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2 ÍNDICE Capa Rosto Siglas Apresentação da coleção Marco Conciliar Introdução Capítulo I - O movimento ecumênico 1. Uma história surpreendente 2. A Igreja católica e o ecumenismo 2.1. Andando na contramão 2.2. Conversão de rota 2.3. Nos caminhos ecumênicos 3. A ecumenicidade do Vaticano II 3.1. A proposta ecumênica de João XXIII 3.2. Mais que ilustres convidados: de observadores a colaboradores 3.3. O Decreto Unitatis Redintegratio, a charta magna do ecumenismo a) Princípios doutrinais para o agir ecumênico b) Indicações práticas para o agir ecumênico Capítulo II - A INCIDÊNCIA DO ECUMENISMO NA VIDA DA IGREJA 1. A transversalidade do ecumenismo no ensino magisterial 1.1. O olhar positivo da realidade cristã plural a) A identidade cristã de todos os batizados b) Igrejas irmãs c) A salvação nas comunidades cristãs d) A vocação missionária 1.2. A Igreja do diálogo 2. O redimensionamento metodológico da teologia 3. A revisão eclesiológica na perspectiva ecumênica 3.1. Eclesiologia da Comunhão a) A communio nas Escrituras e na Patrística b) A comunhão no Vaticano II c) A ecumenicidade da comunhão 3.2. A ecumenicidade das notae ecclesiae a) Unidade b) Santidade c) Catolicidade d) Apostolicidade 4. O ecumenismo na ação evangelizadora 4.1. A recepção pastoral do ensino ecumênico do Vaticano II a) Igreja local e ecumenismo b) As estruturas a serviço da unidade 3 kindle:embed:0002?mime=image/jpg c) Estruturas ecumênicas: estruturas da Igreja? 4.2. Os sujeitos do ecumenismo a) Toda a comunidade eclesial é ecumênica b) Os ministros ordenados 4.3. A formação ecumênica 5. A espiritualidade ecumênica 5.1. A oração, “alma do movimento ecumênico” 5.2. A compreensão ecumênica da liturgia 5.3. Formas concretas da partilha espiritual a) O culto litúrgico não sacramental b) O culto litúrgico sacramental 5.4. Observações sobre a espiritualidade ecumênica Capítulo III - Direções e significados do ecumenismo a partir do Marco Conciliar 1. Balanço da caminhada 2. Ecumenismo para uma Igreja não autorreferenciada 3. Continuidade da recepção ecumênica do Vaticano II: entre pastoral e doutrina 4. A unidade do povo de Deus Conclusão Bibliografia Sobre o autor Coleção Ficha catalográfica Notas 4 SIGLAS AAS – Acta Apostolicae Sedis AG – Ad Gentes ARCIC – Comissão Internacional Anglicana e Católica Romana CDC – Código de Direito Canônico CIC-CIMI – Comissão Igreja Católica-Conselho Mundial de Igrejas CD – Christus Dominus CDF – Congregação para a Doutrina da Fé CICL – Comissão Internacional Católico-Luterana CICO – Comissão Internacional Católico-Ortodoxa CMI – Conselho Mundial de Igrejas CELAM – Conselho Episcopal Latino-Americano CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil CONAC – Comissão Nacional Anglicano-Católica CPPUC – Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos DE – Diretório Ecumênico DH – Dignitatis Humanae EG – Evangelii Gaudium EO – Enchiridion Oecumenicum GS – Gaudium et Spes LG – Lumen Gentium NA – Nostra Aetate OE – Orientalium Ecclesiarum SC – Sacrosanctum Concilium UR – Unitatis Redintegratio UUS – Ut Unum Sint 5 O APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO MARCO CONCILIAR Concílio Vaticano II, concluído há cinquenta anos, refez a Igreja católica em muitos aspectos e, em certa medida, o próprio cristianismo. A intenção de João XXIII de promover um novo Pentecostes na Igreja foi não somente anunciada em várias ocasiões, desde sua primeira inspiração, mas também uma tarefa de construção assumida por ele; tarefa conduzida pela força de sua autoridade, mas também pelo vigor de seu carisma renovador. Sem a ousada inspiração e a liderança convicta e perseverante desse Papa, certamente não teria havido o Vaticano II, ao menos com a dimensão e a profundidade que o caracterizou. Somente pela força carismática de líderes como João XXIII se pode pensar em mudanças como as proporcionadas pelo Concílio em uma instituição milenar com doutrinas e regras cristalizadas. Esse grande Concílio, o mais ecumênico de todos, refez a rota fundamental da Igreja ao colocá-la de frente com o mundo moderno. A Igreja, que estava distante da chamada modernidade e segura de sua posição e verdade, foi capaz de reposicionar-se e elaborar uma nova doutrina sobre o mundo e sobre si mesma. De isolada do mundo, assume-se como sinal de salvação dentro do mundo; de detentora da verdade, reconhece a verdade presente nas ciências e passa a dialogar com elas; então definida como poder sagrado, passa a compreender-se como servidora da humanidade. E o mundo torna-se o cenário do drama humano: lugar de pecado e de graça, porém inscrito no plano maior do amor de Deus que nos cria e nos chama para a comunhão consigo. A Igreja e o mundo estão situados nesse plano misterioso de Deus, a ele se referem permanentemente e são compreendidos como realidades distintas e autônomas, porém em diálogo respeitoso e construtivo. O Vaticano II abriu uma temporada nova na Igreja como fruto de inesperada primavera, na intuição do Papa João XXIII. A essa primavera sucederam-se novos ciclos, com climas diferenciados, sem nos poupar de invernos rigorosos. As decisões conciliares foram interpretadas e praticadas de diferentes modos nos anos que se seguiram à grande assembleia, em função de lugares e sujeitos envolvidos no processo de aggiornamento. Por um lado, é fato que muitas renovações aconteceram em diversas frentes da vida da Igreja. Tanto no âmbito das práticas pastorais quanto da reflexão teológica, o pós-Concílio foi um canteiro que fez a primavera produzir muitos frutos: renovação litúrgica em diálogo com as diferentes culturas, Igreja 6 comprometida com os pobres, diálogo ecumênico e inter-religioso, Doutrina Social da Igreja, experiência de ministérios leigos etc. O novo se mostrou vigoroso, sobretudo nas primeiras décadas do pós-Concílio, e particularmente no hemisfério sul, nas igrejas inseridas em contextos de pobreza e de culturas radicalmente distintas da cultura latino-cristã tradicional. Por outro lado, houve um esfriamento do carisma conciliar, na medida em que a história avançava impondo suas rotinas, mas, sobretudo, uma leitura que buscava evitar a ideia de renovação-ruptura com a tradição anterior. Segundo essa leitura, o Vaticano II teria inovado sem romper com a doutrina tradicional, incluindo a doutrina sobre a Igreja. Essas perspectivas revelam na dinâmica pós-conciliar as lutas por construir o verdadeiro significado do Vaticano II, do ponto de vista teórico e prático. Trata-se de leituras localizadas do ponto de vista geopolítico e teológico-eclesial, com sujeitos e ideias distintos, assim como marcadas por esforços de demonstração da intenção original das decisões dos padres conciliares. Se esse dado revela, de um lado, as dificuldades crescentes de um consenso, expõe, por outro, a atualidade do Concílio como marco eclesial e teológico importante para a Igreja. Pode-se dizer que o Vaticano II começou efetivamente no dia seguinte à sua conclusão, em 8 de dezembro de 1965. Na Audiência de 12 de janeiro de 1966, o Papa Paulo VI reconhecia esse desafio de colocar o Concílio em prática, comparando-o a um rio que iniciava seu fluxo e se dispunha para a Igreja como tarefa para o futuro. E esse rio avançou certamente por terrenos nunca previstos, fecundou novas terras e produziu frutos com sua água sempre viva. Por outro lado, foi um rio represado por muitas frentes eclesiais que temiam sua força; foi desviado de seu curso e canalizado para diferentes direções. Contudo, o rio jamais secou seu fluxo. Continua correndo na direção do Reino, levando sobre suas torrentes a frágil barca de Pedro com seus viajantes, ora cansados e temerosos, ora destemidos e esperançosos. O Vaticano II não foi somente um evento do passado, mas constitui, de fato, o hoje da Igreja católica, a fonte de onde a Igreja retira o sentido fundamental para sua caminhada histórica e para o diálogo com a realidade atual. Esse “Concílio em curso” completa cinquenta anos com uma história e um saldo que merecem ser visitadospor todos os que estão atentos a sua importância para a Igreja em permanente sintonia com o mundo, que avança rapidamente em suas conquistas científicas e tecnológicas. Se a modernidade perscrutada pelos padres conciliares já não existe mais, ela deixou, entretanto, suas consequências positivas e negativas para nossos dias; consequências 7 que exigem de novo o olhar atento da fé cristã, que busca distinguir os sinais dos tempos e lançar os cristãos como sujeitos ativos no mundo: parceiros de busca da verdade e na construção da fraternidade universal. A presente coleção, planejada e oferecida pela Editora Paulus, pretende revisitar o Vaticano II por várias entradas e oferecer rápidos balanços sobre questões diversas, nesses cinquenta anos de prática e de reflexão. Cada uma das temáticas é abordada em três aspectos: a orientação conciliar presente nos textos promulgados pelo grande Sínodo, o desenvolvimento da questão no período pós-conciliar e a análise crítica – balanço e prospectiva – dela. Esse tríplice olhar busca conjugar o desenvolvimento da temática do ponto de vista teórico e prático, ou seja, os seus desdobramentos no âmbito do Magistério e da reflexão teológica, assim como as suas consequências pastorais e sociais. A Igreja se encontra, nos dias atuais, em um momento fecundo de renovação de si mesma, após o conclave que elegeu o Papa Francisco. O Vaticano II se encontra, nesse contexto, em uma nova fase e deverá produzir seus frutos, em certa medida tardios, em muitas frentes que ainda não haviam sido enfrentadas pelos Pontífices anteriores. A própria figura do atual Papa remete para a eclesiologia do Vaticano II, tanto em suas atitudes como em suas palavras. Está viva a Igreja povo de Deus, a Igreja dos pobres, a Igreja servidora, misericordiosa e dialogal. O Concílio tem fornecido, de fato, a direção das reformas enfrentadas com coragem pelo Papa a partir da Cúria Romana. Esse contexto de revisão é animador e