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Aula 1 - Curso de Filosofia Juridica

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Propedêutica ao 
 
Estudo de 
 
Filosofia 
 
Jurídica 
Prof. Marco Antônio Correia Bomfim 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
SÓCRATES E O SABER ÉTICO ENQUANTO PARADIGMA DA VIDA 
INTELECTUAL 
AULA 1 
 
“[...] A vida de estudo é austera e impõe pesadas obrigações. Ela traz compensações, por sinal generosas; 
mas ela exige um investimento à altura de poucos. Os atletas da inteligência, tal como os do esporte, devem 
prever as privações, os longos treinos e uma tenacidade às vezes sobre-humana. É preciso entregar-se de 
todo o coração para que a verdade se entregue. A verdade só está a serviço de seus escravos.” 
 A. – D. Sertillanges, A vida intelectual 
 
1. INTRODUÇÃO 
 
O intuito almejado nesta primeira aula é apresentar a formação do ser 
humano como uma atividade necessária e permanente. A mesma enquanto 
educação não pode deixar de ser uma Paidéia (uma formação integral do ser 
humano como pensavam os gregos e terá desenvolvimento no Trivium e 
Quadrivium da era cristã)1. Portanto, não pode nem deve se limitar aos ditames 
de uma época onde a massificação e coisificação do ser humano se 
apresentam como características marcantes (visão reducionista hodierna), 
onde a alienação e portanto, a inversão do foco principal da educação (paidéia 
homem como um todo alma e corpo) reduz o homem a mera coisa que produz, 
consome, busca prazer e poder (ideologias capitalista e comuno-socialistas)2. 
Neste sentido a personagem que iremos apresentar tem um grande 
sentido e valor simbólico enquanto cidadão ateniense e paradigma de filósofo, 
vida intelectual, etc.. 
 
2. SÓCRATES E A EDUCAÇÃO COMO UM PROCESSO DE AUTO-
CONHECIMENTO. OU, CIÊNCIA E VIRTUDE. 
 
 
1 Na Idade Média a metodologia de ensino foi designada por artes liberais: as três vias do Trivium que são 
relacionadas ao estudo da mente humana retórica, gramática e lógica e, os quatro caminhos para o estudo 
das coisas, matéria aritimética, música, geometria e astronomia. 
2 Os programas de reengenharia social desenvolvidos e introjetados nas sociedades ocidentais com o 
intuito de destruir as bases da educação clássica e transformar a educação em projetos de socialização 
para uma nova humanidade (valores morais, adequação intelectual e comportamental). A este respeito é 
só conferi o processo de formação e educação do homem e sua humanidade ao longo da história 
(educação clássica, Trivium, Quadrivium, Escolas Catedrais, Universidades, etc.) e os projetos 
desenvolvidos no século passado e em andamento (Agenda globalista das elites que buscam implantar 
uma Nova Ordem Mundial) de reengenharia comportamental. Um exemplo, dentre vários é o 
desenvolvido pela escola de Frankfurt, Antonio Gramsci (merece observação mais atenta em nosso país a 
partir da “pedagogia” de Paulo Freire, do sócio-construtivismo). 
Com Sócrates a reflexão ou o voltar-se para o sujeito adquire uma 
nuance de conhecimento direcionado para o recesso interior, singular e 
intransferível do agente ético. O que implica em dizer que este sujeito (portador 
do hábito e também agente) agora está inserido numa forma de relação de 
responsabilidade para com a realização do ethos. 
Nessa relação especificada pela responsabilidade se faz necessário 
então o agir sob a “justa medida”, o “justo meio” a fim de não incorrer nos 
excessos tão naturais quando se age por força dos impulsos ou por ignorância. 
Talvez não seja um equívoco dizer que é justamente aí que se tem origem a 
noção de consciência moral. 
Entretanto, diante dessa consciência moral vem a pergunta: o que 
convém? O que devo fazer? Pergunta esta que em Sócrates passa por uma 
compreensão primeira da essência do ser Homem, uma vez que todas as 
coisas que existem tendem a um fim, uma finalidade e no ser do ente homem 
isto se faz mais complexo, pois, o mesmo não está dado, feito é um ente por se 
fazer. Para tal, tem o mesmo o privilégio de possuir o logos e através deste, o 
dever constitutivo de des-velar a realidade, compreender os seus aspectos e 
por meio da luz da razão guiar a sua vida tanto em esfera particular como 
pública3. 
Para Sócrates o homem é a sua alma4, na medida em que é a sua 
alma que o distingue especificamente de qualquer outra coisa. A este respeito 
nos fala Giovanni Reale em sua História da Filosofia - Vol. I (1990, p. 88), 
acerca de um dos raciocínios fundamentais feitos por Sócrates para dizer o que 
é o homem, 
 
Uma coisa é o “instrumento” que se usa e outra é o “sujeito” que usa 
o instrumento. Ora, o homem usa o seu próprio corpo como um 
instrumento, o que significa que o sujeito, que é o homem, e o 
instrumento, que é o corpo, são coisas distintas. Assim, à pergunta 
“o que é o homem?”, não se pode responder que é o seu corpo, mas 
sim que é “aquilo que se serve do corpo”. Mas “o que se serve do 
corpo é a psyché, a alma (= inteligência)”, de modo que a conclusão 
é inevitável: ”A alma nos ordena conhecer aquele que nos adverte: 
conhece-te a ti mesmo.” 
 
 
3 Cf. os diálogos platônicos em especial, a obra: República. 
4 Para Sócrates a alma é a nossa razão e a sede de nossa atividade pensante e eticamente operante. 
O modo de atuar de Sócrates era bastante peculiar e por si só 
revelador. Isto se faz evidenciar na seguinte passagem da obra platônica, 
Apologia de Sócrates (PLATÃO, 1979, p. 26-27): 
 
Enquanto viver, não deixarei jamais de filosofar, de vos exortar a vós 
e de instruir quem quer que eu encontre, dizendo-lhe à minha 
maneira habitual: querido amigo, és um ateniense, um cidadão da 
maior e mais famosa cidade do mundo, pela sua sabedoria e pelo 
seu poder; e não te envergonhas de velar pela tua fortuna e pelo seu 
aumento constante, pelo teu prestígio e pela tua honra, sem em 
contrapartida te preocupares em nada com conheceres o bem e a 
verdade e com tornares a tua alma o melhor possível? E, se algum 
de vós duvidar disto e asseverar que com tal se preocupa, não o 
deixarei em paz nem seguirei tranquilamente o meu caminho, mas 
interrogá-lo-ei, examiná-lo-ei e refutá-lo-ei; e se me parecer que não 
tem qualquer Arete, mas que apenas a aparenta, invectivá-lo-ei, 
dizendo-lhe que sente o menor respeito pelo que há de mais 
respeitável e o respeito mais profundo pelo que menos respeito 
merece. E farei isto com os jovens e com os anciãos, com todos os 
que encontrar, com os de fora e com os de dentro; mas sobretudo 
com os homens desta cidade, pois são por origem os mais próximos 
de mim. Pois ficai sabendo que deus assim mo ordenou, e julgo que 
até agora não houve na nossa cidade nenhum bem maior para vós 
do que este serviço que presto a Deus. É que todos os meus passos 
se reduzem a andar por aí, persuadindo novos e velhos a não se 
preocuparem nem tanto nem em primeiro lugar com o seu corpo e 
com a sua fortuna, mas com a perfeição da sua alma. 
 
Aqui se está diante de um momento singular e original da forma como 
Sócrates filosofa, como o mesmo entende o papel da filosofia e do filósofo, 
como o mesmo analisa dialeticamente o homem, sua existência e a 
constituição do seu ser ou vir a ser do humano no ente homem (essência). 
De pronto o que se evidencia é que não estamos diante de um teórico, 
de um acadêmico, nem tampouco de um homem preocupado com seu papel 
(máscaras sociais) e os níveis de retórica que deve manipular e adequar a 
cada máscara (farsa socialmente aceitável). Mas de um homem maduro 
(spoudaios) que tem a plena consciência do que seja o conhecimento na vida 
dos indivíduos, da sociedade e do seu papel frente aos concidadãos e demais 
homens. Assim como, perante a pólis e acima de tudo ao Deus que o exortou 
para tal atividade. 
Torna-se perceptível na filosofia socrática que o homem não é visto 
apenas como entidade material, física como um ser histórico e culturalmente 
datado, por isso mesmo, há a repreensão/exortação com relaçãoà 
preocupação indevida com os bens materiais deixando de lado e até 
esquecendo-se de preocupação mais nobre e necessária, a qual é a sua alma5. 
Como um médico da civilização, o filósofo exorta os seus concidadãos 
à necessidade de cuidar da alma6, daquilo que ele entende como mais 
precioso no humano e que não é o seu corpo, mas sim o seu interior. 
Segundo Jaeger (1995), Sócrates define de forma mais concreta o 
cuidar da alma como um cuidado através do conhecimento do valor e da 
verdade (phronesis e aletheia). O mundo interior, a arete (virtude) de que nos 
fala Sócrates é um valor espiritual. Desta maneira servir a alma é servir a Deus, 
porque ela é espírito pensante e razão moral, e estes são os bens supremos do 
mundo. 
Deste modo torna-se importante saber que, 
 
Em Sócrates, aquelas expressões de aparência religiosa brotam da 
analogia entre a sua atuação e a do médico. É isto que dá ao seu 
conceito de alma o cunho especificamente grego. Dois fatores 
confluem na representação socrática do mundo interior como parte 
da “natureza” do Homem: o hábito multissecular do pensamento e os 
dotes mais íntimos do espírito helênico. [...] A alma de que Sócrates 
fala só pode ser compreendida com o acerto se é concebida em 
conjunto com o corpo, mas ambos como dois aspectos distintos da 
natureza humana. (JAEGER, p. 534, 1995) 
 
O pensamento Socrático não separa, nem tampouco opõe o psíquico 
ao físico, pois, ambos, corpo e alma fazem parte do cosmo. Elucidativa 
portanto, é a frase mens sana in corpore sano (mente sã em corpo são) para 
designar de forma correta o sentido do que fora acima exposto, uma vez que o 
próprio Sócrates não descuidava do corpo e ensinava aos amigos a manterem 
o corpo são por meio do endurecimento e alimentação apropriada. 
Se faz mister informar que para a cultura helênica a arete deve ser 
analisada através de uma analogia entre o corpo e a alma. Isto se evidencia 
por meio dos escritos, quando se observa que quase sempre as virtudes 
 
5 Sócrates assim como Jesus Cristo exortam o ser humano para a ordem da realidade que implica na 
compreensão e busca da verdade, que somente pode ser encontrada por um ser humano existencialmente 
comprometido e que não se deixe seduzir e corromper pelos espetáculos do aparente, da farsa, burla; 
pelos imperativos de uma alma rebaixada aos ditames dos desejos, vícios. 
6 Segundo Jaeger, a expressão “cuidar da alma” tem para nós um sentido especificamente cristão, porque 
se converteu em parte integrante desta religião. Isto se explica pelo fato de a concepção cristã coincidir 
com a socrática na idéia da Paidéia como o verdadeiro serviço de Deus e do cuidado da alma como 
verdadeira Paidéia. 
(aretai) da pólis grega estão associadas à bravura, ponderação, força interior, 
justiça, etc. (virtudes da alma). 
Os gregos falavam de virtude dos vários instrumentos, por exemplo: a 
“virtude” da faca, a qual seria cortar, a da cítara, que seria tocar, a do cão que 
seria ser um bom guardião, etc. Assim a virtude do homem deve ser pensada a 
partir daquilo que venha a fazer a sua alma ser de acordo com o que a sua 
natureza determina. Ou seja, boa e perfeita! Daí Sócrates dizer que é a ciência 
(conhecimento) este elemento e o seu contrário, o vício (ignorância) seria a 
privação de ciência. 
 
3. SÓCRATES, FUNDADOR DA CIÊNCIA MORAL. 
 
Deste modo é que vê Sócrates operar uma reviravolta no quadro dos 
valores até então em voga na cultura helênica. Uma vez que os “valores” se 
tornam valores (virtudes) na medida em que são usados como o conhecimento 
exige (em função da alma e da virtude). 
Daí então se poder falar que: status, riqueza, poder, beleza entre 
outros, não são valores em si, pois, valores ligados a coisas externas e, se 
utilizados de forma ignorante podem levar o indivíduo ou a sociedade a 
grandes males. 
Ao passo que os valores da alma governados pelo juízo e pela ciência, 
podem trazer benefícios para a vida humana. Conclui-se assim que para 
Sócrates, em si mesmos, nem uns nem outros (dos valores citados) têm valor. 
E conforme nos diz Werner Jaeger em sua Paidéia (1995, p. 535): 
 
A virtude física e a virtude espiritual não são, pela sua essência 
cósmica, mais do que a “simetria das partes” em cuja cooperação 
corpo e alma assentam. É a partir daqui que o conceito socrático do 
“bom”, o mais intraduzível e o mais exposto a equívocos de todos os 
seus conceitos, se diferencia do conceito análogo na ética moderna. 
Será mais inteligível para nós o seu sentido grego se em vez de 
dizermos “o bom” dissermos “o bem”, acepção que engloba 
simultaneamente a sua relação com quem o possui e com aquele 
para quem é bom. Para Sócrates, “o bom” é, sem dúvida, também 
aquilo que se faz ou quer fazer por causa de si próprio, mas ao 
mesmo tempo Sócrates reconhece nele o verdadeiramente útil, o 
salutar, e também, portanto, o que dá prazer e felicidade, uma vez 
que é ele que leva a natureza do Homem à realização do seu ser. 
 
Desta passagem se faz salutar extrair o elemento ético como 
caracterizador da natureza humana. Ou seja, ser dotado de razão é 
implicitamente ser convocado a contemplar o seu ser como uma simetria entre 
corpo e alma, uma ordem, um cosmion (um todo ordenado). Esta existência 
dotada de razão e assumida responsivamente enquanto tal é que torna 
possível o ethos. 
Para Sócrates, a formação da alma neste ethos é precisamente o 
caminho natural do homem, o caminho possibilitador da sua eudaimonia. 
Segundo o pensamento do filósofo grego, para o homem encontrar a harmonia 
com o seu ser, é necessário que o mesmo siga a lei por ele des-velada através 
do exame da sua alma. Pois, a verdade uma vez des-coberta não pode voltar a 
ser velada ou pelo menos, não deveria. 
 
4. SÓCRATES E A COMPREENSÃO QUE A VIDA INTELECTUAL É UMA 
RESPONSABILIDADE ÉTICA. OU, AMOR INCONDICIONAL À VERDADE. 
 
Tem-se aqui um princípio que se mostra de importância fundamental 
para a constituição da vida humana: verdade des-coberta é verdade que deve 
ser seguida. E no que tange ao ethos tem uma implicação de instância moral, 
visto que, não se pode brincar com experimentos, excentricidades, etc. quando 
a matéria “em jogo”, a ser “utilizada” é a vida humana. Infelizmente, tal princípio 
é encoberto e destituído de valor para o ethos contemporâneo (revolucionário). 
Infelizmente a historialidade moderna é um caminho percorrido por 
muitos intelectuais na contramão do exercício socrático (Paidéia dos antigos e 
medievos). Uma vez que se torna uma atividade incessante destes pelo amor 
próprio, pela busca incondicional pelo status, poder financeiro, poder político, 
enfim, pela corrupção da vida intelectual (o homem moderno/pós-moderno não 
tem a menor compreensão do que seja vocação intelectual). O que implica em 
dizer numa corrupção de toda e qualquer atividade intelectual e profissional 
que o ser humano venha desempenhar7. 
 
7 Investigar a quantidade de casos de posturas anti-éticas dos laboradores do Direito e o número crescente 
de investigações e punições de tais atos e seus propagadores. Infelizmente, tais ações e sujeitos trazem 
para as profissões e profissionais da área jurídica, perante a opinião pública máculas cada vez mais 
difíceis de serem apagadas. Visto que os atos ati-éticos são cada vez mais recorrentes e o número dos 
mesmos crescente. 
Em Sócrates, nos diz Jaeger, a experiência enquanto fonte dos valores 
humanos mais supremos deu existência àquele jeito de interioridade, 
característico dos últimos tempos da Antiguidade. E presenciamos assim o 
fenômeno, o qual é o de, a virtude e a felicidade deslocarem-se para a 
interioridade do homem (exercício de auto-conhecimento que implica em 
reflexão ética acerca dos seus atos como possuindo implicações perante 
outrem, terceiros. Portanto, sociais). 
Através deste apelo do filósofo para o cuidado da alma, têm-se uma 
nova guinada com relação à forma do homemcompreender e viver a vida. 
Porque a partir de agora a vida não é meramente um existir temporal, uma 
presa dos destinos, uma lástima dos sobreviventes e capricho dos deuses! 
Isso se torna evidente na vida e morte do próprio Sócrates, enquanto 
que o mesmo paga cônscia e deliberadamente o preço por buscar viver uma 
existência que almeja a autenticidade e singularidade (quando a alienação, 
fuga e até corrupção da existência é o mais comum). Mesmo que o seu entorno 
não tenha esta compreensão; que a coletividade não tenha ainda alcançado 
este patamar de consciência e/ou não a suporte e almeje. 
Porque diferente do que propagam os socialistas, coletivistas a 
realidade nem tampouco a verdade é apreendida pela coletividade, mas sim, 
por individualidades concretas que compõem a vida social. E a negação do 
indivíduo como sujeito intelectual capaz de compreender e dizer a verdade tem 
como consequência a destruição de toda e qualquer ação eticamente 
consciente (daí vivermos imersos numa crise moral jamais vivida em toda a 
história da humanidade). 
Não é por menos que em Apologia de Sócrates (1979), o filósofo 
declara que “uma vida sem exame não vale a pena ser vivida”. Está aqui mais 
uma singularidade apontada pela sua filosofia, a qual é a do pensar-agir. Ou 
seja, em Sócrates a vida é sempre existência em meio aos fenômenos, aos 
conflitos, à escolha diante dos opostos. Filosofar é um exercício constante de 
contemplação, ação e resgate da realidade. Nunca, pensamento abstrato, 
exercício intelectual de teorização, obtenção de um título ou aprovação formal 
do estado para você exercer um papel social (profissão). Nem tampouco 
arrogância prepotente gnóstica de criar novos seres humanos, sociedades, etc. 
ou seja, elocubração de mundos melhores possíveis8. 
Enfim, entre se ganhar ou se perder no meio de um emaranhado de 
símbolos e modelos sedutores gestados por mentes deslocadas do real, os 
quais podem levar os homens de um lado para o outro ao sabor dos modismos 
culturais de cada época. Ou das imposições maquiavélicas advindas de 
projetos de reengenharias socias e que são marca registrada e elemento 
denotador destes tempos hodiernos. 
O que a filosofia de Sócrates nos revela é que a existência enquanto 
busca de vida singular e autêntica exige de cada ser humano uma escolha que 
inevitavelmente deve passar pelo conhecimento, portanto, uma escolha 
deliberada por se apropriar literalmente do ser do ente homem. O que implica 
uma vivência ética. Desta maneira, a vida humana enquanto um existir 
historicamente situado é por essência uma vida ética. 
 
5. A VERDADE COMO FUNDAMENTO DO AGIR IMPLICA NO CULTIVO DE 
VALORES ÉTICOS. 
 
Não obstante o ser humano ser um ente dotado de razão, esta não lhe 
é tão natural como os frutos numa árvore, ou como a defesa de uma galinha 
aos seus filhotes, frente ao perigo iminente do ataque de uma águia. No 
homem, este logos precisa ser trabalhado, desenvolvido (o ser humano 
necessita ser educado para existir. Portanto para alcançar a plenitude/essência 
do seu ser). 
Então, mais uma vez se é levado a encontrar com esta personagem 
paradigmática chamada Sócrates, pois o foco central agora paira sobre a 
Paidéia e o filósofo se vê dialeticamente em meio a discussões travadas com 
os sofistas, não por menos, o ético retorna enquanto elemento preponderante, 
uma vez que os Sofistas, por meio de seus ensinamentos o deslocam. Já que 
os mesmos acirram a dúvida quanto à possibilidade de a educação triunfar. 
 
8 A história do século XX mostrou a barbárie que os regimes perpetrados por tais idealizações são capazes 
de trazer à humanidade. Infelizmente, tal espírito mefistofélico, tais elucubrações intelectualmente 
doentia ainda perduram e vigoram em pleno século XXI. 
Inevitavelmente se há de deparar com os seguintes questionamentos: 
por que se deve estudar? Até onde se deve estudar? Para que serve o estudo? 
Qual o objetivo da vida humana? Com estas perguntas, não se busca denotar 
aqui um aspecto contingencial de uma época, aquela vivida pelo 
indivíduo/cidadão Sócrates, mas sim, fazer vir à nossa reflexão a singularidade 
constitutiva do fenômeno da educação na formação do ser deste ente 
contemplador chamado Homem. Assunto este bastante atual e ainda 
problemático dentro de nossa cultura. 
Todavia, educação aqui não deve ser pensada como mera 
instrumentalização para alcance do poder político ou como é corrente em 
nossa cultura, a formação de especialistas para o mercado de trabalho9 – 
criando assim uma nova classe que muitas vezes se torna subutilizada e 
obsoleta, não ocupando os cargos para que fora “treinada”, pois o mercado não 
necessita da quantidade de mão de obra oferecida. Sem falar é claro, da 
qualidade questionada de boa parte desta mão-de-obra, fruto de interesses 
escusos, mesquinhos e muitas vezes hipócritas (econômicos, políticos, 
ideológicos). 
Nem tampouco, se identifica com as atividades que exigem menos da 
capacidade intelectiva e, diga-se de passagem é justamente do seio desta 
nova classe de “intelectuais orgânicos” que se tem gestado muitos dos 
pensamentos niilistas, socialistas, tecnicistas, progressistas, enfim, gnóstico-
revolucionários10. 
Em Sócrates é claro que o ideal político tão evidenciado nos sofistas, 
também está presente, não obstante é com ele que a educação terá um 
sentido mais profundo, na medida em que procura reestruturar a conexão da 
cultura espiritual com a cultura moral (Paidéia). 
 
9 Importante a este respeito conferir quantas instituições, programas, exames, enfim são arquitetados para 
manipular, direcionar, inculcar nas mentes dos indivíduos/cidadãos a necessidade e até naturalidade de 
tais ideologias que justificam e legitimam a máquina do sistêmica. 
10 São de extrema importância a este respeito a leitura de obras como: A traição dos intelectuais, Julien 
Benda; A vida intelectual: seu espírito, suas condições, seus métodos, Antonin-Dalmace Sertillanges, A 
rebelião das massas, Ortega y Gasset, A conexão de Leipzig: A destruição sistemática da educação 
americana, Paolo Lionni. O declínio a cultura ocidental: Da crise da universidade à crise da sociedade, 
Allan Bloom. O imbecil coletivo: Atualidades inculturais brasileiras e O futuro do pensamento 
brasileiro: Estudos sobre o nosso lugar no mundo, Olavo de Carvalho. 
 
É desta forma que Sócrates inaugura um novo modo de pensar e agir 
do ser humano ao buscar na personalidade, no caráter moral a essência 
fundante tanto da existência humana como da vida em sociedade. A este 
respeito nos diz Jaeger (1995, p. 546-547): 
 
[...] toda educação deve ser política. Tem necessariamente de 
educar para uma de duas coisas: para governar ou para ser 
governado. [...] O homem que é educado para governar tem de 
aprender a antepor o cumprimento dos deveres mais prementes à 
satisfação das necessidades físicas. Tem de se sobrepor à fome e à 
sede. Tem de se acostumar a dormir pouco, a deitar-se tarde e a 
levantar cedo. Nenhum trabalho deve assustar, por árduo que seja. 
Não se deve deixar extrair pelo engodo dos prazeres dos sentidos. 
Tem de se endurecer para o frio e para o calor. Não deve preocupar-
se, se tiver de acampar a céu aberto. