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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/351845091 Resistência de Crianças em territórios periféricos cearenses Article in Agenda · March 2021 CITATIONS 0 READS 58 5 authors, including: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: Pobreza, Raça e Políticas Públicas em contextos rurais: análises de discurso de comerciantes e donos de imóveis do Maciço de Baturité/CE View project MULHERES, CRIANÇAS E A REORGANIZAÇÃO ESPACIAL: observando as famílias e a circulação de crianças na comunidade da Estrada Velha/Acarape-CE View project Erica Atem Universidade Federal do Ceará 5 PUBLICATIONS 3 CITATIONS SEE PROFILE Francisca Temoteo Universidade Federal do Rio Grande do Norte 1 PUBLICATION 0 CITATIONS SEE PROFILE Paula Autran Nunes Universidade Federal do Ceará 1 PUBLICATION 0 CITATIONS SEE PROFILE James Ferreira Moura Jr Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) 87 PUBLICATIONS 257 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by James Ferreira Moura Jr on 25 May 2021. The user has requested enhancement of the downloaded file. https://www.researchgate.net/publication/351845091_Resistencia_de_Criancas_em_territorios_perifericos_cearenses?enrichId=rgreq-ddb695d5738350f9d4c3ad6068aeb530-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MTg0NTA5MTtBUzoxMDI3MzQwNDA2NjMyNDUyQDE2MjE5NDg0NDg2MTQ%3D&el=1_x_2&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/publication/351845091_Resistencia_de_Criancas_em_territorios_perifericos_cearenses?enrichId=rgreq-ddb695d5738350f9d4c3ad6068aeb530-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MTg0NTA5MTtBUzoxMDI3MzQwNDA2NjMyNDUyQDE2MjE5NDg0NDg2MTQ%3D&el=1_x_3&_esc=publicationCoverPdf https://www.researchgate.net/project/Pobreza-Raca-e-Politicas-Publicas-em-contextos-rurais-analises-de-discurso-de-comerciantes-e-donos-de-imoveis-do-Macico-de-Baturite-CE?enrichId=rgreq-ddb695d5738350f9d4c3ad6068aeb530-XXX&enrichSource=Y292ZXJQYWdlOzM1MTg0NTA5MTtBUzoxMDI3MzQwNDA2NjMyNDUyQDE2MjE5NDg0NDg2MTQ%3D&el=1_x_9&_esc=publicationCoverPdf 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Juventude: percepções e exposição à violência. In: ABRAMOVAY, M.; ANDRADE, E.; ESTEVES, L. Juventudes: outros olhares sobre a diversidade. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; UNESCO, 2007. GONÇALVES, H. S. Juventude brasileira, entre a tradição e a modernidade. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, v. 17, n. 2 , 2005. HARTOG, F. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. SANTANA, M. S. de. A categoria Juventude na pesquisa histórica: notas metodológicas. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, 2011. TELLES, V. Silva. A “Nova Questão Social” brasileira: ou como as figuras de nosso atraso viraram símbolo de nossa modernidade. Caderno CRH. Revista do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. n 30/31, Salvador, EDUFBA, 1999. VILLAS, S.; NONATO, S. Juventude e projetos de futuro. In: CORREA, L. M.; ALVES, M. Z.; MAIA, C. L. (Org.) Cadernos temáticos: juventude brasileira e Ensino Médio. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014. WALLERSTEIN, I. Capitalismo histórico e civilização capitalista. - Rio de Janeiro: ContrapontoAgenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 205 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses RESISTÊNCIAS DE CRIANÇAS EM TERRITÓRIOS PERIFÉRICOS CEARENSES RESISTANCE OF CHILDREN IN PERIPHERAL REGIONS OF CEARÁ Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa59 Orcid: 0000-0002-4341-8138. Francisca Raquel de Oliveira Temoteo60 Oricd: 0000-002-5858-4665. James Ferreira Moura Jr61 Orcid: 0000-0003-0595-5861. João Paulo Barros Pereira62 Orcid: 0000-0003-0281-9944. Paula Autran Nunes63 Orcid: 0000-0002-4988-3006. Resumo: A proposta deste texto é analisar processos de invenção de territórios das infâncias instaurados nos encontros e interlocuções com crianças de três regiões periféricas/favelas do Ceará: Estrada Velha, na cidade de Acarape; Nova Canudos e Serviluz, na cidade de Fortaleza. Embora as crianças ocupem diferentemente e constituam presenças cotidianas em espaços como escolas, praças, ruas, mídia, praia, sertão e cidade, sua visibilidade e/ou invisibilidade guardam relação com o reconhecimento de que ocupam um lugar social constituído por uma complexa rede de opressões e de práticas de resistência. Sendo esses territórios não apenas espaços geográficos, mas também territórios existenciais, e uma vez atravessados por racionalidades políticas específicas, como se fazem escutar crianças das favelas, comunidades e periferias? Como compõem alianças e movimentos de Abstrat: The purpose of this text is to analyze invention processes of children's territories established in the meetings and dialogues with children from three periphery regions / slums of Ceará: Estrada Velha, at Acarape municipality; Nova Canudos and Serviluz, at Fortaleza city. Although children occupy differently and constitute daily presence in spaces such as schools, squares, streets, media, beach, backcountry and city, their visibility and / or invisibility are related to the recognition that they occupy a social place, constituted by a complex network of oppressions and practices of resistance. Since these territories are not only geographic spaces, but also existential, and once crossed by specific political rationalities, how can children from favelas, communities and peripheries be heard? How do they form alliances and resistance movements towards recognition as a subject? The theoretical- 59 Professora Doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Docente do Departamento de Psicologia da UFC. ericaatem@ufc.br. 60 Graduanda em Antropologia, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB). rakelwho@gmail.com. 61 Professor doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.(UFRGS) Docente do Instituto de Humanidades. Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). james.mourajr@unilab.edu.br. 62 Professor Doutor em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Docente do Departamento de Psicologia da UFC.joaopaulobarros07@gmail.com. 63 Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará, autranpaula@gmail.com. mailto:ericaatem@ufc.br mailto:rakelwho@gmail.com mailto:james.mourajr@unilab.edu.br mailto:joaopaulobarros07@gmail.com mailto:autranpaula@gmail.com ISSN: 1981-9862 resistência que reivindicam seu reconhecimento como sujeito? Os referenciais teórico-metodológicos nas três intervenções dialogam em torno de perspectivas decoloniais e críticas dos modos de subjetivação capitalista. Nos três territórios, o percurso metodológico foi desenvolvido por meio da pesquisa- intervenção, tendo a cartografia como inspiração para a pesquisa em Psicologia no campo das políticas públicas voltadas às infâncias e adolescências. A cartografia é um método para acompanhar processos de produção subjetiva, linhas que desenham movimentos e fluxos dos grupos de crianças. Como estratégia de análise, destacamos acontecimentos vividos nestes territórios que funcionaram como analisadores das relações entre crianças e pesquisadores, entre lugares, pertencimentos e resistências que se desenharam com sua presença e subversão. As experimentações com as crianças moradoras de territórios periféricos nos reterritorializaram em meio às realidades atravessadas pela desigualdade social. Nas três experiências, os modos de participação das crianças nos territórios implodem resistências micropolíticas à medida que as ocupações desses diferentes “espaços” tensionam regimes de (in)visibilidade que atravessam os modos de vida de crianças periferizadas. Palavras-chave: infâncias, resistências, territórios periféricos. methodological references in the three interventions do dialogue around decolonial perspectives and criticisms of capitalistic subjectivation modes. The theoretical-methodological references in the three interventions do dialogue around decolonial perspectives and criticisms of capitalistic subjectivation modes. Cartography is a method to accompany subjective production processes, lines that draw movements and flows of children groups. As an analysis strategy, we highlight experienced events in these territories that worked as relationships analyzers between children and researchers, between places, belongings and resistances that were designed with their presence and subversion. Experiments with children living in peripheral territories do reterritorialized us between the realities crossed by social inequality. In the three experiences, the modes of participation of children at the territories implodes micropolitical resistances as the occupations of these different “spaces”do tension regimes of (in) visibility that cross the ways of life of peripheral children. Keyswords: childhood, resistance, peripheral territories. 1. A PRODUÇÃO DE INFANCIAS DESIGUAIS O objetivo deste texto é analisar processos de invenção dos territórios existenciais das infâncias periféricas, instaurados nos encontros e interlocuções com crianças de três territórios/periferias do Ceará: Estrada Velha, na cidade de Aracape; Nova Canudos e Serviluz, na cidade de Fortaleza. A partir da articulação entre os projetos Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 207 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses “Maquinarias: infâncias em invenção”, vinculado ao Grupo de Pesquisas e Intervenções sobre Violência, Exclusão Social e Subjetivação (VIESES64/UFC), e “Infâncias reapoderadas" da Rede de Estudos e Afrontamentos das Pobrezas, Discriminações e Resistências (reaPODERE), vinculada à Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), foi possível acompanhar movimentos traçados nestas experiências e experimentar a análise dos processos de invenção e interlocuções com as crianças nos três diferentes contextos. O primeiro projeto (Maquinarias) tem como objetivo criar dispositivos para problematizar territórios das infâncias, atuando em diálogo com Nova Canudos e Serviluz, na cidade de Fortaleza. O segundo projeto (reaPODERE) é entendido como espaço de ensino, pesquisa e extensão universitária, atuando na produção e difusão de um conhecimento localizado e crítico sobre o território do Maciço de Baturité65, no Ceará. Desse modo, este artigo resulta da aliança entre perspectivas que dialogam com crianças cearenses que vivem em contextos periféricos urbanos e rurais: Nova Canudos, Serviluz e Acarape, sob a ótica das singularizações, transbordando os muros das escolas e nos convocando a ocupar com elas outros cenários. Com efeito, ao perspectivar a invenção de territórios existenciais, considerando as narrativas das crianças, este textoorienta-se pelas seguintes questões: Como as crianças formam alianças e movimentos de resistência no sentido do seu reconhecimento como sujeitos? As expressões das crianças ocupam um lugar de indiferença? Se são invisíveis à cidade/território, como isso as afeta? Como se tornam visíveis em relação ao próprio território periférico onde vivem e diante das narrativas oficiais de cidade? A (in)visibilidade histórica das crianças brasileiras na construção da sociedade se mantém presente, fazendo com que reflitamos como atravessa as existências das crianças nos três territórios: Estrada Velha/Acarape-Ce, Nova Canudos/Fortaleza-Ce e Serviluz/Fortaleza-Ce com os quais dialogamos. As marcas históricas das negligências e violências relacionadas ao processo de escravização de crianças negras e ao descaso com as crianças indígenas no processo de colonização do Brasil se atualizam cotidianamente quando estamos diante dos modos de se perceber as infâncias periféricas/periferizadas, assim como nas vulnerabilizações a que 64 Grupo de Pesquisa e Intervenções sobre Violências, Exclusão Social e Subjetivação -VIESES, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). 65 Formação geográfica que compõe parte do sertão central cearense, sendo a cidade de Acarape, um dos seus municípios. ISSN: 1981-9862 estão submetidas e nos enfrentamentos que mobilizam em seus contextos. As crianças filhos(as) de sujeitos escravizados, e consequentemente escravizadas, muitas vezes não chegavam vivas das embarcações de navios negreiros aos portos cariocas ou sobretudo não alcançavam a fase adulta (GOÉS; FLORENTINO, 2018). Dados do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CEARÁ, 2020) indicam um aumento de homicídios entre crianças de 10 a 12 anos, apontando uma matriz colonial de poder que se atualiza em termos de uma necropolítica em nossos dias. De acordo com o pensamento do camaronês Mbembe (2017), a necropolítica tem a raça e o racismo como estruturantes do Estado moderno. Mantém uma lógica perversa advinda dos processos de colonização, onde a população negra, pensando com Judith Butler (2018), não é reconhecida enquanto vidas enlutáveis o que consequentemente produz contra elas uma política de morte, de vidas precárias que valem menos. A Lei Áurea (1888) e a suposta libertação da população negra escravizada, sequestrada dos países Africanos e forçada a trabalhar no Brasil, não interromperam a situação de subserviência a que estava submetida, ou seja, “situação de sujeição, submissão da subjetividade” (PEREIRA, 2017, p. 23). Com a modernidade emergindo, houve a entrada excessiva de imigrantes e os resquícios do sistema escravista produziram reflexos na realidade social das cidades brasileiras (SANTOS, 2018), culminando no imaginário social e subjetivo, criminalizando as populações pobres (dentre elas, as crianças) como sujeitos perigosos que devem ser objeto de vigilância e tutela (NASCIMENTO, 2002). Compreende-se que a pobreza é consequência desse formato de colonização no Brasil, sendo a população pobre eminentemente não branca (PITOMBEIRA et al, 2019). A nova racionalidade política repercutiu diferentemente na vida das infâncias desvalidas e das mais afortunadas, embora o modelo político do Brasil República passasse a ter um pensamento voltado para “a” criança como germinadora de um país promissor, tornando-se uma preocupação constante das autoridades. Essa questão foi percebida por meio de ideologias eugenistas relacionadas ao movimento higienista, em que a pobreza das classes sociais menos abastadas eram geradoras de degenerescências (JUNIOR; GARCIA, 2018). A realidade brasileira convive, desde então, com três representações sociais: a de proteção social, controle e disciplinamento social e de repressão social, por meio de práticas sociais em instituições, nas políticas e nos discursos científicos (PINHEIRO, 2006). Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 209 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses Documentos legais, como a Convenção Internacional sobre os Direitos das Crianças (1989), passam a configurar uma globalização política e cultural relacionada à concepção de infância. A conquista jurídica dos direitos da criança proporciona uma nova compreensão da criança como voz ativa, a exemplo do que se materializou no Estatuto da Criança e do adolescente (1990). Porém, em países desiguais como o Brasil, essa outra normatividade jurídica ganha contornos específicos diante da realidade de crianças brasileiras, pobres, negras, indígenas, ciganas e em situação de rua. Diferentes condições de subalternidade as excluem da sua condição peculiar e/ou da experiência de sua infância (MARCHI; SARMENTO, 2017). Percebe-se que a pobreza e o racismo impactam de forma significativa a vida e o desenvolvimento das crianças. Para essas infâncias racializadas e em situações de pobreza, modos de subjetivação se expressam em formas de pensar e se relacionar consigo, com a família e com a comunidade em que vivem e em suas ações cotidianas, nas quais muitas das vezes prevalece ajudar a família ao invés de se dedicarem ao meio escolar. O efeito do co-engendramento entre racismo e pauperização no desenvolvimento infantil “são a violência e a crise que predominam na imagem relatada dos quotidianos das crianças” (SARMENTO, 2003, p. 267). Considerar as histórias brasileiras e a produção das desigualdades, dos silenciamentos, dos apagamentos subjetivos nos levam a construir olhares que considerem diferentes planos dessas sujeições e exclusões (intersecciolizando) e, concomitantemente, a compor com as crianças em seus contextos como atitude ética de decolonializar nossas práticas: eis a aposta deste texto. 2. POR QUE FALA EM TERRITÓRIOS EXISTÊNCIAS E DE INFÂNCIAS PERIFÉRICAS? A pesquisa-inter(in)venção como ferramenta para acompanhamento dos processos nos territórios intervém nos modos de produção das infâncias, como também nas singularidades/expressões que constituem os próprios territórios: Estrada Velha, o Serviluz e Nova Canudos (AGUIAR; ROCHA, 2007). Ao intervimos, maquinamos um plano comum entre infâncias, pesquisadores, e territórios, transformando e criando conhecimentos (KASTRUP; PASSOS, 2016). Essa forma de intervir/inventar segue uma proposta interseccional a partir do momento que é guiada pelas sociabilidades e trajetórias dessas crianças periféricas em seus espaços de existências. Há um processo de ISSN: 1981-9862 questionamento constante sobre as atuações desenvolvidas em que as crianças são centrais para balizar, propor, avaliar e desenvolver conjuntamente as atividades (COSTA; MOURA JR; BARROS, 2020). As movimentações cotidianas das crianças, dos pesquisadores, planejando e participando das atividades dos projetos e/ou, posteriormente, a partilha dos aprendizados forjam um “território existencial” (ALVAREZ; PASSOS, 2015). Por sua vez, nesses encontros, acontecem os revezamentos entre pesquisa e extensão universitárias. Para o VIESES, os territórios urbanos são atravessados por diversas ações que subvertem a lógica institucionalizada da cidade, constituindo-se por práticas de resistência política. No reaPODERE, as intervenções estão para além dos muros da Unilab, criando uma ponte entre universidade e comunidade, nesse ir e vir de corpos e suas ações diante do inesperado como forma de identificar resistências, potencialidades e desafios na intervenção comunitária em um contexto ruralizado e atravessado por violências. Foi preciso habitar os territórios, dialogar com as crianças, com seus responsáveis, com articuladores, moradores e organizações atuantes e parceiras como o Centro de Valorização da Vida Hebert de Souza (CDVHS), em Nova Canudos; o Projeto de Vida Titanzinho, parte do InstitutoTrêsmares, no Serviluz. Essas composições aparecem nos usos inusitados dos espaços para as atividades, a exemplo da casa, cedida por uma moradora para as oficinas no Serviluz (seus dois enteados participam das atividades) e que a noite volta a dar lugar ao bar, seu ganha pão. Na Estrada Velha, a rua e/ou a casa da dona Terezinha e o Bar da dona Solange (mães de algumas crianças) também se reconfiguram para acolher as ações propostas pelo reaPODERE. As pesquisas cartografaram processos de produção subjetiva, isto é, o próprio desenho de territórios existenciais (e não apenas geográficos), nas experiências partilhadas com as crianças. Invenção brincante que transborda das ondas do mar (Serviluz), seguindo a resistência de Canudos (Nova Canudos)66, subindo até o Maciço de Baturité, ressoando de forma concreta e crítica o seu movimento abolicionista (Acarapé)67. Reinventando-se nessas linhas que se atravessam entre territorialidades e 66 O nome do território Nova Canudos é em homenagem à luta e resistência de Canudos. 67 Redenção foi a primeira cidade a declarar a abolição da escravatura, fazendo parte do Maciço de Baturité e sendo vizinha de Acarape. Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 211 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses vulnerabilizações, potencializando vidas que resistem à herança do pensamento social brasileiro, em que pobreza, raça e periferia são sinônimos de criminalidade. Compor territórios existenciais é implicar-se neles, observando o inesperado, abrindo-se para possibilidades que emergem dessa relação afetiva com as crianças e que os encontros permitem. Afinal, sob a inspiração de Deleuze e Guattari (1997), a cartografia como método de pesquisa-inter(in)venção considera que “o território existencial está em constante processo de produção” (ALVAREZ; PASSOS, 2015, p. 132). As crianças, sujeitos sociais, mesmo diante das invisibilidades atreladas às políticas de subjetivação excludentes e de subalternização (NASCIMENTO, 2002), fazem da participação nos encontros um meio de exercer um protagonismo e visibilidade nos territórios, recobrando um sentido político para sua presença. A presença e ação dessas crianças trafegando pelas ruas, no dia-a-dia das obrigações/afazeres domésticos, indo comprar um detergente que acabou, comprando a “merenda” na padaria, a caminho da escola junto com a(o) irmã(o) ou amiga(os): todas essas cotidianidades exercitam uma micropolítica de produção subjetiva, a qual requer uma atenção à espreita daquele/a que visa traçar, cartograficamente, o plano coletivo das forças produtoras de infâncias diversas. As insurgências moleculares na produção dos modos de vida das crianças nos cotidianos confrontam-se com processos de subjetivação modelizados pelo capital, a exemplo dos regimes de dizibilidade que tentam capturá-las, nas formas de denominações pejorativas e inferiorizantes bastante comuns no contexto cearense, tais como: “pirraias”, “pivetes”, “vetins”68, “mirins”, “menores”, “elementos”. Formas de nomeação e formas de sujeição que são torcidas pelos vetins, manos, manas, outras musicalidades presentes nos cotidianos e trocas entre as crianças no território. Estar em cena, ocupar os espaços, aparecer, é, isso mesmo, uma prática de resistência micropolítica em um contexto adultocentrado. Sua presença no cotidiano instaura sua posição social pelas quais performam suas infâncias, “[…] a resistência muito mais que uma simples reação, como resposta à ação de outro - mas uma nova ação, com curso próprio e possibilidade de afetar a ação de outros” (PEREIRA, 2017, p. 24). 68 “Vetins” emerge tanto como efeito de captura como de subversão para nomear experiências dos segmentos infantojuvenis periféricos cearenses. Para a compreensão desse analisador, indicamos a leitura do artigo Cidade, arte e criação social: novos diagramas de culturas juvenis da periferia (2020) da pesquisadora Glória Diógenes. ISSN: 1981-9862 O sentido do termo resistência, aqui, alarga-se de modo que as crianças sejam percebidas em seus movimentos inscritos em agenciamentos coletivos. Guattari e Rolnik (2005) propõem que a produção de subjetividade é de caráter maquínico, sendo elaborada, modelada, recebida e consumida pelo tecido social, por meio do sistema capitalista: tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística - tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam - não é apenas uma questão de idéia ou de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com pólos maternos e paternos. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo (GUATTARI; ROLNIK, 2005, p.35). A produção do Capitalismo Mundial Integrado (CMI) coexiste através de uma relação entre sistema econômico e construção das subjetividades por meio da memória, linguagem, imaginação e comportamentos. Os seres humanos são colocados em diferentes níveis de valor como força produtiva, elaborando uma relação de serventia na qual os sujeitos se tornam objeto, máquinas. Há, então, uma fabricação de subjetividades capitalistas, em uma dimensão global. Ocorre, assim, uma modelização no que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, não sendo diferente em relação à produção de um modelo específico em que se valoriza uma determinada noção de infância (moderna). Esse modo de estruturar o sistema tem como finalidade o controle social por meio das instâncias psíquicas que produzem a maneira de existir/estar no mundo e suas relações sociais (GUATTARI; ROLNIK, 2005). A produção inventiva de territórios de infâncias nos possibilita enfrentar os planos das homogeneizações, atentando para como as crianças em contextos periféricos produzem cultura, modos de ser criança e de habitar esses diferentes espaços. Trata-se de rachar um regime de verdade em que pesam discursos e imagens que as aprisionam às vulnerabilidades a que são acometidas e ao silenciamento imanente ao adultocentrismo, naturalizando seus efeitos como condições intrínsecas dessas crianças (DELEUZE, 2005). Os territórios de infância pedem passagem para a escuta de seus movimentos de composição, dos quais fazem parte não apenas linhas de opressão e exclusão, mas também planos de forças que agenciam resistências, encontros, desejos, sonhos que materializam geografias nada óbvias aos seus lugares de pertença. Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 213 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses 3. A POTENCIA COLETIVA DAS CRIANÇAS: TRÊS EXPERIENCIAS EM DIÁLOGO As inter(in)invenções das quais nos ocupamos em narrar a seguir e que dão nome às sessões - Entre cores e dança: “... andar tranquilamente na favela onde eu nasci”69; Passear, brincar, organizar, decidir, festejar, negociar: infinitivos e invenções das crianças de Nova Canudos; Serviluz: as andanças brincantes nas ruas do mar - acionam algo do que é possível fazer juntos. A produção de territórios comuns se dá diante das diferenças e não apenas das desigualdades que insistem em capturar/colonizar/despolitizar modos de estar com as crianças, distanciando-nos de uma perspectiva assistencialista e tutelar, que ignora a agência política dos sujeitos aos quais se dirige. 3.1.Entre cores e dança: “... andar tranquilamente na favela onde eu nasci” A Rede de Estudos e Afrontamentos das Pobrezas, Discriminações e Resistências (reaPODERE), grupo de pesquisa, ensino e extensão vinculado à Unilab, vem atuando na comunidade da Velha/Acarape-Ce desde 2016, quando se iniciou ainserção comunitária. A localidade foi escolhida pelo fato de ser “um campo de atuação da extensão universitária que sofre com o processo de estigmatização da própria população de Acarape e cidades vizinhas, a qual ficou reconhecida pelo tráfico de drogas, violência e a pobreza” (MOURA JR; LIMA; SILVEIRA, 2018, p.437). As atividades socioeducativas da rede que vêm se desenvolvendo no local têm o intuito de fortalecer vínculos, trabalhar o lúdico e estimular o cooperativismo entre as crianças. “Portanto, o papel da extensão desenvolvida na reaPODERE é o de fortalecer a comunidade e os processos de resistência desenvolvidos por indivíduos em contextos de privação” (MOURA JR; LIMA; SILVEIRA, 2018, p.435). Tendo tudo isso em vista, a rede começou com o Grupo de Crianças em 2017, desenvolvendo atividades semanais com foco na ludicidade, no fortalecimento de vínculos e no reconhecimento das potencialidades das crianças da Estrada Velha. Narramos algumas ações a partir do caráter in(ter)ventivo, como: as interações sobre negritude no Dia da Consciência Negra com a exibição do curta Dúdú e o Lápis Cor da 69 “Rap da Felicidade” é uma música da dupla de MCs Cidinho & Doca, lançada em 1994, no Rio de Janeiro. ISSN: 1981-9862 Pele70; as oficinas de funk, que mais tarde culminaram na formação de um grupo de dança de meninas da comunidade intitulado 'As Afrontosas'; e