permite falar de novo do último Concílio como um marco histórico fundamental para o presente e o futuro da Igreja. É tempo de balanço e reflexão sobre o significado desse marco. Os títulos ora publicados pretendem participar dessa empreitada com simplicidade, coragem e convicção. Cada autor perfila a procissão dos convictos da importância das decisões conciliares para os nossos dias, mesmo sendo o mundo de hoje em muitos aspectos radicalmente diferente daquele visto, pensado e enfrentado pelos padres conciliares na década de 1960. O espírito e a postura fundamental do Vaticano II permanecem não somente válidos, mas normativos no marco da grande tradição católica. Mas continua, sobretudo, um espírito vivo, na medida em que convida e impulsiona a Igreja para o diálogo com as diferenças cada vez mais visíveis e cidadãs em nossos dias e para o serviço desinteressado a toda humanidade, particularmente aos mais necessitados. O diálogo pode ser visto como uma das palavras-chave do Concílio. A acolhida das diferenças até então vistas como estranhas, ameaçadoras e mesmo inimigas foi o espírito que conduziu os padres conciliares na busca dos métodos e dos fundamentos 8 do diálogo com as exterioridades da Igreja. E a exterioridade mais próxima foram, sem dúvida, os cristãos de outras Igrejas, os ortodoxos e os protestantes. De hereges passaram ao status de “irmãos separados”, de distantes passaram a fazer parte do grande rebanho de Jesus Cristo, de rivais foram convidados a buscar juntos com a Igreja católica a verdade. Vale lembrar que a temática do ecumenismo esteve presente desde o primeiro momento do anúncio do novo Concílio por parte do Papa João XXIII. A pergunta se seria um Concílio de todos os cristãos chegou a ser feita dentro e fora da Igreja. A busca do diálogo com o mundo moderno, com os cristãos e com as demais religiões pautou os rumos conciliares e determinou, de fato, a construção de um possível “pensamento conciliar”. O olhar ecumênico esteve presente como um vetor que permitiu aos padres conciliares pensar as fontes da doutrina, a natureza e a missão da Igreja e, evidentemente, a relação concreta com as demais religiões e Igrejas. O Decreto conciliar sobre o ecumenismo afirmou em seu Proêmio que a reintegração da unidade entre todos os cristãos constituía um dos objetivos principais do Concílio (cf. UR 1). Com efeito, mesmo sendo um Concílio da Igreja católica, o Vaticano II não somente contou com a presença de observadores não católicos, como construiu uma doutrina sobre as relações ecumênicas. O ecumenismo não foi entendido como uma simples estratégia de unificação dos cristãos, mas como uma temática inerente ao fundamento da Igreja, na medida em que se insere na própria vontade de Jesus Cristo para os seus seguidores. O ecumenismo é entendido, portanto, como uma missão da Igreja. Em seu Discurso de Abertura do Concílio, João XXIII afirmava: “Deus ‘quer salvar todos os homens e que todos cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4)”. E o Decreto conciliar sobre o ecumenismo manifesta uma visão teológica amadurecida a respeito da ação ecumênica da Igreja. Assim diz em sua conclusão geral: “Este Sacrossanto Sínodo deseja com insistência que as iniciativas dos filhos da Igreja católica se desenvolvam unidas às dos irmãos separados; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo” (n. 24). De fato, depois do cisma do Oriente e da Reforma protestante, nunca a Igreja havia enfrentado a questão ecumênica de forma tão abrangente e profunda como no Concílio Vaticano II. Evidentemente, era um ponto de chegada de um movimento histórico de longa data, do qual haviam participado cristãos de diversas denominações. A constatação comum dos cristãos de que as divisões internas da mesma fé constituíam uma contradição perante os povos nas regiões de missão fazia 9 do ecumenismo uma tarefa urgente para todas as Igrejas. Não faltavam também reflexões teológicas que permitiam uma maior abertura da Igreja para as demais Igrejas, superando o eclesiocentrismo católico e recolocando a eclesiologia em um quadro cristológico mais amplo, que permitia pensar a salvação para além das fronteiras católicas. Após o Concílio, as práticas e as reflexões ecumênicas participaram do destino comum das demais renovações conciliares, ou seja, revelaram avanços e estagnações. O medo do relativismo eclesiológico fez com que muitas práticas positivas fossem gradativamente estagnadas, perdendo o impulso dos tempos imediatamente pós- conciliares. Contudo, muitos cristãos católicos estão hoje convencidos de que o diálogo é o caminho da convivência entre as diferenças, não apesar delas, mas precisamente com elas. A unidade não constitui uma unificação que exclui a diversidade, mas que permite a busca do que é comum, de verdadeiro e bom, para a convivência entre todos os povos. Em tempos de pluralidade cultural e religiosa, o diálogo se mostra como caminho permanente para a construção de relações mais justas e fraternas para toda a humanidade em âmbito mundial e local. O ecumenismo parte do consenso de uma unidade maior em torno do amor que tudo unifica e que possibilita a construção de patamares para a convivência humana. Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada sem medos nem desconfianças, e olhar permanentemente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus. Abrir-se ao outro tem algo de artesanal, a paz é artesanal (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, 244). João Décio Passos Wagner Lopes Sanchez Coordenadores 10 N INTRODUÇÃO o contexto da celebração do cinquentenário do Vaticano II (1962-1965), muitas são as iniciativas de revisitar o Concílio, buscando compreender o que ele significou e significa ainda hoje para o ser e o agir da Igreja católica. Este livro situa- se no conjunto dessas iniciativas, com um objetivo específico: refletir sobre o ensino ecumênico do Vaticano II, verificando a sua incidência na consciênciae na ação eclesial dos católicos, bem como no movimento ecumênico. É importante rever as razões do ingresso da Igreja católica no movimento ecumênico, as implicações do ecumenismo na vida da Igreja, suas iniciativas mais significativas, os desafios atuais e as perspectivas para o futuro do ecumenismo. Pretendemos verificar aqui em que medida o Vaticano II e o ecumenismo se implicam mutuamente na orientação para a Igreja dos nossos tempos, tanto no âmbito universal quanto no âmbito local. A proposta ecumênica do Vaticano II é compreendida no horizonte do programa de aggiornamento proposto pelo Concílio, que, compreendendo estar a Igreja necessitada de renovação (UR 6), entende ser o ecumenismo uma fundamental contribuição para que ela aconteça. O impulso para isso vem, entre outros, do método teológico proposto por João XXIII ao estabelecer uma distinção entre o conteúdo da fé e a sua formulação, o que dá abertura para reconhecer elementos de convergência e até mesmo de comunhão com a explicitação da fé na teologia das outras Igrejas. Por sua vez, os padres conciliares afirmaram a existência de uma hierarquia das verdades na doutrina católica (UR 11), o que possibilita melhor aproximação entre as Igrejas na medida em que elas se entendem vinculadas ao núcleo comum da fé cristã. Esses elementos metodológicos da reflexão da fé possibilitaram um redimensionamento eclesiológico em perspectiva ecumênica, compreendendo a distinção entre as instituições católicas que concretizam a Igreja de Cristo e esta Igreja em si mesma, que “subsistindo” na tradição católica não deixa de ter uma presença operante também nas outras Igrejas (LG 8; UUS 11). Tal é o que se expressa no reconhecimento dos elementa ecclesiae Christi nas diferentes tradições eclesiais e, consequentemente, da graça salvífica de Cristo, que, por esses elementos, nelas atua (LG 15; UR 3). Foi com esse espírito que, nas primeiras décadas após a realização do Concílio Vaticano II, os cristãos católicos passaram a se integrar nas fileiras ecumênicas com a 11 consciência de, por um lado, ter entrado tarde nos caminhos ecumênicos e, de outro, cientes de que há ainda muito caminho a ser feito para alcançar a meta da unidade. Agradecidos aos cristãos e às Igrejas ecumênicas da primeira hora, que abriram os caminhos em busca da unidade, os católicos podem agora, e devem, dar a sua contribuição para alargar suas veredas, fortalecer os passos da caminhada, ajudar na busca da direção. A partir do Vaticano II é impossível abandonar o caminho ecumênico porque ele é tanto o caminho da Igreja quanto o jeito de a Igreja caminhar. Após cinquenta anos do Vaticano II e, concomitantemente, cinquenta anos de caminhada ecumênica para a Igreja católica, o que nela mudou? A resposta a essa questão deve ser buscada no interior da tradição católica e na sua relação com as diferentes Igrejas. Na perspectiva ad intra, somente onde o Vaticano II foi de fato assumido é que o ecumenismo ganhou espaço na Igreja. Ali houve um redimensionamento da Igreja em sua autoconsciência, suas instituições, seus projetos de evangelização, sua espiritualidade, na perspectiva do diálogo com as diferentes tradições eclesiais, religiosas e culturais do nosso tempo. Nesses ambientes, o ecumenismo pode influenciar positivamente no modus essendi e no modus operandi das comunidades católicas. Na perspectiva ad extra, o novo modo de a Igreja ser em si mesma é o que possibilita novas relações com o mundo exterior, com a sociedade, com as religiões, com as demais Igrejas. Em relação a estas, mudou a perspectiva do olhar católico, com o reconhecimento da identidade cristã de seus membros e do patrimônio comum na fé cristã; o reconhecimento da sua eclesialidade pela presença e ação nelas da Igreja de Cristo (LG 8.15; UR 3; UUS 11); o reconhecimento do valor da sua ação evangelizadora, do seu testemunho de fé e de santidade, da salvação que o Espírito nelas e por elas realiza (UR 3). O Vaticano II mudou o rosto da Igreja católica para as outras Igrejas, e o rosto destas para a Igreja católica. Agora são rostos de irmãos, com as mesmas marcas e cicatrizes do pecado que as fragiliza e também da graça que as fortalece. É pouco? Certamente, em vista do muito que é preciso ainda obter para alcançar a unidade desejada. Houve quem se frustrou pelo fato de o Concílio não ter abolido a excomunhão de Lutero, ou por ter sido muito tímido na eclesiologia das Igrejas oriundas da Reforma, ou demasiado reticente na prática da hospitalidade eucarística, entre outros. Poderia ser feito mais da parte católica para promover o ecumenismo? Sim. Há um mea-culpa explícito em vários documentos do magistério católico tanto por reconhecer a sua parcela de responsabilidade na divisão dos cristãos quanto pela consciência de nem sempre ter impulsionado os esforços para recompor a unidade. 12 Mas o Vaticano II não pode ser tirado do contexto no qual aconteceu. A maioria dos padres conciliares alimentava a expectativa de uma simples continuidade ao Vaticano I, e é inegável o avanço que o Vaticano II significou na abertura para o diálogo com o mundo plural, em termos de cultura e de religião. Naquele contexto, são compreensíveis as resistências para assumir o compromisso ecumênico e a timidez do seu posicionamento teológico em questões que hoje podem ser consideradas superadas. Mais difícil, porém, é compreender as resistências ao ecumenismo no período pós- Vaticano II. Os meios católicos onde existem atualmente manifestações de preconceito e discriminação por motivos religiosos, de fundamentalismo e exclusivismo confessional no campo da doutrina, da espiritualidade e da pastoral, significam distanciamento do Vaticano II e o consequente abandono da sua orientação ecumênica. As pessoas e as instâncias da Igreja que assumem essa postura nem sempre negam, em teoria, a doutrina ecumênica da Igreja. Mas vivem uma desobediência prática do magistério conciliar. Falta-lhes o sentire et vivere cum ecclesia na recepção do Vaticano II. O ecumenismo não se faz apenas com bons propósitos e nem mesmo apenas com afirmações doutrinais. E muito menos pode-se amparar na doutrina para afirmar posições pessoais antiecumênicas. O ecumenismo precisa tornar-se estrutural e natural no cotidiano da Igreja, adquirindo “cidadania eclesial”. O Vaticano II, bem como o magistério posterior, exorta os cristãos católicos para um engajamento efetivo em iniciativas ecumênicas, a disponibilidade sincera para o diálogo, o reconhecimento dos dons do Espírito nos outros, posturas que de fato expressam a convicção ecumênica da Igreja. Não é suficiente nem mesmo realizar atos ecumênicos, é preciso ser ecumênico. O ecumenismo é uma atitude, um comportamento, um modo de ser. É um espírito, um carisma e uma vocação de todo cristão, de modo que o ecumenismo deve impregnar o ser cristão como o impregna a sua própria fé. O ecumenismo é uma forma de crer. Fé cristã e ecumenismo são realidades que se implicam mutuamente, a fragilidade e a força de uma são também a fragilidade e a força de outra. Assim, o ecumenismo é um serviço ao Evangelho e à Igreja, alargando os horizontes da sua compreensão e vivência, possibilitando a interação com outras formas de crer e de organizar a vida cristã. Nesse serviço interagem mística e militância, identidade e profecia, realismo do presente e esperança utópica no futuro. Como profecia utópica, de um lado o ecumenismo questiona toda tendência ao fechamento identitário da Igreja, toda pretensão de absolutismo, fundamentalismo e 13 exclusivismo que não considere o valor da diversidade, dos dons e carismas que o Espírito concede no interior do cristianismo. De outro lado, o ecumenismo afirma que a comunhão plena entre os cristãos é possível porque tal é o desígnio de Deus, não obstante as dificuldades que se manifestam no presente. A nós cabe trabalhar para que esse desígnio aconteça o mais breve possível em nossa história. Para todos os cristãos cabem as palavras do Vaticano II: Este sagrado Concílio deseja insistentemente queas iniciativas dos filhos da Igreja católica juntamente com as dos irmãos separados se desenvolvam; que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo. Além disso, declara estar consciente de que o santo propósito de reconciliar todos os cristãos na unidade de uma só e única Igreja de Cristo excede as forças e a capacidade humana. Por isso, coloca inteiramente a sua esperança na oração de Cristo pela Igreja, no amor do Pai para conosco e na virtude do Espírito Santo. “E a esperança não será confundida, pois o amor de Deus se derramou em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5) (UR 24). 14 O Capítulo I O MOVIMENTO ECUMÊNICO 1. Uma história surpreendente movimento ecumênico tem mais de um século de existência. Com o intuito de aproximar e possibilitar o diálogo, a cooperação e a comunhão entre cristãos e Igrejas, esse movimento ganhou terreno em ambientes eclesiais onde outrora se regava a semente do distanciamento e da divisão. Aos poucos foram surgindo associações de cristãos e de Igrejas que o enriqueceram com seus carismas e o fortaleceram com suas iniciativas. Palavras como respeito mútuo, tolerância, diálogo, cooperação, fraternidade, comunhão, perdão... se sobressaem na linguagem de muitos cristãos, redimensionam a consciência eclesial, a orientação doutrinal, a espiritualidade e o agir pastoral das Igrejas. Em muitos espaços o ecumenismo passou a ser uma palavra de ordem, um imperativo da consciência cristã e eclesial. Tornou-se um fato social impactando o mundo inteiro, e um fato eclesial dando novos horizontes para o ser e o agir das Igrejas que a ele aderiram. Esse movimento nasceu da inquietação profética de pessoas que se questionavam com a situação de divisão entre os cristãos. E entenderam que essa realidade contradiz a essência do ensinamento do Evangelho: o amor que gera comunhão. Não se pode ser cristão autêntico conformando-se com a divisão dos cristãos. Sobre a divisão, não se justifica, se penitencia. Profetas da unidade, como o batista William Carey (1761-1834), os calvinistas Adolphe Monod (1802-1856) e Henry Dunant (1828-1910), o metodista John Mott (1865-1955), os anglicanos Paul Wattson (1863- 1940) e Charles H. Brent (1862-1929), os católicos Paul Couturier (1881-1953), Lambert Beauduin (1873-1960), o luterano Nathan Soderblom (1866-1931), entre outros, intuíram com a profundidade da fé evangélica que a divisão dos cristãos é um mal que precisa ser superado. E trabalharam intensamente para isso, criando instrumentos de diálogo e de comunhão, como a Aliança Evangélica (Londres, 1846), as associações cristãs de moços e moças (Inglaterra e EUA, na década de 1840), a Federação Mundial de Estudantes Cristãos (Inglaterra, 1895), os movimentos Vida e Ação (1925) e Fé e Constituição (1937), a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos (universalizada a partir de Lyon, em 1935), e centros ecumênicos diversos, dos quais destacam-se o Conselho Mundial de Igrejas (Amsterdã, 1948), que congrega hoje 347 Igrejas. Instrumentos que visam aproximar as diferenças, 15 reconciliar as divergências, fortalecer as aspirações por comunhão. As Igrejas inicialmente olharam à distância o cenário ecumênico que se formava, um pouco à margem e um pouco já na soleira de seus templos. Mas logo sentiram a necessidade de apresentar sua compreensão do ecumenismo. Em 1920, o patriarcado ortodoxo de Constantinopla dirige uma carta encíclica a todas as Igrejas, propondo uma liga de Igrejas cristãs. No mesmo ano, a comunhão anglicana apresentou o chamado Quadrilátero de Lambeth, como base para o restabelecimento da unidade dos cristãos. [1] Também teólogos e teólogas de diferentes Igrejas sintonizaram-se com a causa ecumênica e deram sua contribuição por uma hermenêutica da doutrina cristã que favorecia o diálogo entre as Igrejas. [2] Temos, assim, o “movimento ecumênico” que hoje congrega centenas de comunidades cristãs em todo o mundo. Quem nele se integra abre sendas entre os muros que separam milhares de cristãos e alargam os caminhos do diálogo, da convivência, da comunhão. 2. A Igreja católica e o ecumenismo 2.1. Andando na contramão Do início do movimento ecumênico na forma hoje conhecida (1910), até meados do século XX, a Igreja católica não demonstrou simpatia com a sua proposta. Na postura católica de resistência ao ecumenismo, fatores culturais alimentadores do preconceito mútuo entre católicos e protestantes, mesclavam-se com fatores teológicos, como a concepção de Igreja e de sacramentos. Pesava o fato de o ecumenismo ter origem no meio protestante, com as marcas eclesiológicas e espirituais desse, e a consequente concepção de unidade na fé compatível com uma diversidade institucional na Igreja, o que se contrapõe frontalmente à tendência uniformista do catolicismo. Assim, por décadas o movimento ecumênico teve sua natureza, suas motivações e seus objetivos duramente contestados pelo magistério católico. O próprio termo “ecumenismo” não encontrava nos meios católicos a compreensão que assumia no interior do movimento ecumênico. No ano de 1950, a Enciclopédia Católica, assim afirma: “No sentido próprio, ecumenismo é a teoria mais recente que brota dos movimentos interconfessionais, especialmente protestantes, para alcançar a unidade das Igrejas cristãs [...] para os católicos, são proibidas as vias do ecumenismo no sentido originário do termo” (apud Vercruysse, 1992, p. 10). Assim, “ecumenismo” diz respeito apenas à conservação da integridade da fé católica romana. Os fiéis católicos foram proibidos de participar no movimento ecumênico. O Papa 16 Pio XI, na Encíclica Mortalium Animos (1928), chamou os ecumenistas de panchristiani e afirmou que “a Sé Apostólica não pode, de modo algum, participar das suas reuniões, e de nenhum modo os católicos podem aderir ou ajudar tais tentativas”. O Santo Ofício, em decreto de 8 de julho de 1928, respondeu non licet à consulta: “se é permitido aos católicos assistirem, ou interessarem-se por reuniões, agrupamentos, conferências, ou sociedades de não católicos, que tenham por objetivo reunir sob um só pacto religioso (uno religionis fodere) todos aqueles que, de alguma forma, reivindicam o nome de cristãos” (DH 2199). O próprio magistério católico recusou, reiteradas vezes, os convites para participar de momentos que marcavam progressos na estruturação do movimento ecumênico, como na ocasião da Conferência de Edimburgo (1910), na criação dos organismos “Vida e Ação” (1925) e “Fé e Constituição” (1927), na assembleia de fundação do Conselho Mundial de Igrejas (1948). A primeira vez que a Igreja romana enviou representantes a um evento do Conselho Mundial de Igrejas foi na assembleia em Nova Délhi (1961). Sete anos mais tarde, porém, a Igreja católica já enviou uma delegação oficial para uma assembleia do Conselho, em Upsala (1968). 2.2. Conversão de rota Às vésperas do Concílio Vaticano II, a posição de Roma começa a mudar. Os anos 60 do século XX criaram uma atmosfera cultural que afirmava o direito à liberdade de expressão sociorreligiosa, a valorização do indivíduo pela filosofia existencialista, o reconhecimento do valor da diferença. Nesse contexto, a Igreja sentia a necessidade de uma revisão profunda em seu ser e seu agir, rompendo o casulo do solipsismo no qual se fechara há séculos. Tal foi uma das finalidades do Concílio Vaticano II, propondo como uma das expressões do aggiornamento da Igreja as novas relações com a sociedade, com as religiões, com as outras Igrejas. No que se refere à relação com as demais Igrejas, as condições para as mudanças foram preparadas muito antes. a) No âmbito da reflexão teológica, vai-se construindo uma nova compreensão das comunidades cristãs não vinculadas a Roma e uma revisão da eclesiologia católica em perspectiva de diálogo. Na verdade, as primeiras intuições ecumênicas na teologia católica são ainda do século XIX, com Johann Adam Möhler (1796-1838) e John Henry Newmann (1801-1890). Eles propuseramuma concepção de unidade eclesial que superava a perspectiva institucionalista, juridicista e visibilista da eclesiologia da “sociedade perfeita”, então em voga. Möhler dá ênfase aos temas da unidade e do 17 aspecto místico da Igreja, valorizando a interioridade das estruturas visíveis da Igreja, o recurso aos Padres e às Escrituras, o que favorece o diálogo com os evangélicos (A Unidade, 1825; Symbolica, 1832). Newmann explicita a estrutura sacramental da Igreja, continuadora da vida da graça. Sua eclesiologia baseia-se na noção de santidade, vitalidade e concreção mística (Apologia pro vita sua, 1864). Ambos evitam o tom apologético, como era normal no seu tempo. Mas o trabalho teológico mais significativo para o impulso ecumênico foi de Yves Congar, tratando da divisão dos cristãos e propondo “princípios de um ecumenismo católico” (Chrétiens Désunis, 1937). Em sintonia com Congar estão outros, como K. Rahner, Balthasar, J. Daniélou, que muito contribuíram para uma teologia ecumênica. O Vaticano II vai acolher a reflexão desses teólogos, mudando a ideia de “ecumenismo católico” para “princípios católicos” do ecumenismo, que aparecem sobretudo no primeiro capítulo do Decreto Unitatis Redintegratio. Ainda muito antes do Concílio, ensaiam-se diálogos teológicos entre as Igrejas, como as “conversações de Malines” realizadas por teólogos anglicanos e católicos de 1921 a 1925. b) Na espiritualidade, vai-se construindo uma mística do diálogo que se expressa pelo intercâmbio espiritual entre católicos, evangélicos, anglicanos e ortodoxos, amenizando as tensões e os conflitos doutrinais. A principal força é a oração em comum. Em 1865, o Papa Leão XIII, no seu Breve Providae Matris, recomendou uma Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos na primeira semana de Pentecostes: “Trata-se de rezar por uma obra comparável à renovação do primeiro Pentecostes, onde, no Cenáculo, todos os fiéis estavam congregados em redor da Mãe de Jesus, unânimes no pensamento e na oração”. Em 1867, escreve na Carta Encíclica Divinum Illud Munus, sobre o valor da oração em que se pede que o bem da unidade dos cristãos possa amadurecer. Quando a Society of the Atonement se tornou corporativamente mem- bro da Igreja católica, o Papa Pio X concedeu, em 1909, a sua bênção oficial à Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos no mês de janeiro. Mas foi Bento XV que a introduziu de maneira definitiva na Igreja católica. Também Pio XII, na sua Carta Encíclica Mystici Corporis (1943), reiterava que, seguin- do o exemplo de Jesus Cristo, teria rezado pela unidade da Igreja. É significativo o fato de o Papa João XXIII ter anunciado o Concílio no dia 25 de janeiro de 1959, encerramento da Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. [3] A partir de 1937, o padre Paul Couturier (1881-1953) e Paul Wattson (1863-1940) fortalecem a dimensão ecumênica dessa semana, propondo celebrações que reúnem cristãos de 18 diferentes Igrejas na Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos. Também o monge beneditino Lambert Beauduin (1873-1960) contribui com a espiritualidade ecumênica fundando, em 1925, os “monges da união”, na Bélgica, para fortalecer a unidade espiritual sobretudo entre católicos e ortodoxos. Em 1939, Beauduin funda a revista Irenikon, ainda hoje uma das principais nos meios ecumênicos. c) A criação de organismos ecumênicos: uma série de organizações ecumênicas vão surgindo, como o Centro Istina (Paris), o Centro Santo Irineu (Lyon), o movimento Una Sancta (Alemanha), a Associação Unitas (Roma), o Centro Pro Unione (Roma), entre outros. Essas organizações ecumênicas fomentam encontros entre as Igrejas e as ajuda a realizar o exercício do encontro, da acolhida mútua, do diálogo, da cooperação. São importantes instrumentos de comunicação e de intercâmbio dos saberes, das experiências e da vida entre as diferentes Igrejas. d) Na ação social, cristãos de diferentes Igrejas solidarizaram-se nos esforços pela promoção humana, sobretudo durante os dois grandes conflitos mundiais. 2.3. Nos caminhos ecumênicos Essas iniciativas traçam os caminhos ecumênicos para a Igreja católica. Elas propiciam, nos meios católicos, atitudes de respeito, convivência pacífica, diálogo e cooperação com os cristãos das diferentes tradições eclesiais. Isso repercutiu na ação do magistério, que aos poucos vai entrando nas estradas do ecumenismo. A primeira iniciativa ocorreu no pontificado do Papa Pio XII, com o primeiro pronunciamento positivo do magistério católico sobre o movimento ecumênico, na Instrução do Santo Ofício, Ecclesia catholica (20 de setembro de 1949): Em diversas partes do mundo, quer em virtude dos acontecimentos exteriores e da mudança das disposições dos fiéis, o desejo de que todos os que creem em Cristo Senhor Nosso voltem à unidade tornou-se mais vivo de dia para dia, sob inspiração da graça do Espírito Santo, no coração de muitos homens separados da Igreja católica. O mesmo documento tem orientações práticas, dizendo aos bispos que Não devem somente velar diligente e eficazmente por todo esse movimento, mas também promovê-lo e dirigi-lo com prudência, primeiramente para ajudar os que procuram a verdade e a verdadeira Igreja, depois para afastar dos fiéis os perigos que resultam facilmente da atividade desse movimento. Vê-se que o documento, ao mesmo tempo que olha positivamente o movimento ecumênico, expressa também cautela no engajamento prático, com explícito temor de prejuízos aos fiéis católicos. De qualquer forma, a Instrução Ecclesia catholica foi 19 um estímulo aos ecumenistas católicos. Em 1952, foi constituída a “Conferência católica para questões ecumênicas” (Tavard, s/d, p. 272). Passaram-se quase vinte anos para que o magistério católico tivesse um posicionamento corajoso e efetivo para o engajamento ecumênico. O Papa João XXIII, sustentado em sua experiência de diálogo, [4] apenas três meses após ter sido eleito, em 1958, convocou um Concílio que teria a promoção da unidade dos cristãos como um dos objetivos principais. Em 29 de janeiro de 1959, dizia aos cardeais, depois de lhes ter comunicado a sua intenção de convocar o Concílio: “Renovamos o nosso convite aos fiéis das comunidades separadas para também elas nos acompanharem amavelmente nesta busca da unidade e da graça à qual tantas almas aspiram de todos os pontos da terra”. Foi consequente: em 1960, João XXIII criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos, com a finalidade de ajudar a preparar a realização do Vaticano II, dando-lhe uma dimensão ecumênica; convidou observadores ortodoxos, anglicanos e protestantes para participar do Concílio, aprovou a presença de católicos romanos na assembleia do Conselho Mundial de Igrejas em Nova Délhi (1961), e retirou as expressões antissemitas da liturgia da Sexta-Feira Santa. Seu sucessor, Paulo VI, entendendo que a divisão dos cristãos é um dos mais graves problemas do cristianismo e da humanidade, deu continuidade ao objetivo ecumênico do Concílio e estabeleceu contatos com os líderes das Igrejas e dos organismos ecumênicos (como o Conselho Mundial de Igrejas, em 1969). Em sua primeira encíclica, Ecclesiam Suam (1964), colocou o diálogo no centro da autoconsciência da Igreja e da sua ação evangelizadora. Nesse pontificado iniciaram- se os diálogos bilaterais sobre a doutrina cristã. Na mesma direção segue João Paulo II, apoiando a participação católica no movimento ecumênico, estabelecendo relação com líderes de Igrejas e de organismos ecumênicos, fortalecendo os diálogos bilaterais. Duas novidades nesse pontificado: a) a publicação da primeira encíclica sobre o ecumenismo, Ut Unum Sint, na qual afirma que os cristãos devem “professar juntos a mesma verdade sobre a cruz” (UUS 1). Para isso, o Papa se propõe a “promover todo e qualquer passo útil... para que a unidade dos cristãos cresça até chegar à plena comunhão” (UUS 2), pois a causa da unidade “é um compromisso bem próprio do bispo de Roma” (UUS 4). b) O impulso ao diálogo inter-religioso com os encontros de líderes das religiões em Assis (1986, 1996,2002) e Roma (2000). O Papa Bento XVI não apresenta