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Vaticano II_ 50 anos de ecumenismo na Igreja Católica - Elias Wolff


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2
ÍNDICE
Capa
Rosto
Siglas
Apresentação da coleção Marco Conciliar
Introdução
Capítulo I - O movimento ecumênico
1. Uma história surpreendente
2. A Igreja católica e o ecumenismo
2.1. Andando na contramão
2.2. Conversão de rota
2.3. Nos caminhos ecumênicos
3. A ecumenicidade do Vaticano II
3.1. A proposta ecumênica de João XXIII
3.2. Mais que ilustres convidados: de observadores a colaboradores
3.3. O Decreto Unitatis Redintegratio, a charta magna do ecumenismo
a) Princípios doutrinais para o agir ecumênico
b) Indicações práticas para o agir ecumênico
Capítulo II - A INCIDÊNCIA DO ECUMENISMO NA VIDA DA IGREJA
1. A transversalidade do ecumenismo no ensino magisterial
1.1. O olhar positivo da realidade cristã plural
a) A identidade cristã de todos os batizados
b) Igrejas irmãs
c) A salvação nas comunidades cristãs
d) A vocação missionária
1.2. A Igreja do diálogo
2. O redimensionamento metodológico da teologia
3. A revisão eclesiológica na perspectiva ecumênica
3.1. Eclesiologia da Comunhão
a) A communio nas Escrituras e na Patrística
b) A comunhão no Vaticano II
c) A ecumenicidade da comunhão
3.2. A ecumenicidade das notae ecclesiae
a) Unidade
b) Santidade
c) Catolicidade
d) Apostolicidade
4. O ecumenismo na ação evangelizadora
4.1. A recepção pastoral do ensino ecumênico do Vaticano II
a) Igreja local e ecumenismo
b) As estruturas a serviço da unidade
3
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c) Estruturas ecumênicas: estruturas da Igreja?
4.2. Os sujeitos do ecumenismo
a) Toda a comunidade eclesial é ecumênica
b) Os ministros ordenados
4.3. A formação ecumênica
5. A espiritualidade ecumênica
5.1. A oração, “alma do movimento ecumênico”
5.2. A compreensão ecumênica da liturgia
5.3. Formas concretas da partilha espiritual
a) O culto litúrgico não sacramental
b) O culto litúrgico sacramental
5.4. Observações sobre a espiritualidade ecumênica
Capítulo III - Direções e significados do ecumenismo a partir do Marco Conciliar
1. Balanço da caminhada
2. Ecumenismo para uma Igreja não autorreferenciada
3. Continuidade da recepção ecumênica do Vaticano II: entre pastoral e doutrina
4. A unidade do povo de Deus
Conclusão
Bibliografia
Sobre o autor
Coleção
Ficha catalográfica
Notas
4
SIGLAS
AAS – Acta Apostolicae Sedis
AG – Ad Gentes
ARCIC – Comissão Internacional Anglicana e Católica Romana
CDC – Código de Direito Canônico
CIC-CIMI – Comissão Igreja Católica-Conselho Mundial de Igrejas
CD – Christus Dominus
CDF – Congregação para a Doutrina da Fé
CICL – Comissão Internacional Católico-Luterana
CICO – Comissão Internacional Católico-Ortodoxa
CMI – Conselho Mundial de Igrejas
CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CONAC – Comissão Nacional Anglicano-Católica
CPPUC – Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos
DE – Diretório Ecumênico
DH – Dignitatis Humanae
EG – Evangelii Gaudium
EO – Enchiridion Oecumenicum
GS – Gaudium et Spes
LG – Lumen Gentium
NA – Nostra Aetate
OE – Orientalium Ecclesiarum
SC – Sacrosanctum Concilium
UR – Unitatis Redintegratio
UUS – Ut Unum Sint
5
O
APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR
Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja católica em
muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João
XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em
várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de construção
assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo
vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e
perseverante desse Papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a
dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de
líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo
Concílio em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas.
Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da
Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da
chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se
e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo,
assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade,
reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida
como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o
mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém
inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão
consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se
referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e
autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo.
O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada
primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos
ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões
conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se
seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no
processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram
em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto
da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir
muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja
6
comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social
da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso,
sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio, e particularmente no hemisfério
sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas
da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma
conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas,
sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição
anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina
tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na
dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II,
do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista
geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas
por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres
conciliares.
Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso,
expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico
importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no
dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de
janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em
prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja
como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca
previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por
outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi
desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais
secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes
a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos
e esperançosos.
O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o
hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua
caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso”
completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitadospor
todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia
com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas.
Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou,
entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências
7
que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos
tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da
verdade e na construção da fraternidade universal.
A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o
Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas,
nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada
em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande
Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e a análise crítica –
balanço e prospectiva – dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da
temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no
âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências
pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de
renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II
se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa
medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos
Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do
Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de
Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio
tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a
partir da Cúria Romana.
Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio
como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo
de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados
pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada
autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para
os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em muitos aspectos radicalmente
diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de
1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente
válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua,
sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o
diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o
serviço desinteressado a toda humanidade, particularmente aos mais necessitados.
O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida
das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o
espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos
8
do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram,
sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges
passaram ao status de “irmãos separados”, de distantes passaram a fazer parte do
grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a
Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente
desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João
XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro
e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as
demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de
um possível “pensamento conciliar”. O olhar ecumênico esteve presente como um
vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a
missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e
Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a
reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais
do Concílio (cf. UR 1).
Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não
somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma
doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma
simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao
fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo
para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da
Igreja. Em seu Discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: “Deus ‘quer
salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm
2,4)”. E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica
amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão
geral: “Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos
da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se
ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os
futuros impulsos do Espírito Santo” (n. 24).
De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja
havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no
Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento
histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas
denominações. A constatação comum dos cristãos de que as divisões internas da
mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão fazia
9
do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também
reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais
Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um
quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das
fronteiras católicas.
Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino
comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelaram avanços e estagnações.
O medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem
gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós-
conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o
diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas
precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a
diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a
convivência entre todos os povos. Em tempos de pluralidade cultural e religiosa, o
diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais
justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo
parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que
possibilita a construção de patamares para a convivência humana.
Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos.
Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem
desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do
único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa
Francisco, Evangelii Gaudium, 244).
João Décio Passos
Wagner Lopes Sanchez
Coordenadores
10
N
INTRODUÇÃO
o contexto da celebração do cinquentenário do Vaticano II (1962-1965), muitas
são as iniciativas de revisitar o Concílio, buscando compreender o que ele
significou e significa ainda hoje para o ser e o agir da Igreja católica. Este livro situa-
se no conjunto dessas iniciativas, com um objetivo específico: refletir sobre o ensino
ecumênico do Vaticano II, verificando a sua incidência na consciênciae na ação
eclesial dos católicos, bem como no movimento ecumênico. É importante rever as
razões do ingresso da Igreja católica no movimento ecumênico, as implicações do
ecumenismo na vida da Igreja, suas iniciativas mais significativas, os desafios atuais
e as perspectivas para o futuro do ecumenismo. Pretendemos verificar aqui em que
medida o Vaticano II e o ecumenismo se implicam mutuamente na orientação para a
Igreja dos nossos tempos, tanto no âmbito universal quanto no âmbito local.
A proposta ecumênica do Vaticano II é compreendida no horizonte do programa
de aggiornamento proposto pelo Concílio, que, compreendendo estar a Igreja
necessitada de renovação (UR 6), entende ser o ecumenismo uma fundamental
contribuição para que ela aconteça. O impulso para isso vem, entre outros, do método
teológico proposto por João XXIII ao estabelecer uma distinção entre o conteúdo da
fé e a sua formulação, o que dá abertura para reconhecer elementos de convergência e
até mesmo de comunhão com a explicitação da fé na teologia das outras Igrejas. Por
sua vez, os padres conciliares afirmaram a existência de uma hierarquia das verdades
na doutrina católica (UR 11), o que possibilita melhor aproximação entre as Igrejas
na medida em que elas se entendem vinculadas ao núcleo comum da fé cristã. Esses
elementos metodológicos da reflexão da fé possibilitaram um redimensionamento
eclesiológico em perspectiva ecumênica, compreendendo a distinção entre as
instituições católicas que concretizam a Igreja de Cristo e esta Igreja em si mesma,
que “subsistindo” na tradição católica não deixa de ter uma presença operante
também nas outras Igrejas (LG 8; UUS 11). Tal é o que se expressa no
reconhecimento dos elementa ecclesiae Christi nas diferentes tradições eclesiais e,
consequentemente, da graça salvífica de Cristo, que, por esses elementos, nelas atua
(LG 15; UR 3).
Foi com esse espírito que, nas primeiras décadas após a realização do Concílio
Vaticano II, os cristãos católicos passaram a se integrar nas fileiras ecumênicas com a
11
consciência de, por um lado, ter entrado tarde nos caminhos ecumênicos e, de outro,
cientes de que há ainda muito caminho a ser feito para alcançar a meta da unidade.
