Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
CIDADE MATARAZZO: ANÁLISE PROJETUAL CRÍTICA DE UMA INTERVENÇÃO ARQUITETÔNICA EM UM CONJUNTO PATRIMONIAL UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO NATÁLIA BARBOSA HETEM São Paulo 2020 CIDADE MATARAZZO: ANÁLISE PROJETUAL CRÍTICA DE UMA INTERVENÇÃO ARQUITETÔNICA EM UM CONJUNTO PATRIMONIAL UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO NATÁLIA BARBOSA HETEM São Paulo 2020 UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE MESTRADO EM ARQUITETURA E URBANISMO NATÁLIA BARBOSA HETEM CIDADE MATARAZZO: ANÁLISE PROJETUAL CRÍTICA DE UMA INTERVENÇÃO ARQUITETÔNICA EM UM CONJUNTO PATRIMONIAL São Paulo 2020 NATÁLIA BARBOSA HETEM CIDADE MATARAZZO: ANÁLISE PROJETUAL CRÍTICA DE UMA INTERVENÇÃO ARQUITETÔNICA EM UM CONJUNTO PATRIMONIAL Dissertação para obtenção de título de mestre em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Presbiteriana Mackenzie. ORIENTADORA: Profa. Dra. Ruth Verde Zein São Paulo 2020 H589c Hetem, Natália Barbosa. Cidade Matarazzo : análise projetual crítica de uma intervençăo arquitetônica em um conjunto patrimonial / Natália Barbosa Hetem 157 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2020. Orientadora: Ruth Verde Zein . Bibliografia: f. 145-153. 1. Patrimônio. 2. Arquitetura Contemporânea. 3. Análise de obras. I. Zein, Ruth Verde, orientadora. II. Título. CDD 711.4 Bibliotecária responsável: Paola Damato CRB-8/6271 Folha de Identificação da Agência de Financiamento Autor: Natália Barbosa Hetem Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo Título do Trabalho: Cidade Matarazzo: Análise projetual crítica de uma intervenção arquitetônica em um conjunto patrimonial O presente trabalho foi realizado com o apoio de 1: CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo Instituto Presbiteriano Mackenzie/Isenção integral de Mensalidades e Taxas MACKPESQUISA - Fundo Mackenzie de Pesquisa Empresa/Indústria: Outro: 1 Observação: caso tenha usufruído mais de um apoio ou benefício, selecione-os. I Ao apoio e confiança total dos meus pais e irmão no processo deste trabalho e nos caminhos que escolhi seguir. II III AGRADECIMENTOS Agradeço primeiramente aos meus pais, pelo apoio constante e por sempre acreditarem em mim. Ao meu irmão por ser meu companheiro nessa nova fase da minha vida, na cidade de São Paulo. Agradeço muito à minha orientadora, Ruth Verde Zein, por ter me acolhido e aceitado me orientar. Sem ela essa dissertação não sairia dos meus pensamentos e se concretizaria, seus conselhos foram essenciais para me ajudar no mestrado e na minha formação profissional, com todas as oportunidades que me ofereceu ao longo do curso. Aos meus colegas de sala, por estarmos juntos e nos ajudarmos sempre que possível. À minha companheira de estágio docente (que se tornou uma amiga querida), com quem compartilho a orientadora, por termos unido forças para enfrentar o ateliê 7 e adquirir ainda mais conhecimento com essa experiência incrível. À todos os meus amigos da vida, que acompanharam cada etapa minha e acreditam no meu potencial, o carinho e presença de vocês é essencial para mim, para saber que posso seguir em frente e vocês me ajudarão; os momentos felizes, de risadas e distração que compartilhamos contribuiu para a minha saúde mental e para a construção desse trabalho. Obrigada aos professores da pós-graduação e da FAU da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que compartilharam o conhecimento de vocês com tanto amor e brilho nos olhos, mostrando que realmente adoram o que fazem e puderam me inspirar. Por último, obrigada aos profissionais do Arquivo Histórico de São Paulo, da Gestão Documental de Processos, do Condephaat e Conpresp por fornecerem os arquivos necessários para a realização dessa pesquisa, assim como os profissionais da “Cidade Matarazzo”, por me permitir entrar e ver a obra em estudo de perto, principalmente ao Roberto Toffoli por contar de maneira mais detalhada sobre o processo de restauração do local e a Helena Ayoub pela ajuda com a questão histórica. Um último agradecimento a CAPES-PROEX, pela bolsa de estudo modalidade I fornecida, sem ela também não seria possível realizar essa pesquisa. Todos aqui mencionados me ajudaram, inspiraram e contribuíram para essa dissertação e para a minha formação profissional. IV V “Nós somos o nosso patrimônio de cultura. No passado e no presente” Nestor Goulart Reis Filho VI VII RESUMO O presente trabalho trata da atual intervenção arquitetônica (2014-2021) no quarteirão do antigo Hospital Matarazzo na cidade de São Paulo, pelo grupo francês Allard, com a presença de arquitetos internacionais e a construção de novas torres junto ao complexo de edificações históricas e tombadas existente. A dissertação discute essa obra considerando de maneira crítica e referenciada as questões patrimoniais envolvidas em uma intervenção arquitetônica contemporânea, considerando a atualidade dos debates sobre o patrimônio histórico e cultural, a trajetória desses conceitos no mundo e no Brasil, analisando a nova proposta da “Cidade Matarazzo” e comparando com casos similares, em termos de porte e programa de necessidades, de outros projetos de intervenção no Brasil e no mundo. Palavras chaves: Patrimônio. Arquitetura Contemporânea. Análise de obras. ABSTRACT This dissertation analyzes the current architectural intervention (2014- 2021) in the former Matarazzo Hospital block in the city of São Paulo, by the French group Allard, with the presence of international architects and the construction of new towers next to the existing historical and listed buildings complex. It discusses the heritage issues involved in a contemporary architectural intervention from a critical approach, considering the state- of-the-art debates and ideas on the historical and cultural heritage, in the world and in Brazil, analyzing the new proposal of the “City Matarazzo” and comparing it with similar cases, in terms of size and requirements, of other intervention projects in Brazil and in the world. Key words: Heritage. Contemporary Architecture. Analysis of Works. VIII IX LISTA DE FIGURAS Fig. 01: Imagem da localização do terreno do conjunto. 7 Fig. 02: Implantação de todo o complexo na área. 7 Fig. 03: Imagem da implantação da casa de saúde e capela. 9 Fig. 04: Imagem da fachada da casa de saúde. 9 Fig. 05: Planta, fachada e lateral da capela. 10 Fig. 06 e 07: Planta do térreo – acima– e do pavimento superior – em baixo. 11 Fig. 08: Fachada principal da nova edificação. 12 Fig. 09: Planta do térreo. 12 Fig. 10: Planta do primeiro andar. 12 Fig. 11: Fachada. 13 Fig. 12: Corte AB. 13 Fig. 13: Implantação do pavilhão. 13 Fig. 14: Planta de reforma do laboratório. 15 Fig. 15: Mapa do perímetro de tombamento da resolução 5/2014 pelo CONPRESP. 16 Fig. 16: Imagem renderizada da Torre inserida na paisagem, lado com vista para a cidade e o bairro da Bela Vista; 22 Fig. 17: Vista de frente do restauro da maternidade e a Torre Mata Atlântica ao fundo. 22 Fig. 18: Torre Mata Atlântica em construção vista de fora do terreno. 22 Fig. 19: Fundo da maternidade sendo restaurado. 23 Fig. 20: Arcos de apoio para a estrutura original da maternidade, construção do Lobby do Hotel. 23Fig. 21: Restauração da fachada da capela. 23 Fig. 22: Restauração do interior da capela. 23 Fig. 23 e 24: Modelo da suíte de 163m². 25 Fig. 25 e 26: Modelo da suíte de 342m². 26 Fig. 27: Recepção e bar do hotel. 27 Fig. 28: Piscina do hotel. 27 Fig. 29: Fachada de uma das edificações do hospital. 29 Fig. 30: Detalhe da esquadria. 29 Fig. 31: Outra fachada do hospital. 29 Fig. 32: Interior da edificação. 29 Fig. 33: Lay-out sugerido para as lojas de luxo. 30 Fig. 34: Lay-out sugerido para as lojas de luxo. 30 Fig. 35: Perspectiva do mercado orgânico. 33 X Fig. 36, 37 e 38: Mobiliários propostos pelos Irmãos Campana, de bambu, madeira e tubos de acrílico, respectivamente. 33 Fig. 39: Corte com o programa de necessidades da “Casa Bradesco da Criatividade”, de Rudy Ricciotti. 33 Fig.40: Perspectiva do palco do auditório dentro da “Casa Bradesco da Criatividade”. 34 Fig. 41: Perspectiva da área de exposição da “Casa Bradesco da Criatividade”. 34 Fig. 42: Fachada da edificação do centro comercial, de Rudy Ricciotti. 34 Fig. 43: Maquete do showroom do “Boulevard da Diversidade. 35 Fig. 44: Corte esquemático do túnel. 35 Fig. 45: Implantação do Boulevard da Diversidade. 35 Fig. 46: Desenho com o sistema de drenagem e coleta de água da chuva. 36 Fig. 47: Mapa de Bens Tombados, com imóveis tombados pelo Conpresp e ou Condephaat e ou Iphan, na região da Avenida Paulista, em roxo. 66 Fig. 48: Mapa de Bem Tombados com sobreposição do Mapa de Áreas Envoltórias do Conpresp, em amarelo. 67 Fig. 49: Mapa de Bem Tombados com sobreposição do Mapa de Áreas Envoltórias do Conpresp e sobreposição do Mapa de Áreas Envoltórias do Condephaat, em vermelho. 67 Fig. 50: Mapa-mundi com localização de todos os estudos de caso a serem analisados. Desenvolvido pela autora 76 Fig. 51: Mapa de localização do One Central Park, em roxo. 77 Fig. 52: Torres do complexo “One Central Park” em Sydney, Austrália. 78 Fig. 53: Torres do One Central Park ao fundo, parque à frente. 78 Fig. 54: Entrada do “One Central Park Mall”. 78 Fig. 55: Mapa de localização do Duo Central Park, em roxo. 81 Fig. 56: Imagem retratando a proximidade do One Central Park com o Duo Central Park. 81 Fig. 57: Fachada de uma das torres do Duo Central Park. 81 Fig. 58: Visão do pedestre das duas torres, One Central Park e Duo Central Park. 81 Fig. 59: Mapa de localização do “City Center DC”, em verde. 82 Fig. 60: Maquete de desenvolvimento da proposta, com foco na praça central e os edifícios a “protegendo”. 