novidades em relação à promoção do diálogo ecumênico e inter-religioso. Nesse campo, teve uma expressão tímida, se comparado 20 aos seus antecessores. Os tempos agora são outros. Desde o final do pontificado de João Paulo II, fatores conjunturais do catolicismo freiam consideravelmente o impulso ecumênico e inter-religioso do Vaticano II. Assim, os pronunciamentos e gestos ecumênicos de Bento XVI perdem força e visibilidade para atitudes resistentes ao diálogo, sobretudo de setores da cúria romana e de alguns movimentos eclesiais católicos. O atual pontificado do Papa Francisco, mesmo se ainda breve para uma análise, demonstra querer fortalecer as iniciativas por uma “cultura do encontro”, construindo um cenário eclesial favorável para o ecumenismo e o diálogo das religiões. Os gestos do Papa Francisco falam mais do que os seus pronunciamentos. Surpreende, por exemplo, a sua história de profunda amizade e de intercâmbio de experiências e de concepções tanto “sobre o céu” quanto sobre “a terra” com o rabino Abraham Skorka (Bergoglio e Skorka, 2013); a acolhida em sua residência de um grupo de rabinos para uma refeição kosher, em março de 2014; a relação também com líderes de outras religiões. Em sua primeira Exortação Apostólica, afirma que “uma atitude de abertura na verdade e no amor deve caracterizar o diálogo com os crentes das religiões... Esse diálogo inter-religioso é condição necessária para a paz no mundo e, por conseguinte, é um dever para os cristãos” (EG, 250). Igual apoio o Papa Francisco dá ao ecumenismo. Na celebração que deu início ao seu pontificado, estavam presentes representantes de diversas Igrejas, junto com líderes de diferentes tradições religiosas. Ao recebê-los em audiência na sala Clementina do palácio Apostólico do Vaticano, o Papa Francisco afirmou: “Desejo assegurar minha firme vontade de prosseguir com o diálogo ecumênico”. Insistiu na necessidade de fortalecer os esforços pela unidade dos cristãos, como uma forma de testemunhar de maneira “livre, alegre e valente” o Evangelho. Acrescentou: “Será nosso melhor serviço (a unidade) em um mundo marcado por divisões, contrastes e rivalidades”. [5] Continuam as visitas formais dos líderes das Igrejas, o trabalho das comissões bilaterais e do dicastério da cúria romana encarregado de promover a unidade dos cristãos. Esperava-se um gesto mais contundente do Papa Francisco no apoio à X Assembleia do Conselho Mundial de Igrejas realizada em Busan, Coreia do Sul, em outubro de 2013. Cogitou-se, por exemplo, uma intervenção por vídeo- conferência. Não aconteceu. Mas na carta enviada pelo Cardeal Kurt Koch, delegado católico para a assembleia, em 4 de outubro de 2013, afirmou: “Asseguro-vos o meu grande interesse pastoral pelas deliberações da Assembleia e confirmo de bom grado o compromisso da Igreja católica em dar continuidade à sua longa cooperação com o 21 Conse- lho Ecumênico das Igrejas”. Em seu ensinamento ecumênico, o Papa exorta: “Devemos sempre lembrar-nos de que somos peregrinos, e peregrinamos juntos. Para isso, devemos abrir o coração ao companheiro de estrada, sem medos nem desconfianças, e olhar primariamente para o que procuramos: a paz no rosto do único Deus” (EG 244). Entende que “Dada a gravidade do contratestemunho da divisão entre os cristãos... é urgente a busca de caminhos de unidade” (EG 246). E dá o método para essa busca: “Se nos concentramos nas convicções que nos unem e recordarmos o princípio da hierarquia das verdades, poderemos caminhar decididamente para formas comuns de anúncio, de serviço e de testemunho” (EG 246). Assim, no magistério conciliar e pós-conciliar está preparando o terreno para que os cristãos católicos assumam o ecumenismo como algo próprio de sua consciência cristã e eclesial. Afinal, todos os discípulos de Cristo têm alguma responsabilidade tanto na situação de divisão dos cristãos como na busca de superação dessa divisão. 3. A ecumenicidade do Vaticano II Contudo, o ponto de partida dessas iniciativas é o Concílio Vaticano II. Esse Concílio não apenas reconhece o valor do movimento ecumênico, mas o acolhe como algo próprio da Igreja católica, torna-o “um imperativo da consciência cristã” (UUS 14) e integra os católicos definitivamente nos esforços de busca da unidade dos cristãos. O próprio Concílio foi um “fato ecumênico”, como se constata em seus objetivos, no seu ensino, na presença dos observadores das Igrejas. 3.1. A proposta ecumênica de João XXIII No dia 25 de dezembro de 1961, João XXIII anunciou que o Concílio que se iniciaria em 1962 seria uma busca de aggiornamento da Igreja, em sua organização, sua doutrina e sua ação evangelizadora. Isso não é novidade em relação aos Concílios anteriores. O novo é o fato de o processo de aggiornamento dever acontecer, agora, também numa perspectiva ad extra, até então praticamente desconsiderada. O Vaticano II tem como escopo pautar novas relações da Igreja com o mundo, com as outras Igrejas, com as religiões. Assim, o Concílio foi apresentado também como um convite às Igrejas que, imbuídas do espírito ecumênico, muito podem colaborar com os trabalhos do Concílio: [...] convidamos também os cristãos separados da Igreja católica [...] Sabemos, também, que o anúncio do Concílio não só foi por eles acolhido com alegria, mas não poucos já prometeram oferecer as suas orações para seu feliz êxito, e esperam enviar representantes de suas comunidades para seguirem de perto os 22 trabalhos. Tudo isso é para nós motivo de grande conforto e esperança (João XXIII, 2007, p. 16). O ecumenismo não só condiz com os esforços de atuali- zação da Igreja, mas também é uma exigência dessa atua- lização. A busca da unidade dos cristãos é a busca que a Igreja faz de si mesma, no aprofundamento de sua natureza, identidade e missão. E João XXIII entendeu que isso só seria possível refletindo sobre a condição da Igreja católica na relação com as demais Igrejas. O ecumenismo tornou-se, assim, “um dos principais propósitos do sagrado Concílio Ecumênico Vaticano II” (UR 1). Isso impactou tanto o catolicismo quanto as outras Igrejas e a sociedade como um todo. Causou preocupações, temores e expectativas. Os padres conciliares logo perceberam os muitos desafios que precisavam superar para realizar o objetivo ecumênico do Concílio, como a resistência ao ecumenismo, até então visto como “coisa de protestantes”; a definição de critérios para a participação de fiéis católicos no movimento ecumênico; a dificuldade de consenso na compreensão da unidade que oscilava entre, de um lado, a ideia de uma reunião das Igrejas separadas em torno de um centro, Roma; e, de outro lado, como uma associação das Igrejas, nenhuma das quais pode pretender-se realização única da Igreja de Cristo. Como propor a unidade ecumênica sem abandonar a ideia do “centro”? Como manter essa ideia sem que ela indique uniformidade, mas real abertura para uma nova condição da Igreja, reconciliada em suas diferentes tradições históricas? Os padres conciliares são desafiados a rever suas concepções de unidade. E aqui emergem mais questões: será possível abandonar o ecumenismo de retorno e imaginar uma Igreja única que não esteja centrada no bispo de Roma? Ou como conceber uma Igreja que, mesmo vinculada ao primado pontifício, não imponha a ideia do retorno às estruturas de uma tradição histórica? Ainda, como entender o exercício do ministério petrino de forma condizente com a causa ecumênica? Essas questões acompanham a aspiração ecumênica pelo longo caminho da unidade, no anseio de respostas que vinculem as Igrejas tanto numa concepção comum de unidade quanto nos elementos que a sustentam. As respostas devem ser buscadas lançando um novo olhar para o pluralismo eclesial, que não mais deve ser considerado na ótica da apologética polêmica, mas na perspectiva do diálogo, da convivência e da cooperação. Vê-se, com isso, que a questão ecumênica é uma questão eminentemente eclesiológica. A reflexão avança à medida que se renova aeclesiologia, considerando a Igreja no seu devir histórico. Assim, é possível conceber a unidade como uma recuperação, um movimento para a frente, imprevisível quanto às suas modalidades. 23 Isso supõe uma autocrítica, um aprofundamento doutrinal, uma ascese teológica e espiritual. Tal esforço é o que dá condições para entender o ecumenismo (como já intuiu a Instrução Ecclesia catholica de Pio XII, em 1949), como fruto da “moção da graça do Espírito” (UR 1), algo que condiz com a necessidade de renovação da Igreja (cf. UR 6) e que diz respeito a todos os cristãos, de modo que também os católicos precisam nele se empenhar (cf. UR 5,24). O fato é que o objetivo ecumênico fez do Concílio uma verdadeira escola de ecumenismo para os bispos. Muitos deles desconheciam as questões relativas ao ecumenismo, pelo fato de a Igreja católica não estar integrada no movimento ecumênico de então. Entendiam-no como um fenômeno generalizado de consciência coletiva que vê na divisão dos cristãos um mal a ser superado de alguma forma. Aos poucos, a Igreja vai se esforçando para compreender que a superação desse mal não depende apenas dela, mas dela em comunhão com as demais Igrejas. Isso exige sair do isolamento no qual se encontrava por séculos e dispor-se a buscar, junto com os cristãos das demais Igrejas, a forma de ser Igreja que melhor possa corresponder à Igreja que Cristo quer. A intenção ecumênica do Concílio e seus desdobramentos nas discussões e nos documentos conciliares surpreendeu. O secretário geral do Conselho Mundial das Igrejas, Visser’t Hoof, declarou “Nostra res agitur”. 3.2. Mais que ilustres convidados: de observadores a colaboradores João XXIII sabia que o Concílio não podia propor uma Igreja do diálogo ecumênico, bem como inter-religioso e intercultural, sem fazer do próprio Concílio um exercício de diálogo. E isso exigia a presença de interlocutores. O Concílio foi preparado e vivido também como uma experiência ecumênica. O Secretariado pela Unidade dos Cristãos (criado para esse fim em 5 de junho de 1960), sob a direção do Cardeal Bea, fez o convite para que as Igrejas, famílias confessionais e o Conselho Mundial de Igrejas enviassem delegados observadores ao Concílio. Já na primeira sessão participaram 38 observadores e 168 ao longo do Concílio. Inédito! Após séculos de separação, hostilidades e inclusive guerras de religião, cristãos de diferentes Igrejas se encontram com os bispos católicos na basílica de São Pedro para acompanhar seus trabalhos e oferecer colaboração. Em audiência especial em 16 de outubro, durante a primeira sessão do Concílio, o Papa João XXIII disse aos observadores: “Procurai ler no meu coração, encontrareis aí muito mais que nas minhas palavras. A vossa presença aqui enche de emoção a minha alma de padre e de bispo” (apud Fesquet, 1967, p. 48). Mas houve resistência a essa medida. Muitos bispos não se sentiam confortáveis 24 com os representantes das outras Igrejas. Alguns temiam que os trabalhos e as discussões dos temas em pauta fossem prejudicados, pois os bispos ficariam constrangidos em tocar nos assuntos delicados da Igreja católica diante dos observadores. Enfim, a tendência da maioria dos bispos era raciocinar como se o catolicismo e o cristianismo se sobrepusessem, sendo desnecessária a presença dos observadores. Outros fatores jogaram a favor da decisão de João XXIII. A primeira foi a própria intervenção do Papa, mesmo contra a maior parte da Cúria, mantendo a decisão de fazer do Concílio um convite para as Igrejas separadas buscarem a unidade, “num momento, pois, de generosos e crescentes esforços que de várias partes são feitos com o fim de reconstituir aquela unidade visível de todos os cristãos” (João XXIII, 2007, p. 13). Seria, pois, natural que o Concílio se dedicasse a questões ecumênicas, impulsionando, assim, os esforços em prol da unidade dos cristãos. E “graças não apenas à lucidez e à prudência, mas também à coragem dos membros do Secretariado, o grupo dos observadores foi aceito, tomou consistência e sua presença tornou-se realmente significativa” (Aubert, 1976, p. 181). Não havia, porém, clareza sobre o papel dos observadores no Concílio, o que foi se definindo no desenvolver dos trabalhos. O fato é que não estavam escondidos, nem destinados a um papel passivo. Foram colocados nas primeiras filas, numa tribuna que faz face à dos cardeais, com um tradutor do latim, e receberam os mesmos documentos de trabalho dados aos bispos – prova de confiança de que seguiriam o regulamento de sigilo exigido: “A verdade obriga a dizer que o segredo do Concílio é muito melhor guardado pelos observadores, que se mostram perfeitamente discretos, do que pelos bispos” (Fesquet, 1967, p. 80). Os representantes das Igrejas eram mais que ilustres visitantes, eram observadores e, como tal, colaboradores do Concílio. Assistiam às sessões e estavam presentes também nas congregações gerais. Houve quem propusesse ouvir os observadores nas próprias aulas conciliares, como Sua Bea-titude Paulo II Cheiko, patriarca de Babilônia dos Caldeus, dizendo que os observadores não católicos sujeitaram-se a ouvir os bispos cinco dias por semana. Por que não ouvi-los ao menos uma vez por semana na assembleia conciliar? (Fesquet, 1967, p. 240). Mas eles tinham a possibilidade de comunicar suas impressões sobre os temas em discussão nas reuniões semanais que realizavam com o Secretariado para a Unidade, ou quando consultados por comissões, bispos e teólogos. Era, de fato, uma novidade e um desafio o encontro face a face entre bispos e protestantes. Mas nada impediu o convívio e o trabalho conjunto, real antecipação da fraternidade ecumênica 25 desejada para as Igrejas, o que foi constatado com júbilo por O. Cullmann no pronunciamento que fez em homenagem ao Secretariado para a Unidade dos Cristãos, em 2 de dezembro, durante a segunda sessão do Concílio: O vosso secretariado é a porta aberta da Igreja católica sobre as Igrejas não romanas. No que concerne ao Concílio, vós não nos ocultais absolutamente nada. Não há cortina de ferro. Vós nos permitis não só observar a face triunfante da vossa Igreja, que nos habituamos a ver, mas também as dificuldades com que vos sentis embaraçados. Podemos certificar-vos de que é precisamente por esse aspecto que nós nos sentimos particularmente perto de vós (apud Fesquet, 1967, p. 344). 3.3. O Decreto Unitatis Redintegratio, a charta magna do ecumenismo Pensado inicialmente como um capítulo da constituição sobre a Igreja, e tratando originalmente também dos judeus e da liberdade religiosa, o Esquema De oecumenismo foi se definindo aos poucos até ganhar status de documento que tratava especificamente da unidade dos cristãos. [6] No início da terceira sessão, o De oecumenismo já era realmente propositivo e até mesmo desconcertante para alguns, dado o afastamento das posições negativas em relação aos cristãos não romanos: não fala “irmãos separados”, mas “irmãos desunidos”; chama as comunidades orientais de “Igrejas” e as que saíram da Reforma de “Comunidades Eclesiais”; não sugere um “ecumenismo católico”, mas “princípios católicos do ecumenismo”. Além disso, “sugere-se que os cristãos não romanos poderiam ser admitidos à mesa eucarística católica; recomendam-se as reuniões interconfessionais em pé de igualdade [...] tenta- se julgar as Igrejas não romanas do interior, e não em relação à Igreja católica etc.” (Fesquet, 267, p. 13). A perspectiva ecumênica do Concílio surpreendia a todos, alguns bispos resistiam e outros viam nela suas expectativas realizadas. Os três períodos do Concílio discutiram o esquema De oecumenismo, e isso foi uma espécie de escola de ecumenismo aos bispos, os quais passaram a entender o ecumenismo como algo próprio da fé cristã e, portanto, da Igreja. O ecumenismo constitui a identidade cristã e eclesial dos fiéis católicos e permite reconhecer a identidade cristã e eclesial também dos membros das outras Igrejas. O aggiornamento da autoconsciência eclesial se dá construindo uma nova compreensão da relaçãoda Igreja católica com as outras Igrejas, com disposição para participar de iniciativas de diálogo, convivência e cooperação ecumênicas. Essa disponibilidade foi condensada nos três capítulos do Decreto Unitatis Redintegratio: princípios católicos do ecumenismo (cap. I), a prática do ecumenismo (cap. II) e a relação com as tradições eclesiais do Oriente e do Ocidente, considerando as especificidades de cada uma (cap. III). Esse Decreto é a 26 principal expressão da convicção ecumênica do Vaticano II e da integração definitiva da Igreja católica no movimento ecumênico. Ele “quer propor a todos os católicos os meios, os caminhos e as formas com que eles possam corresponder a essa divina vocação e a esta graça” (UR 1). Importa-nos, por ora, tratar dos capítulos I e II, onde encontramos, respectivamente, os princípios “católicos” do agir ecumênico e indicações concretas para a sua prática. a) Princípios doutrinais para o agir ecumênico Nos números 2-4 do primeiro capítulo, o Decreto apresenta os “princípios católicos do ecumenismo”, tratando da compreensão de unidade, da relação da Igreja católica com as outras Igrejas e apresentando, consequentemente, a sua compreensão de ecumenismo. A compreensão da unidade da Igreja A unidade da Igreja, apresentada no Decreto Unitatis Redintegratio, é espiritual, sacramental, institucional, o que condiz com a eclesiologia presente em outros documentos conciliares, sobretudo nos n. 8 e 14 da Lumen Gentium, ao mostrarem a realidade divina e humana da Igreja, como uma “realidade complexa”. A afirmação da unidade é sintonizada com a unicidade da Igreja: não há várias Igrejas, pois “O Cristo Senhor fundou uma só e única Igreja” (UR 1), e ela se mantém “única” (LG 8), “una e única” (LG 23; UR 3.24), como o Povo de Deus “uno e único” (LG 13.32; AG 1.7), o único rebanho de Cristo (LG 15; UR 2; AG 6), no qual todos os membros formam um só Corpo de Cristo (LG 7; UR 3; AG 7). A variedade de formas históricas da Igreja una são admissíveis à medida que não se tornam expressão de divisão, oposição, contradição da única Igreja. O múltiplo pode expressar, mas não fragmentar o uno e único. A unidade é, primeiramente, de caráter espiritual, como uma “divina vocação” e uma “graça” (UR 1). O movimento ecumênico não “dá”, portanto, a unidade à Igreja, pois ela é dom de Deus. Trata-se da natureza mesma da Igreja, um elemento constitutivo da sua essência, e nela a unidade “subsiste indefectivelmente” (UR 4), não pode ser perdida em sua interioridade. Mas houve a perda da expressão externa, histórica, da essencialidade una e única da Igreja. As divisões ocorridas na história do cristianismo dificultam a compreensão da unidade e unicidade eclesial. Grupos e comunidades cristãs diferentes e antagônicos entendem-se partícipes da una e única Igreja. Nesse contexto, a meta dos esforços ecumênicos é a recuperação da visibilidade histórica da unidade, que foi perdida pela divisão dos cristãos. Esses esforços combatem o indiferentismo e o conformismo com a constante fragmentação 27 do cristianismo e propõe caminhos de reconciliação. Tal é o escopo do Decreto: denuncia a divisão cristã como algo que não condiz com a fé em Cristo e o modo de vida dos seus discípulos, afirmando que a divisão “contradiz abertamente a vontade de Cristo”, é um “escândalo para o mundo” e um “obstáculo à pregação do Evangelho” (UR 1). [7] E propõe “os meios, os caminhos e as formas” pelas quais os cristãos católicos podem contribuir para a superação dessa realidade. Um passo importante para isso é assumir a parcela de culpa na divisão dos cristãos, comprometendo-se na superação dessa situação que acontece “não sem culpa dos homens dum e doutro lado” (UR 3). Exige aprofundar a consciência de que a comunhão é a verdadeira natureza da fé cristã e eclesial, e que esta deve ser vivida com todos os que professam a fé em Cristo e na sua Igreja. Para tal, é importante uma reinterpretação dos pressupostos da separação dos cristãos, buscando compreender se as causas de divisão no passado são válidas ainda hoje. Em