a festividade do natal comunitário, realizado na própria comunidade. Sobre o primeiro momento, a oficina contou com a exibição do curta Dúdú e o Lápis Cor da Pele. O propósito era trazer a discussão sobre o racismo e sua necessidade de debate constante, principalmente no Dia da Consciência Negra. A princípio, perguntamos a elas se sabiam da história que cercava o dia. Não demorou muito para as mesmas iniciarem a discussão, através da visão delas sobre a importância da data e vincular com o que viam na comunidade, na escola e na TV. Depois da exibição do curta, queríamos saber o que elas tinham entendido. Há muito uma ideia de que a criança não consegue problematizar questões sociais e raciais. No entanto, identificamos o contrário dessa compreensão estigmatizante da infância. As crianças de 10 a 14 anos presentes discutiram e trouxeram vivências suas e de amigos para enriquecer o diálogo. As menores, de 04 a 08 anos, fizeram desenhos sobre o que tinham entendido, uma delas desenhou várias pessoas com cores diferentes. Na oficina de Funk, o objetivo era entender como as crianças veem o funk através dos seus diferentes tipos, compreendendo, assim, o que elas pensam sobre as letras. A história do funk demonstra que esse gênero, em meados da década de 70, “era produzido na periferia e para a periferia'' (CHAGAS, 2018), ou seja, faz parte da comunidade. É esse o modo deles e delas se expressarem e de se divertirem. E, além disso, o funk faz parte da cultura brasileira, estando presente principalmente nas periferias, onde surgem muitos MCs, dançarinas e letras de resistência. Então, dançamos e dialogamos sobre outros estilos presentes dentro do gênero, como o ostentação, o brega funk, o antigo e o proibidão. Levamos as letras de cada estilo com cuidado, pois nosso público é infanto-juvenil entre 04 a 14 anos. A maioria das músicas já eram conhecidas por elas, porém as canções referentes ao estilo antigo não eram. Perguntávamos o que elas entendiam das letras, a que se referiam. Diante disso, percebemos que o brega funk era o que elas dançavam, mais por causa da batida e menos pela letra. Como resultado da oficina, as crianças se interessaram pela história de re(existir) e as letras de protesto fundadas no funk antigo, 70 Produção da Take a Take Films, roteiro de Gleber Marques e direção de Miguel Rodrigues, disponível no Youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=-VGpB_8b77U https://www.youtube.com/watch?v=-VGpB_8b77U Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 215 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses principalmente, pela música Rap da Felicidade, que mais tarde as crianças iriam expressar em uma nova versão. As oficinas possibilitaram nossa aproximação com os moradores da comunidade e compreensão das suas dinâmicas e vivências. As atividades relatadas aqui são as que culminaram na apresentação das As Afrontosas – grupo de dança das meninas da Estrada Velha – no evento “O Natal da Família Estrada Velha”, que fizemos em conjunto com a comunidade. O nome, dado por eles, é uma forma de afirmar que são unidos. Na fala das moradoras “as coisas ruins não saem daqui”, se referindo ao preconceito recebido pela cidade e demonstrando resistência a esse processo de estigmatização. Há um forte processo de estigmatização das pessoas em situação de pobreza, sendo reconhecidas como criminosas e violentas. No entanto, há também processos de resistência que questionam esses reconhecimentos estigmatizantes (MOURA JR; SARRIERA, 2016). No natal comunitário, temos a “venda” de roupas, que acontece em um terreno que fica na parte mais acima da rua, próximo do local das atividades desenvolvidas com as crianças. Este terreno foi cedido por uma das lideranças da comunidade. Junto com os moradores, organizamos as roupas no terreno e distribuímos democraticamente fichas representando dinheiro da comunidade para a aquisição dos produtos. Assim, a pessoa pode entrar no espaço e comprar suas roupas e calçados até atingir o valor recebido. A ideia surgiu das moradoras, como forma de organização e para que todas as pessoas pudessem ter acesso às roupas no natal comunitário. As roupas são arrecadadas por nós da rede durante dois meses antes do evento, juntamente com os alimentos. Fazemos cartazes e divulgações nas redes sociais, ruas e mercados de Redenção e Acarape. No evento, tivemos a apresentação: As Afrontosas. Elas fizeram algo especial neste ano de 2019, criaram a seguinte cena: uma mulher branca era assaltada e gritava para um policial, também branco, pegar o ladrão. O policial correu e algemou uma mulher negra que estava dançando com as amigas. A mulher começou a se defender para o policial, pedindo que a soltasse, pois não era ladra. Em meio a confusão, a mulher consegue se soltar e escuta o trecho da música que toca no som do natal comunitário: “eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci...”. Então, todas as crianças presentes cantam novamente o mesmo trecho. O policial se afasta, e as meninas começam a dançar. Foi um momento de arrepiar a todos, sendo fortemente aplaudido pelos moradores da comunidade presentes. ISSN: 1981-9862 O que podemos perceber desta encenação é que essas crianças enxergam e sentem o preconceito dado a elas pela cor da pele, pelo gênero musical e pelo território onde moram. De acordo com Bissoli (2014), as vivências das crianças possibilitam a elas se relacionar e expressar sobre seu entorno. Elas expõem através de palavras, silêncios, brincadeiras e danças o processo de invisibilidade de seus corpos e as maneiras de se fazer resistência nessa desigualdade social capitalista. Juntamente com as atividades socioeducativas desenvolvidas, elas vão identificando e trabalhando as formas de potencialidade e subalternização de ser criança em territórios periféricos, neste caso, em uma comunidade interiorana do Maciço de Baturité. 3.2.Passear, brincar, organizar, decidir, festejar, negociar: infinitivos e invenções das crianças de Nova Canudos Invenções das crianças de Nova Canudos é uma acontecimentalização em nossos modos de fazer pesquisa e extensão, impulsionando em “uma direção construcionista que potencializa a vida pela imersão no acaso, pelas intensidades no lugar das representações” (FONSECA et al, 2006, p.659). Em 2019, quinze (15) crianças de idades diferentes, entre meninas e meninos pobres, negras e negros, pesquisadoras,estudantes, articuladores e militantes dos movimentos sociais, moradores passam a se encontrar quinzenalmente no Centro de Cidadania e Valorização Humana (CCVH), associação comunitária em Nova Canudos, localizada na região do Grande Bom Jardim na cidade de Fortaleza/CE. Este território existencial, que as crianças intitulam “Invenções das crianças de Nova Canudos”, campo de forças no qual cartografamos formas, movimentos, tensões e no qual insurgem as ações das crianças relaciona-se à presença e transversalização da Psicologia Social e política com outros saberes. Tem como produção correlata o projeto de extensão Maquinarias: infâncias em invenção (2019), ligado ao VIESES. Neste encontro entre territórios de vida e de conhecimento, partilhamos eixos éticos comuns. Entendemos crianças como sujeitos ativos, em processos formativos que se dão no encontro, onde experimentamos coletivamente os efeitos desta agência. O caminho por esta escuta dos cotidianos e seus processos inventivos termina por problematizar modos institucionalizados pelos quais nos acostumamos a perceber a presença e ação das crianças. Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 217 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses Compor com os territórios traz a possibilidade de olhar criticamente para uma rede de práticas voltadas às crianças no âmbito da assistência social, dos direitos humanos, da cultura, em suas relações com práticas familiares e escolares. Passamos a lidar com planos de forças que operam silenciamentos da posição social das crianças e com a produção de sua invisibilidade social em uma sociedade capitalista, desigual, colonial, adultocêntrica, menorista e racista. Há também junto a essas sujeições e opressões um conjunto de forças que se mobilizam em sentidos diferentes, disputando as narrativas sobre si, sobre o território, se organizando politicamente para a efetivação de direitos, denunciando violações, deslocando geografias oficiais e recompondo mapas para fazer outras cidades. A partir deste olhar não totalizador sobre processos de opressão e resistência, compomos essa narrativa a partir das experiências do Invenções das crianças de Nova Canudos e que impulsionam à invenção de problemas de pesquisa e modos de subjetivação. Nova Canudos é uma ocupação urbana e Zona Especial de Interesse Social (ZEIS) que, para as crianças, não se resume à “favela”. “As amigas dela são da favela, tia!”, “Favela, não menina, comunidade!” Falas de uma das meninas parceiras que emergem em meio às conversas e brincadeiras do grupo, cortando o plano das evidências e obviedades nas adjetivações sobre as vidas periféricas e explicitando polissemias e multiplicidades concernentes a tais vidas. Saber sobre o significado do nome Nova Canudos, sobre suas lutas como “comunidade” e seus problemas vai tecendo os encontros em meio às brincadeiras (pega-pega americano, pular corda, estátua, teatro e faz de conta), aos desenhos livres sobre o bairro, às denúncias e desabafos que trazem sobre escolas mal cuidadas: “a escola é pôde, feia!”, e aos riscos de andarmos pelas ruas faccionadas, próximas ao CCVH. Ao mesmo tempo, esse transitar imaginário e real no mapa do bairro, por dentro e fora, pelas bordas, nas vizinhanças, pelos desenhos e mapas da cidade que levamos ao grupo, torna-se uma das pautas dos encontros, agitando as consultas recorrentes que fazíamos a cada sábado sobre as atividades que preferiam fazer conjuntamente. O grupo-acontecimento vai se realizando na conjugação do infinitivo - passear, brincar, fazer festas, ir comprar o lanche, planejar uma rifa. O agenciamento Maquinarias- crianças-território-articuladores-moradoras de Nova Canudos torna visíveis situações em que as crianças em seus movimentos e desejos são vistas como “problema”, com desconfiança como na disputa pelo uso do espaço da Associação Comunitária (CCVH) ISSN: 1981-9862 com o grupo de mulheres da igreja que também usavam o espaço. Precisamos negociar dia e horário. As crianças reivindicaram o espaço como sendo delas. Sim, queriam brincar, fazer bagunças, tramar ações em meio ao que nós levávamos de ideias, sempre sem muita diretividade. As suspeitas pesam sobre o projeto/universidade também, “afinal, o que vocês estão fazendo?”, nos perguntam as mulheres da igreja. Outras alianças se fortalecem na insistência e teimosia do grupo, na vizinha da Associação que garante a chave para abrir o espaço e faz pipocas para o lanche e na presença de alguns responsáveis nos passeios. Vamos escutando as crianças e acolhendo as revoltas pelo cerceamento do uso do espaço (salas trancadas e materiais de limpeza e de uso comum guardados com chave). As ações com as crianças exigem que professora, adulta, jovens articuladores, jovens bolsistas, avós, mães, pais, moradores da comunidade revejam imaginários conformados socialmente e associados a desigualdades e não apenas a diferenças geracionais. A presença afetiva da jovem e atuante articuladora amplia os horizontes e trânsitos do grupo. Reuniões menores são articuladas para comprar lanche e material para realizar festas surpresas. Convites chegam às crianças para se juntarem a outras ações na sede do CDVHS, telefonemas durante a semana e entre os intervalos dos sábados, conversas no aplicativo, compartilhamento de notícias sobre Nova Canudos. “Queremos passear, tia!” As provocações-desejo das crianças de Novas Canudos trazem para os encontros as desigualdades e segregações socioespaciais que marcam suas relações com as várias cidades dentro da Fortaleza oficial. Torna-se um analisador da produção desigual das subjetividades e das cidades. “Finalmente, nosso “passeio chique”, disse-nos, entusiasmado, um dos meninos parceiros diante do ônibus com ar condicionado, espaçoso, conseguido em articulação do CDVHS com a Casa Civil e por decorrência da realização do Festival Internacional de teatro infantil (2019) que acontecia com algumas apresentações no Centro Cultural do Bom Jardim, no próprio bairro, e que nos organizamos para levar o grupo em um dos sábados. Dar uma volta no carro da professora no quarteirão irregular e estreito de Nova Canudos, ver o mar, ir à praia, conhecer a UFC e equipamentos culturais da cidade vai nos trazendo o aprisionamento simbólico a que as crianças estão submetidas e como sua favelização ou vulnerabilização é produzida com seu distanciamento de diversos pontos da cidade e por onde deveriam poder circular e interrogar em sua condição de espaço comum e público. “Tia, é aqui que você trabalha?”, interpela um dos meninos ao chegar Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 219 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses ao Centro Cultural Dragão do Mar71. Esse outro território existencial do qual as crianças tomam parte se estende aos pertencimentos de professores e bolsistas e também às relações que a nós são possíveis em nossos usos da cidade. UFC que era Dragão do Mar, que era Nova Canudos, que precisava devir-cidade, pois as crianças queriam que o trajeto já fosse outro, para incluir o encontro com o mar, que não apenas a distância física impossibilita de ver e sentir (CORDEIRO; MENEZES, 2001). A interpelação do menino funciona como um analisador das relações entre as crianças e o espaço urbano. O risco e a impossibilidade de atravessar a cidade são uma das linhas que traçam este território existencial, onde criam suas experiências e que seu desejo mobiliza como ação política. As crianças de Nova Canudos querem sair, se deslocar; pois resistem às violências cotidianas que desenham e criam para elas um destino. 