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CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 1 Clínica de Atenção Psicossocial CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 2 CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL Em 1793, o médico francês Philippe Pinel assumiu a direção do Hospital Geral de Paris e iniciou a medicalização da instituição, que só então passou a tratar as doenças mentais como uma questão de ordem médica, e não mais como uma questão social. Pinel participava de um grupo de pensadores chamado Ideólogos, que tomava por base a concepção do conhecimento dos fenômenos por referência ao modelo da História Natural. Tal modelo se baseia na tradição de Locke, segundo a qual o conhecimento empírico parte das sensações; no que tange ao pensamento político, seus integrantes pregavam a natureza livre e independente dos homens, que não devem ser submetidos nem privados (AMARANTE, 2007). Pinel ficou conhecido por liberar os loucos das correntes, mas os colocar sob um regime de completo isolamento, que, segundo ele, poderia restituir a liberdade subtraída pela alienação. Suas ideias têm como pano de fundo o contexto do Iluminismo, o qual pregava hegemonia da razão como garantia da liberdade (AMARANTE, 2007). Em seu Tratado Médico-Filosófico sobre a Alienação Mental ou a Mania, Pinel constrói uma classificação das enfermidades mentais, consolidando o conceito de alienação mental e a profissão de alienista. Ele conceitua a alienação mental como um distúrbio das paixões, capaz de produzir desarmonia na mente e afetar a percepção objetiva da realidade. No entanto, chegou a questionar se seria uma doença ou um processo de natureza distinta, pois considerava que procurar a sede da loucura era algo da ordem do “obscuro e impenetrável” (AMARANTE, 2007). Contudo, o conceito de alienação mental contribuiu para uma atitude social de medo e discriminação em relação aos ditos “loucos”; afinal, alguém com o discernimento prejudicado seria um perigo à sociedade. Então se inicia uma associação entre alienação mental e periculosidade. O isolamento seria o primeiro passo do tratamento moral, visando afastar o sujeito das interferências que pudessem prejudicar a observação apurada dos fenômenos. O objetivo seria a busca de diagnóstico preciso CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 3 por meio de um ambiente de ordem e disciplina para regrar a mente, tendo como principal estratégia o trabalho terapêutico (AMARANTE, 2007). O contexto histórico era o de transição para o capitalismo, no qual o trabalho adquiria importância singular. Curioso notar que naquele mesmo cenário em que se construiu o conceito de cidadania produziu-se o conceito de alienação mental. A alienação mental era considerada incompatível com o livre-arbítrio e, portanto, com a liberdade. Seria preciso então recuperar a razão para recuperar a liberdade! A Lei francesa de junho de 1838 foi a primeira voltada à assistência aos alienados. A partir de então, vários hospitais foram criados em muitos países, inspirados em Pinel, inclusive alguns levando o seu nome. Desde o início, muitas críticas foram tecidas ao alienismo, por conta dos paradoxos com os ideais da Revolução Francesa (AMARANTE, 2007). O Hospício de Pedro II foi o primeiro no Brasil que reproduzia os similares franceses. Logo os primeiros asilos ficaram superlotados. Vários fatores contribuíram para a queda na credibilidade do hospital psiquiátrico, tais como: dificuldade em estabelecer os limites entre loucura e sanidade; segregação de segmentos marginalizados; e constantes denúncias de violência. A primeira tentativa de resgate do potencial terapêutico foram as colônias de alienados, com a proposta de uma aldeia livre, na qual os familiares também habitavam para cuidar de seus entes por meio da perspectiva do trabalho terapêutico. No Brasil, após a Proclamação da República, duas foram criadas, ambas na Ilha do Governador, Rio de Janeiro. Juliano Moreira e Adauto Botelho foram duas colônias responsáveis pela expansão das demais no país, como a de Juquery, em São Paulo, que chegou a ter 16 mil internos. Logo elas se mostraram iguais aos asilos anteriores, instituições asilares de recuperação por meio do trabalho. As primeiras experiências de Reformas Psiquiátricas nascem com o marco histórico das Guerras Mundiais, a partir das quais a sociedade viu a semelhança entre os hospitais e os campos de concentração. As de maior impacto, inovação e influência nos dias atuais podem ser classificadas em dois grupos: CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 4 1) Comunidade Terapêutica e Psicoterapia Institucional: falavam do fracasso na forma de gestão e defendem que solução seria introduzir mudanças na instituição. 2) Psiquiatria de Setor e Psiquiatria Preventiva: propunham um desmonte do esgotado modelo hospitalar, que iria tornar-se obsoleto a partir da construção de serviços assistenciais diversos. Tais propostas, no entanto, não rompem com o paradigma psiquiátrico tradicional em relação à loucura. É a Antipsiquiatria que começa esse processo de rompimento – a princípio na Inglaterra, no final dos anos 1950, início de 1960 –, dando início à constituição do modo de atenção psicossocial. Os precursores desse movimento foram os psiquiatras Ronald Laing e David Cooper, os quais, apesar de adeptos da Psicoterapia Institucional e das Comunidades Terapêuticas, não viram futuro, pois perceberam que os ditos “loucos” eram violentados não só nos hospitais, mas também na família e na sociedade. Então se propõem a compreender a experiência da loucura não como um corpo ou uma mente doente, e sim nas relações sociais. O hospital radicalizaria as mesmas estruturas patogênicas e opressoras da organização social, que se manifestavam na família. A doença não existiria, portanto, como objeto natural, mas, sim, como uma experiência do sujeito na sua relação com o ambiente. Logo, não existia uma resposta padrão de tratamento. O terapeuta deveria auxiliar a pessoa a vivenciar esse processo, acompanhando-a e protegendo-a da violência. Complexifica-se então a noção de desinstitucionalização, que se distancia da noção norte-americana de desospitalização. A experiência da Psiquiatria Democrática tem início nos anos 1960, com Basaglia, em Gorizia, norte da Itália. Também