias cartas do Apóstolo. Aos coríntios, Paulo afirma que “o Senhor é
Espírito, e onde se acha o Espírito do Senhor, aí existe a liberdade” (2Cor 3,17). Aos
gálatas, diz que “Cristo nos libertou para que sejamos verdadeiramente livres” (Gl
5,1).
Libertar-se de quê? Antes de tudo, para Paulo, é libertar-se da Lei de Moisés e das
tradições. Isso não significava romper com a tradição bíblica, mas dar-lhe o sentido
verdadeiro. Paulo admitia que a nova aliança, concretizada em Jesus, era continuação
da antiga. Tinha presente a continuidade, porém, com novo sentido. Paulo tocou
nesse tema porque havia dado conta de que persistia nas comunidades a oposição
entre judaísmo e cristianismo, entre o antigo e o novo. Afirmou que os que
permaneciam no Antigo Testamento, cuja aliança foi concluída com Moisés, eram os
que não conseguiam tirar o véu que impedia de contemplar a luz de Cristo. Para
Paulo, era necessário, aos que estavam presos ao passado, dar um passo a mais, que
era o conhecimento e aceitação de Jesus Cristo.
Como fariseu praticante, que superou a Lei para acolher Jesus, Paulo apresentou esse
caminho como condição para a conquista da liberdade. Originalmente, essa
advertência foi direcionada àqueles membros das comunidades que, seguindo a
orientação dos falsos apóstolos, acreditavam que, para ser cristãos, deveriam antes
aceitar a Lei e as tradições judaicas.
O anúncio de Paulo é o da liberdade. “A Lei mata, o Espírito é que dá a vida” (2Cor
3,6), afirmou o Apóstolo. Em Jesus, deu-se uma nova aliança de Deus com a
humanidade. O caminho para Deus, desde então, não é mais a Lei, mas uma pessoa:
Jesus, o Messias. O cristão é aquele que, pela fé, acolhe a ação do Espírito e o
comunica, não pressionado por leis, mas livremente, com a prática da fé e do amor.
Fé e amor não são dois conceitos separados, como se a fé fosse o começo e o amor, a
consequência. É fé através do amor ou energizada pelo amor.
Para o apóstolo Paulo, o poder da tradição, ao contrário, é um poder que gera
escravidão, que cega e que provoca a morte, principalmente quando a tradição se
torna fim em si mesma, quando se vive a tradição pela tradição. O cristão é chamado
a guiar-se pelo Espírito, o mesmo espírito que tornou Jesus livre para falar e agir, que
o enviou a anunciar a Boa Notícia, que consiste na libertação aos presos, em dar visão
aos cegos, em libertar os oprimidos (Lc 3,18-19). O Espírito é a presença do Senhor
Ressuscitado na vida do cristão, que se expressa por meio do amor, da alegria, da paz,
30
da paciência, da bondade, da benevolência, da fé, da mansidão e do domínio de si (Gl
5,22).
Podemos afirmar que a vida pelo Espírito é a vida adulta graças ao uso responsável
da liberdade. De fato, “tudo é permitido, mas nem tudo convém. Tudo é permitido.
Mas nem tudo edifica” (1Cor 10,23). Essa liberdade é uma conquista, e não pode ser
confundida com libertinagem. Libertinagem é colocar as próprias energias a serviço
de si mesmo ou, na expressão de Paulo, é satisfazer a “carne”, que consiste em viver
segundo os instintos egoístas, que geram a “fornicação, impureza, libertinagem,
idolatria, feitiçaria, ódio, discórdia, ciúme, ira, rivalidade, divisão, sectarismo, inveja,
bebedeira, orgias e outras coisas semelhantes” (Gl 5,19b-21a). A verdadeira
liberdade, a liberdade “responsável”, nasce do amor e se transforma em serviço ao
próximo.
 
Para refletir:
1. Qual a mensagem central do Evangelho?
2. O que entendemos pela afirmação: “A lei mata, o Espírito é que dá vida”?
3. O que significa agir com liberdade? Como a liberdade é vivida nos dias de hoje?
 