83 Fig. 61: Uma das entradas ao complexo. 85 Fig. 62: Outra entrada do complexo. 85 Fig. 63: Lojas de grife localizadas no pátio interno. 85 Fig. 64: Um dos modelos de planta para o studio. 86 Fig. 65: Um dos modelos propostos de 1 quarto e 1 banheiro. 86 Fig. 66: Um dos modelos de planta proposto para 2 quartos e 2 banheiros. 87 Fig. 67: Modelo proposto para 3 quartos e 2 banheiros. 87 XI Fig. 68: Mapa de localização do projeto London Peninsula Place, em azul marinho, situado na península de Greenwich. 88 Fig. 69: Exterior da Arena O2/Millenium Dome atualmente. 88 Fig. 70: Imagem das torres projetadas por Santiago Calatrava. 89 Fig. 71: Imagem com inserção do projeto de Calatrava na paisagem urbana, ao lado da Arena O2. 89 Fig. 72: Mapa de localização do Corso Itália,23, em azul claro. 91 Fig. 73: Corso Itália atualmente (2019), como sede da Allianz. 91 Fig. 74: Inserção do projeto do escritório SOM na paisagem de Milão. 92 Fig. 75: Fachada da edificação principal do projeto, com a transparência evidenciada. 92 Fig. 76: Mapa de localização da Casa das Rosas, em laranja. Em vermelho a localição da “Cidade Matarazzo”. 94 Fig. 77: Fachada da Casa das Rosas. Foto: Milena Leonel. 95 Fig. 78: Imagem do edifício comercial ao fundo do terreno. 96 Fig. 79: Mapa de localização do projeto Novo Recife, em amarelo. 98 Fig. 80: Área de construção do empreendimento com os armazéns. 98 Fig. 81: Visão de todo o projeto do Novo Recife na área do Cais. 100 Fig. 82: Implantação de todo o projeto do Novo Recife na área do Cais. 102 Fig. 83: Renderização das duas torres que compõem o complexo Mirante do Cais. 102 Fig. 84: Planta de pavimento tipo da torre norte do complexo Mirante do Cais. 103 Fig. 85: Renderização da torre do Parque do Cais. 103 Fig. 86: Imagem em modelo BIM do empreendimento, em corte, mostrando os subsolos. 110 Fig. 87: Esquema da estrutura da torre, em destaque as áreas com concreto pigmentado. 111 Fig. 88: Nuvem de palavras com base na tabela. Realização da autora no site “WordClouds”. 115 Fig. 89 e 90: Fachada do Hospital, sem o telhado (retirado para restauração). 117 Fig. 91: Capela praticamente inteira restaurada no exterior. 118 Fig. 92: Fachada da Maternidade em restauração. Fonte: Instagram da Cidade Matarazzo. 118 Fig. 93: Torre Mata Atlântica em processo de finalização da fachada e Maternidade restaurada. 118 Fig. 94: Construção da fachada de “cipós” do centro comercial do empreendimento. 118 XII LISTA DE TABELA Tabela 1 Processos vistos na Coordenação de Gestão Documental 17 Tabela 2 Palavras chaves citadas na revista L’Architecture D’aujourd’hui 115 XIII LISTA DE ABREVIATURAS CONDEPHAAT Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo CONPRESP Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional INTRODUÇÃO 1 A CIDADE MATARAZZO - DETALHAMENTO TÉCNICO DA OBRA REALIZADA NO LOCAL 7 1.1 Histórico do Hospital 8 1.2 Histórico do Grupo Allard 18 1.3 A proposta de intervenção 20 1.3.1 Etapa 1: Torre Mata Atlântica, maternidade e capela (hotelaria, previsão 2020) 20 1.3.2 Etapa 2: Hospital e lojas (lojas comerciais, previsão 2021) 28 DEBATES E EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS SOBRE A INTERVENÇÃO EM BENS PATRIMONIAIS 37 2.1 Teorias e legislações presentes em cartas e protocolos internacionais, breve revisão bibliográfica 38 2.1.1 Cartas internacionais 39 2.1.2 Patrimônio histórico e teorias de restauração 42 2.1.3 Historiografia e memória 55 2.1.4 Questões urbanas relativas ao patrimônio histórico 60 2.2 Normas e legislações aplicáveis ao caso (Plano Diretor de São Paulo, Instrumentos urbanos, Lei de Zoneamento, Condephaat e Conpresp) 62 2.3 As questões relativas aos procedimentos de debate público da proposta 70 SUMÁRIO 1. 2. 2.4 Estudos de caso: projetos com programas similares de intervenções em conjuntos patrimoniais 76 2.4.1 One Central Park, Sidney, Austrália 77 2.4.2 Casos com outros arquitetos 79 2.4.2.1 Duo Central Park, Sidney, Austrália 80 2.4.2.2 City Center DC, Washington, Estados Unidos 83 2.4.2.3 London Peninsula Place, Londres, Inglaterra 88 2.4.2.4 Corso Itália, 23, Milão, Itália 91 2.4.3 Casa das Rosas, São Paulo, Brasil 95 2.4.4 Projeto Novo Recife, Recife (PE), Brasil 98 A “CIDADE MATARAZZO”: ANÁLISE CRÍTICA DAS ESTRATÉGIAS PROJETUAIS 105 3.1 Intervenção e patrimônio 106 3.2 Método construtivo e inovações 109 3.3 Projeto social e maneira de venda ao público 113 CONCLUSÕES 119 REFERÊNCIAS 121 NOTAS 131 ANEXOS 3. 1 Este trabalho vai considerar de maneira detalhada e crítica um importante empreendimento que envolve a intervenção arquitetônica atual sobre um conjunto edificado e de valor histórico e patrimonial, situado em uma região de importante centralidade na cidade de São Paulo, e pretende considerar não apenas o atendimento às diretrizesnecessárias a quaisquer intervenções sobre obras consideradas “de patrimônio histórico”, como os resultados que essa intervenção tenderá a causar em seu entorno, e portanto, os eventuais problemas e benefícios que dessa obra podem resultar, para a sociedade e para seus usuários. A escolha dessa temática nasceu de uma inquietação pessoal, uma questão de afinidade e curiosidade, que vem desde minha infância. Entretanto, as dúvidas que eu sempre tive não foram totalmente dirimidas ao me formar em arquitetura – e de certa forma, elas até se ampliaram. A questão patrimonial e principalmente, o abandono de edificações históricas, é algo que constantemente chateia e faz refletir. Qual a razão de se abandonar, esquecer a história e a memória da cidade? Por que essa memória parece ser um valor importante, em outras cidades, países e continentes, enquanto isso parece ser menos valorizado em nossas cidades? Como aumentar a consciência sobre essa questão, e quais atitudes podem ser adotadas para que essa situação de perda de valores e memórias não mais ocorra? Além de ser uma questão de projeto, o assunto envolve outras dimensões. O que é possível fazer para incentivar o interesse da população por essa preservação e valorização da memória urbana? Acredito que as respostas dessas perguntas são complexas e difíceis de serem respondidas. Nessa dissertação, gostaria de enfrentar apenas alguns aspectos desse tema. Mas pretendo continuar minhas pesquisas e, se possível, dedicar minha vida profissional a essa causa. Cada edificação tem sua época e retrata uma história, que permanece na atualidade, nos recordando a passagem do tempo. Toda edificação possui em si um patrimônio de conhecimentos, e mesmo compreendendo a condição de efemeridade do mundo, parece ser importante aprender com esses ensinamentos. Se não é possível manter tudo, ao menos as edificações e espaços urbanos de maior valor deveriam ser conservados, preservados, restauradas, garantindo que esse legado chegue às novas gerações. Entretanto, INTRODUÇÃO 2 vê-se com muita frequência, nas cidades atuais, o abandono e o desinteresse por obras de grande valor histórico, patrimonial e até mesmo artístico. Isso nos causa indignação e tristeza, não apenas individualmente: trata-se de um patrimônio de toda a sociedade. As causas são complexas. Talvez uma parte da população não se reconheça nessa obra. A ausência de uma educação patrimonial impede que a maioria das pessoas, que não são especialistas no assunto, tenham conhecimento da história: a memória só resiste e subsiste se formos ensinados a reconhecê-la. Entendo que é possível de reverter esta situação. Mas como as mudanças também são necessárias, entendo que uma intervenção contemporânea, propondo novos usos e construções, convivendo em harmonia com o patrimônio existente, podem retirar o estigma de um local “degradado” e voltar a torná-lo significativo na cidade. A arquitetura contemporânea tem um importante papel na intervenção junto a edificações históricas. Embora os usos de um edifício possam se tornar obsoletos, novos usos, escolhidos de maneira adequada, podem revitalizá-lo. Entretanto, novas intervenções podem produzir sejam resultados positivos, sejam negativos – e quase sempre, um pouco de cada coisa é o que se pode finalmente atingir. A atenção e cuidado de um novo projeto em relação às teorias gerais e às diretrizes específicas das cartas patrimoniais internacionais, e das normativas preservacionistas locais, é sempre imprescindível quando se projetam novos usos e novos edifícios em conjuntos que contenham edificações existentes de valor histórico e cultural. Mas teorias, normas e diretrizes não são um corpo fechado e totalmente determinante, como tampouco o são as normas de planejamento constantes em instrumentos legais e políticos, tais como o Estatuto da Cidade (PLANALTO, 2001); ou no caso de São Paulo, nos seus sucessivos planos diretores (Prefeitura de São Paulo, 2014). Um projeto de intervenção requer, além desse conhecimento, e do respeito a essas normas, uma maior sensibilidade e respeito ao valor do que é antigo, que só pode ser atingido pelo amplo estudo e pesquisa de sua história. E finalmente, mas não menos importante, para se chegar a bons resultados todo o processo precisa ser monitorado, questionado e apoiado pela ação conjunta de órgãos governamentais e com a participação ativa dos diversos grupos de interesse social e cultural da sociedade, para que as iniciativas de investidores privados possam ser balizadas e apoiadas de maneira correta, para o benefício de todos, e principalmente, da cidade. 