se iniciou inspirada na Comunidade Terapêutica e Psicoterapia Institucional, mas, depois de alguns anos, Basaglia viu que esse não era o caminho. Sendo assim, no início dos anos 1970, foi a Trieste, onde teve início a mais rica e original experiência de transformação radical da Psiquiatria, que passa a ser negada enquanto ideologia, a partir de Foucault e Goffman. Tal experiência foi tomada como referência para a implantação do processo de Reforma na cidade de Santos, em São Paulo, nos anos 1980 e 1990. CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 5 Propunha os serviços substitutivos – ou seja, o conjunto de estratégias que tomaria o lugar das instituições psiquiátricas. Para iniciar o fechamento do hospital, Basaglia usou as experiências de Comunidade Terapêutica e Psicoterapia Institucional como meios, a partir de assembleias, clubes de internos, mobilização de pacientes, familiares e técnicos, dispositivos utilizados para construir as bases de superação do manicômio. Os primeiros serviços substitutivos foram os Centros de Saúde Mental, mas não se resumiam à continuidade pós-alta e reinternação na crise, como na Psiquiatria Preventiva e de Setor. Baseavam-se, sim, na perspectiva da tomada de responsabilidade, a partir da qual assumiam integralmente as questões relativas ao cuidado em saúde mental do seu território. Atuar no território seria ressignificar, reconstruir os modos como as comunidades lidavam com as pessoas em sofrimento mental, recolocando assim o lugar social da loucura. Após seu falecimento, em 1980, Basaglia é substituído por Rotelli, o qual afirmava que o conjunto de aparatos científicosda Psiquiatria se construiu sobre a separação artificial entre a “doença” e a existência global, concreta e complexa dos sujeitos em sofrimento mental. Portanto, para acessar a experiência da loucura, a transformação deve alcançar práticas e concepções. Ele coloca que o campo da saúde mental e atenção psicossocial deve ser considerado um processo social complexo, algo em movimento, que se transforma sempre. Surgem então novos elementos, situações, atores sociais, que forçam o constante repensar e reorganizar do campo. Tal campo passa a ser olhado a partir do entrelaçamento de dimensões simultâneas: interesses, ideologias, visões de mundo, concepções teóricas, religiosas, étnicas, de classe social, entre outras. Tais dimensões nem sempre se articulam com harmonia; produzem pulsações, paradoxos, tensões, consensos e também contradições, que fazem o campo da saúde mental avançar. Para suscitar uma reflexão mais didática, esse campo pode ser entendido no entrecruzamento das seguintes dimensões, tais como as coloca Amarante (2007): Técnico-conceitual; Técnico-assistencial; Jurídico-político; CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 6 Sociocultural. Em 2001, é promulgada no Brasil a Lei nº 10.216, conhecida como a Lei da Reforma, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, assegurando o tratamento sem qualquer forma de discriminação, regulamentando a questão da internação e colocando a responsabilidade compartilhada entre Estado, sociedade e família. Essa lei tramitou por muitos anos e só foi aprovada quando foi retirada do projeto original a extinção progressiva dos manicômios (BRASIL, 2001). No entanto, as leis não garantem mudanças: é preciso mudar mentalidades, atitudes, relações. A Psiquiatria contribuiu para muitos preconceitos: “louco é irracional’’, é “perigoso’’, e “lugar de louco é no hospício”. Por isso, a dimensão sociocultural é estratégica, para envolver a sociedade na discussão e reflexão sobre o tema da loucura, a partir da produção cultural e artística do atores envolvidos (usuários, familiares, técnicos, voluntários). O dia 18 de maio ficou instituído como o Dia Nacional da Luta Antimanicomial, no qual são promovidas muitas ações culturais, políticas, acadêmicas, esportivas, com o intuito de convocar e instigar a sociedade a respeito desse tema. Dentre elas, podemos citar o carnaval, TVs comunitárias, mostras, museus, exposições, grupos de teatro e música, realização de encontros grandes e regulares, totalmente organizados e protagonizados por usuários, familiares, profissionais e outros ativistas do campo, como os Encontros Nacionais da Luta Antimanicomial e Encontros Nacionais de Usuários e Familiares (AMARANTE, 2007). A Reforma psiquiátrica brasileira tem início no final dos anos 1970, a partir da crise do modelo hospitalocêntrico e da eclosão de movimentos sociais pelos direitos dos pacientes. Torna-se maior que a sanção de novas leis e normas, sendo considerada um processo social complexo, composto de vários atores, instituições e forças. Incorporou elementos das diversas experiências de Reformas de outros países e, baseando-se na tradição basagliana, aprende a refletir sobre os erros e acertos destes (BRASIL, 2005). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 7 Em 1978, inicia-se o Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), composto por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, que passaram a protagonizar denúncias de violência nos manicômios, a mercantilização da loucura e a hegemonia de uma rede privada de atendimento. Inicia-se a crítica ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico, tomando como inspiração a experiência italiana de desinstitucionalização e crítica radical (BRASIL, 2005). Em 1987, em Bauru, São Paulo, acontece o II Congresso Nacional do MTSM, que estabelece o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Naquele mesmo ano, o primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) é instalado em São Paulo. Já o Rio de Janeiro sedia a I Conferência Nacional de Saúde Mental (BRASIL, 2005). Em 1989, inicia-se a experiência de Santos, a partir da intervenção da Secretaria Municipal de Saúde na Casa de Saúde Anchieta, que teve repercussão nacional e provocou a necessidade de uma rede de cuidados. Foram implantados Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) com atendimento 24 horas, cooperativas, residências para egressos de internações e associações (BRASIL, 2005). Ao longo dos anos 1990, o crescimento da rede de atenção psicossocial é descontínuo; novas normatizações que regulamentavam os serviços de atenção diária foram instituídas, mas sem linha de financiamento específico. Ao final daquele período, havia 208 CAPS no Brasil, mas 93% dos recursos do Ministério da Saúde para a Saúde Mental era destinados aos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2005). A partir da Lei nº 10.216/2001, foram criadas linhas específicas de financiamento para os serviços abertos e substitutivos e mecanismos para fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos. A rede de atenção diária é impulsionada, e o processo de desinstitucionalização é alavancado, com o Programa De Volta pra Casa. Foi criada uma política de Recursos Humanos específica para a Saúde Mental, assim como uma política voltada à redução de danos causados pelo álcool e por outras drogas (BRASIL, 2005). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 8 Aos poucos, vai se consolidando a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), uma rede de saúde mental integrada, articulada e efetiva nos diferentes pontos de atenção para atender as pessoas em sofrimento e/ou com demandas decorrentes dos transtornos mentais e/ou do consumo de álcool, crack e outras drogas. Essa rede tem como diretrizes a autonomia, a equidade, o acesso e a qualidade, a base territorial e comunitária, as ações intersetoriais e a lógica do cuidado centrado nas pessoas (BRASIL, 2005). Os objetivos da RAPS incluem: ampliar o acesso à atenção psicossocial da população em geral; e promover a vinculação das pessoas em sofrimento/transtornos mentais e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas e suas famílias aos pontos de atenção; bem como garantir a articulação e integração dos pontos de atenção das redes de saúde no território, qualificando o cuidado por meio do acolhimento, do acompanhamento contínuo e da atenção às urgências (BRASIL, 2011). Tal rede é composta de diversos pontos de atenção; porém, para a saúde mental, a atenção psicossocial estratégica tem fundamental importância, sendo composta pelos CAPSs nas suas diferentes modalidades (BRASIL, 2011). Os CAPSs devem ser substitutivos ao hospital (e não complementares), atuando como porta de entrada e ordenadores da rede do território, oferecendo: suporte à saúde mental na atenção básica; atendimento clínico em regime de atenção diária; ações intersetoriais; acolhimento e atenção à crise; e atenção no território adscrito (BRASIL, 2011). A atenção à crise é um dos aspectos mais difíceis e estratégicos. No modo de atenção psicossocial, a crise é vista enquanto processo social complexo, diferente do modelo clássico da Psiquiatria, no qual seria uma disfunção exclusivamente em decorrência da doença. Portanto, são necessários serviços de atenção psicossocial que cuidem de todos os envolvidos, estabelecendo e fortalecendo vínculos afetivos e profissionais. Eles devem ter estruturas e modos de funcionamento flexíveis e funcionar de maneira articulada na RAPS, compondo um conjunto vivo e concreto de referências capazes de acolher as pessoas em sofrimento mental (BRASIL, 2005). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 9 A rede,no entanto, vai além do conjunto de serviços existentes em um município. Deve atuar em articulação permanente com outras associações, instituições, cooperativas e variados espaços da cidade, e não só com equipamentos de saúde. Deve atuar na base comunitária, com foco no território – o qual não se reduz ao espaço geográfico (BRASIL, 2005). Os serviços devem atuar na construção de alianças sociais que possam participar solidariamente da invenção de estratégias de atenção psicossocial, atuando junto com as pessoas, instituições, redes e cenários nos quais se dão a vida comunitária. É fundamental que trabalhem com os saberes e as potencialidades existentes para a construção coletiva de soluções. O território é um conceito organizador da rede de saúde mental que deve orientar as ações dos seus equipamentos (BRASIL, 2005). Vinculado ao conceito de território encontra-se o de intersetorialidade, que se expressa em estratégias que perpassem vários setores sociais. Tais conceitos podem ser ampliados pelo institucionalismo, vertente que considera a sociedade como uma rede, um tecido de instituições que se interpenetram e articulam entre si, para regular a produção e reprodução da vida humana (BAREMBLITT, 1994). As instituições são lógicas, códigos transmitidos para regular a atividade humana, valorativamente. Podem ser leis, normas (enunciadas formalmente) ou regularidades de comportamentos, pautas não necessariamente escritas. Podemos citar como exemplos as instituições de regulamentação de parentesco, de educação e de divisão do trabalho humano, tanto técnica quanto social, esta se tratando da questão do prestígio de algumas profissões em relação a outras (BAREMBLITT, 1994). As organizações dão materialidade às instituições e podem ser constituídas por um conjunto de estabelecimentos – por exemplo, o Ministério da Educação e o da Saúde. São grandes ou pequenos conjuntos materiais que concretizam aquilo que é enunciado pelas instituições (BAREMBLITT, 1994). Já os estabelecimentos são unidades menores que integram uma organização – por exemplo, escolas, conventos, fábricas, clubes, quartéis. Incluem dispositivos técnicos, como maquinaria, instalações, arquivos e aparelhos, os chamados equipamentos (BAREMBLITT, 1994). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 10 O que dá dinamismo a isso tudo são os agentes, seres humanos que protagonizam práticas, as quais podem ser verbais, não verbais, discursivas ou não, práticas teóricas, práticas técnicas, entre outras. É nas ações que todo esse conjunto pode operar transformações na realidade (BAREMBLITT, 1994). Os conceitos instituído e instituinte constituem duas vertentes da instituição. É difícil situar o começo de várias instituições (como parentesco e religião, p. ex.), mas há como identificar movimentos, que tendem a operar transformações nas suas características (BAREMBLITT, 1994). As forças instituintes são de transformação ou fundação de uma instituição, e sua atividade gera como efeito o instituído. Este se materializa em normas constituídas, leis, pautas e padrões, para regular as atividades sociais. A vida em sociedade acontece na tensão entre instituído e instituinte (BAREMBLITT, 1994). Para que os instituídos sejam úteis, funcionais, devem estar acompanhando a vida social a