Agradecidos aos cristãos e às Igrejas ecumênicas da primeira hora, que abriram os
caminhos em busca da unidade, os católicos podem agora, e devem, dar a sua
contribuição para alargar suas veredas, fortalecer os passos da caminhada, ajudar na
busca da direção. A partir do Vaticano II é impossível abandonar o caminho
ecumênico porque ele é tanto o caminho da Igreja quanto o jeito de a Igreja caminhar.
Após cinquenta anos do Vaticano II e, concomitantemente, cinquenta anos de
caminhada ecumênica para a Igreja católica, o que nela mudou? A resposta a essa
questão deve ser buscada no interior da tradição católica e na sua relação com as
diferentes Igrejas. Na perspectiva ad intra, somente onde o Vaticano II foi de fato
assumido é que o ecumenismo ganhou espaço na Igreja. Ali houve um
redimensionamento da Igreja em sua autoconsciência, suas instituições, seus projetos
de evangelização, sua espiritualidade, na perspectiva do diálogo com as diferentes
tradições eclesiais, religiosas e culturais do nosso tempo. Nesses ambientes, o
ecumenismo pode influenciar positivamente no modus essendi e no modus operandi
das comunidades católicas. Na perspectiva ad extra, o novo modo de a Igreja ser em
si mesma é o que possibilita novas relações com o mundo exterior, com a sociedade,
com as religiões, com as demais Igrejas. Em relação a estas, mudou a perspectiva do
olhar católico, com o reconhecimento da identidade cristã de seus membros e do
patrimônio comum na fé cristã; o reconhecimento da sua eclesialidade pela presença
e ação nelas da Igreja de Cristo (LG 8.15; UR 3; UUS 11); o reconhecimento do valor
da sua ação evangelizadora, do seu testemunho de fé e de santidade, da salvação que
o Espírito nelas e por elas realiza (UR 3). O Vaticano II mudou o rosto da Igreja
católica para as outras Igrejas, e o rosto destas para a Igreja católica. Agora são rostos
de irmãos, com as mesmas marcas e cicatrizes do pecado que as fragiliza e também
da graça que as fortalece.
É pouco? Certamente, em vista do muito que é preciso ainda obter para alcançar a
unidade desejada. Houve quem se frustrou pelo fato de o Concílio não ter abolido a
excomunhão de Lutero, ou por ter sido muito tímido na eclesiologia das Igrejas
oriundas da Reforma, ou demasiado reticente na prática da hospitalidade eucarística,
entre outros. Poderia ser feito mais da parte católica para promover o ecumenismo?
Sim. Há um mea-culpa explícito em vários documentos do magistério católico tanto
por reconhecer a sua parcela de responsabilidade na divisão dos cristãos quanto pela
consciência de nem sempre ter impulsionado os esforços para recompor a unidade.
12
Mas o Vaticano II não pode ser tirado do contexto no qual aconteceu. A maioria dos
padres conciliares alimentava a expectativa de uma simples continuidade ao Vaticano
I, e é inegável o avanço que o Vaticano II significou na abertura para o diálogo com o
mundo plural, em termos de cultura e de religião. Naquele contexto, são
compreensíveis as resistências para assumir o compromisso ecumênico e a timidez do
seu posicionamento teológico em questões que hoje podem ser consideradas
superadas.
Mais difícil, porém, é compreender as resistências ao ecumenismo no período pós-
Vaticano II. Os meios católicos onde existem atualmente manifestações de
preconceito e discriminação por motivos religiosos, de fundamentalismo e
exclusivismo confessional no campo da doutrina, da espiritualidade e da pastoral,
significam distanciamento do Vaticano II e o consequente abandono da sua
orientação ecumênica. As pessoas e as instâncias da Igreja que assumem essa postura
nem sempre negam, em teoria, a doutrina ecumênica da Igreja. Mas vivem uma
desobediência prática do magistério conciliar. Falta-lhes o sentire et vivere cum
ecclesia na recepção do Vaticano II. O ecumenismo não se faz apenas com bons
propósitos e nem mesmo apenas com afirmações doutrinais. E muito menos pode-se
amparar na doutrina para afirmar posições pessoais antiecumênicas. O ecumenismo
precisa tornar-se estrutural e natural no cotidiano da Igreja, adquirindo “cidadania
eclesial”. O Vaticano II, bem como o magistério posterior, exorta os cristãos católicos
para um engajamento efetivo em iniciativas ecumênicas, a disponibilidade sincera
para o diálogo, o reconhecimento dos dons do Espírito nos outros, posturas que de
fato expressam a convicção ecumênica da Igreja. Não é suficiente nem mesmo
realizar atos ecumênicos, é preciso ser ecumênico. O ecumenismo é uma atitude, um
comportamento, um modo de ser. É um espírito, um carisma e uma vocação de todo
cristão, de modo que o ecumenismo deve impregnar o ser cristão como o impregna a
sua própria fé. O ecumenismo é uma forma de crer. Fé cristã e ecumenismo são
realidades que se implicam mutuamente, a fragilidade e a força de uma são também a
fragilidade e a força de outra.
Assim, o ecumenismo é um serviço ao Evangelho e à Igreja, alargando os
horizontes da sua compreensão e vivência, possibilitando a interação com outras
formas de crer e de organizar a vida cristã. Nesse serviço interagem mística e
militância, identidade e profecia, realismo do presente e esperança utópica no futuro.
Como profecia utópica, de um lado o ecumenismo questiona toda tendência ao
fechamento identitário da Igreja, toda pretensão de absolutismo, fundamentalismo e
13
exclusivismo que não considere o valor da diversidade, dos dons e carismas que o
Espírito concede no interior do cristianismo. De outro lado, o ecumenismo afirma que
a comunhão plena entre os cristãos é possível porque tal é o desígnio de Deus, não
obstante as dificuldades que se manifestam no presente. A nós cabe trabalhar para
que esse desígnio aconteça o mais breve possível em nossa história. Para todos os
cristãos cabem as palavras do Vaticano II:
Este sagrado Concílio deseja insistentemente queas iniciativas dos filhos da Igreja católica juntamente
com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se ponham obstáculos aos caminhos da
Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar
consciente de que o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de
Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca inteiramente a sua esperança na oração de
Cristo pela Igreja, no amor do Pai para conosco e na virtude do Espírito Santo. “E a esperança não será
confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”
(Rm 5,5) (UR 24).
14
O
Capítulo I
O MOVIMENTO ECUMÊNICO
1. Uma história surpreendente
movimento ecumênico tem mais de um século de existência. Com o intuito de
aproximar e possibilitar o diálogo, a cooperação e a comunhão entre cristãos e
Igrejas, esse movimento ganhou terreno em ambientes eclesiais onde outrora se
regava a semente do distanciamento e da divisão. Aos poucos foram surgindo
associações de cristãos e de Igrejas que o enriqueceram com seus carismas e o
fortaleceram com suas iniciativas. Palavras como respeito mútuo, tolerância, diálogo,
cooperação, fraternidade, comunhão, perdão... se sobressaem na linguagem de muitos
cristãos, redimensionam a consciência eclesial, a orientação doutrinal, a
espiritualidade e o agir pastoral das Igrejas. Em muitos espaços o ecumenismo passou
a ser uma palavra de ordem, um imperativo da consciência cristã e eclesial. Tornou-se
um fato social impactando o mundo inteiro, e um fato eclesial dando novos
horizontes para o ser e o agir das Igrejas que a ele aderiram.
Esse movimento nasceu da inquietação profética de pessoas que se questionavam
com a situação de divisão entre os cristãos. E entenderam que essa realidade
contradiz a essência do ensinamento do Evangelho: o amor que gera comunhão. Não
se pode ser cristão autêntico conformando-se com a divisão dos cristãos. Sobre a
divisão, não se justifica, se penitencia. Profetas da unidade, como o batista William
Carey (1761-1834), os calvinistas Adolphe Monod (1802-1856) e Henry Dunant
(1828-1910), o metodista John Mott (1865-1955), os anglicanos Paul Wattson (1863-
1940) e Charles H. Brent (1862-1929), os católicos Paul Couturier (1881-1953),
Lambert Beauduin (1873-1960), o luterano Nathan Soderblom (1866-1931), entre
outros, intuíram com a profundidade da fé evangélica que a divisão dos cristãos é um
mal que precisa ser superado. E trabalharam intensamente para isso, criando
instrumentos de diálogo e de comunhão, como a Aliança Evangélica (Londres, 1846),
as associações cristãs de moços e moças (Inglaterra e EUA, na década de 1840), a
Federação Mundial de Estudantes Cristãos (Inglaterra, 1895), os movimentos Vida e
Ação (1925) e Fé e Constituição (1937), a Semana de Oração pela Unidade dos
Cristãos (universalizada a partir de Lyon, em 1935), e centros ecumênicos diversos,
dos quais destacam-se o Conselho Mundial de Igrejas (Amsterdã, 1948), que
congrega hoje 347 Igrejas. Instrumentos que visam aproximar as diferenças,
15
reconciliar as divergências, fortalecer as aspirações por comunhão.