3 Para estudar essa questão numa primeira abordagem de pesquisa, propusemos realizar um estudo em profundidade de um projeto atual, que ainda está em processo de construção, e vem sendo realizado na cidade de São Paulo. Para entender o quanto esse projeto pode ser chamado de “contemporâneo” não apenas por ser de hoje, mas por atender, ou não, o pensamento contemporâneo sobre o tema da preservação e intervenção em conjuntos históricos e patrimoniais, entendemos que seria necessário também estudar, embora com menos profundidade, outros exemplos internacionais e nacionais de semelhante porte e teor. O objeto de estudo selecionado foi o empreendimento batizado como “Cidade Matarazzo”. Trata-se de uma área a poucas centenas de metros da Avenida Paulista, uma das grandes centralidades da cidade, e que esteve abandonado e sem uso por décadas. A história dessa área, sua importância para a cidade, seus edifícios e usos, seu processo de decadência e abandono, e das tentativas de revitalizá-la é abordada no Capítulo 1.1. A situação do local mudou recentemente com a proposta de realização de um grande empreendimento, restaurando o complexo de edificações do antigo Hospital Matarazzo e com a introdução de novos edifícios para hotelaria e comércio. O novo empreendimento tem patrocínio majoritariamente privado com capitais internacionais e apresenta- se como uma oportunidade de “investimento”, mas também, como uma oportunidade de revitalização. Um breve histórico sobre esse grupo de investidores e sobre suas realizações prévias, que como no caso paulistano, também envolveram a presença de renomados arquitetos internacionais, é relatada no capítulo 1.2. Para finalizar o primeiro capítulo, foi feito uma exposição do empreendimento, a mais completa possível – considerando-se que a obra ainda está em andamento – do projeto proposto, em suas diversas etapas. A questão financeira foi um grande motivador para seguir com a pesquisa, surgindo dúvidas como: Como o investimento privado pode reviver um patrimônio histórico esquecido? Qual o papel da influência do capital privado no patrimônio histórico comum? Nessa pesquisa não será aprofundado a temática financeira, por se tratar de um mestrado de arquitetura, então esse assunto será abordado superficialmente. A escolha do tema levou à pesquisa dos debates concernentes às questões teóricas, projetuais e legais atinentes ao tema do patrimônio edificado arquitetônico de valor histórico e patrimonial, 4 tema cada vez mais candente inclusive nas relativamente mais jovens cidades brasileiras, pois cada vez é mais frequente e em breve será quase inevitável que quaisquer projetos tenham que lidar com as questões postas pelas preexistências arquitetônicas e urbanas. A afinidade com esse tema esteve presente na minha formação e graduação em arquitetura, tendo sido abordado no trabalho de conclusão de curso, voltado para as questões de patrimônio na cidade de Ribeirão Preto. Esse trabalho deu início aos meus estudos no tema e despertou um desejo de aprofundá-lo. A possibilidade de morar em São Paulo abriu o interesse por conhecer melhor a cidade e de estudar suas edificações de valor histórico e cultural. O caso de São Paulo, e algumas viagens de estudos realizadas na Europa (curso de Civilização Francesa na Sorbonne em janeiro de2018 e curso de Cidades Inteligentes e Engenharia para Arquitetura Sustentável na EPF – Ecole D’Ingénieurs – e na ESTP – Ecole Spéciale des Travaux Publics – em julho de 2019) ampliou a compreensão de serem questões que, embora relevantes em cada lugar, são também recorrentes em quaisquer situações urbanas, e de abrangência e vigência internacional. A vivência de obras de alto valor patrimonial que foram preservadas, mas ao mesmo tempo, modificadas por grandes intervenções contemporâneas, abriu a compreensão e o interesse em estudar como realizar intervenções no patrimônio da cidade de forma totalmente embasada na teoria, mas também, de maneira inovadora e não convencional, compreendendo as edificações históricas abandonadas e verificando a possibilidade de sua revivescência com o apoio do projeto arquitetônico, valorizando o legado do passado da cidade e entendendo as mudanças sociais e suas demandas atuais. Esses temas são tratados no Capítulo 2 deste trabalho. Nele foi feita uma revisão ampla, mas não exaustiva, sobre os debates e experiências contemporâneas tratando das intervenções projetuais em bens de valor histórico e patrimonial. São consideradas no capítulo 2.1, em breve revisão bibliográfica, as teorias e legislações presentes em cartas e protocolos internacionais; no capítulo 2.2 são abordadas as normas e legislações locais (Condephaat e Conpresp, etc), incluindo, no capítulo 2.3, algumas das questões relativas aos procedimentos de debate público da proposta arquitetônica junto à sociedade, com foco no caso de estudo da “Cidade Matarazzo”. Para terminar esse capítulo foi realizado, de maneira breve, alguns estudos de casos de projetos de intervenções em conjuntos patrimoniais 5 internacionais e nacionais com programas similares ao da “Cidade Matarazzo”, considerando tanto as obras realizadas pelos arquitetos da equipe do projeto paulista, como outros exemplos relevantes, e mesmo, alguns casos polêmicos. No terceiro capítulo, é proposto uma análise do conjunto da “Cidade Matarazzo” à luz dos debates trazidos pelo capítulo 2, tanto nos aspectos teóricos, como nos aspectos projetuais. Nesse capítulo, algumas das inquietações iniciais voltam a ganhar relevância, pois são elas que embasam o enfoque pretendido por esta pesquisa. Muitas cidades passam atualmente pela condição de relativo abandono e/ou degradação de seus centros históricos, a par da configuração de novas centralidades urbanas, acompanhando a expansão do tecido urbano das cidades – e eventualmente, de seu sucessivo abandono e/ou degradação. Muitos edifícios com valor histórico e cultural que conformam a memória da cidade, que fizeram parte de sua história e desenvolvimento, restam abandonados, atingindo progressivamente estados de ruína. O tombamento das edificações segue sendo ainda um dos únicos instrumentos legais que visam garantir a preservação e a conservação desses bens: mas como já foi apontado por várias/os autoras/es, é um instrumento problemático, e em alguns casos, falho e ineficaz (RETTO JÚNIOR e KUHL, 2019). Ademais do restauro clássico, mais cabível em obras de grande valor artístico, com frequência a revitalização dessas obras abandonadas vem se realizando por meio de intervenções, mais ou menos radicais, envolvendo a substituição parcial e/ou a justaposição de novos edifícios em diálogo com os edifícios patrimoniais, geralmente, com vistas a adaptá-los a novos usos, ampliando sua frequência, e gerando mais vida e movimento nesses centros urbanos. Entretanto, uma questão fundamental se coloca. O impacto dessas arquiteturas contemporâneas é sempre positivo? Até onde essas intervenções estão de fato respeitando as edificações antigas e históricas das cidades? E como é possível verificar essa questão e, ainda mais, promover mecanismos para que as soluções propostas sejam efetivamente, adequadas? O trabalho tem como objetivo relatar o que tem sido feito não só na “Cidade Matarazzo”, mas também nas obras e edificações que envolvem o patrimônio histórico em outras regiões do mundo, como essa questão é lidada, ou até mesmo apagada com a chegada da “nova” arquitetura inserida nas localidades. 6 A hipótese inicial desta pesquisa admite a possibilidade de reverter a situação de esquecimento provocada por um edifício abandonado pelo acréscimo e intervenção de novos edifícios, que garantam a realização de novos usos, e a atração de novos usuários. Há diversos exemplos de intervenções nas edificações antigas e patrimônios da cidade que parecem ter resultado em um melhor uso de edifício e em um certo grau de revitalização da região em que ele se situa (alguns desses casos serão revistos no capítulo 2.4.). No caso da Cidade Matarazzo, como o projeto lidou com essa questão? Haverá novos usos – mas esse “novo” lugar, será ele de fato retornado pela população, por seu uso, pela sua afetividade – e pela sua presença? Em especial: será que o novo empreendimento será acessível a todos? Ou promoverá apenas o bem-estar de uma única parcela da população, aquela que já dispões dos privilégios resultantes do fato de se posicionar como a camada social dominante? Essas questões são consideradas no capítulo 3, segundo alguns critérios de análise. No capítulo 3.1 foi abordado mais profundamente a questão de revitalização e restauro das edificações antigas do complexo, como foi feita a intervenção das novas edificações, e o que precisou ser modificado para tal. No capítulo 3.2 vamos abordar as inovações construtivas presentes na obra da nova torre. Na terceira e última parte do capítulo foi feito uma análise do discurso de divulgação presente nas mídias e nas redes sociais do empreendimento, a maneira que está sendo vendido ao público. Finalmente, nas conclusões do trabalho, espera-se responder algumas das inquietações que promoveram sua realização ou, ao menos, busca-se atingir uma maior clareza sobre como interpretar e considerar criticamente essas questões. 