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O normal e o patológico

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O normal e o patológico: uma discussão atual
Benilton Bezerra Jr.
· Normal e patológico são categorias que distinguem no plano social, o que é prescrito ou aceito daquilo que é proscrito ou recusado;
· A clínica é um campo onde a demarcação entre a saúde e a doença é o ponto de partida e a bússola que orienta a ação terapêutica;
· Não existe uma discussão latente entre os profissionais de saúde sobre os limites entre o normal e o patológico, e eles acabam reproduzindo conceitos e pontos de vista que refletem o imaginário social e teórico vigente, transformando-se em agentes de um processo crescente de medicalização da existência e patologização do normal;
· A ideologia de uma saúde perfeita na sociedade atual produz ideal de desempenho física e mental que transformam em patologia basicamente tudo que impeça o indivíduo de atingir suas exigências. Atualmente, cria uma ideia de que tudo é desvio de funcionamento, erros de programação ou falhas de desempenho;
A medicina não é ciência;
· Para Georges Canguilhem, a medicina não pode ser considerada uma ciência, mas sim uma práxis, uma arte situada na confluência de várias ciências. É um conjunto de técnicas e práticas realizadas por humanos visando a outros seres humanos, cujo alvo é o alívio ou a eliminação do sofrimento, produzindo também condições para que a vida possa ser usufruída da maneira mais rica que cada indivíduo puder, no plano físico, mental ou social;
· “O pathos precede o logos” – na origem de toda conhecimento e toda técnica, está uma experiência, uma vivênciade sofrimento. Essa afirmação de Canguilhem é verdade no sentido cronológico e no sentido ético;
· A prática médica é elaborada em cima de valores, a fim de tornar a experiência da vida a mais livre possível dos constrangimentos impostos pelos processos patológicos;
· Para Canguilhem, o médico não deve se contentar em definir a saúde ou a doença em termos estritamente factuais ou objetivos. Nem todo desvio em relação a normalidade implica doença. Por outro lado, estar dentro dos limites da normalidade estatisticamente medida nem sempre é garantia de saúde. Só se pode delimitar de forma consistente a fronteira entre o normal e o patológico quando colocamos no centro da reflexão a mudança de qualidade, a alteração do valor vital que a doença impõe e que o indivíduo reconhece como limitação à sua existência;
O princípio de Broussais;
· Canguilhem analisa o pensamento médico do final do século XVIII, onde a medicina adota a metáfora da “máquina universal” para descrever as leis de funcionamento do organismo vivo, influenciados pelo racionalismo e empirismo emergentes;
· Broussais estava convencido da necessidade de eliminação metódica do sobrenatural ou transcendental para explicar os fatos humanos. Para ele, não haveria uma dicotomia fundamental que separasse ontologicamente a saúde da doença, e por isso, a normalidade e a patologia fariam parte de uma mesma natureza como estados variados da realidade da vida humana. Canguilhem concorda com este postulado geral, afirmando que as normas patológicas, embora qualitativamente inferiores às normas saudáveis, não existe uma ontologia entre os estados. Broussais cria seu princípio alegando que o único elemento de diferenciação entre o estado normal e a patologia era o excesso ou a diminuição da “excitação” (para Broussais, era a característica principal do fato vital, sendo a vida no organismo sempre uma resposta às excitações exercidas sobre o organismo pelos ambientes em que ele se encontra). Dessa forma, constatar a hiper ou hipo excitação dos órgãos e tecidos seria o suficiente para explicar as variações entre a saúde e a doença. As patologias, então, seriam modificações quantitativas, objetivas, de um estado básico da vida. Assim, teria uma continuidade entre os estados de saúde e doença, sendo a variação de um estado e outro apenas de quantidade, e não de qualidade. Na patologia, não haveria nada de novo, de insólito ou de criativo;
· Canguilhem se OPÕE À TESE DE BROUSSAIS;
As duas dimensões do normal;
· Canguilhem afirma que há duas formas de se definir o normal. A primeira toma o termo como um fato, onde o normal é aquilo que é mais prevalente e estatisticamente mais constante, detectado pela observação e objetivamente mensurável. Nesse contexto, o normal é concebido como o que ele é e o que ele deve ser, e é normal porque é normativo. A segundo toma o termo como valor, onde se está atento ao grau de normatividade presente;
· Canguilhem estabelece a distinção entre fenômenos da anomalia e da anormalidade. Anomalia seria qualquer diferença constatada em relação ao que é estatisticamente prevalente. Pode se transformar em doença, mas não é por si só uma doença. Nesse contexto, existem variações normais, onde a saúde é preservada, e variações anormais, onde a patologia toma o lugar da saúde. O que difere as anomalias das anormalidades são as implicações que esse desvio tem, o valor positivo ou negativo que se impõe sobre o processo de preservação e reprodução da vida;
· Ainda nesse assunto, uma mesma variação objetiva pode ser sinal de normalidade ou de patologia, dependendo do contexto em que se apresenta. O mesmo fenômeno pode ser fisiológico ou patológico, dependendo da causa que o provocou;
· Canguilhem avalia, portan to, que é impossível descrever um estado ou um fato como normal ou patológico em si mesmo, sem a avaliação dos seus efeitos sobre o exercício normativo do organismo. Canguilhem critica a abordagem de Broussais. A patologia de uma artéria, por exemplo, está no fato de que sua normatividade está prejudicada, e que sua capacidade de enfrentar os desafios impostos pela “infidelidade do meio” está diminuída;
· Percebemos a presença de uma normatividade vital, e se aceitamos uma continuidade entre os fenômenos da saúde e da patologia, isso não significa que os identificamos como homogêneos. Existe um limiar, o estado de sofrimento. Entender o normal como normativo implica em definir o patológico como expressão de uma potência normativa constrangida;
A normatividade vital
· O conceito de normatividade vital de Canguilhem surge para substituir a ideia de normalidade, colocando o vitalismo contra o mecanicismo. Canguilhem se pretende a um materialista, objetivando conciliar a visão materialista do mundo sem deslizar para um fisicalismo reducionista, que não seria capaz de contemplar a singularidade dos fenômenos vitais aos demais fenômenos do universo. Para ele, um ser vivo é algo mais do que a soma de suas partes constituintes, e esse algo a mais seria um valor inscrito no organismo, onde se subordinam os fatores físicos e químicos presentes no organismo;
· Viver, então, seria sobre preferir e excluir, fazer escolhas e visar certos resultados e repelir outros, buscando a preservação, a multiplicidade e a reprodução da vida. Essa dimensão de valor suscita a noções de normalidade e patologia, saúde e doença;
· Para definição de saúde ou de doença, não se pode isolar indivíduo e meio, uma vez que a normalidade e a patologia estão presente na interação entre eles. A saúde então seria a capacidade de recriar o equilíbrio adequado com bases em normas diferentes sempre que necessário. O conceito de normatividade adquire uma dimensão individualista, holista e dinâmica. Meio e indivíduo interagem entre si e compõem um ao outro, eles mudam juntos. 
· Canguilhem também avalia que a normatividade vital não se restringe ao plano biológico, abrangendo o plano simbólico e o social. Além disso, tentar compreender a vida em sociedade como base no conhecimento sobre a vida dos organismos seria um equívoco;
O sentido da terapêutica
· A patologia é sempre uma resposta, um recurso do organismo para reequilibrar o jogo com o meio. A patologia implica a percepção pelo organismo da necessidade de produção de novas normas para fazer face ao desafio dirigido a ele, é uma “reação generalizada com intenção de cura”. Implica em uma reestruturação do mundo vivido e o surgimento de outro modo de vida. É uma forma de expressão normativa e autopoiética emque indivíduo e mundo se organizam;
· A partir do momento que entendemos o patológico, redefinimos o entendimento do que sejam suas relações com a saúde. A saúde não se define como ausência de doença, e sim como a potência vital que permite ao indivíduo adoecer e recuperar-se. A doença, então, seria um teste para a normatividade do organismo, que, sendo saudável, será capaz de ter sucesso. A doença é algo normal, previsível e compõe o cenário de uma vida saudável. A saúde implica a doença;
· O ponto de vista de Canguilhem traz duas conseqüências na clínica relevantes:
· Colocar a experiência de sofrimento no centro da terapêutica. Ampliar o horizonte de normatividade, ao aliviar o “sentimento de vida contrariada”, é o elemento que dá sentido à ação clínica. A medicina é uma prática onde o conhecimento está a serviço de valores (o valor da vida);
· Em matéria de sofrimento, é o indivíduo quem deve ter a última palavra.

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