As Igrejas inicialmente olharam à distância o cenário ecumênico que se formava,
um pouco à margem e um pouco já na soleira de seus templos. Mas logo sentiram a
necessidade de apresentar sua compreensão do ecumenismo. Em 1920, o patriarcado
ortodoxo de Constantinopla dirige uma carta encíclica a todas as Igrejas, propondo
uma liga de Igrejas cristãs. No mesmo ano, a comunhão anglicana apresentou o
chamado Quadrilátero de Lambeth, como base para o restabelecimento da unidade
dos cristãos. [1] Também teólogos e teólogas de diferentes Igrejas sintonizaram-se
com a causa ecumênica e deram sua contribuição por uma hermenêutica da doutrina
cristã que favorecia o diálogo entre as Igrejas. [2] Temos, assim, o “movimento
ecumênico” que hoje congrega centenas de comunidades cristãs em todo o mundo.
Quem nele se integra abre sendas entre os muros que separam milhares de cristãos e
alargam os caminhos do diálogo, da convivência, da comunhão.
2. A Igreja católica e o ecumenismo
2.1. Andando na contramão
Do início do movimento ecumênico na forma hoje conhecida (1910), até meados
do século XX, a Igreja católica não demonstrou simpatia com a sua proposta. Na
postura católica de resistência ao ecumenismo, fatores culturais alimentadores do
preconceito mútuo entre católicos e protestantes, mesclavam-se com fatores
teológicos, como a concepção de Igreja e de sacramentos. Pesava o fato de o
ecumenismo ter origem no meio protestante, com as marcas eclesiológicas e
espirituais desse, e a consequente concepção de unidade na fé compatível com uma
diversidade institucional na Igreja, o que se contrapõe frontalmente à tendência
uniformista do catolicismo.
Assim, por décadas o movimento ecumênico teve sua natureza, suas motivações e
seus objetivos duramente contestados pelo magistério católico. O próprio termo
“ecumenismo” não encontrava nos meios católicos a compreensão que assumia no
interior do movimento ecumênico. No ano de 1950, a Enciclopédia Católica, assim
afirma: “No sentido próprio, ecumenismo é a teoria mais recente que brota dos
movimentos interconfessionais, especialmente protestantes, para alcançar a unidade
das Igrejas cristãs [...] para os católicos, são proibidas as vias do ecumenismo no
sentido originário do termo” (apud Vercruysse, 1992, p. 10). Assim, “ecumenismo”
diz respeito apenas à conservação da integridade da fé católica romana.
Os fiéis católicos foram proibidos de participar no movimento ecumênico. O Papa
16
Pio XI, na Encíclica Mortalium Animos (1928), chamou os ecumenistas de
panchristiani e afirmou que “a Sé Apostólica não pode, de modo algum, participar
das suas reuniões, e de nenhum modo os católicos podem aderir ou ajudar tais
tentativas”. O Santo Ofício, em decreto de 8 de julho de 1928, respondeu non licet à
consulta: “se é permitido aos católicos assistirem, ou interessarem-se por reuniões,
agrupamentos, conferências, ou sociedades de não católicos, que tenham por objetivo
reunir sob um só pacto religioso (uno religionis fodere) todos aqueles que, de alguma
forma, reivindicam o nome de cristãos” (DH 2199). O próprio magistério católico
recusou, reiteradas vezes, os convites para participar de momentos que marcavam
progressos na estruturação do movimento ecumênico, como na ocasião da
Conferência de Edimburgo (1910), na criação dos organismos “Vida e Ação” (1925)
e “Fé e Constituição” (1927), na assembleia de fundação do Conselho Mundial de
Igrejas (1948). A primeira vez que a Igreja romana enviou representantes a um evento
do Conselho Mundial de Igrejas foi na assembleia em Nova Délhi (1961). Sete anos
mais tarde, porém, a Igreja católica já enviou uma delegação oficial para uma
assembleia do Conselho, em Upsala (1968).
2.2. Conversão de rota
Às vésperas do Concílio Vaticano II, a posição de Roma começa a mudar. Os anos
60 do século XX criaram uma atmosfera cultural que afirmava o direito à liberdade
de expressão sociorreligiosa, a valorização do indivíduo pela filosofia existencialista,
o reconhecimento do valor da diferença. Nesse contexto, a Igreja sentia a necessidade
de uma revisão profunda em seu ser e seu agir, rompendo o casulo do solipsismo no
qual se fechara há séculos. Tal foi uma das finalidades do Concílio Vaticano II,
propondo como uma das expressões do aggiornamento da Igreja as novas relações
com a sociedade, com as religiões, com as outras Igrejas.
No que se refere à relação com as demais Igrejas, as condições para as mudanças
foram preparadas muito antes.
a) No âmbito da reflexão teológica, vai-se construindo uma nova compreensão das
comunidades cristãs não vinculadas a Roma e uma revisão da eclesiologia católica
em perspectiva de diálogo. Na verdade, as primeiras intuições ecumênicas na teologia
católica são ainda do século XIX, com Johann Adam Möhler (1796-1838) e John
Henry Newmann (1801-1890). Eles propuseramuma concepção de unidade eclesial
que superava a perspectiva institucionalista, juridicista e visibilista da eclesiologia da
“sociedade perfeita”, então em voga. Möhler dá ênfase aos temas da unidade e do
17
aspecto místico da Igreja, valorizando a interioridade das estruturas visíveis da Igreja,
o recurso aos Padres e às Escrituras, o que favorece o diálogo com os evangélicos (A
Unidade, 1825; Symbolica, 1832). Newmann explicita a estrutura sacramental da
Igreja, continuadora da vida da graça. Sua eclesiologia baseia-se na noção de
santidade, vitalidade e concreção mística (Apologia pro vita sua, 1864). Ambos
evitam o tom apologético, como era normal no seu tempo. Mas o trabalho teológico
mais significativo para o impulso ecumênico foi de Yves Congar, tratando da divisão
dos cristãos e propondo “princípios de um ecumenismo católico” (Chrétiens Désunis,
1937). Em sintonia com Congar estão outros, como K. Rahner, Balthasar, J.
Daniélou, que muito contribuíram para uma teologia ecumênica. O Vaticano II vai
acolher a reflexão desses teólogos, mudando a ideia de “ecumenismo católico” para
“princípios católicos” do ecumenismo, que aparecem sobretudo no primeiro capítulo
do Decreto Unitatis Redintegratio.
Ainda muito antes do Concílio, ensaiam-se diálogos teológicos entre as Igrejas,
como as “conversações de Malines” realizadas por teólogos anglicanos e católicos de
1921 a 1925.
b) Na espiritualidade, vai-se construindo uma mística do diálogo que se expressa
pelo intercâmbio espiritual entre católicos, evangélicos, anglicanos e ortodoxos,
amenizando as tensões e os conflitos doutrinais. A principal força é a oração em
comum. Em 1865, o Papa Leão XIII, no seu Breve Providae Matris, recomendou
uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na primeira semana de
Pentecostes: “Trata-se de rezar por uma obra comparável à renovação do primeiro
Pentecostes, onde, no Cenáculo, todos os fiéis estavam congregados em redor da Mãe
de Jesus, unânimes no pensamento e na oração”. Em 1867, escreve na Carta Encíclica
Divinum Illud Munus, sobre o valor da oração em que se pede que o bem da unidade
dos cristãos possa amadurecer. Quando a Society of the Atonement se tornou
corporativamente mem- bro da Igreja católica, o Papa Pio X concedeu, em 1909, a
sua bênção oficial à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos no mês de janeiro.
Mas foi Bento XV que a introduziu de maneira definitiva na Igreja católica. Também
Pio XII, na sua Carta Encíclica Mystici Corporis (1943), reiterava que, seguin- do o
exemplo de Jesus Cristo, teria rezado pela unidade da Igreja. É significativo o fato de
o Papa João XXIII ter anunciado o Concílio no dia 25 de janeiro de 1959,
encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. [3] A partir de 1937,
o padre Paul Couturier (1881-1953) e Paul Wattson (1863-1940) fortalecem a
dimensão ecumênica dessa semana, propondo celebrações que reúnem cristãos de
18
diferentes Igrejas na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Também o monge
beneditino Lambert Beauduin (1873-1960) contribui com a espiritualidade ecumênica
fundando, em 1925, os “monges da união”, na Bélgica, para fortalecer a unidade
espiritual sobretudo entre católicos e ortodoxos. Em 1939, Beauduin funda a revista
Irenikon, ainda hoje uma das principais nos meios ecumênicos.
c) A criação de organismos ecumênicos: uma série de organizações ecumênicas
vão surgindo, como o Centro Istina (Paris), o Centro Santo Irineu (Lyon), o
movimento Una Sancta (Alemanha), a Associação Unitas (Roma), o Centro Pro
Unione (Roma), entre outros. Essas organizações ecumênicas fomentam encontros
entre as Igrejas e as ajuda a realizar o exercício do encontro, da acolhida mútua, do
diálogo, da cooperação. São importantes instrumentos de comunicação e de
intercâmbio dos saberes, das experiências e da vida entre as diferentes Igrejas.
d) Na ação social, cristãos de diferentes Igrejas solidarizaram-se nos esforços pela
promoção humana, sobretudo durante os dois grandes conflitos mundiais.