7 Como mencionado na introdução, o trabalho trata do caso do projeto conhecido como “Cidade Matarazzo”. Este capítulo é dedicado a detalhar e expor de maneira técnica o que está sendo feito, ao longo de praticamente 10 anos, no local, considerando o histórico e desenvolvimento das obras, as propostas e os agentes envolvidos. Optou-se por estruturar a dissertação iniciando-se pelo objeto de estudo, para depois, com o reconhecimento desse projeto e suas características em mente, explorar a fundamentação teórica dos temas ligados ao patrimônio, para só então verificar como o projeto proposto contempla essas questões; e finalmente, comparando esse com outros casos assemelhados. O objeto de estudo será abordado de maneira cronológica, começando com a história do complexo Matarazzo, abordando a seguir um histórico do empreendedor Alexandre Allard e do Grupo Allard, para depois apresentar a proposta do empreendimento. O projeto está localizado no terreno que o Hospital Matarazzo se situa. Próximo a Av. Paulista, no quadrilátero formado pelas ruas Itapeva, Pamplona, São Carlos do Pinhal e Alameda Rio Claro (figura 01). O antigo complexo hospitalar se transformará em centro comercial, hoteleiro e cultural (figura 02). Será um local multifuncional e que pretende atender diversas demandas da região e da sua população. A CIDADE MATARAZZO - DETALHAMENTO TÉCNICO DA OBRA REALIZADA NO LOCAL Fig. 02: Implantação de todo o complexo na área. Fonte: Cidade Matarazzo. Acesso 17 de fevereiro de 2020 Fig. 01: Imagem da localização do terreno do conjunto. Disponível em: Google Maps – Acesso 09 de maio de 2019 1. 8 O antigo Hospital Matarazzo, inaugurado em 1904, foi construído pela “Societá Italiana de Beneficenza in San Paolo”, com grande investimento do imigrante italiano e industrial Francisco Matarazzo, e seu núcleo original de edifícios são de autoria do arquiteto italiano Giulio Micheli (que chegou em São Paulo em 1888). As outras edificaçõesdo complexo foram construídas posteriormente, ao longo dos anos, até 1974. Conforme os anos passaram várias reformas foram executadas no complexo para melhorar a qualidade de atendimento aos clientes. A sua fama veio devido ser o primeiro hospital organizado em pavilhão e por conta da maternidade. Porém, o conjunto passou por um processo de decadência, em paralelo com a desativação das indústrias do Matarazzo, sendo fechado oficialmente em 1993. Em 1985 aventou-se a possibilidade de sua demolição, considerando tratar-se de área em local de grande importância e dos mais disputados pelos empreendedores e pela especulação imobiliária da cidade. No arquivo histórico de São Paulo1 podem ser encontradas as plantas originais do Hospital e o registro das mudanças feitas com o tempo. Em junho de 2019 a autora visitou o arquivo histórico para consultar os arquivos referentes ao Hospital Umberto I (posteriormente renomeado Hospital Matarazzo), datando de 1915 a 1918. Foi consultado o livro de “Obras particulares – papéis avulsos de 1905 – OPA 417”, onde constava um documento da “Societtá Italiana di Beneficenza per L’ospedale Umberto I”, informando que não haver sido ainda construído o muro e o passeio do terreno devido às obras internas em andamento. Foram consultadas também as caixas dos anos 1915, 1916, 1917, 1918. A caixa 09411 de 1915 continha o Processo OP1915.003.251 ou 120165/15 sobre a Alameda Rio Claro, com o pedido de alvará de licença para construção de uma casa de saúde e capela pelos engenheiro e arquiteto A. Pazzo e G. Bianchi, e as plantas do projeto, que seguem abaixo (figuras 03-07). A caixa POR2 de 1916 continha os documentos 26 e 27 referentes à Alameda Rio Claro. O documento 26 pedia aprovação do projeto de construção para o pavilhão do hospital e alvará de licença para o muro. O 27 tinha como assunto a construção do muro. O documento 26 contém um memorial descritivo que informa que o pavilhão será construído ao lado dos já existentes, com um recuo de 1.1 Histórico do Hospital 9 Fig. 04: Imagem da fachada da casa de saúde. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico Fig. 03: Imagem da implantação da casa de saúde e capela. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico 10 15m, e de forma que converse com os outros. Segundo o memorial, o pavilhão é composto por dois planos, o térreo (com salas para consultórios médicos e hall de espera) e o primeiro andar (com várias salas bem iluminadas). A edificação tem alicerces de concreto com pedregulho e cimento, paredes na fundação com 60 centímetros de largura que se prolongam até o térreo na altura de 1,20 formando o porão de terra socada e o andar ladrilhado. As paredes externas e do corredor do térreo são de 45 centímetros e no primeiro andar de 30 centímetros, as paredes divisórias dos consultórios tem 15 centímetros. Os tijolos são assentados com argamassa de cal e areia e revestidos interna e externamente. O Térreo conta com a presença de banheiros. O forro do primeiro andar possui rede metálica e o do térreo é de reboque. Vigamento do telhado de peroba e cobertura de telhas nacionais. O revestimento externo é de reboco de cal e areia, portas e janelas de pinho de Riga pintadas a óleo com ferragem e vidros usuais. A escada é de cimento armado revestida de mármore. As fachadas são revestidas de cimento, cal e areia com imitações de tijolos e pedras (figuras 08-13). A caixa POR3 de 1917 continha somente o documento 36, com uma solicitação do próprio Francisco Matarazzo para rebaixar a calçada em frente ao Hospital Umberto I e chanfrar as guias da entrada. Fig. 05: Planta, fachada e lateral da capela. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico. 11 Fig. 06 e 07: Planta do térreo – acima– e do pavimento superior – em baixo. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico 12 Fig. 10: Planta do primeiro andar. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico Fig. 08: Fachada principal da nova edificação. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico Fig. 09: Planta do térreo. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico 13 Fig. 13: Implantação do pavilhão. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico Fig. 11: Fachada. Fonte:: SÃOPAULO. Arquivo Histórico Fig. 12: Corte AB. Fonte: SÃOPAULO. Arquivo Histórico 14 A caixa POR2 de 1918 continha o documento 9, sobre as modificações e ampliações a serem feitas no Hospital, e um memorial descritivo dos materiais a serem empregados, com o nome de Heribaldo Siciliano como interessado. Também constava um pedido de aprovação da planta de reforma e alvará de licença para as modificações no laboratório. O memorial informava que o revestimento interno e externo seria de argamassa de cal e areia 1:3 com granulação fina; os forros seriam em estuque sobre telha metálica com argamassa de cal, areia e cimento; as paredes seriam pintadas; haveria uma barra de estuque até uma certa altura e a pavimentação seria feita com “lignite” com superfície lisa (figura 14). O arquivo histórico de São Paulo só tem documentos arquivados até 1937, após essa data eles estão sob a guarda da gestão documental de processos. Em agosto de 2019 a autora visitou a Coordenação de Gestão Documental de São Paulo para fazer a vistoria dos processos relativos ao Hospital Umberto I na avenida Rio Claro. Os processos vistos datam obras desde 1937 até 2017. Como mostra a tabela 1. Para salvaguardar o conjunto do Hospital, prevenindo sua destruição e a construção de novas edificações sem maiores critérios de controle da preservação do conjunto, o Hospital foi tombado pelo CONDEPHAAT pela Resolução SC 29/86 (1986). Na resolução consta que o Hospital e Maternidade Umberto I (ex Hospital Matarazzo) é representativo das instituições imigrantes da cidade de São Paulo, exerceu papel de destaque no atendimento médico, como local de estudo e prática profissional, sendo pioneiro no desenvolvimento de atividades hospitalares na cidade e pelo seu conjunto arquitetônico harmonioso. Esses argumentos foram apresentados para considerar o conjunto como importante histórica e arquitetonicamente, justificando assim o tombamento desse conjunto arquitetônico. Foram estabelecidos três diferentes graus de preservação para os edifícios do conjunto, sendo de grau 1 (preservação integral, permitindo pequenas reformas internas) a Capela e a Maternidade Condessa Filomena Matarazzo; de grau 2 (preservação de fachadas, coberturas e gabarito) o núcleo original do Hospital, as Casas da Saúde Francisco Matarazzo e Ermelino Matarazzo, a antiga residência das irmãs e o Pavilhão Vitório Emanuele III; de grau 3 (preservação de volumetria) as instalações da cozinha, lavanderia e refeitório, o novo prédio hospitalar, lanchonete e lojas e o estacionamento. Nessa resolução o interior da quadra é considerado como “área 15 envoltória” (tendo como limite as calçadas do terreno). Após alguns anos de discussão, em que algumas partes envolvidas entendiam como demasiado rigorosa a resolução de tombamento, em 2014 efetivou-se uma revisão do tombamento, a pedido do investidor, o qual alegava ser a mesma necessária para que fosse possível e viável realizar algum empreendimento no local. Anteriormente já haviam ocorrido outras solicitações propondo mudanças de usos, que não prosperaram. O CONPRESP (órgão municipal de preservação) também qualificou o conjunto como Zona Especial de Preservação Cultural, segundo a lei n 13.885 de 1975, tombando o conjunto arquitetônico edificado do antigo Hospital Umberto I por meio da Resolução N 05 (figura 15), fornecendo diretrizes bem mais detalhadas sobre o que preservar, de cada edificação, considerando principalmente o Hospital e a Capela. Fig. 14: Planta de reforma do laboratório. Fonte: SÃO PAULO. Arquivo Histórico 16 Com as novas resoluções foi possível postular um novo projeto de aproveitamento do complexo, com a preservação parcial das construções existentes e adição de novas obras. Dessa forma, o empreendimento “Cidade Matarazzo” começou a ser idealizado.Um time de arquitetos e engenheiros pensaram e levaram em consideração às questões patrimoniais e históricas, trazendo na obra de restauração de cada edificação os principais princípios das teorias, assim como tratam o patrimônio como a maior identidade do projeto. Fig. 15: Mapa do perímetro de tombamento da resolução 5/2014 pelo CONPRESP; Acesso 09 de maio de 2019 17 Tabela 1: Processos vistos na Coordenação de