fim de produzir novos instituídos, mais apropriados aos novos estados sociais. Instituído e instituinte não são opostos que não se misturam; ao contrário, o instituinte careceria de sentido se não se materializasse em instituídos. Tais conceitos nos ajudam a refletir e redirecionar as práticas de cuidado em saúde mental, no qual se inclui, primordialmente, o trabalho em equipe (BAREMBLITT, 1994). A necessidade do trabalho em equipe coloca a importância de se problematizar a formação em saúde e seus efeitos nas práticas a partir da Política Nacional de Humanização (PNH) (BRASIL, 2010). Os processos de produção de saúde muitas vezes compreendem rede de relações, assimetrias de saber/poder, lógicas de fragmentação entre saberes/práticas e a redução ao binômio queixa-conduta. Por isso, a PNH toma por base o princípio da integralidade para repensar a formação e as relações de trabalho, que devem pautar-se pelo funcionamento em Rede e pela não fragmentação da assistência, compreendendo a multiplicidade das práticas de cuidado e gestão. Um grande desafio a ser superado nas práticas é a separação entre quem planeja e pensa a ordenação da saúde (os gestores) e quem executa (os que fazem/cuidam). A formação é uma instituição que produz verdades, objetos-saberes e modos de subjetivação. Pode se dar pela transmissão de conhecimentos ou potência disruptiva, CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 11 criadora, problematizadora. Não há fórmula pronta nas práticas em saúde; portanto, a formação que se dá somente pela via da transmissão não potencializa as ações. A PNH aposta na atitude transdisciplinar, aquela atrelada ao cotidiano de práticas materializadas na relação entre os sujeitos que constroem os modos de acolher, cuidar, escutar, que compartilham saberes e modos distintos de estar na vida. Uma atitude metodológica que tem por base a variabilidade e a imprevisibilidade que permeia a vida. Para isso, é necessário investir em uma formação que parta das experiências concretas, e não de modelos ideais e desvinculados das necessidades de saúde da população local (BRASIL, 2010). Na prática, isso se dá pela análise do processo de trabalho: o que foi feito, como foi feito, o que deixou de fazer, o que foi desfeito e o que não conseguiu fazer, ou seja, uma prática de formação que não busca constatar/observar, e sim interferir, desnaturalizar o que parece confortável. Trata-se de um exercício de problematização de si e do mundo, que toma o conhecimento não como um dado a priori a ser descoberto, mas como uma ação que, em um mesmo movimento, produz sujeito e objeto. Tal concepção visa abalar as rígidas fronteiras construídas pelas disciplinas, com seus conjuntos de saberes e objetos predeterminados, colocando em questão da neutralidade científica na saúde mental (BRASIL, 2010). Existem diferentes esforços de flexibilização de fronteiras, como a multi, a inter e a transdisciplinaridade. Na multidisciplinaridade, as disciplinas se somam para dar conta de um objeto que exigiria diferentes olhares, pela sua natureza multifacetada. Na interdisciplinaridade, cria-se uma zona de interseção entre as disciplinas, na qual haveria um objeto específico, alvo da ação de conhecimento. Ambas têm como efeito a manutenção das fronteiras de saberes, objetos e sujeitos. Já a transdisciplinaridade é uma atitude metodológica que visa desestabilizar a dicotomia sujeito/objeto, bem como a unidade das disciplinas e os especialismos, colocando que sujeito e objeto não são dados a priori, e sim efeitos emergentes de um plano de constituição heterogêneo (PASSOS; BARROS, 2000). Esse plano de constituição inclui componentes teóricos, tecnológicos, estéticos, éticos, econômicos, políticos, afetivos, entre vários outros. Trata-se de uma atitude de não aceitação de um conhecimento que apenas desvelaria a realidade do seu objeto, visto CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 12 que não estamos imunes ao que conhecemos – efeito de retroação –, mas nos constituímos no ato de conhecer enquanto sujeitos do conhecimento (PASSOS; BARROS, 2000). Sendo o sofrimento psíquico um fenômeno complexo, seu cuidado não pode resumir- se apenas à sua disciplina, nem a uma equipe de serviço de saúde mental. Portanto, é necessária a criação de redes que extrapolem o âmbito dos serviços, sejam eles de saúde ou não. Trabalhar o cuidado na perspectiva integral significa acolher os sujeitos em todas as dimensões que o atravessam (HECKERT; NEVES, 2007). A integralidade é um princípio do Sistema Único de Saúde (SUS) que tem por base a concepção deque a saúde não se resume à ausência de doença; é um princípio amplo e complexo, que se define pelo funcionamento em conjunto articulado de ações e serviços, preventivos, curativos, individuais e coletivos, mobilizados caso a caso e em todos os níveis de complexidade do sistema. Tal príncípio traz a crítica da cisão entre ações preventivas e curativas, considerando a saúde e seus diversos determinantes, tratando o sujeito como um todo, em suas relações (HECKERT; NEVES, 2007). Tem o acolhimento como seu componente fundamental, um compromisso ético- político de estabelecer relação de responsabilidade de confiança entre profissionais e usuários. Tal prática se materializa no reconhecimento da legitimidade do que o outro traz como singular necessidade de saúde. Por meio de diálogos, trocas, transversalização dos saberes e análise dos processos de trabalho, visa potencializar a criação e o fortalecimento de vínculos, utilizando-se de uma escuta qualificada que acolha as diferenças e inclua o paciente e suas relações como corresponsáveis pelo cuidado (HECKERT; NEVES, 2007). Falando em corresponsabilidade, é fundamental que as famílias dos pacientes sejam vistas e tratadas como protagonistas do tratamento dos usuários. Trabalhar com famílias requer que coloquemos em análise nossas representações acerca do que é família, para, a partir disso, não querer adequar o outro ao nosso modelo. Cada família tem suas histórias, vivências, sensibilidades, sendo a família uma criação humana e mutável no tempo, na história e na cultura; portanto, não natural. CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 13 O ser humano é essencialmente social, constitui-se na relação com o outro e tem na família seu primeiro grupo social