2.3. Nos caminhos ecumênicos
Essas iniciativas traçam os caminhos ecumênicos para a Igreja católica. Elas
propiciam, nos meios católicos, atitudes de respeito, convivência pacífica, diálogo e
cooperação com os cristãos das diferentes tradições eclesiais. Isso repercutiu na ação
do magistério, que aos poucos vai entrando nas estradas do ecumenismo. A primeira
iniciativa ocorreu no pontificado do Papa Pio XII, com o primeiro pronunciamento
positivo do magistério católico sobre o movimento ecumênico, na Instrução do Santo
Ofício, Ecclesia catholica (20 de setembro de 1949):
Em diversas partes do mundo, quer em virtude dos acontecimentos exteriores e da mudança das
disposições dos fiéis, o desejo de que todos os que creem em Cristo Senhor Nosso voltem à unidade
tornou-se mais vivo de dia para dia, sob inspiração da graça do Espírito Santo, no coração de muitos
homens separados da Igreja católica.
O mesmo documento tem orientações práticas, dizendo aos bispos que
Não devem somente velar diligente e eficazmente por todo esse movimento, mas também promovê-lo e
dirigi-lo com prudência, primeiramente para ajudar os que procuram a verdade e a verdadeira Igreja,
depois para afastar dos fiéis os perigos que resultam facilmente da atividade desse movimento.
Vê-se que o documento, ao mesmo tempo que olha positivamente o movimento
ecumênico, expressa também cautela no engajamento prático, com explícito temor de
prejuízos aos fiéis católicos. De qualquer forma, a Instrução Ecclesia catholica foi
19
um estímulo aos ecumenistas católicos. Em 1952, foi constituída a “Conferência
católica para questões ecumênicas” (Tavard, s/d, p. 272).
Passaram-se quase vinte anos para que o magistério católico tivesse um
posicionamento corajoso e efetivo para o engajamento ecumênico. O Papa João
XXIII, sustentado em sua experiência de diálogo, [4] apenas três meses após ter sido
eleito, em 1958, convocou um Concílio que teria a promoção da unidade dos cristãos
como um dos objetivos principais. Em 29 de janeiro de 1959, dizia aos cardeais,
depois de lhes ter comunicado a sua intenção de convocar o Concílio: “Renovamos o
nosso convite aos fiéis das comunidades separadas para também elas nos
acompanharem amavelmente nesta busca da unidade e da graça à qual tantas almas
aspiram de todos os pontos da terra”. Foi consequente: em 1960, João XXIII criou o
Secretariado para a Unidade dos Cristãos, com a finalidade de ajudar a preparar a
realização do Vaticano II, dando-lhe uma dimensão ecumênica; convidou
observadores ortodoxos, anglicanos e protestantes para participar do Concílio,
aprovou a presença de católicos romanos na assembleia do Conselho Mundial de
Igrejas em Nova Délhi (1961), e retirou as expressões antissemitas da liturgia da
Sexta-Feira Santa. Seu sucessor, Paulo VI, entendendo que a divisão dos cristãos é
um dos mais graves problemas do cristianismo e da humanidade, deu continuidade ao
objetivo ecumênico do Concílio e estabeleceu contatos com os líderes das Igrejas e
dos organismos ecumênicos (como o Conselho Mundial de Igrejas, em 1969). Em sua
primeira encíclica, Ecclesiam Suam (1964), colocou o diálogo no centro da
autoconsciência da Igreja e da sua ação evangelizadora. Nesse pontificado iniciaram-
se os diálogos bilaterais sobre a doutrina cristã.
Na mesma direção segue João Paulo II, apoiando a participação católica no
movimento ecumênico, estabelecendo relação com líderes de Igrejas e de organismos
ecumênicos, fortalecendo os diálogos bilaterais. Duas novidades nesse pontificado: a)
a publicação da primeira encíclica sobre o ecumenismo, Ut Unum Sint, na qual afirma
que os cristãos devem “professar juntos a mesma verdade sobre a cruz” (UUS 1).
Para isso, o Papa se propõe a “promover todo e qualquer passo útil... para que a
unidade dos cristãos cresça até chegar à plena comunhão” (UUS 2), pois a causa da
unidade “é um compromisso bem próprio do bispo de Roma” (UUS 4). b) O impulso
ao diálogo inter-religioso com os encontros de líderes das religiões em Assis (1986,
1996,2002) e Roma (2000).
O Papa Bento XVI não apresenta novidades em relação à promoção do diálogo
ecumênico e inter-religioso. Nesse campo, teve uma expressão tímida, se comparado
20
aos seus antecessores. Os tempos agora são outros. Desde o final do pontificado de
João Paulo II, fatores conjunturais do catolicismo freiam consideravelmente o
impulso ecumênico e inter-religioso do Vaticano II. Assim, os pronunciamentos e
gestos ecumênicos de Bento XVI perdem força e visibilidade para atitudes resistentes
ao diálogo, sobretudo de setores da cúria romana e de alguns movimentos eclesiais
católicos.
O atual pontificado do Papa Francisco, mesmo se ainda breve para uma análise,
demonstra querer fortalecer as iniciativas por uma “cultura do encontro”, construindo
um cenário eclesial favorável para o ecumenismo e o diálogo das religiões. Os gestos
do Papa Francisco falam mais do que os seus pronunciamentos. Surpreende, por
exemplo, a sua história de profunda amizade e de intercâmbio de experiências e de
concepções tanto “sobre o céu” quanto sobre “a terra” com o rabino Abraham Skorka
(Bergoglio e Skorka, 2013); a acolhida em sua residência de um grupo de rabinos
para uma refeição kosher, em março de 2014; a relação também com líderes de outras
religiões. Em sua primeira Exortação Apostólica, afirma que “uma atitude de abertura
na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões... Esse
diálogo inter-religioso é condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte,
é um dever para os cristãos” (EG, 250).
Igual apoio o Papa Francisco dá ao ecumenismo. Na celebração que deu início ao
seu pontificado, estavam presentes representantes de diversas Igrejas, junto com
líderes de diferentes tradições religiosas. Ao recebê-los em audiência na sala
Clementina do palácio Apostólico do Vaticano, o Papa Francisco afirmou: “Desejo
assegurar minha firme vontade de prosseguir com o diálogo ecumênico”. Insistiu na
necessidade de fortalecer os esforços pela unidade dos cristãos, como uma forma de
testemunhar de maneira “livre, alegre e valente” o Evangelho. Acrescentou: “Será
nosso melhor serviço (a unidade) em um mundo marcado por divisões, contrastes e
rivalidades”. [5] Continuam as visitas formais dos líderes das Igrejas, o trabalho das
comissões bilaterais e do dicastério da cúria romana encarregado de promover a
unidade dos cristãos. Esperava-se um gesto mais contundente do Papa Francisco no
apoio à X Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas realizada em Busan, Coreia do
Sul, em outubro de 2013. Cogitou-se, por exemplo, uma intervenção por vídeo-
conferência. Não aconteceu. Mas na carta enviada pelo Cardeal Kurt Koch, delegado
católico para a assembleia, em 4 de outubro de 2013, afirmou: “Asseguro-vos o meu
grande interesse pastoral pelas deliberações da Assembleia e confirmo de bom grado
o compromisso da Igreja católica em dar continuidade à sua longa cooperação com o
21
Conse- lho Ecumênico das Igrejas”. Em seu ensinamento ecumênico, o Papa exorta:
“Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para
isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada, sem medos nem
desconfianças, e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do único
Deus” (EG 244). Entende que “Dada a gravidade do contratestemunho da divisão
entre os cristãos... é urgente a busca de caminhos de unidade” (EG 246). E dá o
método para essa busca: “Se nos concentramos nas convicções que nos unem e
recordarmos o princípio da hierarquia das verdades, poderemos caminhar
decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho” (EG
246).
Assim, no magistério conciliar e pós-conciliar está preparando o terreno para que
os cristãos católicos assumam o ecumenismo como algo próprio de sua consciência
cristã e eclesial. Afinal, todos os discípulos de Cristo têm alguma responsabilidade
tanto na situação de divisão dos cristãos como na busca de superação dessa divisão.
3. A ecumenicidade do Vaticano II
Contudo, o ponto de partida dessas iniciativas é o Concílio Vaticano II. Esse
Concílio não apenas reconhece o valor do movimento ecumênico, mas o acolhe como
algo próprio da Igreja católica, torna-o “um imperativo da consciência cristã” (UUS
14) e integra os católicos definitivamente nos esforços de busca da unidade dos
cristãos. O próprio Concílio foi um “fato ecumênico”, como se constata em seus
objetivos, no seu ensino, na presença dos observadores das Igrejas.