3.3.Serviluz: as andanças brincantes nas ruas do mar. O Serviluz, como é reconhecido por seus moradores e pela população, é uma territorialidadeperiférica praieira localizada na cidade de Fortaleza. Sua emergência começou a se dar por volta de 1950 com a construção do porto nas redondezas (ESPÍNOLA, 2007). O nome do território surgiu como alusão à Companhia de Serviços Força e Luz (SERVILUZ), que se tornou ponto de referência do lugar. Nos dias atuais a população é composta por cerca de 22 mil habitantes, sendo cerca de 5 mil crianças com faixa etária de 0 a 12 de idade e adolescentes com 13 e 14 anos (IBGE, 2010)72, as crianças são ¼ dos moradores. O lugar tem como expressões os coletivos73 e articulações entre os moradores que repercutem em resistências cotidianas ressoando em um fazer micropolítico. Território esse que é disputado entre os moradores/nativos/locais74, que carregam a herança dos seus ancestrais da cultura pesqueira contra as políticas de remoções75 da Prefeitura de 71 Equipamento cultural público da cidade, situado a 18 quilômetros de Nova Canudos Em setembro de 2019, as crianças estiveram no Curta o gênero (2019), evento realizado pela Fábrica de imagens: Ações Educativas em Cidadania e Gênero, ONG parceira em nossas atividades. 72 Os dados usados foram pesquisados com o nome Cais do Porto, pois o poder municipal não reconhece o nome Serviluz como oficial do bairro em questão. 73 Associação dos Moradores do Titanzinho (AMT), Coletivo Servilost, Coletivo de AudioVisual, Núcleo do Serviluz, entre outros. 74 No surf, esporte de prática popular nas ondas das praias do Serviluz sendo a praia mais conhecida como Titan ou Titanzinho, o termo local ou nativo é para diferenciar os moradores daquele território com os surfistas visitantes de outros bairros da cidade. 75 Temos como exemplo de projeto mais recente o Aldeia da Praia (2019), que tem como proposta remover parte dos moradores para a construção de um calçadão e uma praça . ISSN: 1981-9862 Fortaleza e de precarizações periféricas, violentamente impostas. Além das praias, é no Serviluz que fica o antigo Farol do Mucuripe, que tem importância histórica e cultural também para a cidade como patrimônio público. As infâncias, em sua potência inventiva e brincante, agenciam esses fluxos de re- existir e resistir. As crianças, assim como o marulho, são onipresentes no território e, tal qual as resistências, contaminam, enxertam e deslocam o dentro (PEREIRA, 2017). As crianças, então, em 2016, passaram a entalhar um barquinho76 com o Projeto de Vida Titanzinho para navegar nas águas do Serviluz, onde semanalmente ocorrem os encontros com sujeitos entre 6 e 12 anos de idade, na casa de uma moradora, e que, em 2019, passou a ser parte do Instituto TrêsMares. Parte da pesquisa-inter(in)venção no território aconteceu, também, a partir desse mesmo ano e do seguinte, diante da pesquisa de mestrado que tem como vínculos o Projeto de Pesquisa e Extensão Maquinarias (VIESES) e o Projeto de Vida Titanzinho (INSTITUTO TRÊSMARES). O dispositivo metodológico usado nesta experiência inter(in)ventiva teve como atravessamentos os estudos desenvolvidos por meio do Maquinarias, transformando-se em uma pesquisa de mestrado com crianças, moradoras do Serviluz, que participam do projeto. A cartografia, como estratégia utilizada para acompanhar cenas do cotidiano de crianças, como analisadoras de seus processos de produção de subjetividades nessa territorialidade periférica, propõe como ferramenta de pesquisa-inter(in)venção as andanças nas ruas, as brincadeiras, idas às praias (das Pedrinhas, do Titanzinho, do Portão e do Vizinho), os becos, as casas, a Praça da Estiva, ao Farol do Mucuripe, os lugares afetivos ou não do território. Essas andanças tornam-se uma estratégia metodológica de produção de confiança (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2016) e de mergulho no plano da experiência das crianças naquele território (PASSOS; BARROS, 2015). Dessa forma, essas andanças foram percorridas com as crianças, guiando de acordo com os seus interesses os espaços que gostariam de ir e também o que desejavam fazer. Em diferentes ocasiões, estar com as crianças nessas movimentações entre uma casa e outra para convidá-las para a rua é uma experiência performativa brincante. Seja com uma criança “implicando” de modo afetivo outra criança ou planejando, durante os percursos no território, o que vamos brincar quando chegarmos ao destino acordado entre todos. Assim, o território fruto de muitas invenções ao mesmo tempo que construímos e partilhamos do território existencial (ALVAREZ; PASSOS, 2015). São cenas como essas 76 Símbolo do Projeto de Vida Titanzinho. Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 221 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses do cotidiano no Serviluz que ilustram como tomamos a brincadeira no território como analisador dessas produções coletivas de potências e resistências tecidas por crianças em seus cotidianos. As brincadeiras nos trajetos que levam à praia, sendo esse um dos lugares mais apreciados no Serviluz, sofrem restrições, pois nem todas as crianças têm acesso ao mar por motivos de demarcações simbólicas oriundas dos conflitos entre facções criminosas que atuam no local. A brincadeira é uma ação de conhecimento por meio do afeto (KASTRUP, 2019), como podemos perceber no sentido/significado que a palavra brincadeira tem para uma criança de 10 anos: “é estar contente e amado” (NARANJO, 2018, p.28). Ela é uma conexão com as relações entre pares, com os adultos e também socialmente. Portanto, as brincadeiras no território são produtoras de cultura sobre as infâncias e que mutuamente se constituem (DAMIÃO, 2012). Sobre as crianças e as andanças, Damião (2012) reforça que o corpo dessas se faz como presença afetiva no espaço, extraindo a potência brincante de si e do território, sendo “...a infância que se corporifica nas ruas do bairro” (p. 45). É essa multiplicidade de interesses que faz com que as crianças habitem as ruas de diferentes modos no seu cotidiano. Como que por meio da brincadeira, sonhando em cima da estrutura elevada do farol ou se fazendo equilibrista nas ondas do mar com suas pranchas ou “taubinhas”77. Em um dos nossos encontros no Serviluz, a brincadeira teve como cenário a Praia das Pedrinhas, onde duas crianças, com 11 e 6 anos de idade, que eram irmãos, tinham como interesse nas andanças tomar um banho de mar. Essas crianças brincavam entre os corais e pedras, elementos naturais dessa praia, quando, em determinado momento, uma delas me mostrou uma “pedra-escorregador”, moldada por meio do desgaste provocado pelos movimento das marés e coberta por musgos que habitavam sua superfície, que impulsionava um divertido mergulho no mar. Isso acontecia cotidianamente, mesmo tendo na entrada da praia uma proeminente boca de esgoto desaguando no paraíso oceânico dessas crianças, e assim, contaminando-os e, muitas vezes, provocando doenças de pele, entre outras mazelas. 77 Na praia do titanzinho (Serviluz) tem a cultura surf de tábua, tendo como modelo de pranchas as taubinhas. As taubinhas são feitas de modo artesanal a partir de materiais como madeirite, que foram retiradas de construções de prédios. ISSN: 1981-9862 A lógica desse banho supostamente impróprio por conta do descaso dos órgãos responsáveis pela destinação do esgoto é subvertida por essas crianças, por meio da brincadeira no mar e também por outras formas de vidas, como peixes, moreias, siris, que habitam e resistem naquelas águas. Nesse balanço das ondas, a potência do mar implode o devir-criança que “é a abertura ou o desdobramento da infância retraída” (SCHÉRER, 2009, p.199), retraída muitas vezes pelas precarizações que o território sofre. Como destaca Schérer (2009, p.206), “a criança está em posição permanente de resistência, de defesa contra o mundo adulto; ela elabora uma estratégia da qual traça as linhas. A subjetividadeem elaboração, a subjetivação da criança é indissociável do meio, da subjetivação do meio”. Desse modo, as crianças, na experimentação do território- Serviluz, por meio das brincadeiras, produzem outros territórios-infância, como também outros sentidos que escapam à lógica que estigmatiza contextos periféricos. 4. COMPOSIÇÕES PERIFERIZADAS Embarcamos aqui para continuar ocupando e afrontando, como nos deslocam signos dos territórios das infâncias periféricas cearenses presentes na composição desta escrita. Nomeá-las infâncias periféricas têm relação com regimes de dizibilidade em que as periferias são seu próprio centro. Ver-se e dizer-se periferizado mobiliza regimes de poder e ações de constituição de um centro e de uma periferia, com as assimetrias e (in)visibilizações que isso implica. O uso do signo “periféricos” pelos moradores desses territórios é, desse modo, afirmação política do periférico; uma certa ação de periferização insurgente (LACAZ, LIMA & HECKERT, 2015). Travamos uma luta (permanente e atenta) para não falar “do outro”, em nome do outro, sobre o outro, promovendo reterritorializações ainda mais duras e operando a naturalização do periférico. As movimentações das crianças na Estrada Velha, Nova Canudos e Serviluz são percebidas como modos de resistências enquanto coletividade. Ao ocupar esses espaços (ruas, associações, ONGs, cidades) elas produzem a si e ao território mutuamente. Sua presença torna-se subversiva diante do controle e vigilância policial, do domínio das facções e/ou das relações de poder-saber adultocêntricas, pois brincam e constroem outros sentidos, produzindo potencialidade e subvertendo as lógicas instituídas que impedem a criação de suas existências. Agenda Social, vol. 15, n.2, 2020, p. 204 - 225 223 Costa; Temoteo; Moura Jr; Pereira; Nunes, Resistência de Crianças e territórios periféricos cearenses Cartografar os movimentos dessas infâncias, estar presente nesses três territórios, têm demonstrado a importância de escutá-las e produzir como efeito desta escuta seu reconhecimento como sujeitos de ação, tornando possível que elas falem, sejam presenças em nossas narratividades e não apenas objetificadas. Ao mesmo tempo, perseguindo como horizonte ético a não romantização das vidas periféricas, compondo com o enfrentamento das violências e exclusões a que são submetidas em suas determinantes estruturais, associadas ao modo de vida capitalista, e, assim, ecoando em suas diferentes lutas e conquistas. A invisibilidade social e política das crianças, levando em conta não apenas o critério etário e geracional, mas também sua condição de classe, raça e etnia, vai se confirmando como uma linha-luta associada às ações cotidianas das crianças. Quando reunidas, mobilizam, torcem, provocam tensões. Sua participação e ação política pode ficar invisibilizada justamente pelos referenciais adultocêntricos e racionalistas (saber, ter consciência, ser competente, maduro). Os efeitos de nossas ações, pela constituição conjunta de um território existencial, pode numa cartografia processual e intergeracional nos dizer sobre outros aspectos dessa difícil tarefa de se fazer cidadã ou cidadão em nosso país. A ação política implica imaginar impossíveis. As crianças buscam ocupar espaços que na ótica adultocêntrica não são adequados e nisto reside subverter, lançar problemas às lógicas instituídas de entender as sociabilidades entre gerações. Passear é ocupar, ser presença com seu corpo, suas semióticas, seus modos de narrar. “É nois que inventa!”, diz alegre uma das meninas, parceira em Nova Canudos. Pensamos o espaço público (rua, cidade, centros comunitários) como constitutivo de nosso modo de subjetivação e como lugar de gestar infâncias como experiências intergeracionais. No caso das crianças periféricas, isso vem sendo expropriado por uma necropolítica que em contextos pandêmicos, como o que enfrentamos em 2020, revelou faces ainda mais cruéis. Estas vivências que nos interrogavam antes da pandemia de COVID-19 e que ainda enfrentamos no momento de escrita deste texto, desafia-nos quanto às desigualdades que nos repartem cotidianamente. O diálogo com crianças de regiões periféricas da nossa cidade fissura o imaginário burguês de infância, pedindo passagem para outra ética de co-responsabilização entre gerações. Gerações essas que atuam no presente e que, nessa presença, confabulam seus futuros tendo muito que desaprender e aprender, assim como dizer e narrar. ISSN: 1981-9862 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGUIAR, K. F; ROCHA, M. L. Micropolítica e o Exercício da Pesquisa-intervenção: Referenciais e Dispositivos em Análise. Psicologia. Ciência e Profissão, 2007, 27 (4). p. 648 - 663. ALVAREZ, J.; PASSOS, E. Cartografar é habitar um território existencial. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs). Pistas do método da cartografia: Pesquisa- intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre, Sulina, 2015. p. 131 - 149. BISSOLI, M. F. Desenvolvimento da personalidade da criança: o papel da educação infantil. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 19, n. 4, p. 587-597, out./dez. 2014. BUTLER, J. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto?. Tradução: Sergio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018. CEARÁ. 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