de referência, a qual também está em uma rede de relações que a extrapola. Não se restringe aos laços sanguíneos; portanto, é importante compreender as transformações e concepções que atravessam os arranjos familiares ao longo do tempo. A história dos diferentes arranjos familiares não é linear nem homogênea ou contínua. É descontínua, pois existem várias estruturas distintas e complexas que não podem ser correlacionadas a uma só variável, seja a modernização, seja o patriarcado, o capitalismo ou qualquer outra (BRUSCHINI, 2000). Muitas são as contribuições dos diferentes campos do saber, desde a Sociologia à Antropologia e Psicologia, passando pelas perspectivas do Alienismo e da Antipsiquiatria e chegando às reflexões sobre a constituição da família brasileira. A Antropologia teve grande contribuição no estudo das relações familiares, pois estudou diversos grupos e possibilitou movimentos de desnaturalização e desuniversalização da família, pela comparação entre sociedades diferentes (BRUSCHINI, 2000). O modelo patriarcal da família brasileira tem origem nos padrões culturais portugueses, que gradativamente foram subjugando as formas familiares de indígenas e escravos. Gilberto Freyre vai colocar que, nos séculos XVI e XVII, a família patriarcal extensa era composta pelo núcleo conjugal, sua prole legítima, parentes, afilhados, escravos e, por vezes, concubinas e bastardos – constituição essa dissociada de prazer sexual e/ou afeto (MELMAN, 1999). No entanto, historiadores contemporâneos contestam essa dominância do modelo patriarcal, admitindo a coexistência de outros arranjos, principalmente através das diferenças sociais e econômicas. A família burguesa não é um modelo natural; ela se consolida no século XVIII enquanto nuclear, conjugal, privada e sexualmente assimétrica (MELMAN, 1999). A família foi então se constituindo, gradativamente, como lugar de afeto e de atenção à infância enquanto categoria social. Atualmente, diversas são as composições familiares, ainda que mantenham alguns traços, como a privacidade, que até mesmo pode ser problematizada se pegarmos um corte de classe social, por exemplo. CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 14 Várias composições podem ser consideradas famílias, tais como as homoafetivas, monoparentais, sem filhos, com animais de estimação, sem conjugalidade, de pais e filhos, entre pessoas sem laços cosanguíneos, entre muitas combinações possíveis. Cada vez mais os arranjos se complexificam, sendo preciso considerar toda essa complexidade na atenção às famílias na saúde mental. Muitos espaços institucionais ainda organizam a atenção à família em torno do usuário- problema. As ações tendem a ser parciais, pois não consideram o conjunto em que ele está inserido, o qual inclui a família. Em geral, as políticas públicas, em sua execução, veem a família como solução, e não como algo que também precisa de atenção. No entanto, a intervenção profissional fragmentada conduz a muitos encaminhamentos, para atender demandas de uma mesma estrutura. Logo, a família deve ser considerada como totalidade, em permanente processo de mudança, seja pelo desenvolvimento dos seus membros ou pelo contexto social mais amplo. Essa perspectiva implica mudança de eixo da atenção profissional, que deve auxiliar a família a compreender sua dinâmica (MELMAN, 1999). A família, quando busca ajuda institucional, já esgotou seus recursos para resolver sozinha a situação problema. Entretanto, quando a família não o faz, é preciso desenvolver estratégias para acessá-la. Sendo assim, utilizar a família como saída para o problema é uma ilusão. Não devemos procurar a origem do transtorno mental utilizando modelos de causa-efeito. Até porque os familiares muitas vezes fazem o movimento de buscar a causa em erros do passado. Isso gera intenso sofrimento por culpa que não deve ser reforçado pelos profissionais de saúde mental (MELMAN, 1999). Deve-se recuperar o trabalho em suas múltiplas dimensões, seguindo as pistas para aliviar o sofrimento que a loucura imprime no paciente e em sua família. É necessário desenvolver estratégias de envolvimento da família, acolhendo o sofrimento por meio do estímulo à reflexão, promovendo a troca de experiências e os mecanismos de ajuda mútua, bem como favorecendo a elaboração das vivências e dos conflitos (MELMAN, 1999). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 15 Algumas vezes, a proposta de trabalho deverá ir além da família, e nem sempre fará sentido fortalecer os laços familiares de uma estrutura insustentável, que pode estar sufocando seus membros. Não se deve partir do pressuposto de que a família é sempre o lugar da doença nem intervir com a perspectiva de se reinserir a qualquer custo o paciente em seu grupo familiar (MELMAN, 1999). É preciso ter no horizonte a possibilidade concreta de os familiares, após encontrarem algumas respostas e sentidos para as dificuldades, tornarem-se protagonistas, participando ativamente na definição e implementação das práticas em saúde mental. Vários espaços de acolhimento da família têm sido produzidos nos serviços substitutivos, em especial nos CAPSs, tais como: grupos terapêuticos familiares, atendimento por qualquer profissional do serviço (não só os psicólogos e psiquiatras), oficinas terapêuticas, visitas domiciliares e busca ativa de familiares pouco presentes. É necessário acolher e escutar para a família se fortalecer e poder tornar-se lugar de produção/invenção de projetos. Para isso, inicialmente a família precisa ter o serviço de saúde mental substitutivo como referência para o cuidado, mesmo que consigamos acessá-la por outros serviços aos quais ela já está vinculada, ou junto com eles. É importante não tomar a família como núcleo isolado e idealizado. Portanto, é preciso que o trabalho se dê movimentando-se pela rede. A saúde mental não está dissociada da saúde em geral; por isso, é importante saber reconhecer as demandas de saúde mental presentes nas queixas que os pacientes relatam ao acessarem os serviços de saúde, em especial na Atenção Básica. Esta tem como princípio possibilitar o acesso das pessoas aoSistema de Saúde, inclusive das que demandam cuidados em saúde mental. Esse ponto de atenção é composto por: Unidade de Saúde da Família (USF) ou Unidade Básica de Saúde (UBS); Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF); Consultório na Rua; apoio aos serviços do componente Atenção Residencial em caráter transitório; e Centros de convivência e cultura (BRASIL, 2013). A Atenção Básica deve atuar em elevado grau de descentralização e capilaridade, sendo resolutiva, identificando riscos, necessidades e demandas em saúde, produzindo intervenções clínicas e sanitariamente efetivas. A atuação deve contemplar a CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 16 coordenação e o cuidado, elaborando e acompanhando projetos terapêuticos singulares, bem como acompanhando e organizando o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção da rede de saúde, intersetoriais, públicas, comunitárias e sociais (BRASIL, 2013). A Saúde da Família é a estratégia prioritária para a expansão e consolidação da Atenção Básica, tendo nos NASFs a base para ampliação da abrangência, escopo e resolutividade na Atenção Básica. Esses núcleos devem oferecer auxílio no aumento da capacidade de análise e intervenção, em termos clínicos e sanitários, por meio de ações como: discussão de casos, atendimento conjunto ou não, interconsulta, construção conjunta de projetos terapêuticos, educação permanente, intervenções no território, ações intersetoriais, ações de prevenção e promoção e discussão do processo de trabalho das equipes (BRASIL, 2013). É fundamental a criação e manutenção de espaços permanentes e periódicos de encontros de discussão entre as equipes dos serviços de Saúde Mental e da Atenção Básica, bem como dos outros serviços envolvidos no cuidado. Portanto, os dispositivos que os CAPSs e a Atenção Básica constroem para o tratamento não devem ser praticados de modo rígido, e sim acompanhando os fluxos do território. Desconstruir a lógica hospitalocêntrica é não só construir novos serviços, mas também promover novas práticas e instituições que questionem as formas de repressão, opressão e exclusão do usuário. As mudanças não são bruscas, e sim processuais, a partir da construção sócio-histórica, em um contexto que lhes dá um ritmo culturalmente possível, muitas vezes lento (VIEIRA, 2004). Os estilos de gestão e atendimento dos CAPSs estão influenciados por traços culturais da administração brasileira: concentração de poder, personalismo, postura de espectador e o evitar de conflitos. Tais aspectos tendem a facilitar a prática de valores nem sempre democráticos e a reprodução de uma lógica corporativista. No entanto, a consciência das contradições sociais e a possibilidade concreta de desconstrução institucional podem abrir caminhos para novas práticas de atendimento, na perspectiva da autopoiesis, o que significa a possibilidade de criação e invenção institucional continuada e oposta ao modo de funcionamento da instituição total (VIEIRA, 2004). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 17 É importante problematizar os manuais diagnósticos no atendimento em saúde mental, a partir do questionamento do que é uma patologia mental e o que a constitui. O diagnóstico não responde a essa pergunta, pois ele insere manifestações em tipologias, para orientar intervenções. Essas tipologias são construídas com base em critérios, os quais emergem do conjunto de valores que prevalecem na sociedade em determinado momento histórico. O conceito de normatividade, de acordo com Canguilhem (2007), tem por base a concepção de que o processo saúde–adoecimento é intrínseco à vida; a perda ou restrição dessa capacidade seria a doença. A cura seria expandir a normatividade que foi restringida pela doença. Tal concepção é oposta ao conceito de normalidade, segundo o qual há modos de existência legitimados como melhores, sendo necessária a adequação do sujeito ao que é eleito como normal. Foucault (1987) coloca que no século XVIII culmina, por meio das disciplinas, o poder na Norma. Tal construção se afirma a partir da transformação de uma regularidade observada em um regulamento proposto. Assim, afirma-se como natural e opera toda a gradação das diferenças individuais, por meio de um poder de regulamentação que obriga a homogeneidade, e individualiza, medindo assim os desvios, tornando úteis as diferenças e ajustando-as umas às outras. À terapêutica baseada na norma interessa não só a cura, como também a produção de modelos de existência e a regência de relações físicas e morais do indivíduo e da sociedade. O médico passa a não apenas descrever, mas também comparar o que vê com o que deveria ser. Na doença mental, a moralidade é fundamental para a nosografia: os valores morais a julgam e a delimitam. Ao final do século XVIII, a medicina do corpo tentará impor às questões mentais a sua racionalidade. A loucura é tomada de um ponto de vista naturalizante, sendo colocadas as causas no sujeito doente, na história individual e em sua constituição. No entanto, na prática da saúde mental, os profissionais devem aceitar a diferença para além dos ideais normalizadores e utilizar o diagnóstico como um norteador, e não como um fechamento do modo de existência do sujeito a ele, o que produz assujeitamento. CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 18 A Clínica que se resume ao diagnóstico e aos atendimentos no consultório não dá conta da complexidade da loucura e das necessidades da Reforma. As necessidades de saúde apresentadas pelos sujeitos nos convocam a repensar a Clínica, ampliando- a para além da fragmentação/hierarquização dos saberes e das intervenções focadas na eliminação dos sinais e sintomas (TENÓRIO, 2001). O conceito de Clínica Ampliada entra como diretriz da PNH em 2003, enquanto ferramenta teórica e prática com finalidade de contribuir para uma abordagem clínica do sofrimento, considerando a singularidade do sujeito e a complexidade do processo saúde/doença, visando enfrentar a fragmentação do conhecimento e das ações, buscando equilíbrio entre danos e benefícios gerados nas práticas de saúde (BRASIL, 2009). É uma ferramenta que enfoca o sujeito, a doença, a família e o contexto social, com vistas a aumentar a autonomia do sujeito, da família e da comunidade na resolução dos problemas, por meio da integração de equipe multiprofissional, adscrição da clientela e construção de vínculo na produção de um projeto de cuidado (BRASIL, 2009). Tem a integralidade como objetivo, compreensão ampliada