3.1. A proposta ecumênica de João XXIII
No dia 25 de dezembro de 1961, João XXIII anunciou que o Concílio que se
iniciaria em 1962 seria uma busca de aggiornamento da Igreja, em sua organização,
sua doutrina e sua ação evangelizadora. Isso não é novidade em relação aos Concílios
anteriores. O novo é o fato de o processo de aggiornamento dever acontecer, agora,
também numa perspectiva ad extra, até então praticamente desconsiderada. O
Vaticano II tem como escopo pautar novas relações da Igreja com o mundo, com as
outras Igrejas, com as religiões. Assim, o Concílio foi apresentado também como um
convite às Igrejas que, imbuídas do espírito ecumênico, muito podem colaborar com
os trabalhos do Concílio:
[...] convidamos também os cristãos separados da Igreja católica [...] Sabemos, também, que o anúncio do
Concílio não só foi por eles acolhido com alegria, mas não poucos já prometeram oferecer as suas orações
para seu feliz êxito, e esperam enviar representantes de suas comunidades para seguirem de perto os
22
trabalhos. Tudo isso é para nós motivo de grande conforto e esperança (João XXIII, 2007, p. 16).
O ecumenismo não só condiz com os esforços de atuali- zação da Igreja, mas
também é uma exigência dessa atua- lização. A busca da unidade dos cristãos é a
busca que a Igreja faz de si mesma, no aprofundamento de sua natureza, identidade e
missão. E João XXIII entendeu que isso só seria possível refletindo sobre a condição
da Igreja católica na relação com as demais Igrejas.
O ecumenismo tornou-se, assim, “um dos principais propósitos do sagrado
Concílio Ecumênico Vaticano II” (UR 1). Isso impactou tanto o catolicismo quanto
as outras Igrejas e a sociedade como um todo. Causou preocupações, temores e
expectativas. Os padres conciliares logo perceberam os muitos desafios que
precisavam superar para realizar o objetivo ecumênico do Concílio, como a
resistência ao ecumenismo, até então visto como “coisa de protestantes”; a definição
de critérios para a participação de fiéis católicos no movimento ecumênico; a
dificuldade de consenso na compreensão da unidade que oscilava entre, de um lado, a
ideia de uma reunião das Igrejas separadas em torno de um centro, Roma; e, de outro
lado, como uma associação das Igrejas, nenhuma das quais pode pretender-se
realização única da Igreja de Cristo. Como propor a unidade ecumênica sem
abandonar a ideia do “centro”? Como manter essa ideia sem que ela indique
uniformidade, mas real abertura para uma nova condição da Igreja, reconciliada em
suas diferentes tradições históricas? Os padres conciliares são desafiados a rever suas
concepções de unidade. E aqui emergem mais questões: será possível abandonar o
ecumenismo de retorno e imaginar uma Igreja única que não esteja centrada no bispo
de Roma? Ou como conceber uma Igreja que, mesmo vinculada ao primado
pontifício, não imponha a ideia do retorno às estruturas de uma tradição histórica?
Ainda, como entender o exercício do ministério petrino de forma condizente com a
causa ecumênica? Essas questões acompanham a aspiração ecumênica pelo longo
caminho da unidade, no anseio de respostas que vinculem as Igrejas tanto numa
concepção comum de unidade quanto nos elementos que a sustentam. As respostas
devem ser buscadas lançando um novo olhar para o pluralismo eclesial, que não mais
deve ser considerado na ótica da apologética polêmica, mas na perspectiva do
diálogo, da convivência e da cooperação.
Vê-se, com isso, que a questão ecumênica é uma questão eminentemente
eclesiológica. A reflexão avança à medida que se renova aeclesiologia, considerando
a Igreja no seu devir histórico. Assim, é possível conceber a unidade como uma
recuperação, um movimento para a frente, imprevisível quanto às suas modalidades.
23
Isso supõe uma autocrítica, um aprofundamento doutrinal, uma ascese teológica e
espiritual. Tal esforço é o que dá condições para entender o ecumenismo (como já
intuiu a Instrução Ecclesia catholica de Pio XII, em 1949), como fruto da “moção da
graça do Espírito” (UR 1), algo que condiz com a necessidade de renovação da Igreja
(cf. UR 6) e que diz respeito a todos os cristãos, de modo que também os católicos
precisam nele se empenhar (cf. UR 5,24).
O fato é que o objetivo ecumênico fez do Concílio uma verdadeira escola de
ecumenismo para os bispos. Muitos deles desconheciam as questões relativas ao
ecumenismo, pelo fato de a Igreja católica não estar integrada no movimento
ecumênico de então. Entendiam-no como um fenômeno generalizado de consciência
coletiva que vê na divisão dos cristãos um mal a ser superado de alguma forma. Aos
poucos, a Igreja vai se esforçando para compreender que a superação desse mal não
depende apenas dela, mas dela em comunhão com as demais Igrejas. Isso exige sair
do isolamento no qual se encontrava por séculos e dispor-se a buscar, junto com os
cristãos das demais Igrejas, a forma de ser Igreja que melhor possa corresponder à
Igreja que Cristo quer. A intenção ecumênica do Concílio e seus desdobramentos nas
discussões e nos documentos conciliares surpreendeu. O secretário geral do Conselho
Mundial das Igrejas, Visser’t Hoof, declarou “Nostra res agitur”.
3.2. Mais que ilustres convidados: de observadores a colaboradores
João XXIII sabia que o Concílio não podia propor uma Igreja do diálogo
ecumênico, bem como inter-religioso e intercultural, sem fazer do próprio Concílio
um exercício de diálogo. E isso exigia a presença de interlocutores. O Concílio foi
preparado e vivido também como uma experiência ecumênica. O Secretariado pela
Unidade dos Cristãos (criado para esse fim em 5 de junho de 1960), sob a direção do
Cardeal Bea, fez o convite para que as Igrejas, famílias confessionais e o Conselho
Mundial de Igrejas enviassem delegados observadores ao Concílio. Já na primeira
sessão participaram 38 observadores e 168 ao longo do Concílio. Inédito! Após
séculos de separação, hostilidades e inclusive guerras de religião, cristãos de
diferentes Igrejas se encontram com os bispos católicos na basílica de São Pedro para
acompanhar seus trabalhos e oferecer colaboração. Em audiência especial em 16 de
outubro, durante a primeira sessão do Concílio, o Papa João XXIII disse aos
observadores: “Procurai ler no meu coração, encontrareis aí muito mais que nas
minhas palavras. A vossa presença aqui enche de emoção a minha alma de padre e de
bispo” (apud Fesquet, 1967, p. 48).
Mas houve resistência a essa medida. Muitos bispos não se sentiam confortáveis
24
com os representantes das outras Igrejas. Alguns temiam que os trabalhos e as
discussões dos temas em pauta fossem prejudicados, pois os bispos ficariam
constrangidos em tocar nos assuntos delicados da Igreja católica diante dos
observadores. Enfim, a tendência da maioria dos bispos era raciocinar como se o
catolicismo e o cristianismo se sobrepusessem, sendo desnecessária a presença dos
observadores.
Outros fatores jogaram a favor da decisão de João XXIII. A primeira foi a própria
intervenção do Papa, mesmo contra a maior parte da Cúria, mantendo a decisão de
fazer do Concílio um convite para as Igrejas separadas buscarem a unidade, “num
momento, pois, de generosos e crescentes esforços que de várias partes são feitos
com o fim de reconstituir aquela unidade visível de todos os cristãos” (João XXIII,
2007, p. 13). Seria, pois, natural que o Concílio se dedicasse a questões ecumênicas,
impulsionando, assim, os esforços em prol da unidade dos cristãos. E “graças não
apenas à lucidez e à prudência, mas também à coragem dos membros do
Secretariado, o grupo dos observadores foi aceito, tomou consistência e sua presença
tornou-se realmente significativa” (Aubert, 1976, p. 181).
Não havia, porém, clareza sobre o papel dos observadores no Concílio, o que foi
se definindo no desenvolver dos trabalhos. O fato é que não estavam escondidos, nem
destinados a um papel passivo. Foram colocados nas primeiras filas, numa tribuna
que faz face à dos cardeais, com um tradutor do latim, e receberam os mesmos
documentos de trabalho dados aos bispos – prova de confiança de que seguiriam o
regulamento de sigilo exigido: “A verdade obriga a dizer que o segredo do Concílio é
muito melhor guardado pelos observadores, que se mostram perfeitamente discretos,
do que pelos bispos” (Fesquet, 1967, p. 80). Os representantes das Igrejas eram mais
que ilustres visitantes, eram observadores e, como tal, colaboradores do Concílio.
Assistiam às sessões e estavam presentes também nas congregações gerais. Houve
quem propusesse ouvir os observadores nas próprias aulas conciliares, como Sua
Bea-titude Paulo II Cheiko, patriarca de Babilônia dos Caldeus, dizendo que os
observadores não católicos sujeitaram-se a ouvir os bispos cinco dias por semana. Por
que não ouvi-los ao menos uma vez por semana na assembleia conciliar? (Fesquet,
1967, p. 240). Mas eles tinham a possibilidade de comunicar suas impressões sobre
os temas em discussão nas reuniões semanais que realizavam com o Secretariado para
a Unidade, ou quando consultados por comissões, bispos e teólogos. Era, de fato, uma
novidade e um desafio o encontro face a face entre bispos e protestantes. Mas nada
impediu o convívio e o trabalho conjunto, real antecipação da fraternidade ecumênica
25
desejada para as Igrejas, o que foi constatado com júbilo por O. Cullmann no
pronunciamento que fez em homenagem ao Secretariado para a Unidade dos Cristãos,
em 2 de dezembro, durante a segunda sessão do Concílio:
O vosso secretariado é a porta aberta da Igreja católica sobre as Igrejas não romanas. No que concerne ao
Concílio, vós não nos ocultais absolutamente nada. Não há cortina de ferro. Vós nos permitis não só
observar a face triunfante da vossa Igreja, que nos habituamos a ver, mas também as dificuldades com que
vos sentis embaraçados. Podemos certificar-vos de que é precisamente por esse aspecto que nós nos
sentimos particularmente perto de vós (apud Fesquet, 1967, p. 344).