Gestão Documental Número do processo Assunto 1978 - 0.011.516-0 Edificação: alvará de construção (20/05/1969) 1986 – 0.009.895-5 Edificação: alvará de construção (13/07/1937) 1986 – 0.009.776-2 Edificação: auto de conclusão/habite-se (25/05/1938) 1986 – 0.009.771-1 Edificação: alvará de construção (07/07/1939) 1986 – 0.016.510-5 Edificação: alvará de reforma (26/02/1942) 1986 – 0.009.821-1 Edificação: transferência de responsabilidade técnica (22/04/1942) 1986 – 0.009.774-6 Edificação: reforma (06/05/1942) 1986 – 0.009.773-8 Edificação: reforma (04/08/1942) 1986 – 0.009.819-0 Edificação: auto de conclusão/habite-se (10/03/1943) 1986 – 0.009.818-1 Edificação: auto de conclusão/habite-se (16/03/1943) 1986 – 0.016.511-3 Edificação: autenticação/visto em planta (19/03/1943) 1986 – 0.009.772-0 Edificação: autenticação/visto em planta (19/03/1943) 1986 – 0.009.896-3 Edificação: auto de conclusão/habite-se (10/05/1943) 1986 – 0.016.518-0 Edificação: reforma (09/02/1949) 1997 - 0.194.650-2 Edificação: alvará de reforma (18/09/1956) 2011 – 0.297.423-0 Edificação: alvará de construção (06/10/1952) 2011 – 0.297.391-9 Edificação: auto de conclusão/habite-se (21/10/1953) 2011 – 0.297.124-0 Edificação: alvará de reforma (15/03/1957) 2011 – 0.296.361-1 Edificação: auto de conclusão parcial (22/06/1960) 2011 – 0.297.140-1 Edificação: auto de conclusão/habite-se (18/08/1960) 2017 – 0.042.559-1 Imóvel tombado/área envoltória: evento/exposição (13/03/2017) *o interessado deixou de ser a Sociedade Beneficente em São Pau- lo e outros (F. Matarazzo) e passou a ser a BM Empreendimentos e Participações SPE LTDA 18 Para contextualizar a realização do empreendimento conhecido como “Cidade Matarazzo” é necessário conhecer melhor seu investidor principal. Alexandre Allard é cidadão francês, embora nascido nos Estados Unidos. Tornou-se muito conhecido nos anos 1990 por ser um dos fundadores da empresa ConsoData, que reunia então a maior quantidade de dados do mundo. Após vender a empresa em 2000, ele passa a dedicar-se a projetos pontuais de reformas, e à medida em que seu volume de obras foi crescendo organizou o Grupo Allard, em 2009 (ENTREPRENDRE)2. O grupo Allard engloba atividades em diversos ramos comerciais: moda (Balmain), mídia (revista L’Architecture D’Aujourd’hui), arte e setor imobiliário e hoteleiro. Sua atuação na compra e reforma de antigas edificações e hotéis em Paris, como o Le Royal Monceau e o Hotel Particulier de Pourtalès, os deixando com serviço e infraestrutura luxuosos, foi bastante divulgada. Segundo o site “Entreprendre” a visão de Allard sobre o próprio grupo é que ele seria, “antes de tudo, uma tribo, que busca colocar seus talentos e conhecimentos ao serviço do belo, da emoção e da arte”3. O hotel 5 estrelas Royal Monceau, em Paris, foi a primeira experiência do grupo Allard na reabilitação de imóveis de luxo. O design de interiores é de autoria de Philippe Starck, que também faz parte da equipe do projeto da Cidade Matarazzo. O Hotel manteve a fachada antiga do edifício e teve o seu interior modificado, com a inserção de móveis e a identidade de Starck. A matéria de “Lifestyle” no site da Forbes diz que o Royal Monceau “é um hotel palácio, e que o que Starck criou é algo ousado, que mistura o clássico com o contemporâneo”4. Segundo o site da Cidade Matarazzo5, Allard gostaria de vender uma experiência de conforto aliada ao luxo, com cinema, arte e chefs internacionais renomados frente aos restaurantes no Royal Monceau. “O Hotel, da rede hoteleira Raffles, oferece aos seus clientes espaços dedicados a arte contemporânea. Livraria de arte, sala de cinema privada, galeria de arte contemporânea, coleção privada com mais de 300 obras de arte e um serviço de concierge de arte: o programa artístico do hotel é multidisciplinar, multimídia e intergeracional”. (ROYALMONCEAU)6 1.2 Histórico do Grupo Allard 19 O projeto que o grupo Allard está realizando no Brasil seguiria essa mesma linha de atuação. A proposta parece ser semelhante à dos empreendimentos na França, mas o porte e escala, no caso paulistano, é muito maior. Na França foi restaurada e reabilitada somente uma edificação, enquanto na “Cidade Matarazzo”, como será visto mais detalhadamente adiante, a proposta envolve um conjunto de edificações cuja reabilitação, para ser viabilizada, envolve ações construtivas complexas. Segundo o site da Cidade Matarazzo, o interesse do grupo Allard pelo complexo do Hospital Matarazzo, e a aquisição do complexo imobiliário em 2008, teria como foco a construção de um hotel e de instalações para o comércio de luxo, gerando renda, mas também teria a ver com a possibilidade potencial de investimento em cultura e arte, revitalizando o legado arquitetônico e cultural existente. Nesse sentido, foram chamados para a equipe de projeto importantes figuras internacionais do mundo artístico, design e arquitetura. O hotel é projeto do escritório do arquiteto francês Jean Nouvel, os interiores do hotel são projeto do designer francês Philippe Starck, e outros artistas e designers irão contribuir com o novo complexo multifuncional. A seguir será tratada cada etapa do empreendimento de maneira detalhada, começando pela Torre Mata Atlântica, projetada pelo escritório de Jean Nouvel; em seguida será abordado o novo uso a ser atribuído ao antigo complexo hospitalar. 20 Será feito a seguir o detalhamento da proposta de empreendimento chamada “Cidade Matarazzo”, em duas etapas, assim como foi definido o projeto. A primeira tratará a Torre Mata Atlântica e o setor de hotelaria e a segunda o Hospital e o setor comercial. 1.3.1 Etapa 1: Torre Mata Atlântica, maternidade e capela (hotelaria, previsão 2020) Segundo o discurso presente no site do empreendimento, o grupo Allard pretende “realizar um sonho brasileiro, mostrando o melhor que há de sua cultura e raízes”. Ainda assim, de fato, os projetos foram idealizados por franceses, que por mais que conheçam e admirem a cultura brasileira, não são de fato brasileiros. Pode-se entender, portanto, que se trata de um empreendimento de parceria franco-brasileira, envolvendo profissionais de grande presença internacional. A proposta para o antigo complexo hospitalar Matarazzo é de restaurar e preservar os edifícios históricos, sendo que somente a Capela será completamente restaurada e terá o uso original mantido. Junto à antiga edificação da maternidade haverá uma nova torre, projetada pelo escritório francês Jean Nouvel, abrigando um grande hotel de luxo, 6 estrelas, da empresa Rosewood Hotels&Resorts. “Encontro entre o histórico e o contemporâneo: um hotel palácio, administrado pelo renomado Rosewood Hotels & Resorts. O edifício histórico será entrelaçado com uma torre moderna projetada por Jean Nouvel – evidência concreta do futuro que ganha vida dentro do coração de São Paulo.” (CIDADEMATARAZZO) Além do grande hotel de luxo haverá uma área para comércio, e será implantando um jardim, com as “árvores mais comuns e famosas brasileiras”, supostamente, “inspirado na Mata Atlântica”, buscando evidenciar uma “brasilidade” aliada ao exotismo do olhar estrangeiro. A torre Mata Atlântica teria sido proposta de maneira a se mesclar na paisagem, dando continuidade ao “parque” Matarazzo, através da presença de vegetação e árvores na sua fachada e 1.3 A proposta de intervenção 21 interiores, além de contar com a presença de materiais locais de fácil acesso como a madeira, o metal com aspecto de madeira e o concreto. SegundoJean Nouvel a ideia de colocar as árvores da torre veio após sua visita à maternidade e ao complexo histórico, onde percebeu que havia muita vegetação e um clima próprio, levantando a sugestão de integrar os dois locais com a presença da vegetação na torre também contrastando com as outras torres presentes na Av. Paulista (L’Archictecture D’Aujourd’hui, Montpellier, França, p.24-27, 2019). Para a volumetria, o arquiteto propôs que o edifício tivesse perfil piramidal, em composição que permite criar vários terraços arborizados, dando soluções distintas para cada lado, com fachada mais aberta, com largos e profundos terraços arborizados, voltada para o parque. Enquanto a fachada com vista para a cidade tem aspecto mais íngreme (figura 16), visando criar um diálogo com os imóveis já existentes, pelo maior uso de concreto armado. As fachadas leste e oeste possuem brises de madeira para proteção solar. O conjunto configura uma torre de 93 metros de altura, englobando o hotel 6 estrelas e um complexo residencial (que possui os serviços hoteleiros – estilo “flats”) com 104 quartos e 126 suítes privadas, mais um spa, área “fitness” e a cobertura privada. Segundo o arquiteto Jean Nouvel, essa nova arquitetura “fala do passado, presente e futuro. Passado devido a técnica de construção em madeira que está há mais de séculos na história. Do presente pois ela se insere de maneira harmônica entre as construções antigas. Do futuro na nova maneira de habitar, com a presença de vegetação e jardins suspensos em São Paulo, com vistas luxuosas, caracterizando uma arte de viver em São Paulo” (JEANNOUVEL)7. A construção da torre está sendo feita em uma área do terreno que não é tombada, porém o seu impacto na paisagem e no complexo tombado será enorme, aspecto que será abordado no capítulo 3. A torre ainda está em construção; a previsão de abertura do Hotel e Capela é para o primeiro semestre de 2021. A visita de campo das obras, pela autora, ocorreu em setembro e outubro de 2019, tendo sido possível acompanhar uma parte das obras de perto, o que ajudou na compreensão do conjunto (figuras 17-22). 22 Fig. 16: Imagem renderizada da Torre inserida na paisagem, lado com vista para a cidade e o bairro da Bela Vista; Disponível em: http://www.jeannouvel.com/projets/ torre-rosewood/ Acesso 14 de maio de 2019 Fig. 18: Torre Mata Atlântica em construção vista de fora do terreno. Foto: Natália Hetem, jun/2019 Fig. 17: Vista de frente do restauro da maternidade e a Torre Mata Atlântica ao fundo. Foto: Natália Hetem, set/2019 23 Fig. 19: Fundo da maternidade sendo restaurado. Foto: Natália Hetem, out/2019 Fig. 20: Arcos de apoio para a estrutura original da maternidade, construção do Lobby do Hotel. Foto: Natália Hetem, out/2019 Fig. 22: Restauração do interior da capela. Foto: Natália Hetem, out/2019 Fig. 21: Restauração da fachada da capela. Foto: Natália Hetem, out/2019 24 O projeto de interiores será realizado pelo designer Philippe Starck. Segundo consta no site do empreendimento, o espaço pensado pelo designer funcionaria como “uma ponte entre a criatividade brasileira e a europeia”. Starck se mostra muito poético na descrição do seu trabalho e no local da “Cidade Matarazzo”: Cidade Matarazzo deu vida a São Paulo e depois dormiu. Cidade Matarazzo está acordando e dará, novamente, vida à São Paulo Não do mesmo jeito. Na primeira vez era feita de carne. A nova é feita de sonhos. Sonho, visão, criatividade, rigor são os pontos da Matarazzo. O sonho é simples; criar uma ilha, criar um pasaíso no meio da cidade, o qual vai se tornar o centro da vida da cidade. Quem quer que seja, em qualquer momento da sua vida, seus sonhos terão seu próprio local na Matarazzo. Como a vida. Para sempre. Ph. S. (STARCK, 2016)8 No poema acima ele faz referência à época em que o local era um hospital, principalmente à Maternidade, e evidencia a drástica mudança que o local sofrerá, se transformando em realizador de sonhos. Mas, sonhos de quem? Dos investidores, do Alexandre Allard, do próprio Starck e dos outros envolvidos. O projeto, por suas características, provavelmente servirá apenas a uma parcela muito pequena da população, amante da arte, cultura e, principalmente, do luxo, para desfrutar dos privilégios que o local oferecerá. No local há um showroom para visita e divulgação, aos possíveis compradores, simulando os espaços das suítes da Torre. E no site da Cidade Matarazzo já existem imagens renderizadas mostrando o projeto das áreas comuns do hotel (figuras 23-28), permitindo ter uma noção de como ficará a obra, quando finalizada. No “press release” da torre hoteleira Mata Atlântica, gerenciada pela rede Rosewood, o grupo Allard aponta esse empreendimento como “o melhor investimento para o mercado de luxo na cidade e no Brasil”. Os acabamentos da torre estão sendo projetados por uma empresa francesa, a Ateliers de France, usando materiais encontráveis no Brasil, pois eles consideram que “o luxo não precisa ser importado”, já que o país tem muitos recursos de alta qualidade. Essas frases 25 anteriores me fazem pensar sobre como, em pleno século 21, ainda se pensa no Brasil como ótimo fornecedor de matéria prima e de mão de obra, mas que segue sob o comando de europeus, sem assumir o papel de líder do próprio destino. Os textos de apresentação do projeto da “Cidade Matarazzo” revelam claramente seu vezo eurocêntrico, embora pretendam estar vestidos de “brasilidade”. Como é um empreendimento de grande porte, segue um resumo dos projetos que estão sendo feitos no complexo: arquitetura da torre por Jean Nouvel; direção artística e suítes (cada uma com 130-450m², com mais de 50 lay-outs diferentes) desenhadas sob medida por Philippe Starck; serviços de hotel por Rosewood Hotel & Resorts; acabamentos por Ateliers de France no Brasil; e paisagismo por Louis Benech. A presença de profissionais brasileiros ocorre somente na administração, mão de obra e fornecimento de materiais, não comparecendo nos estágios dos processos criativos. Fig. 23 e 24: Modelo da suíte de 163m². Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www. cidadematarazzo.com.br/ suites-tipos Acesso 17 de fevereiro de 2020 26 Além dos profissionais mencionados acima, o escritório franco-brasileiro Triptyque Arquitetura também está presente, sendo responsáveis pelas obras de restauro e reformas no interior do complexo. No subsolo de 31 metros, criado sob a capela, haverá estacionamentos, espaços de apoio ao hotel e espaços de eventos. O antigo Hospital, que será tratado a seguir, será restaurado e abrigará lojas de luxo, um centro cultural e um mercado de produtos orgânicos. Fig. 25 e 26: Modelo da suíte de 342m². Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www.cidadematarazzo. com.br/suites-tipos Acesso 17 de fevereiro de 2020 27 Fig. 28: Piscina do hotel. Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www. cidadematarazzo.com.br/hotel-fachada Acesso 17 de fevereiro de 2020 Fig. 27: Recepção e bar do hotel. Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https:// www.cidadematarazzo.com.br/hotel- fachada Acesso 17 de fevereiro de 2020 28 1.3.2 Etapa 2: Hospital e lojas (lojas comerciais, previsão 2021) A parte do conjunto que abrigava o antigo Hospital será transformada em uma grande área comercial, mantendo somente alguns elementos originais dos interiores, aqueles que estão indicados nas resoluções de tombamento do Conpresp e do Condephaat, e que também indica que todas as fachadas devem ser restauradas. O processo de restauro e manutenção das fachadas e esquadrias das edificações do hospital ainda não começou, pois o empreendimento deu prioridade às obras da maternidade, da capela, e da Torre. Portanto, a situação em que ele se encontrava quando visitei o local (em 2019) é bastante precária, e praticamente a mesma (ou ainda mais degradada) de quando a área foi comprada há 12 anos atrás (figuras 29-32). O setorque irá abrigar um mercado de produtos de luxo (figuras 33 e 34) adotará soluções de alta tecnologia para o desenvolvimento do sistema de compras, com parceria da empresa multimarcas de roupas Farfetch. Está previsto no projeto um “percurso sensorial” dos interiores, de autoria do designer francês Hubert de Malherbe (L’Archictecture D’Aujourd’hui, Montpellier, França, p.58-67, 2019). Junto do antigo complexo hospitalar também terá implantado a parte cultural e o comércio de produtos orgânicos, onde será empregado mobiliário de autoria dos Irmãos Campana. Todas essas diferentes atividades se complementam e quando finalizadas irão compor o chamado “parque” Matarazzo. Assim como o polêmico túnel a ser implementado, chamado “Boulevard da Diversidade”, que será concluído somente em 2022 (ver adiante). O mercado orgânico que ficará aberto 6 dias na semana, com produtos locais expostos para venda, será uma ação conjunta do empreendimento “Cidade Matarazzo” com a organização “Horta Social Urbana”, que treina moradores de rua para o trabalho agricultural nas fazendas urbanas, com o propósito de promover compartilhamento, autonomia e desenvolver habilidades (L’Archictecture D’Aujourd’hui, Montpellier, França, p.19, 2019). A organização “Horta Social Urbana” atua principalmente nos locais ociosos da cidade de São Paulo, com o seguinte objetivo: “Formar pessoas em situação de rua em técnicas de jardinagem com práticas agroecológicas promovendo seu fortalecimento à reintegração social” (HORTA SOCIAL URBANA). 29 Fig. 31: Outra fachada do hospital. Foto: Natália Hetem, set/2019 Fig. 29: Fachada de uma das edificações do hospital, possível ver a ação do tempo. Foto: Natália Hetem, set/2019 Fig. 30: Detalhe da esquadria. Foto: Natália Hetem, set/2019 Fig. 32: Interior da edificação. Foto: Natália Hetem, set/2019 30 Fig. 34: Lay-out sugerido para as lojas de luxo. Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www.cidadematarazzo.com. br/empreendimento-retail Acesso 17 de fevereiro de 2020 Fig. 33: Lay-out sugerido para as lojas de luxo. Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www.cidadematarazzo.com. br/empreendimento-retail Acesso 17 de fevereiro de 2020 31 O design do mobiliário será realizado pelos Irmãos Campana. Os Irmãos Campana propuseram diferentes mobiliários (figuras 35-38) a serem dispostos ao longo do mercado, a partir de ideias e referências ao Brasil e sua cultura, dialogando com o discurso adotado para o complexo. Perto do mercado de produtos orgânicos haverá um centro cultural destinado à divulgação da obra de artistas brasileiros e internacionais, o qual será chamado de “Casa da Criatividade”. O espaço cultural terá patrocínio do banco Bradesco, passando, portanto, a ter o nome de “Casa Bradesco da Criatividade”, e conterá salas de exposição e um auditório no subsolo, entre o complexo hospitalar (figuras 39-41). Próximo da capela haverá uma nova edificação destinada a um centro comercial, pensado e projetado pelo arquiteto francês Rudy Riccioti (figura 42). Segundo o Comercial da Cidade Matarazzo, essa edificação será a primeira com serviços de alto de luxo em São Paulo, pois aproveitará a rede do hotel 6 estrelas e a infraestrutura total do empreendimento, como as lojas, restaurantes e áreas de lazer. A arquitetura da edificação foi projeto de Rudy Riccioti e ele optou, assim como Nouvel, de trazer a questão do verde para a fachada, com a ideologia de cipós. O empreendimento da Cidade Matarazzo é bastante complexo, intervém em diversas áreas e busca ter como foco de sua proposta a presença da arte em todos os ambientes: Mas a arte não estará restrita apenas à Casa da Criatividade, ela vai estar espalhada por todo o empreendimento: nos jardins, nas galerias, nos bares e nos restaurantes. Ao caminhar pelo Matarazzo, será possível respirar arte. Ao todo, 57 artistas brasileiros terão os seus trabalhos expostos aqui. (CIDADEMATARAZZO)9 Além das intervenções dentro do lote, na capela, no hotel, no interior do hospital e com o foco na arte, o empreendimento inclui uma intervenção externa, de caráter urbanístico, visando conectar o conjunto à Avenida Paulista através de um “túnel verde” sob a rua São Carlos do Pinhal (fig. 43 e 44). A ideia seria de maneira a facilitar o acesso dos pedestres ao complexo e seu jardim, desviando a rota de carros para o subsolo. A proposta envolveria uma grande obra de engenharia, e tinha previsão de conclusão para 2022; mas a ideia vem sofrendo forte oposição dos comerciantes estabelecidos nas ruas locais, e por isso foi postergada. 