31
4.
A COMUNIDADE
4.1. A comunidade como “corpo”
A espiritualidade cristã, como estilo de vida, tem o seu ponto de partida em Jesus
Cristo e leva em consideração a situação humana. Vimos que Deus age com sua graça
na realidade humana frágil e limitada. Depois, refletimos que graça gera graça e se
torna “evangelização”. Agora, vamos ver que a missão não se dá como um trabalho
individual, mas nasce a partir da comunidade. Esse dado está nas origens do
cristianismo. Jesus, quando enviou os discípulos em missão, enviou-os dois a dois,
depois de afirmar que onde dois ou mais estiverem reunidos em seu nome, ali ele
estará.
O apóstolo Paulo, incansável animador de comunidades, não desenvolveu sozinho
seu trabalho de evangelização. Sentia-se parte de um “corpo” com os outros
companheiros de missão que respondiam, como ele, ao chamado do Senhor para
evangelizar. Dentre os colaboradores mais diretos, podemos destacar Timóteo,
Barnabé, Tito, Lucas e Silas. Também muitas outras pessoas, homens e mulheres, são
mencionados em suas cartas.
Todos esses colaboradores estavam a serviço das comunidades que Paulo chamava de
“igreja” (ekklesia). É esse o termo que ele usa quando dirige cartas especificamente à
“igreja dos tessalonicenses”, à “igreja que está em Cristo”, às “igrejas da Galácia”, à
“igreja de Deus que está em Corinto”. O termo “igreja”, para Paulo, não se referia ao
prédio que abrigava as pessoas, mas à assembleia dos crentes cristãos, a exemplo das
“assembleias do Senhor”, do Antigo Testamento. Igreja era, antes de tudo, o conjunto
das pessoas, que se reuniam geralmente em casas de família e buscavam em Cristo o
sentido para suas vidas.
As igrejas, onde estivessem, formavam parte da única Igreja dos seguidores de Jesus.
Faziam parte dessas igrejas, ou comunidades, todos os batizados. O batismo era
entendido essencialmente como rito de agregação à Igreja: “Todos fomos batizados
num só Espírito, para sermos um só corpo, quer sejamos judeus ou gregos, quer
escravos ou livres. E todos bebemos de um só Espírito” (1Cor 12,13). Pelo batismo, o
cristão unia-se a Cristo em sinal de pertença.
Às comunidades cristãs, caracterizadas pelo amor prático e a solidariedade fraternal,
competia o papel profético de prefigurar a nova humanidade e o mundo novo.
Podemos afirmar que Paulo era homem de comunidade e que não se ateve apenas a
uma, especificamente. Em seu coração, estavam presentes todas as comunidades com
as quais se relacionava e as animava na fé. Buscava encorajar seus membros a viver a
espiritualidade cristã como um estilo de vida, apontando a comunidade como o
32
primeiro lugar dessa experiência.
A concepção da Igreja como “corpo de Cristo” desempenha importante papel na
espiritualidade paulina. Paulo compara a comunidade a um corpo, cuja cabeça é
Cristo, e em cujo corpo cada membro tem sua importância. Cada pessoa que compõe
a comunidade é um dom de Deus. Afirmou o Apóstolo: “Temos dons diferentes,
conforme a graça concedida a cada um de nós” (Rm 12,6). Cada membro é um bem
para os demais; “Existem dons diferentes, mas o Espírito é o mesmo; diferentes
serviços, mas o Senhor é o mesmo; diferentes modos de agir, mas é o mesmo Deus
que realiza tudo em todos” (1Cor 12,4-6). Todos os dons ou carismas pessoais
cooperam juntos para a edificação da comunidade e não podem converter-se em
motivo de conflito.
Por trás desses ensinamentos, está a ideia de unidade, mas também de respeito às
características pessoais de cada membro. Para Paulo, a exigência de unidade não
significava sustentar a uniformização da vida segundo um único modo de ser e de
trabalhar. Da mesma forma como cada pessoa necessita desenvolver as aptidões
pessoais, também precisa estar aberta aos dons das outras pessoas, se deseja uma vida
comunitária e social equilibradae saudável. Não basta estar juntos. É imprescindível
aceitar que as outras pessoas são diferentes, com suas características individuais.
Especialmente nos dias de hoje, é um desafio viver em comunidade. A sociedade
consumista em que vivemos prega o individualismo, que gera uma busca insaciável
de realizações pessoais, que cria conflitos nas relações humanas, nas famílias, nas
comunidades e nas instituições. Por outro lado, dado que naturalmente nascemos para
conviver com outras pessoas, há um esforço de compartilhar ideias, experiências e
sentimentos. Também crescem, hoje, as comunidades virtuais, na Internet, onde as
pessoas buscam conectar-se para compartilhar informações, desafiando tempo e
distância.
Todo esforço de criar uma comunidade é válido. Porém, o “corpo a corpo”, os “olhos
nos olhos”, ainda é a forma mais humana de relacionar-se e construir comunidades. É
uma forma privilegiada de nos sentirmos “pessoas”. Os contatos “virtuais” têm sua
importância na sociedade da informatização, mas os contatos pessoais, diretos, são
insubstituíveis, são extremamente necessários para formar comunidades reais e nelas
crescer como pessoas e como cristãos.
 
Para refletir:
1. O que entendemos por comunidade como “corpo”?
2. Por que é importante viver em comunidade?
3. Quais as dificuldades que encontramos, hoje, para viver em comunidade? Como
superá-las?
 
33
4.2. Amor: o dom maior
Como deve estar organizada a comunidade e quem é o mais importante na sua
estrutura? Essa já era uma preocupação dos discípulos que conviveram com Jesus, a
ponto de discutirem entre eles quem era o maior. A resposta de Jesus, decepcionado
com esse tipo de discussão, chegou rápida: “Se alguém quer ser o primeiro, deverá
ser o último, e ser aquele que serve a todos” (Mc 9,35). O mundo das relações
humanas proposto por Jesus não se baseia no poder e no domínio, mas no serviço sem
interesses e pretensões.
O apóstolo Paulo, seguindo o espírito do seu Mestre, era consciente de que o
“serviço” ao próximo é uma das características principais do modo de ser cristão. Na
comunidade cristã, não existe alguém mais importante que os demais. Por isso, pede-
se “que cada um procure não o próprio interesse, mas o interesse dos outros” (Fl 2,4).
O que deve predominar na comunidade é o “serviço” que nasce da prática dos dons
do Espírito que cada pessoa recebeu. Essa é a forma de superar a tentação de
estabelecer uma hierarquia piramidal por ordem de importância e com instâncias de
poder.
De fato, Jesus havia dito aos seus discípulos: “Vocês sabem: os governadores das
nações têm poder sobre elas, e os grandes têm autoridade sobre elas. Entre vocês não
deverá ser assim: quem de vocês quiser ser grande, deve tornar-se o servidor de
vocês; e quem de vocês quiser ser o primeiro, deverá tornar-se servo de vocês” (Mt
20,25-26). É dessa forma que Paulo procurou agir, como se constata na Segunda
Carta aos Coríntios: “Quanto a nós mesmos é como servos de vocês que nos
apresentamos, por causa de Jesus” (2Cor 4,5b).
O serviço cristão nasce do amor, que exclui todo tipo de competição e de escravidão.
Quando Paulo incentivou os cristãos a aspirar aos dons mais altos, ele indicou esse
caminho, que ultrapassa a todos os outros. Mostrou que o amor efetivo e afetivo é o
sentido de todos os dons. Os membros da comunidade são chamados a viver o amor.
Sem o dom do amor que edifica, qualquer outro dom perde sentido.
De fato, o amor é o principal mandamento deixado por Jesus aos seus discípulos: “Eu
dou a vocês um mandamento novo: amem-se uns aos outros. Assim como eu amei
vocês, vocês devem se amar uns aos outros”. E depois acrescentou: “Se vocês
tiverem amor uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus
discípulos” (Jo 13,34-35). Amar o próximo como se ama a si mesmo leva a respeitar
a singularidade de cada um. Somente o amor enriquece o mundo que habitamos e o
transforma em um lugar mais fascinante e agradável.
O apóstolo Paulo também insistiu nesse aspecto. Ele entendeu, como discípulo do
Senhor, que o amor é o pleno cumprimento da Lei: “Não fiquem devendo nada a
ninguém, a não ser o amor mútuo. Pois quem ama o próximo cumpriu toda a Lei. De
fato, os mandamentos: não cometa o adultério, não mate, não roube, não cobice, e
todos os outros se resumem nesta sentença: ‘Ame o seu próximo como a si mesmo’”
(Rm 13,8-10).
34
Disso se conclui que os discípulos não são reconhecidos, em primeiro lugar, pelo que
“têm” ou pelo que “fazem”, mas pelo amor que vivem entre si. O amor é o grande
sinal de quem faz do seguimento de Jesus um estilo de vida. O apóstolo Paulo, em
muitas passagens de suas cartas, insiste no esforço de querer o bem do próximo e de
respeitá-lo. Chegou a pedir aos cristãos que o amor seja sem hipocrisia, que detestem
o mal e apeguem-se ao bem; que, no amor fraterno, sejam carinhosos uns para com os
outros, rivalizando apenas na mútua estima (cf. Rm 12,9-21). Somente do amor
podem surgir os sentimentos mais sublimes. “Tenham em vocês os mesmos
sentimentos que havia em Jesus Cristo” (Fl 2,5), escreveu Paulo aos filipenses.
O hino ao amor (1Cor 13), uma das páginas mais lindas da Bíblia, define em que
consiste o amor cristão e qual o seu sentido na vida dos membros da comunidade.
Afirma que o amor verdadeiro é paciente, é prestativo, não é invejoso, não se incha
de orgulho. O amor tudo crê, tudo espera, tudo suporta. E esclarece: de nada vale
distribuir todos os bens aos pobres, se não se tem amor.
Não é fácil entender a dimensão do amor cristão, principalmente nos dias de hoje,
quando a palavra “amor” está um tanto desgastada. Infelizmente o “amor”, muitas
vezes, é entendido com um sentimento superficial, “líquido”, que desaparece com os
primeiros sinais de provação ou de sofrimento. Na cultura do descartável, o desafio é
amar com solidez, com consistência. Jesus indica o caminho desse modo de ser.
 
Para refletir:
1. Que relação existe entre “amor cristão” e “serviço”?
2. De que maneira o amor se manifesta, concretamente, na vida de Jesus e de Paulo?
3. Como o amor é entendido e vivido nos dias atuais?
 
35
4.3. Fraternidade e a “Ceia do Senhor”
A comunidade cristã é chamada a compartilhar e celebrar a vida de fé. É na
comunidade, como corpo de Cristo, que acontece a Ceia do Senhor ou a “Eucaristia”,
que é a refeição em que cada participante renova sua fé no seguimento de Jesus.
Refere-se à memória da morte e ressurreição de Jesus como dom de Deus entregue
para a vida do mundo, representados por seu corpo e sangue. Segundo a tradição
paulina, não se trata de um encontro intimista com Cristo. Dá-se no contexto da vida
comunitária, como compromisso com sua situação concreta.
O texto mais antigo sobre a Eucaristia está na Primeira Carta aos Coríntios. Foi
escrito no ano 56, dez anos antes dos evangelhos. A Ceia do Senhor é situada no
contexto da comunidade como “Corpo de Cristo”, que se reunia nas casas de família:
“O cálice da bênção que nós abençoamos, não é comunhão com o sangue de Cristo?
O pão que partimos, não é comunhão com o corpo de Cristo? E como há um único
pão, nós embora muitos, somos um só corpo, pois participamos todos deste único
pão” (1Cor 11,17-34).
No tempo do apóstolo Paulo, a Eucaristia, ou a “participação do único pão”, era
precedida por uma refeição comum (1Cor 11,17-34), para a qual cada participante
levava algum alimento para ser compartilhado com os demais. Paulo ficou
horrorizado com o individualismo e exclusivismo da prática dos coríntios, que gerava
divisão entre ricos e pobres. O que acontecia na Ceia que deveria ser um momento de
partilha? Cada membro se juntava com o seu próprio grupo. Os ricos se instalavam
no melhor cômodo da casa com uma mesa bem provisionada. Os pobres, por sua vez,
comiam à parte no pátio a comida simples que traziam.
Na realidade, a “Ceia do Senhor” dos coríntios não era uma refeição compartilhada;
não era uma participação no único pão e no único cálice. Por isso, Paulo advertiu:
“Quando se reúnem, o que vocês fazem não é comer a Ceia do Senhor, porquecada
um se apressa em comer a sua própria ceia. E, enquanto um passa fome, outro fica
embriagado” (1Cor 11,20-21). A repreensão de Paulo dirigia-se claramente aos que
comiam e bebiam sem consideração pelos outros membros, denunciando a
dissociação entre Eucaristia e compromisso. Uma comunidade que não compartilha,
como pode receber o corpo e sangue de Cristo?
O sentido da Ceia do Senhor é alimentar e sustentar a relação com Cristo, mas como
relação comunitária. A Eucaristia é lugar de comunhão de todos e onde se
compartilha os dons e a vida. Por isso, o critério fundamental para a participação da
Eucaristia, segundo Paulo, é a fraternidade. Afirmou o apóstolo “aquele que come e
bebe sem discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação” (1Cor 11,29). O
termo “Corpo” não se reduz à santidade do pão e do vinho consagrados. A atenção de
Paulo é colocada também no pão e no vinho como expressões de unidade da
comunidade, o conjunto das pessoas reunidas, que é também o “Corpo do Senhor”.
Ou seja, aquele que come e bebe sem se dar conta de que tem um “compromisso”
com o “corpo”, que é a comunidade, come e bebe a própria condenação.
A fraternidade é fundamental para a participação na Ceia do Senhor. Qualquer passo
36
na prática eucarística para uma celebração isolada, como se a Eucaristia fosse
somente para saciar o indivíduo como alimento espiritual, e que reduza a experiência
compartilhada, contraria a ênfase de Paulo. A Eucaristia é a Ceia do Senhor, em que
se une a comunidade participante em mútua responsabilidade de uns pelos outros, que
nasce do amor.
A partir do contexto em que se dava a celebração da Ceia do Senhor, na comunidade
de Corinto, Paulo tentava mostrar que marginalizar os pobres era mutilar o corpo do
Senhor. Por isso afirmou que “os membros do corpo que parecem mais fracos são os
mais necessitados” (1Cor 12,22). Se é necessário privilegiar alguém na comunidade,
esse alguém é justamente o pobre, que Jesus também chamava de “pequeno” ou
“menor dos irmãos”: “Todas as vezes que vocês fizerem o bem a um dos menores de
meus irmãos foi a mim que o fizeram” (Mt 25,40). Levar em consideração esses
dados é fazer da espiritualidade cristã um modo de ser.
 
Para refletir:
1. Como os cristãos celebravam a “Ceia do Senhor” no tempo de Paulo? Qual o
grande problema que Paulo encontrou?
2. Qual o primeiro critério para participar da “Ceia do Senhor”? Por que esse critério
é importante?
3. Como são as nossas Eucaristias? A fraternidade e a partilha são levadas em
consideração?
 
37
4.4. Semear com generosidade
No capítulo anterior, tratamos da “Ceia do Senhor”, que, segundo o apóstolo Paulo,
deve dar-se num contexto de fraternidade e de partilha, gerado pelo amor. Porém,
esse modo de ser não pode restringir-se à comunidade à qual cada cristão pertence,
mas estender-se para fora, especialmente aos mais necessitados. Ou seja, o amor não
é um puro sentimento abstrato. Realiza-se na prática. “Deus ama quem dá com
alegria”, escreveu o apóstolo Paulo. Ele fez essa afirmação aos cristãos de Corinto,
quando os incentivava a participar de uma grande coleta de recursos econômicos para
os pobres de Jerusalém.
Vivia-se uma grande fome na Judeia e em Jerusalém, no ano 48, por causa da fraca
colheita do ano anterior, que era o ano sabático, no qual os judeus não semeavam
para que a terra pudesse descansar. O pedido de organizar a coleta a favor dos pobres
de Jerusalém tinha nascido da própria comunidade. Os cristãos, espontaneamente,
“quiseram realizar esta obra” (2Cor 8,10). Paulo aproveitou essa situação real de
carência para incentivar os cristãos a dar uma resposta cristã a uma situação concreta.
É interessante notar que Paulo evitou a palavra “coleta”. Preferiu falar de “graça”
(2Cor 8,4), “riquezas de generosidade” (2Cor 8,2), “serviço a favor dos cristãos”
(2Cor 8,4), “obra de generosidade” (2Cor 8,6.19). A coleta não se reduzia a um gesto
de solidariedade, como acontece em campanhas emergenciais. O apóstolo Paulo
ensinava que esse gesto de generosidade, para o cristão, devia ser expressão do amor,
cuja referência é Jesus que, embora fosse rico, tornou-se pobre por causa de todos,
para enriquecer a todos (2Cor 8,9).
O cristão é chamado a ser generoso e a ajudar na medida dos meios de que cada um
dispõe (2Cor 8,11-12). De fato, “o que semeia com mesquinhez, com mesquinhez
colherá, e o que semeia com generosidade, com generosidade colherá” (2Cor 9,6).
Para Paulo, a sociedade igualitária torna-se realidade quando há partilha. Recorda,
aos coríntios, que o povo, no Antigo Testamento, havia aprendido a compartilhar no
deserto: “Assim haverá igualdade, como está na Escritura: ‘A quem recolhia muito,
nada lhe sobrava; e a quem recolhia pouco, nada lhe faltava’” (2Cor 8,15). Os
cristãos deviam também expressar o amor e a solidariedade na partilha.
Ao falar de “generosidade”, Paulo não partia de uma teoria. Em nível pessoal, sua
generosidade manifestava-se igualmente no trabalho profissional que exercia,
paralelamente à missão evangelizadora. Paulo trabalhava com as próprias mãos. Era
“fabricante de tendas”. Ele mesmo afirmou que mesmo tendo o Senhor ordenado que