3.3. O Decreto Unitatis Redintegratio, a charta magna do ecumenismo
Pensado inicialmente como um capítulo da constituição sobre a Igreja, e tratando
originalmente também dos judeus e da liberdade religiosa, o Esquema De
oecumenismo foi se definindo aos poucos até ganhar status de documento que tratava
especificamente da unidade dos cristãos. [6] No início da terceira sessão, o De
oecumenismo já era realmente propositivo e até mesmo desconcertante para alguns,
dado o afastamento das posições negativas em relação aos cristãos não romanos: não
fala “irmãos separados”, mas “irmãos desunidos”; chama as comunidades orientais de
“Igrejas” e as que saíram da Reforma de “Comunidades Eclesiais”; não sugere um
“ecumenismo católico”, mas “princípios católicos do ecumenismo”. Além disso,
“sugere-se que os cristãos não romanos poderiam ser admitidos à mesa eucarística
católica; recomendam-se as reuniões interconfessionais em pé de igualdade [...] tenta-
se julgar as Igrejas não romanas do interior, e não em relação à Igreja católica etc.”
(Fesquet, 267, p. 13).
A perspectiva ecumênica do Concílio surpreendia a todos, alguns bispos resistiam
e outros viam nela suas expectativas realizadas. Os três períodos do Concílio
discutiram o esquema De oecumenismo, e isso foi uma espécie de escola de
ecumenismo aos bispos, os quais passaram a entender o ecumenismo como algo
próprio da fé cristã e, portanto, da Igreja. O ecumenismo constitui a identidade cristã
e eclesial dos fiéis católicos e permite reconhecer a identidade cristã e eclesial
também dos membros das outras Igrejas. O aggiornamento da autoconsciência
eclesial se dá construindo uma nova compreensão da relaçãoda Igreja católica com as
outras Igrejas, com disposição para participar de iniciativas de diálogo, convivência e
cooperação ecumênicas. Essa disponibilidade foi condensada nos três capítulos do
Decreto Unitatis Redintegratio: princípios católicos do ecumenismo (cap. I), a prática
do ecumenismo (cap. II) e a relação com as tradições eclesiais do Oriente e do
Ocidente, considerando as especificidades de cada uma (cap. III). Esse Decreto é a
26
principal expressão da convicção ecumênica do Vaticano II e da integração definitiva
da Igreja católica no movimento ecumênico. Ele “quer propor a todos os católicos os
meios, os caminhos e as formas com que eles possam corresponder a essa divina
vocação e a esta graça” (UR 1). Importa-nos, por ora, tratar dos capítulos I e II, onde
encontramos, respectivamente, os princípios “católicos” do agir ecumênico e
indicações concretas para a sua prática.
a) Princípios doutrinais para o agir ecumênico
Nos números 2-4 do primeiro capítulo, o Decreto apresenta os “princípios
católicos do ecumenismo”, tratando da compreensão de unidade, da relação da Igreja
católica com as outras Igrejas e apresentando, consequentemente, a sua compreensão
de ecumenismo.
A compreensão da unidade da Igreja
A unidade da Igreja, apresentada no Decreto Unitatis Redintegratio, é espiritual,
sacramental, institucional, o que condiz com a eclesiologia presente em outros
documentos conciliares, sobretudo nos n. 8 e 14 da Lumen Gentium, ao mostrarem a
realidade divina e humana da Igreja, como uma “realidade complexa”. A afirmação
da unidade é sintonizada com a unicidade da Igreja: não há várias Igrejas, pois “O
Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja” (UR 1), e ela se mantém “única” (LG 8),
“una e única” (LG 23; UR 3.24), como o Povo de Deus “uno e único” (LG 13.32; AG
1.7), o único rebanho de Cristo (LG 15; UR 2; AG 6), no qual todos os membros
formam um só Corpo de Cristo (LG 7; UR 3; AG 7). A variedade de formas
históricas da Igreja una são admissíveis à medida que não se tornam expressão de
divisão, oposição, contradição da única Igreja. O múltiplo pode expressar, mas não
fragmentar o uno e único.
A unidade é, primeiramente, de caráter espiritual, como uma “divina vocação” e
uma “graça” (UR 1). O movimento ecumênico não “dá”, portanto, a unidade à Igreja,
pois ela é dom de Deus. Trata-se da natureza mesma da Igreja, um elemento
constitutivo da sua essência, e nela a unidade “subsiste indefectivelmente” (UR 4),
não pode ser perdida em sua interioridade. Mas houve a perda da expressão externa,
histórica, da essencialidade una e única da Igreja. As divisões ocorridas na história do
cristianismo dificultam a compreensão da unidade e unicidade eclesial. Grupos e
comunidades cristãs diferentes e antagônicos entendem-se partícipes da una e única
Igreja. Nesse contexto, a meta dos esforços ecumênicos é a recuperação da
visibilidade histórica da unidade, que foi perdida pela divisão dos cristãos. Esses
esforços combatem o indiferentismo e o conformismo com a constante fragmentação
27
do cristianismo e propõe caminhos de reconciliação. Tal é o escopo do Decreto:
denuncia a divisão cristã como algo que não condiz com a fé em Cristo e o modo de
vida dos seus discípulos, afirmando que a divisão “contradiz abertamente a vontade
de Cristo”, é um “escândalo para o mundo” e um “obstáculo à pregação do
Evangelho” (UR 1). [7] E propõe “os meios, os caminhos e as formas” pelas quais os
cristãos católicos podem contribuir para a superação dessa realidade.
Um passo importante para isso é assumir a parcela de culpa na divisão dos
cristãos, comprometendo-se na superação dessa situação que acontece “não sem
culpa dos homens dum e doutro lado” (UR 3). Exige aprofundar a consciência de que
a comunhão é a verdadeira natureza da fé cristã e eclesial, e que esta deve ser vivida
com todos os que professam a fé em Cristo e na sua Igreja. Para tal, é importante uma
reinterpretação dos pressupostos da separação dos cristãos, buscando compreender se
as causas de divisão no passado são válidas ainda hoje. Em ambos os casos, é preciso
que todos estejam atentos para “que não se ponham obstáculos aos caminhos da
Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo” (UR
24) a favor da unidade dos cristãos e da Igreja. Assim, a unidade interna, sacramental
e sobrenatural da Igreja Corpo Místico de Cristo vai ganhando perfeição em sua
expressão histórica e “esperamos que cresça de dia para dia, até a consumação dos
séculos (UR 4).
Esse esforço acontece desenvolvendo uma concepção de unidade que nem sempre
encontra consenso entre as Igrejas. O Decreto Unitatis Redintegratio apresenta dois
elementos que estão constantemente na pauta do diálogo:
a) Os meios da unidade eclesial: estes são, primeiramente, a ação do Espírito Santo, “princípio da unidade
da Igreja” (UR 2), que enriquece a Igreja com dons e ofícios “para a edificação do corpo de Cristo” (Ef
4,12). Em segundo lugar, Cristo deu aos Doze a missão de congregar os seus fiéis. Pedro, entre eles,
recebe o cômpito de ser o primeiro responsável pela manutenção da unidade do corpo eclesial. Assim, o
ministério petrino, realizado em conjunto com o colégio episcopal, é “referência” para a unidade da
Igreja. Em terceiro lugar, os elementos constitutivos, sobre os quais se assenta a unidade da Igreja, são a
confissão da mesma fé, a celebração do culto divino (pelos mesmos sacramentos), e a “fraterna
concórdia da família de Deus” (apascentada pelos mesmos ministérios) (UR 2).
Naturalmente, a tradição católica tem todo o direito de propor os meios que julga necessários para a
unidade da Igreja. Mas esse direito não lhe é exclusivo: as outras tradições eclesiais também o possuem.
E aqui está o teste do espírito ecumênico em cada Igreja. Num espírito ecumênico, os meios para a
unidade na concepção de cada tradição eclesial são uma proposição, e não uma imposição. A proposta
de uma tradição precisa fazer o exercício de deixar-se confrontar pelas propostas de outra tradição. Um
confronto maduro, numa atitude de diálogo em busca da compreensão mútua. Daí podem emergir
tensões e conflitos. Mas a meta da unidade em Cristo como convicção comum será a razão de fé
fundamental para superá-los.