32 No nível da rua seria então criado o “Boulevard da Diversidade”, projeto da arquiteta e urbanista Adriana Levisky. Segundo o plano de trabalho do acordo de cooperação do Boulevard da Diversidade, o projeto pretende transformar o espaço urbano e os hábitos das pessoas que circulam a região (o que é uma grande promessa a ser feita). “Trata-se de uma nova perspectiva para a cidade de São Paulo” (SÃOPAULO)10. É proposto, além do túnel, uma requalificação urbana da alameda das flores (que tem acesso à Av. Paulista, fornecendo então um fácil acesso ao empreendimento), com o objetivo de ampliar o espaço público, e torná-lo aberto ao público (figura 45). Para a requalificação desse ambiente urbano é proposta uma nova paginação de piso, nova iluminação pública, e mobiliário urbano também com desenho dos irmãos Campana. O local terá a implantação de sistema gratuito de acesso à internet via wi-fi, e um projeto paisagístico condizente com o restante do empreendimento. Também será feito um sistema de drenagem e captação da água da chuva (figura 46). O conjunto “Cidade Matarazzo” é um projeto inovador em sua dimensão e com grande complexidade de programa, o que torna difícil de achar casos de comparação aqui no Brasil, principalmente pelo fato de envolver o reuso, em caráter comercial, de edifícios tombados pelos órgãos de patrimônio histórico – um assunto que, por sua novidade e escala, irá afetar de maneira bastante relevante a questão da memória da cidade e dos cidadãos. Por isso o próximo capítulo irá debater a questão patrimonial de edifícios e sítios históricos e como ela vem sendo tratada no campo da teoria e da prática, no Brasil e no mundo, como essas questões vem sendo tratadas também através de debates públicos e abertos, que notificam e informam a população sobre as propostas, permitindo críticas e confrontos; e verificando o exemplo de outros projetos similares, principalmente internacionais, e dois nacionais. 33 Fig. 36, 37 e 38: Mobiliários propostos pelos Irmãos Campana, de bambu, madeira e tubos de acrílico, respectivamente. Fonte: L’Archictecture D ’ A u j o u r d ’ h u i , Montpellier, França, p.18, 2019 Fig. 35: Perspectiva do mercado orgânico. Fonte: Cidade Matarazzo. Disponível em: https://www. cidadematarazzo.com. br/empreendimento - mercado-orgnico Acesso 19 de fevereiro de 2020 Fig. 39: Corte com o programa de necessidades da “Casa Bradesco da Criatividade”, de Rudy Ricciotti. Fonte: L’Archictecture D ’ A u j o u r d ’ h u i , Montpellier, França, p.34, 2019) 34 Fig.41: Perspectiva da área de exposição da “Casa Bradesco da Criatividade”. Fonte: Cidade Matarazzo. Acesso 19 de fevereiro de 2020 Fig.40: Perspectiva do palco do auditório dentro da “Casa Bradesco da Criatividade”. Fonte: Cidade Matarazzo. Acesso 19 de fevereiro de 2020 Fig. 42: Fachada da edificação do centro comercial, de Rudy Ricciotti. Fonte: L’Archictecture D’Aujourd’hui, Montpellier, França, p.33, 2019 35 Fig. 43: Maquete do showroom do “Boulevard da Diversidade. Fonte: Showroom Cidade Matarazzo, foto de Natália Hetem, outubro de 2019 Fig. 44: Corte esquemático do túnel. Fonte: Estadão. Disponível em: https://sao-paulo.estadao.com. br/noticias/geral,sp-megacomplexo-de-luxo-em- antigo-hospital-sera-aberto-em-maio-na-bela- ista,70003024352 Acesso: setembro de 2019 Fig. 45: Implantaçãodo Boulevard da Diversidade. Fonte: Plano de Trabalho de Acordo de Cooperação – Anexo V do Edital n1-2019, pag.3. 36 Fig. 46: Desenho com o sistema de drenagem e coleta de água da chuva. Fonte: Plano de Trabalho de Acordo de Cooperação – Anexo V do Edital n1-2019, 37 O segundo capítulo abordará a questão patrimonial, trazendo as cartas, teorias e a legislação de São Paulo e da região em que o projeto se situa, além dos documentos do CONPRESP e CONDEPHAAT. Também é dividido em partes, a primeira sobre teorias de patrimônio, as cartas internacionais, memória e historiografia. A segunda com legislações aplicadas ao caso, a terceira com as questões relativas ao debate público da proposta e a quarta com os exemplos e breves estudos de casos dos projetos similares em programas e/ou intervenção em pré-existência. Para a realização do trabalho foi feita a leitura sobre os atuais teóricos de restauração, documentos do IPHAN, teses e livros sobre patrimônio e políticas públicas, sobre como agir em uma pré-existência (problema que maioria das cidades têm ao ver necessidade de expandir seu espaço urbano e melhorar sua infraestrutura), pesquisa nos arquivos da cidade de São Paulo e nos órgãos responsáveis (Departamento de Patrimônio Histórico, CONPRESP, IPHAN, CONDEPHAAT) no arquivo histórico da cidade de São Paulo e levantamento e registro de fotos do objeto escolhido. Traz como referências Cesare Brandi, Gustavo Giovannoni e Giovani Carbonara na área de restauro, Jan Gehl e Jane Jacobs para o urbanismo, Castriota para a questão de políticas públicas, Lemos sobre patrimônio no Brasil. Trata da Carta de Atenas de 1931, Carta de Veneza de 1964 e Declaração de Amsterdã de 1975, Halbwach sobre a questão da memória e Waisman sobre historiografia. Fará a leitura e compreensão do plano diretor de São Paulo e do Estatuto da Cidade de 2001 para compreender os instrumentos urbanos que podem ser utilizados, e ver se a obra está de acordo com eles. Foi realizado um levantamento dos conceitos mais importantes para a pesquisa. Começando com as diretrizes das cartas patrimoniais e dos teóricos de restauração e de autores sobre patrimônio, historiografia, memória e sobre a temática urbana para finalizar. Em seguida trata as políticas e instrumentos necessários para a realização de intervenção. Após visto os instrumentos, foi abordado a questão da discussão e divulgação do que vem sendo feito na obra para o público. Por último, será apresentado os outros estudos de caso, que servirão como base para a análise aprofundada do caso da Cidade Matarazzo. DEBATES E EXPERIÊNCIAS CONTEMPORÂNEAS SOBRE A INTERVENÇÃO EM BENS PATRIMONIAIS 2. 38 Para dar início a coletânea bibliográfica trataremos as cartas internacionais na ordem cronológica de lançamento. A Carta de Atenas de 1931 e a Carta de Veneza de 1964 - que foi criada pelo segundo Congresso de Arquitetos e Especialistas em Edifícios Históricos, criadores também do ICOMOS (Conselho Internacional aos Monumentos Históricos e sítios) - são fundamentais para a discussão de patrimônio, já que são uns dos primeiros documentos a serem feitos do assunto na Europa. Cada uma foi feita em um tempo e leva em consideração o seu contexto, de cidades destruídas após as guerras mundiais. O ICOMOS foi criado após a Carta de Veneza de 1964, em 1965, devido a sugestão da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) para o segundo Congresso de Arquitetos e Especialistas em Edifícios Históricos. É uma organização internacional governamental sem fins lucrativos que se dedica “à promoção da aplicação da teoria, metodologia e técnicas científicas para a conservação do patrimônio arquitetônico e arqueológico. “(ICOMOS). O ICOMOS é uma rede de especialistas que se beneficia do intercâmbio interdisciplinar entre os seus membros, entre os quais estão arquitetos, historiadores, arqueólogos, historiadores de arte, geógrafos, antropólogos, engenheiros e urbanistas. Os membros do ICOMOS contribuem para o aperfeiçoamento da preservação do patrimônio, das normas, e das técnicas para cada tipo de bem do patrimônio cultural: edifícios, cidades históricas, paisagens culturais e sítios arqueológicos. (ICOMOS) 2.1 Teorias e legislações presentes em cartas e protocolos internacionais, breve revisão bibliográfica 39 2.1.1 Cartas internacionais A Carta de Atenas de 1931 é mais voltada para a proteção dos monumentos, pensando em conservá-los e somente restaurar quando for indispensável. A conferência recomenda que se mantenha uma utilização dos monumentos, que assegure a continuidade de sua vida, destinando-os sempre a finalidades que o seu caráter histórico ou artístico. (Carta de Atenas, 1931) A conferência recomenda respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais. (Carta de Atenas, 1931) O documento preza pelo emprego adequado de técnicas modernas, sem alterar o caráter da edificação a ser restaurada. Apresenta que deve haver interesse mundial público de salvaguardar os monumentos. Enfatiza a necessidade de uma boa educação para a população adquirir interesse pela obra. Impõe fazer registros e arquivos dos monumentos históricos, com informações e fotos. Segundo Kuhl (s.d.), os anos de 1930 viveu uma grande contradição entre os grupos de arquitetos conservadores e o de arquitetos engajados com o modernismo, pois havia a vontade e necessidade de se modernizar e urbanizar as cidades, assim como a de manter a paisagem urbana. Portanto, começa o pensamento urbanístico que valoriza o modernismo, enquanto a Carta de Atenas de 1931 não leva tanto esse assunto em consideração, sendo o primeiro documento internacional redigido por especialistas de restauração que visa elaborar diretrizes gerais e prioriza a história. A Carta de 1931 se preocupa em fornecer diretrizes para organização de princípios de salvaguarda