do processo saúde/doença, evitando o privilégio de algum conhecimento específico. Assim, a abordagem integral ultrapassa a questão do acesso aos serviços, levando em conta as transformações vividas ao longo do tempo, como a emergência do consumismo, a ampliação da miséria, da degradação social e das formas perversas de inserção de algumas parcelas da população no mercado de trabalho (BRASIL, 2008). A Clínica Ampliada visa evitar a dependência de medicamentos e aumentar o interesse e gosto por outras coisas e novos projetos também. A doença não pode ser a única preocupação da vida; esta é mais ampla do que os meios para torná-la ou mantê-la saudável (BRASIL, 2009). Para a efetivação das práticas de atenção à saúde na perspectiva da integralidade, faz-se necessária a construção de novos padrões de relacionamento entre os profissionais de saúde e os usuários dos serviços. É preciso investir na mudança de estrutura gerencial e assistencial dos serviços, para buscar a responsabilização e a CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 19 construção do vínculo terapêutico. A equipe de referência e o apoio matricial são dois arranjos organizacionais que apresentam essas características de tranversalidade, que possibilitam a ampliação do grau de comunicação entre os atores envolvidos na ação de cuidado (BRASIL, 2004). A organização por equipes de referência traz um novosistema de relação entre profissional e usuário: por exemplo, em uma unidade de saúde mental são organizadas equipes de referência multiprofissionais com caráter transdisciplinar (em geral, nesse caso, psicólogo, psiquiatra, enfermeiro, técnico de enfermagem, assistente social, oficineiro e terapeuta ocupacional), que se responsabilizam pela saúde de um número de pacientes inscritos, segundo a capacidade de atendimento e gravidade dos casos (BRASIL, 2004). Podem também se organizar a partir de uma distribuição territorial. Nesse caso, os usuários de um território são divididos em grupos, sob responsabilidade de determinada equipe, chamada Equipe de Referência Territorial, cuja composição varia de acordo com o objetivo e a característica do serviço (CAPSs, ambulatórios, hospitais etc.), sendo que cada Equipe de Referência cuida de todos os aspectos da saúde do paciente. Assim, a diferença profissional passa a ser positivada, com a produção de vínculos, olhares e caminhos que não seriam encontrados isoladamente (BRASIL, 2004). O apoio matricial complementa o funcionamento das Equipes de Referência. Uma vez que a Equipe de Referência é responsável por seus pacientes, ela não simplesmente encaminha nem abre mão deles para outro serviço, ela pede apoio aos serviços especializados ou especialistas isolados e/ou a outros profissionais que lidam com o paciente (BRASIL, 2004). Assim, os serviços que dão apoio passam a ter dois clientes sob sua responsabilidade: os usuários do serviço para o qual ele é referência e o próprio serviço. Os pacientes são então tratados por ambas as equipes. Os serviços especializados ajudam as Equipes de Referência a incorporar conhecimentos para lidar com casos mais simples (BRASIL, 2004). Dentre as diversas possibilidades de atuação em apoio matricial, podemos citar: seminários para debate de alguns aspectos relevantes no momento do território; CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 20 atendimentos conjuntos; disponibilização de contatos para situações emergenciais; e reuniões para discussão de casos. O próprio serviço de referência pode trabalhar internamente com equipes de referência e apoio matricial (BRASIL, 2004). Tais medidas ajudam a superar a velha ideia de encaminhamento, que ocasiona fragmentação do cuidado, a qual era baseada na referência e contrarreferência, que gerava encaminhamentos diversos e desnecessários, burocratização e desgaste, não sendo resolutiva na maioria das vezes (BRASIL, 2004). A equipe de referência pede apoio não só aos especialistas, mas também a profissionais que estão mais próximos do usuário e, por isso, são capazes de enxergar outros aspectos da sua vida (inserção social, situação afetiva, laborativa, outros problemas de saúde etc.). O conhecimento da clientela favorece a construção de vínculos terapêuticos e a definição de responsabilidades entre as equipes (BRASIL, 2004). Não é tarefa fácil, diante da precarização dos serviços e da lógica individualista, que é hegemônica na nossa sociedade. Ela envolve avanços e retrocessos, sendo um processo de permanente desconstrução e reconstrução de modos relacionais. Portanto, é fundamental a criação de redes de apoio entre profissionais, para que percebam suas fragilidades e sentimentos ao lidarem com os usuários que atendem (BRASIL, 2004). Essas redes de apoio são possibilitadas por espaços de discussão e reflexão, por meio dos quais se promove a revisão dos próprios valores e conceitos, bem como os da sociedade. A gestão deve possibilitar espaço na agenda dos profissionais para isso acontecer. Assim se amplia o poder de decisão dos profissionais, potencializando-se a humanização da atenção e gestão a partir do equilíbrio nas relações de poder entre trabalhadores, gestão e usuários (BRASIL, 2008). O Projeto Terapêutico Singular (PTS) é uma variação da discussão de caso clínico. Na Saúde Mental, foi desenvolvido como forma de propiciar uma atuação integrada da equipe, valorizando no tratamento outros aspectos além do diagnóstico e da medicação. Resulta da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar, podendo CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 21 lançar mão do apoio matricial, construindo um conjunto de propostas terapêuticas articuladas para um sujeito ou uma coletividade (BRASIL, 2008). A proposta do PTS parte da concepção de que é necessário o paciente se corresponsabilizar por seu tratamento. Portanto, não é possível desenhá-lo sem a participação ativa do paciente. Conceitos como autonomia, singularidade e protagonismo são indispensáveis à construção coletiva de PTSs. É o paciente que “puxa” o PTS, e não os profissionais; estes devem sempre estar atentos aos movimentos do paciente, o que eles indicam, para onde apontam. É claro que isso não é fácil. Por exemplo, deve-se ter cuidado com a questão do diagnóstico, que pode fortalecer uma situação de discriminação social, aumentando o