28
b) O modelo de unidade: afirma o Decreto Unitatis Redintegratio que a unidade não é uniformidade, mas
acolhe a diversidade como constitutiva da comunhão eclesial. “Guardando a unidade nas coisas
necessárias”, admite-se “a devida liberdade” na espiritualidade, na disciplina, nos ritos litúrgicos, na
reflexão teológica, na ação evangelizadora etc. (UR 4). O elo de ligação entre unidade e diversidade não
é nenhum princípio disciplinar, canônico ou teológico, mas espiritual: “em tudo cultivem a caridade”
(UR 4). É na prática do amor que a comunhão na Igreja se sustenta, de modo que as diferenças se
complementam, convivem apaziguadas e reconciliadas no “amor que foi derramado em nossos
corações” (Rm 5,5).
Tal compreensão é um desafio a ser enfrentado pela Igreja católica no contexto do diálogo ecumênico.
A tendência à unidade como uniformidade institucional é expressiva nos elementos estruturantes da sua
organização, de modo que a relação com a diversidade é mais uma hipótese do que um fato. Isso deve-
se, em grade parte, a dois principais elementos: à forma centralizada da sua organização eclesial e à
tendência à universalização. A centralização, sobretudo das decisões, tem base na concepção hierárquica
e piramidal da comunidade eclesial, apresentando sérios desafios para o exercício da colegialidade, da
subsidiariedade e da corresponsabilidade. A tendência universalista causa tensões e conflitos na relação
entre Igreja universal e Igreja local.
Esses dois elementos apresentam dificuldades para o diálogo ecumênico. O
diálogo exige relações de igualdade (par cum pari) que se assentam na humildade da
vida cristã, valorização da verdade do Evangelho que se encontra no outro, na
capacidade de falar sintonizada à capacidade de ouvir, enfim, na busca de
complementariedadena compreensão e vivência do discipulado de Cristo. A estrutura
hierárquica da Igreja, exercida de forma centralizadora, a coloca em posição de
destaque, pretendendo ter, senão a primeira, pelo menos a última palavra no debate,
com intensão conclusiva. E o princípio da universalidade dificulta a valorização de
outros modelos na organização da comunidade eclesial, muitas vezes limitando a
compreensão do que o Papa João XXIII afirmou sobre a distinção entre o conteúdo da
fé e a forma de explicitá-lo (João XXIII, 2007, p. 28). Assim, concretamente, a
tradição católica se aproxima mais de um modelo orgânico da unidade, propondo
estruturas e instituições válidas para todos os cristãos, enquanto as demais tradições
se aproximam do modelo da “unidade na diversidade”, admitindo diferentes formas
institucionais de se viver a unidade na mesma fé.
O diálogo continua, e é de se esperar que alcance, um dia, o consenso sobre uma
forma de organizar a vivência da fé em Cristo que possa reunir cristãos das diferentes
tradições eclesiais sem trair a consciência de cada uma das tradições atuais acerca da
sua fidelidade ao Evangelho.
A relação da Igreja católica com outras Igrejas
Os padres conciliares estavam divididos sobre como designar os cristãos
protestantes. O Cardeal Francisco Koening, arcebispo de Viena, afirmou: “Seria
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conveniente que o esquema denominasse as Igrejas separadas de ‘comunidades
eclesiais’, distinguindo entre elas as que conservaram a hierarquia e os sacramentos,
das que rejeitaram ou uma destas realidades ou ambas” (apud Kloppenburg, 1964, p.
325). Já o Cardeal José Elmer Ritter, arcebispo de Saint-Louis, EUA, falando em
nome de alguns bispos norte-americanos, assim se pronunciou no Concílio: “pedimos
calorosamente que não lhes seja negada a designação de ‘Igreja’” (apud
Kloppenburg, 1964, p. 308). Outros propuseram dizer simplesmente “Igreja”, no
lugar de “Comunidade”, entendendo que
As comunidades cristãs, que surgiram depois da Reforma, possuem elementos que justificam o apelativo
“Igrejas”, embora este deva ser usado em sentido imperfeito. Nelas os fiéis recebem o batismo, estão
unidos conosco pelos vínculos da fé, da esperança e da caridade. O Espírito Santo serve-se deles, como
instrumentos de Salvação. Portanto, essas comunidades deveriam ser chamadas “Igrejas”... É preciso
reconhecer algumas dessas comunidades como “Igrejas”, não somente em sentido sociológico, mas
também em sentido teológico, porque os membros delas recebem os dons do Espírito Santo, a fé, a
esperança e a caridade (apud Kloppenburg, 1964, p. 365).
A questão é complexa. E diz respeito ao estatuto teológico das tradições eclesiais
que não estão em comunhão com Roma. Chamá-las ou não de “Igrejas” envolve dois
principais elementos: um sociológico e outro teológico. Sociologicamente, não há
como negar-lhes a realidade de Igreja, por respeito à autoconsciência de cada uma,
expressa em sua organização, seus princípios do credo comum, sua espiritualidade,
sua ação evangelizadora, entre outros. As diferenças formais da Igreja católica nesses
elementos não são a questão central. Mas há que se passar do respeito ao
reconhecimento, e aqui está o elemento teológico da consciência eclesial. O problema
está no conteúdo dos elementos da consciência eclesial, ou seja, na compreensão
teológica que permite entender se tal doutrina e organização condiz com a natureza,
identidade e missão da Igreja que Cristo quer. Em outros termos, trata-se de saber se
a organização institucional da comunidade cristã é de iure divine em seus elementos
socioteológicos. Nisso consiste o status quaestionis do diálogo ecumênico.
Qual o critério para tal avaliação? De um lado, não se deve avaliar a outra Igreja a
partir da própria Igreja, mas a partir dela mesma, ou seja, da sua própria consciência.
E o confronto não deve ser primeiramente com a minha Igreja, mas com o Evangelho.
De outro lado, a própria Igreja entende ser uma concretização fiel do Evangelho, de
modo que ela se torna também parâmetro para compreender as demais Igrejas. Mas
mesmo que essa postura seja legítima no diálogo intereclesial, é preciso transcendê-
la. Ao mesmo tempo que a minha Igreja é “uma perspectiva” para compreender as
outras Igrejas, ela precisa ser colocada nos limites que possui para compreender e
30
viver o Evangelho. Nesse sentido, ela não é parâmetro único, nem o principal para
avaliar a verdade eclesial do outro. Parâmetro mesmo é o Evangelho. A minha
própria Igreja está sob o Evangelho, e dele é instrumento. E as imperfeições que
possui na vivência do Evangelho não lhe permite colocar-se como modelo para as
demais Igrejas.
Entra aqui a questão se uma Igreja expressa ou não “todos” os elementos
necessários para ser a vera ecclesia Christi. O debate é acalorado e está ainda distante
do consenso. Duas posturas se confrontam: de um lado, a necessidade de todas as
comunidades cristãs possuírem “os mesmos” elementos eclesiais para poderem
acolher-se mutuamente como Igrejas. No número 14 da Lumen Gentium, a tradição
católica apresenta a sua compreensão sobre quais são esses elementos. De outro lado,
há o entendimento de que a Igreja de Cristo pode ter configurações históricas
diferenciadas, sem a necessidade de comunhão nos elementos institucionais
(Confissão de Augsburgo, n. 7). A busca de convergência e consenso dessas duas
posições exige um redimensionamento da atual eclesiologia de todas as Igrejas em
perspectiva ecumênica, o que apresentaremos adiante (cap. II, item 3).
A compreensão de ecumenismo: natureza, dimensões e níveis
Por ecumenismo, o Decreto Unitatis Redintegratio entende “as atividades e
iniciativas, que são suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e
oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos” (UR 4).
Não define o que é uma “atividade” ou “iniciativa ecumênica”, mas a valoriza a partir
de quatro aspectos: 1) ela é “suscitada”, não surge nem acontece ao acaso, mas como
impulso da ação do Espírito Santo num contexto, tempo, lugar e nas circunstâncias
eclesiais que exigem a ação ecumênica; 2) ela acontece de forma organizada,
“ordenada” no conjunto da ação eclesial, com objetivos, métodos e fins específicos;
3) trata-se de uma “necessidade da Igreja”, ou seja, a Igreja precisa do ecumenismo
para realizar a sua natureza e vocação à unidade e comunhão – o ecumenismo é algo
constitutivo do ser eclesial, lhe pertence identitariamente; 4) a meta das atividades e
iniciativas ecumênicas é a unidade dos cristãos, a comunhão eclesial. Não se trata de
uma aproximação superficial ou unidade parcial, busca a comunhão plena na fé, nos
sacramentos, nos ministérios, com estruturas eclesiais que lhe deem visibilidade (cf.
UR 3).
O ensinamento conciliar incentiva todo tipo de iniciativa que favoreça à unidade,
fortalecendo o ecumenismo em quatro dimensões: a) o ecumenismo como uma
atitude, um comportamento dialogante perante as diferentes Igrejas, eliminando
31
palavras, juízos e ações que não correspondam à condição destas (cf. UR 4); b) o
diálogo teológico, para aprofundar a doutrina cristã nas várias tradições eclesiais,
distinguindo o “conteúdo” e as “formas” de explicitação das verdades da fé, e
compreendendo que existe uma “hierarquia das verdades” católicas, que mostra “o
diverso nexo com o fundamento da fé cristã” (UR 9,11); c) a cooperação prática, que
favorece a corresponsabilidade das Igrejas em iniciativas pastorais e sociais concretas
(cf. UR 12); d) o ecumenismo espiritual, considerando a oração “a alma de todo o
movimento ecumênico” (UR 8).