patrimonial em diversos países, sugere respeito às transformações que a obra sofreu com o tempo, e condena a reconstrução. Atualmente estamos vivendo novamente essa contradição, já que cada vez mais se quer demolir construções antigas para construir novos empreendimentos e valorizar áreas subutilizadas. Porém, pode haver um meio termo nessas relações, como escolher edificações que realmente já estão muito degradadas e não tem valor para a cidade e as demolir, o que acarreta na melhor manutenção e conservação dos edifícios emblemáticos e importantes para a memória de um povo. O local da “Cidade Matarazzo” é um exemplo dessa contradição, pois foi visado ao longo dos anos como um local de grande potencial construtivo, mas não levando em consideração o patrimônio edificado já existente por lá. A proposta de empreendimento atual transformou a visão sob o local, mostrando 40 que há a possibilidade de se construir o novo junto do antigo. Isso será tratado mais detalhadamente nos próximos capítulos. A Carta de Veneza de 1964 é a carta internacional sobre conservação e restauração de monumentos e sítios. É utilizada até hoje como referência nos projetos de preservação e restauração pois se tornou o documento base do ICOMOS, não existe outra carta ou documento que a substitua. Segundo ela, as obras monumentais dos povos são testemunhos das tradições, são consideradas patrimônio comum pela humanidade, e esta deve preservá-las para as gerações futuras. Define monumento histórico como: a criação arquitetônica isolada, bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se não só as grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural. (Carta de Veneza, 1964) A Carta trata a restauração e a conservação como disciplinas que utilizam colaboração dediferentes áreas e técnicas, com a finalidade de salvaguardar o patrimônio e o testemunho histórico. Em seu texto fica evidente que a conservação exige manutenção constante, é favorecida com uma destinação útil para a cidade, não se deve alterar as características do edifício, e o monumento é inseparável da sua história e testemunho do tempo no local inserido, é intolerável o seu deslocamento. Já a restauração é vista com caráter excepcional, tem como objetivo “conservar e revelar os valores estéticos e históricos do monumento e fundamenta-se no respeito ao material original e aos documentos autênticos” (Carta de Veneza, 1964). Essa ação é precedida de um estudo arqueológico do sítio, respeita as contribuições de épocas que o monumento sofreu, os elementos adicionais que substituem o que falta devem se integrar harmonicamente mas distinguindo-se do original e respeitando a edificação. Para Kuhl (2010), as cartas patrimoniais têm caráter indicativo, prescritivo e são bases para as profissões que atuam em restauração e preservação. No Brasil, o uso da Carta de Veneza não é aprofundado nas questões que a carta aborda, o que seria necessário, já que ela não tem um princípio normativo e sim de diretriz. Kuhl relaciona o contexto de criação da Carta de Veneza e relata que algumas recomendações da Carta de Atenas de 1931 serviram de base à ela. Além da Carta de 1931, ela se baseia em propostas do “restauro crítico” de Brandi, sugere a análise da obra pensando no estético e no histórico, tendo cada caso sua particularidade. 41 Em resumo, as cartas não são leis ou regras que devem sempre ser seguidas, elas complementam as teorias já existentes sobre restauração e conservação, fornecendo recomendações e apoio ao profissional que atua na área. Em 1975 temos a Declaração de Amsterdã como um importante documento sobre patrimônio e que traz conceitos novos de gestão, como o de conservação integrada. Muito voltada para as questões europeias, relata que o patrimônio europeu é integrante do patrimônio cultural do mundo. Traz um sentido amplo de patrimônio, composto por conjuntos, bairros que tenham valor histórico e cultural, além dos bens isolados, e que é dever da população evitar a deterioração e proteger os bens. Aponta o patrimônio como objetivo maior dos planejamentos da área urbana, que devem o considerar e o proteger. É preciso encorajar organizações privadas (no caso principal de estudo deste trabalho o interesse partiu da iniciativa privada) para contribuir no interesse público, é necessária a reprodução de relatórios periódicos do estado de conservação e do desenvolvimento do trabalho em cada país para que seja possível os conservar. Segundo a declaração, sem política de ação e proteção, e sem a conservação integrada não é possível se manter um patrimônio. A conservação do patrimônio deve ser incluída em programas de educação e desenvolvimento cultural para conhecimento do próprio à população. A participação popular deve, então, sempre estar presente. A declaração de 1975 introduz e aborda o conceito de conservação integrada para salvaguarda de patrimônio. A conservação integrada exige adaptações de medidas legislativas e administrativas para ter medidas financeiras apropriadas e convincentes, sendo cada estado responsável por seu próprio método e instrumento. Portanto ela é a base do funcionamento das políticas de salvaguarda, é um plano detalhado de como agir com as políticas públicas que deve ser elaborado pelo governo e instituições privadas, investidores. É então necessárias leis para novas construções, que respeitem o patrimônio. O planejamento deve desencorajar a densificação e promover a reabilitação, estimular o financiamento privado e dar apoio ao proprietário para ele realizar a restauração. A conservação integrada é um passo essencial para dar mais valor ao patrimônio, seja ele edificado ou não, para a preservação do mesmo. 42 2.1.2 Patrimônio histórico e teorias de restauração Um dos pensadores de restauração mais atual e que tem sua teoria recorrente é Cesare Brandi, com a “Teoria da Restauração”. O autor traz a restauração como qualquer intervenção feita para dar novamente eficiência a um produto da atividade humana. Relata o restauro na obra de arte, que vai restabelecer a sua funcionalidade, dando prioridade à estética e depois a história. Segundo ele: “A restauração constitui o monumento metodológico do reconhecimento da obra de arte, na sua consistência física e na sua dúplice polaridade estética e histórica, com vistas à sua transmissão para o futuro” (BRANDI, 2004. p.30) e “A restauração deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, desde que isso seja possível sem cometer um falso artístico ou falso histórico, e sem cancelar nenhum traço da passagem da obra de arte no tempo.” (BRANDI, 2004. p.33) Discute a relação do tempo na obra de arte, que está presente no aspecto fenomenológico, em 3 momentos: quando a obra é formulada, quando se acaba o processo criativo e ela se torna obra e quando ela fica marcada na consciência e então se torna atemporal. Esses tempos são diferentes do tempo histórico do observador, que pode observar uma obra do século passado no século atual. Isso pode se relacionar com a arquitetura e sua questão de passado, presente e futuro, que diferentes épocas e estilos podem conviver juntos e em harmonia nas cidades. Algo que está acontecendo atualmente e de maneira mais recorrente devido ao crescimento da cidade na malha urbana existente. Algo que será altamente evidenciado na “Cidade Matarazzo” quando o empreendimento estiver completo e tiver a nova torre dialogando – e contrastando – com as edificações antigas. O autor aborda diferentes tipos de restauração e como agir frente a elas. Em restauração de ruínas indica que se deve a consolidar e conservar o status atual no qual se encontra, sem realização da intervenção direta, tendo então uma intervenção indireta no ambiente para pensar na melhor preservação do local. O que pode se tornar um problema urbanístico. Em questão estética a ruína deve ser tratada como qual e ser conservada e conectada com o restante do ambiente. “Esteticamente ruína é qualquer remanescente de obra de arte que não pode ser reconduzido à unidade potencial sem se tornar cópia.” (BRANDI, 2004, p.78) Brandi nos alerta que ao se fazer a conservação existem alguns problemas que é preciso tomar cuidado em relação a legitimidade 43 no valor histórico. Existe a remoção de elementos e o refazimento de elementos de uma obra ou edificação. Na remoção, segundo Brandi, se destrói os documentos e a passagem histórica do local, o que pode ser uma falsificação de dados. Acredita que a adição é legítima para a conservação, mas pode ser pior se refazer os elementos, o que seria condenável. Portanto, é preciso pensar isoladamente em cada caso qual a melhor solução, manter as camadas adicionadas ao longo do tempo ou as retirar, pois é um impasse na teoria brandiana que deve ser solucionada com projeto com base na experiência do profissional e na opinião popular. Vai abordar a questão da restauração preventiva, que é relacionada com os materiais constituintes da obra. Esses podem sofrer alterações devido suas composições químicas, o que pode afetar a obra com o tempo, e podem ser prevenidas. A restauração preventiva se vincula então com a restauração, e nada mais é do que a cautela e remoção de perigos, assegurar condições favoráveis a obra, ela exige mais despesa. A maioria da teoria de Brandi do restauro crítico é sobre obras de arte, no apêndice ele trata da restauração de monumentos. São os mesmos princípios, mas pensando também na questão estrutural e na forma da arquitetura, assim como na espacialidade do monumento com seu ambiente, diz para pensar no sítio histórico. Na apresentação de Carbonara do livro traduzido por Beatriz Kuhl, ele explica amplamente a teoria de Brandi. Diz que ele buscou
Compartilhar