sofrimento e dificultando o tratamento. Seus efeitos dependem do manejo e das circunstâncias em que é produzido e tratado com o paciente. Na construção do PTS está colocado o desafio de equilibrar o combate à doença com a produção de vida. É preciso ajudar o paciente a reconstruir e respeitar os motivos que ocasionaram seu adoecimento, buscando com ele as correlações que estabelece entre o que sente e a sua vida, as suas relações e afetos. Portanto, é fundamental perguntar como o usuário se sente quando tem os sintomas e por que ele acredita que adoeceu. A doença deve ser compreendida e correlacionada com a vida, evitando-se assim que se torne não somente um problema do serviço de saúde, mas também do sujeito adoecido. O relacionamento terapêutico deve basear-se na pactuação; caso contrário, promove reações de “afirmação de autonomia” e resistência ao tratamento, que, se não forem redirecionadas, criam um neurótico circulo vicioso. Tais reações impossibilitam a criação do vínculo de confiança e podem despertar afetos desfavoráveis à corresponsabilização. Ao pactuar o tratamento com seus pacientes, os profissionais devem considerar que existem forças internas, como os desejos e as forças externas, como a cultura, que define papéis sociais e hábitos de vida (BRASIL, 2008). A elaboração do PTS envolve 4 movimentos: 1) definição de hipóteses diagnósticas; 2) definição de metas em curto, médio e longo prazos; CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 22 3) divisão de responsabilidades; 4) reavaliação. A anamnese ampliada é uma prática privilegiada para o delineamento do PTS. As reuniões de Projeto Terapêutico não acrescentariam nada caso todos os profissionais abordassem do mesmo jeito e fizessem as mesmas perguntas aos pacientes. Então, é preciso fazer as perguntas da anamnese tradicional e dar espaço às ideias e palavras do usuário (BRASIL, 2009). À exceção de urgências ou dúvidas quanto a um diagnóstico orgânico, não se deve direcionar demais as perguntas nem duvidar daquilo que a teoria não explica. Uma história clínica mais completa situa os sintomas na vida do paciente e lhe dá a possibilidade de algum grau de análise sobre a própria situação. Desse modo, o profissional pode perceber que muitos determinantes do problema não serão resolvidos com ações pontuais e isoladas (BRASIL, 2009). A prática da anamnese ampliada ajuda a entender as redes de causalidade que o usuário atribui ao adoecimento e a lidar com as situações de modo menos adoecedor. Assim, segue este caminho: 1. buscar as singularidades, perguntando sobre medos, raivas, manias, temperamento, sono e sonhos; 2. avaliar se há negação da doença, capacidade de autonomia e possíveis ganhos secundários; 3. procurar perceber a contratransferência, os limites e as possibilidades que esses sentimentos trazem à relação terapêutica; e 4. analisar se as intenções do profissional estão de acordo com a demanda do usuário (BRASIL,2009). É fundamental verificar intenções e linhas de força na relação, para construir um caminho comum e o necessário equilíbrio de poderes entre os profissionais e o usuário. Para tal, é preciso conhecer os projetos e desejos do usuário, bem como suas atividades de lazer do presente e do passado, pois a presença ou ausência de CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 23 atividades prazerosas é indicativa da situação dele, apontando caminhos e/ou aprofundando vínculos e compreensão (BRASIL, 2008). É importante também lembrar que questões relativas às condições de vida (moradia, alimentação, saneamento, renda etc.) e à inserção em grupos poderosos (tais como religião, tráfico, trabalho) com frequência estão entre os determinantes e são fundamentais para o Projeto, merecendo, portanto, especial atenção (BRASIL, 2008). Deve-se encarar a reunião de equipe como um momento potente para a construção do Projeto Terapêutico. No entanto, ainda hoje é possível perceber a existência de formas tradicionais de gestão que apresentam visão restrita de como deve ser conduzida uma reunião. A reunião deve ser um espaço não apenas de distribuição de tarefas, mas também de diálogo, com clima favorável à expressão de opinião. A produção de um clima fraterno associado à objetividade é um aprendizado, pois vivemos em uma sociedade autoritária, em que alguns falam enquanto outros se calam e obedecem (BRASIL, 2009). As discussões para construção e acompanhamento dos Projetos são oportunidades para valorização dos trabalhadores, possibitando a alternância de relevância dos diferentes saberes e criatividades, os quais variam no tempo, de acordo com as necessidades de cada usuário, evidenciando-se assim a interdependência entre todos na equipe (BRASIL, 2009). A construção do Projeto é momento privilegiado para a equipe articular os diversos recursos de intervenção de que dispõe, percebendo que em cada momento alguns terão mais relevância do que outros. À medida que a equipe consegue perceber seus limites e dificuldades, pode pedir apoio, recorrendo à prática do matriciamento (BRASIL, 2009). O matriciamento pode constituir-se em um excelente espaço de formação permanente, visto que possibilita a troca e o aprendizado também para os apoiadores, que experimentarão a aplicação de seus saberes em uma situação complexa, recheada de incertezas. Também podem aprender sobre as vivências do território com os matriciados, quando estes estão em um lugar de maior proximidade e vínculo com o paciente (BRASIL, 2009). CLÍNICA DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL 24 Para que tudo isso se materialize, é preciso que haja um clima de liberdade para pensar “o novo”. O peso da hierarquia pode impedir o diálogo e a expressão; portanto, os gestores precisam compreender a importância da comunicação transversal, favorecendo a transdisciplinaridade, a liberdade de expressão dos saberes, ideias e opiniões, as trocas e os diálogos, bem como a tomada de decisão coletiva, que inclui agregar o paciente, a família e a comunidade como protagonistas do cuidado e da construção dos Projetos Terapêuticos de modo singularizado. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2007. BAREMBLITT, G. Sociedades e instituições. In: Compêndio de análise institucional e outras correntes – teoria e prática. 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