As quatro dimensões do movimento ecumênico estão intrinsecamente interligadas:
o ecumenismo precisa de todas para se realizar globalmente. E elas envolvem a Igreja
como um todo, de modo que ninguém está excluído da responsabilidade de trabalhar
pela superação da divisão dos cristãos (UR 5). Mas nem todos podem fazer tudo, de
modo que cada cristão é chamado a perguntar-se em que dimensão pode melhor
contribuir para a causa ecumênica. Essa contribuiçãopode dar-se em dois principais
âmbitos: 1) na vida cotidiana das comunidades, com autonomia de cada fiel para
propô-las, em sintonia com o bispo local. Os fiéis católicos são exortados a dar “o
primeiro passo” na direção dos membros das demais Igrejas, preocupando-se por
eles, rezando por/com eles, comunicando-lhes a sua vida eclesial (cf. UR 4). Trata-se
de testemunhar a fé em Cristo e na Igreja, buscando sempre a renovação necessária
para que o modo de viver sua fé não seja obstáculo à unidade (cf. UR 11). 2) No
âmbito institucional, quando o diálogo acontece envolvendo as lideranças
eclesiásticas, de forma oficial e programada. Ambos os âmbitos do ecumenismo,
popular e oficial, concorrem para mostrar que “a solicitude na restauração da união
dos cristãos vale para toda a Igreja” (UR 5).
O Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo (DE),
do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos (CPPUC),
apresenta os “níveis” da ação ecumênica, orientando especificamente para que essa
ação aconteça: a) no âmbito local – a organização do trabalho ecumênico numa
diocese, sob a orientação do bispo diocesano; b) no âmbito nacional – o diálogo
ecumênico é orientado pela conferência episcopal; c) e no âmbito regional – quando
o diálogo é organizado pela articulação das conferências episcopais de uma
determinada região. Todos esses níveis do diálogo estão em sintonia com as
orientações e iniciativas do CPPUC, fazendo com que, de um lado, o diálogo local e
regional contribua para que as orientações da Igreja universal sobre o ecumenismo
sejam observadas nos diferentes contextos da Igreja e, do outro lado, para que a
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forma de se viver o ecumenismo local e regional contribua para com a causa
ecumênica universal.
b) Indicações práticas para o agir ecumênico
No segundo capítulo, o Decreto Unitatis Redintegratio apresenta os elementos
concretos da ação ecumênica. Inicia afirmando que o ecumenismo deve envolver a
totalidade da Igreja, em seus membros, estruturas e projetos, nada e ninguém está
excluído da responsabilidade de trabalhar pela unidade dos cristãos (cf. UR 5). Mas
para agir ecumenicamente, a Igreja precisa renovar-se em seu ser e seu agir (cf. UR
6). Ecumenismo e renovação caminham juntos, um é exigência do outro. Renovação
não é abandono de convicções, mas aprofundamento e ampliação delas numa postura
de fidelidade à fé de sempre. Assim, à medida que a Igreja avança na caminhada
ecumênica, ela progride também no processo de renovação e aggiornamento proposto
pelo Concílio. Uma Igreja renovada é uma Igreja ecumênica, e vice-versa. O
antiecumenismo manifesta-se ali onde a Igreja não faz o esforço de aggiornamento.
Isso implica um processo de conversão (cf. UR 7) que, de um lado, se expressa pelo
reconhecimento das próprias dificuldades para a vivência da comunhão e da caridade.
Todos temos alguma parcela de culpa na separação dos cristãos. De outro lado,
significa trabalhar para superar a divisão, o que exige o esforço para seguir a Cristo
na humildade, na mansidão, na paciência, posturas que muito contribuem para o
diálogo e a convivência ecumênica. Para tanto, a espiritualidade é fundamental, de
modo que a oração é “a alma de todo o movimento ecumênico” (UR 8). Destacam-se
as Semanas de Oração pela Unidade dos Cristãos, momentos em que todos os cristãos
oram como e com Cristo ao Pai, “que todos sejam um” (Jo 17,21).
Esses quatro elementos da prática ecumênica (o interesse de todos, a renovação da
Igreja, a conversão e a oração) são como que uma preparação, pessoal e comunitária,
para trabalhar outros aspectos igualmente exigentes do diálogo ecumênico. O Decreto
aponta a necessidade de “conhecer a mente” (UR 9) dos outros, sua compreensão da
verdade em sua vida cultural e religiosa. É importante conhecer a história da sua
Igreja, sua doutrina, sua liturgia, sua espiritualidade etc. Sem o conhecimento do
interlocutor, o diálogo não atinge a seriedade e profundidade necessárias para
contribuir com a restauração da unidade e da comunhão. Simultaneamente com o
conhecimento do outro, acontece também melhor conhecimento de si mesmo, num
processo de formação ecumênica (cf. UR 10). O ecumenismo precisa tornar-se objeto
de estudo em sua história, sua natureza, seu método, seus objetivos. Esse estudo pode
acontecer em âmbito acadêmico ou popular. Uma atenção especial precisa ser dada à
33
formação dos agentes de pastoral, sobretudo os ministros ordenados, em cuja
formação muito contribui o intercâmbio de professores das diferentes Igrejas. É
importante ter uma especial atenção ao método da formação da consciência cristã e
eclesial. O modo de expressar a fé não pode causar obstáculo ao diálogo (cf. UR 11).
Não se trata de deixar de dizer o que se pensa e o que se crê, nem de falar com meias
palavras, com receio de ferir o outro. Trata-se de saber expressar a própria convicção
de fé de um modo claro e pleno, mas sem desrespeitar quem crê diferente. O amor à
verdade está unido à caridade e à humildade. Fundamental é entender que há uma
“hierarquia das verdades” na fé católica, de modo que precisa ser dada mais atenção
àquelas que estão mais diretamente vinculadas com o “núcleo” da fé cristã. Como
consequência desses elementos práticos, os fiéis católicos estão prontos para a
cooperação com os membros das outras Igrejas em projetos de ação social e pastoral
(cf. UR 12). A cooperação ecumênica torna-se uma expressão concreta da
consciência ecumênica de cada Igreja e já é um testemunho visível de unidade. Por
ela, os cristãos podem juntos contribuir para a solução dos graves problemas que
afligem toda a humanidade (cf. UR 12).
O Diretório Ecumênico normatiza essas orientações práticas do Decreto Unitatis
Redintegratio, ajudando as Igrejas locais para aplicá-las nos seus projetos de
evangelização. Isso mostra que o ecumenismo não é uma questão de princípios
apenas, mas de gestos concretos, como afirmou o Papa Bento XVI:
Não bastam as manifestações de bons sentimentos. Fazem falta gestos concretos que penetrem nos
espíritos e sacudam as consciências, impulsionando cada um à conversão interior, que é o fundamento de
todo progresso no caminho do ecumenismo. [8]
Temos, assim, a dimensão teórica e a dimensão prática do ecumenismo no ensino
do Vaticano II. O agir ecumênico precisa ser iluminado e sustentado por princípios
teológicos e doutrinais que lhe deem consistência e estabilidade. Esses princípios
ganham concretude nas iniciativas que impulsionam o diálogo, a convivência, a
cooperação e a comunhão entre os cristãos e suas Igrejas. Muitas das iniciativas
ecumênicas fracassam tanto por excesso ou falta de teoria ecumênica, como também
pelo pragmatismo ou falta de prática. O ecumenismo se desenvolve nesses dois
âmbitos. Trata de questões delicadas que tocam diretamente na teologia e na prática
de fé das Igrejas, questões que apresentam uma complexidade que precisa ser tratada
com o devido cuidado e segurança, sob o risco de dificultar ainda mais o já delicado e
frágil diálogo que entre elas acontece.
34
O
Capítulo II
A INCIDÊNCIA DO ECUMENISMO NA VIDA DA IGREJA
Concílio Vaticano II integrou o ecumenismo no modo de ser e agir da Igreja
católica. O próprio Concílio foi um ato ecumênico em si mesmo, pelo objetivo
de favorecer a unidade dos cristãos, pela temática ecumênica tratada praticamente em
todos os seus documentos, pela presença dos observadores. O Sínodo Extraordinário
dos Bispos (1985) afirmou, na Relatio Finalis, C. 7, que, desde então, o ecumenismo
está “profunda e irrevogavelmente gravado na consciência da Igreja” (em: DE, n. 21).
Igualmente, o Papa João Paulo II entendeu que “com o Concílio Vaticano II, a Igreja
católica empenhou-se, de modo irreversível, a percorrer o caminho da busca
ecumênica” (UUS, 3). O ecumenismo é, assim, um apelo permanente para a Igreja:
“O caminho ecumênico (é) caminho da Igreja” (UUS, 7-14). E onde o Concílio foi
assumido de modo efetivo, o ecumenismo ganhou espaço no jeito de a Igreja católica
ser e agir.
1. A transversalidade