ambos os casos, é preciso que todos estejam atentos para “que não se ponham obstáculos aos caminhos da Providência; e que não se prejudiquem os futuros impulsos do Espírito Santo” (UR 24) a favor da unidade dos cristãos e da Igreja. Assim, a unidade interna, sacramental e sobrenatural da Igreja Corpo Místico de Cristo vai ganhando perfeição em sua expressão histórica e “esperamos que cresça de dia para dia, até a consumação dos séculos (UR 4). Esse esforço acontece desenvolvendo uma concepção de unidade que nem sempre encontra consenso entre as Igrejas. O Decreto Unitatis Redintegratio apresenta dois elementos que estão constantemente na pauta do diálogo: a) Os meios da unidade eclesial: estes são, primeiramente, a ação do Espírito Santo, “princípio da unidade da Igreja” (UR 2), que enriquece a Igreja com dons e ofícios “para a edificação do corpo de Cristo” (Ef 4,12). Em segundo lugar, Cristo deu aos Doze a missão de congregar os seus fiéis. Pedro, entre eles, recebe o cômpito de ser o primeiro responsável pela manutenção da unidade do corpo eclesial. Assim, o ministério petrino, realizado em conjunto com o colégio episcopal, é “referência” para a unidade da Igreja. Em terceiro lugar, os elementos constitutivos, sobre os quais se assenta a unidade da Igreja, são a confissão da mesma fé, a celebração do culto divino (pelos mesmos sacramentos), e a “fraterna concórdia da família de Deus” (apascentada pelos mesmos ministérios) (UR 2). Naturalmente, a tradição católica tem todo o direito de propor os meios que julga necessários para a unidade da Igreja. Mas esse direito não lhe é exclusivo: as outras tradições eclesiais também o possuem. E aqui está o teste do espírito ecumênico em cada Igreja. Num espírito ecumênico, os meios para a unidade na concepção de cada tradição eclesial são uma proposição, e não uma imposição. A proposta de uma tradição precisa fazer o exercício de deixar-se confrontar pelas propostas de outra tradição. Um confronto maduro, numa atitude de diálogo em busca da compreensão mútua. Daí podem emergir tensões e conflitos. Mas a meta da unidade em Cristo como convicção comum será a razão de fé fundamental para superá-los. 28 b) O modelo de unidade: afirma o Decreto Unitatis Redintegratio que a unidade não é uniformidade, mas acolhe a diversidade como constitutiva da comunhão eclesial. “Guardando a unidade nas coisas necessárias”, admite-se “a devida liberdade” na espiritualidade, na disciplina, nos ritos litúrgicos, na reflexão teológica, na ação evangelizadora etc. (UR 4). O elo de ligação entre unidade e diversidade não é nenhum princípio disciplinar, canônico ou teológico, mas espiritual: “em tudo cultivem a caridade” (UR 4). É na prática do amor que a comunhão na Igreja se sustenta, de modo que as diferenças se complementam, convivem apaziguadas e reconciliadas no “amor que foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5). Tal compreensão é um desafio a ser enfrentado pela Igreja católica no contexto do diálogo ecumênico. A tendência à unidade como uniformidade institucional é expressiva nos elementos estruturantes da sua organização, de modo que a relação com a diversidade é mais uma hipótese do que um fato. Isso deve- se, em grade parte, a dois principais elementos: à forma centralizada da sua organização eclesial e à tendência à universalização. A centralização, sobretudo das decisões, tem base na concepção hierárquica e piramidal da comunidade eclesial, apresentando sérios desafios para o exercício da colegialidade, da subsidiariedade e da corresponsabilidade. A tendência universalista causa tensões e conflitos na relação entre Igreja universal e Igreja local. Esses dois elementos apresentam dificuldades para o diálogo ecumênico. O diálogo exige relações de igualdade (par cum pari) que se assentam na humildade da vida cristã, valorização da verdade do Evangelho que se encontra no outro, na capacidade de falar sintonizada à capacidade de ouvir, enfim, na busca de complementariedadena compreensão e vivência do discipulado de Cristo. A estrutura hierárquica da Igreja, exercida de forma centralizadora, a coloca em posição de destaque, pretendendo ter, senão a primeira, pelo menos a última palavra no debate, com intensão conclusiva. E o princípio da universalidade dificulta a valorização de outros modelos na organização da comunidade eclesial, muitas vezes limitando a compreensão do que o Papa João XXIII afirmou sobre a distinção entre o conteúdo da fé e a forma de explicitá-lo (João XXIII, 2007, p. 28). Assim, concretamente, a tradição católica se aproxima mais de um modelo orgânico da unidade, propondo estruturas e instituições válidas para todos os cristãos, enquanto as demais tradições se aproximam do modelo da “unidade na diversidade”, admitindo diferentes formas institucionais de se viver a unidade na mesma fé. O diálogo continua, e é de se esperar que alcance, um dia, o consenso sobre uma forma de organizar a vivência da fé em Cristo que possa reunir cristãos das diferentes tradições eclesiais sem trair a consciência de cada uma das tradições atuais acerca da sua fidelidade ao Evangelho. A relação da Igreja católica com outras Igrejas Os padres conciliares estavam divididos sobre como designar os cristãos protestantes. O Cardeal Francisco Koening, arcebispo de Viena, afirmou: “Seria 29 conveniente que o esquema denominasse as Igrejas separadas de ‘comunidades eclesiais’, distinguindo entre elas as que conservaram a hierarquia e os sacramentos, das que rejeitaram ou uma destas realidades ou ambas” (apud Kloppenburg, 1964, p. 325). Já o Cardeal José Elmer Ritter, arcebispo de Saint-Louis, EUA, falando em nome de alguns bispos norte-americanos, assim se pronunciou no Concílio: “pedimos calorosamente que não lhes seja negada a designação de ‘Igreja’” (apud Kloppenburg, 1964, p. 308). Outros propuseram dizer simplesmente “Igreja”, no lugar de “Comunidade”, entendendo que As comunidades cristãs, que surgiram depois da Reforma, possuem elementos que justificam o apelativo “Igrejas”, embora este deva ser usado em sentido imperfeito. Nelas os fiéis recebem o batismo, estão unidos conosco pelos vínculos da fé, da esperança e da caridade. O Espírito Santo serve-se deles, como instrumentos de Salvação. Portanto, essas comunidades deveriam ser chamadas “Igrejas”... É preciso reconhecer algumas dessas comunidades como “Igrejas”, não somente em sentido sociológico, mas também em sentido teológico, porque os membros delas recebem os dons do Espírito Santo, a fé, a esperança e a caridade (apud Kloppenburg, 1964, p. 365). A questão é complexa. E diz respeito ao estatuto teológico das tradições eclesiais que não estão em comunhão com Roma. Chamá-las ou não de “Igrejas” envolve dois principais elementos: um sociológico e outro teológico. Sociologicamente, não há como negar-lhes a realidade de Igreja, por respeito à autoconsciência de cada uma, expressa em sua organização, seus princípios do credo comum, sua espiritualidade, sua ação evangelizadora, entre outros. As diferenças formais da Igreja católica nesses elementos não são a questão central. Mas há que se passar do respeito ao reconhecimento, e aqui está o elemento teológico da consciência eclesial. O problema está no conteúdo dos elementos da consciência eclesial, ou seja, na compreensão teológica que permite entender se tal doutrina e organização condiz com a natureza, identidade e missão da Igreja que Cristo quer. Em outros termos, trata-se de saber se a organização institucional da comunidade cristã é de iure divine em seus elementos socioteológicos. Nisso consiste o status quaestionis do diálogo ecumênico. Qual o critério para tal avaliação? De um lado, não se deve avaliar a outra Igreja a partir da própria Igreja, mas a partir dela mesma, ou seja, da sua própria consciência. E o confronto não deve ser primeiramente com a minha Igreja, mas com o Evangelho. De outro lado, a própria Igreja entende ser uma concretização fiel do Evangelho, de modo que ela se torna também parâmetro para compreender as demais Igrejas. Mas mesmo que essa postura seja legítima no diálogo intereclesial, é preciso transcendê- la. Ao mesmo tempo que a minha Igreja é “uma perspectiva” para compreender as outras Igrejas, ela precisa ser colocada nos limites que possui para compreender e 30 viver o Evangelho. Nesse sentido, ela não é parâmetro único, nem o principal para avaliar a verdade eclesial do outro. Parâmetro mesmo é o Evangelho. A minha própria Igreja está sob o Evangelho, e dele é instrumento. E as imperfeições que possui na vivência do Evangelho não lhe permite colocar-se como modelo para as demais Igrejas. Entra aqui a questão se uma Igreja expressa ou não “todos” os elementos necessários para ser a vera ecclesia Christi. O debate é acalorado e está ainda distante do consenso. Duas posturas se confrontam: de um lado, a necessidade de todas as comunidades cristãs possuírem “os mesmos” elementos eclesiais para poderem acolher-se mutuamente como Igrejas. No número 14 da Lumen Gentium, a tradição católica apresenta a sua compreensão sobre quais são esses elementos. De outro lado, há o entendimento de que a Igreja de Cristo pode ter configurações históricas diferenciadas, sem a necessidade de comunhão nos elementos institucionais (Confissão de Augsburgo, n. 7). A busca de convergência e consenso dessas duas posições exige um redimensionamento da atual eclesiologia de todas as Igrejas em perspectiva ecumênica, o que apresentaremos adiante (cap. II, item 3). A compreensão de ecumenismo: natureza, dimensões e níveis Por ecumenismo, o Decreto Unitatis Redintegratio entende “as atividades e iniciativas, que são suscitadas e ordenadas, segundo as várias necessidades da Igreja e oportunidades dos tempos, no sentido de favorecer a unidade dos cristãos” (UR 4). Não define o que é uma “atividade” ou “iniciativa ecumênica”, mas a valoriza a partir de quatro aspectos: 1) ela é “suscitada”, não surge nem acontece ao acaso, mas como impulso da ação do Espírito Santo num contexto, tempo, lugar e nas circunstâncias eclesiais que exigem a ação ecumênica; 2) ela acontece de forma organizada, “ordenada” no conjunto da ação eclesial, com objetivos, métodos e fins específicos; 3) trata-se de uma “necessidade da Igreja”, ou seja, a Igreja precisa do ecumenismo para realizar a sua natureza e vocação à unidade e comunhão – o ecumenismo é algo constitutivo do ser eclesial, lhe pertence identitariamente; 4) a meta das atividades e iniciativas ecumênicas é a unidade dos cristãos, a comunhão eclesial. Não se trata de uma aproximação superficial ou unidade parcial, busca a comunhão plena na fé, nos sacramentos, nos ministérios, com estruturas eclesiais que lhe deem visibilidade (cf. UR 3). O ensinamento conciliar incentiva todo tipo de iniciativa que favoreça à unidade, fortalecendo o ecumenismo em quatro dimensões: a) o ecumenismo como uma atitude, um comportamento dialogante perante as diferentes Igrejas, eliminando 31 palavras, juízos e ações que não correspondam à condição destas (cf. UR 4); b) o diálogo teológico, para aprofundar a doutrina cristã nas várias tradições eclesiais, distinguindo o “conteúdo” e as “formas” de explicitação das verdades da fé, e compreendendo que existe uma “hierarquia das verdades” católicas, que mostra “o diverso nexo com o fundamento da fé cristã” (UR 9,11); c) a cooperação prática, que favorece a corresponsabilidade das Igrejas em iniciativas pastorais e sociais concretas (cf. UR 12); d) o ecumenismo espiritual, considerando a oração “a alma de todo o movimento ecumênico” (UR 8). As quatro dimensões do movimento ecumênico estão intrinsecamente interligadas: o ecumenismo precisa de todas para se realizar globalmente. E elas envolvem a Igreja como um todo, de modo que ninguém está excluído da responsabilidade de trabalhar pela superação da divisão dos cristãos (UR 5). Mas nem todos podem fazer tudo, de modo que cada cristão é chamado a perguntar-se em que dimensão pode melhor contribuir para a causa ecumênica. Essa contribuiçãopode dar-se em dois principais âmbitos: 1) na vida cotidiana das comunidades, com autonomia de cada fiel para propô-las, em sintonia com o bispo local. Os fiéis católicos são exortados a dar “o primeiro passo” na direção dos membros das demais Igrejas, preocupando-se por eles, rezando por/com eles, comunicando-lhes a sua vida eclesial (cf. UR 4). Trata-se de testemunhar a fé em Cristo e na Igreja, buscando sempre a renovação necessária para que o modo de viver sua fé não seja obstáculo à unidade (cf. UR 11). 2) No âmbito institucional, quando o diálogo acontece envolvendo as lideranças eclesiásticas, de forma oficial e programada. Ambos os âmbitos do ecumenismo, popular e oficial, concorrem para mostrar que “a solicitude na restauração da união dos cristãos vale para toda a Igreja” (UR 5). O Diretório para a aplicação dos princípios e normas sobre o ecumenismo (DE), do Conselho Pontifício para a Promoção da Unidade dos Cristãos (CPPUC), apresenta os “níveis” da ação ecumênica, orientando especificamente para que essa ação aconteça: a) no âmbito local – a organização do trabalho ecumênico numa diocese, sob a orientação do bispo diocesano; b) no âmbito nacional – o diálogo ecumênico é orientado pela conferência episcopal; c) e no âmbito regional – quando o diálogo é organizado pela articulação das conferências episcopais de uma determinada região. Todos esses níveis do diálogo estão em sintonia com as orientações e iniciativas do CPPUC, fazendo com que, de um lado, o diálogo local e regional contribua para que as orientações da Igreja universal sobre o ecumenismo sejam observadas nos diferentes contextos da Igreja e, do outro lado, para que a 32 forma de se viver o ecumenismo local e regional contribua para com a causa ecumênica universal. b) Indicações práticas para o agir ecumênico No segundo capítulo, o Decreto Unitatis Redintegratio apresenta os elementos concretos da ação ecumênica. Inicia afirmando que o ecumenismo deve envolver a totalidade da Igreja, em seus membros, estruturas e projetos, nada e ninguém está excluído da responsabilidade de trabalhar pela unidade dos cristãos (cf. UR 5). Mas para agir ecumenicamente, a Igreja precisa renovar-se em seu ser e seu agir (cf. UR 6). Ecumenismo e renovação caminham juntos, um é exigência do outro. Renovação não é abandono de convicções, mas aprofundamento e ampliação delas numa postura de fidelidade à fé de sempre. Assim, à medida que a Igreja avança na caminhada ecumênica, ela progride também no processo de renovação e aggiornamento proposto pelo Concílio. Uma Igreja renovada é uma Igreja ecumênica, e vice-versa. O antiecumenismo manifesta-se ali onde a Igreja não faz o esforço de aggiornamento. Isso implica um processo de conversão (cf. UR 7) que, de um lado, se expressa pelo reconhecimento das próprias dificuldades para a vivência da comunhão e da caridade. Todos temos alguma parcela de culpa na separação dos cristãos. De outro lado, significa trabalhar para superar a divisão, o que exige o esforço para seguir a Cristo na humildade, na mansidão, na paciência, posturas que muito contribuem para o diálogo e a convivência ecumênica. Para tanto, a espiritualidade é fundamental, de modo que a oração é “a alma de todo o movimento ecumênico” (UR 8). Destacam-se as Semanas de Oração pela Unidade dos Cristãos, momentos em que todos os cristãos oram como e com Cristo ao Pai, “que todos sejam um” (Jo 17,21). Esses quatro elementos da prática ecumênica (o interesse de todos, a renovação da Igreja, a conversão e a oração) são como que uma preparação, pessoal e comunitária, para trabalhar outros aspectos igualmente exigentes do diálogo ecumênico. O Decreto aponta a necessidade de “conhecer a mente” (UR 9) dos outros, sua compreensão da verdade em sua vida cultural e religiosa. É importante conhecer a história da sua Igreja, sua doutrina, sua liturgia, sua espiritualidade etc. Sem o conhecimento do interlocutor, o diálogo não atinge a seriedade e profundidade necessárias para contribuir com a restauração da unidade e da comunhão. Simultaneamente com o conhecimento do outro, acontece também melhor conhecimento de si mesmo, num processo de formação ecumênica (cf. UR 10). O ecumenismo precisa tornar-se objeto de estudo em sua história, sua natureza, seu método, seus objetivos. Esse estudo pode acontecer em âmbito acadêmico ou popular. Uma atenção especial precisa ser dada à 33 formação dos agentes de pastoral, sobretudo os ministros ordenados, em cuja formação muito contribui o intercâmbio de professores das diferentes Igrejas. É importante ter uma especial atenção ao método da formação da consciência cristã e eclesial. O modo de expressar a fé não pode causar obstáculo ao diálogo (cf. UR 11). Não se trata de deixar de dizer o que se pensa e o que se crê, nem de falar com meias palavras, com receio de ferir o outro. Trata-se de saber expressar a própria convicção de fé de um modo claro e pleno, mas sem desrespeitar quem crê diferente. O amor à verdade está unido à caridade e à humildade. Fundamental é entender que há uma “hierarquia das verdades” na fé católica, de modo que precisa ser dada mais atenção àquelas que estão mais diretamente vinculadas com o “núcleo” da fé cristã. Como consequência desses elementos práticos, os fiéis católicos estão prontos para a cooperação com os membros das outras Igrejas em projetos de ação social e pastoral (cf. UR 12). A cooperação ecumênica torna-se uma expressão concreta da consciência ecumênica de cada Igreja e já é um testemunho visível de unidade. Por ela, os cristãos podem juntos contribuir para a solução dos graves problemas que afligem toda a humanidade (cf. UR 12). O Diretório Ecumênico normatiza essas orientações práticas do Decreto Unitatis Redintegratio, ajudando as Igrejas locais para aplicá-las nos seus projetos de evangelização. Isso mostra que o ecumenismo não é uma questão de princípios apenas, mas de gestos concretos, como afirmou o Papa Bento XVI: Não bastam as manifestações de bons sentimentos. Fazem falta gestos concretos que penetrem nos espíritos e sacudam as consciências, impulsionando cada um à conversão interior, que é o fundamento de todo progresso no caminho do ecumenismo. [8] Temos, assim, a dimensão teórica e a dimensão prática do ecumenismo no ensino do Vaticano II. O agir ecumênico precisa ser iluminado e sustentado por princípios teológicos e doutrinais que lhe deem consistência e estabilidade. Esses princípios ganham concretude nas iniciativas que impulsionam o diálogo, a convivência, a cooperação e a comunhão entre os cristãos e suas Igrejas. Muitas das iniciativas ecumênicas fracassam tanto por excesso ou falta de teoria ecumênica, como também pelo pragmatismo ou falta de prática. O ecumenismo se desenvolve nesses dois âmbitos. Trata de questões delicadas que tocam diretamente na teologia e na prática de fé das Igrejas, questões que apresentam uma complexidade que precisa ser tratada com o devido cuidado e segurança, sob o risco de dificultar ainda mais o já delicado e frágil diálogo que entre elas acontece. 34 O Capítulo II A INCIDÊNCIA DO ECUMENISMO NA VIDA DA IGREJA Concílio Vaticano II integrou o ecumenismo no modo de ser e agir da Igreja católica. O próprio Concílio foi um ato ecumênico em si mesmo, pelo objetivo de favorecer a unidade dos cristãos, pela temática ecumênica tratada praticamente em todos os seus documentos, pela presença dos observadores. O Sínodo Extraordinário dos Bispos (1985) afirmou, na Relatio Finalis, C. 7, que, desde então, o ecumenismo está “profunda e irrevogavelmente gravado na consciência da Igreja” (em: DE, n. 21). Igualmente, o Papa João Paulo II entendeu que “com o Concílio Vaticano II, a Igreja católica empenhou-se, de modo irreversível, a percorrer o caminho da busca ecumênica” (UUS, 3). O ecumenismo é, assim, um apelo permanente para a Igreja: “O caminho ecumênico (é) caminho da Igreja” (UUS, 7-14). E onde o Concílio foi assumido de modo efetivo, o ecumenismo ganhou espaço no jeito de a Igreja católica ser e agir. 1. A transversalidade