os que anunciavam o Evangelho vivessem desse ministério, ele preferia não usufruir
desse direito (cf. 1Cor 9,16-18). Escreveu aos coríntios: “Em tudo evitei ser pesado a
vocês e continuarei a evitá-lo” (2Cor 11,9).
Outra justificativa para a busca da independência econômica de Paulo era que muitos
evangelizadores, ao serem sustentados pelas comunidades, deixavam-se condicionar
de tal forma, a ponto de não se sentirem livres para dizer tudo o que deveriam dizer.
O salário gerava dependência. Paulo optou por outro caminho, não condenando,
porém, os que eram sustentados pelas comunidades.
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Enfim, a generosidade é um aspecto importante que faz parte do “modo de ser
cristão”, que nasce da consciência de que “cada um colherá aquilo que tiver plantado”
(Gl 6,7b). Como afirmou o apóstolo Paulo: “Quem semeia nos instintos egoístas, dos
instintos egoístas colherá corrupção; quem semeia no Espírito, do Espírito colherá a
vida eterna. Não nos cansemos de fazer o bem; se não desanimarmos, quando chegar
o tempo, colheremos” (Gl 6,8-9). A opção é de cada pessoa.
 
Para refletir:
1. Qual o significado cristão da coleta para os pobres de Jerusalém?
2. Que entendemos pela expressão “cada um colherá aquilo que tiver plantado”?
3. Como Paulo viveu a generosidade? Como a vivemos hoje? Onde somos chamados
a atuar generosamente? De que maneira?
 
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4.5. O ministério da reconciliação
O “ministério” da reconciliação, à luz do trabalho de evangelização do apóstolo
Paulo, não se refere ao ministério ordenado, mas ao ministério entendido por
“serviço”, que deve ser prestado por todo cristão. Todos os que buscam seguir Cristo
são chamados a ser instrumentos de reconciliação. Paulo, sem dúvida, percorreu esse
caminho e podemos afirmar que, por suas palavras e atitudes, foi um homem de
reconciliação: “Tudo isso vem de Deus, que nos reconciliou consigo por meio de
Cristo, e nos confiou o ministério da reconciliação” (2Cor 5,18).
A reconciliação é um ministério, ou seja, é um serviço. É uma atitude que exige,
antes, a prática da misericórdia. Ao aproximar-se de Jesus, Paulo descobriu que Deus
é rico em misericórdia. No próprio conceito que Paulo tem de Deus, está a ideia de
misericórdia: “Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das
misericórdias e Deus de toda consolação” (2Cor 1,3). Algumas versões bíblicas
preferem o termo “ternura”. “Misericórdia” não é um sentimento estranho a Paulo.
Ele sentiu, em sua vida, a ação terna de Deus, como ele mesmo testemunha: “Esse é o
nosso ministério. Nós o temos pela misericórdia de Deus; por isso não perdemos a
coragem” (2Cor 4,1).
Deus é também o “Deus de toda consolação”. A palavra consolação vem de com-
solatio, que significa “estar com quem se sente só”. “Consolação” (palavra que
aparece nove vezes em 2Cor 1,3-11) é a libertação interior; a experiência de ser
sustentado por Deus.

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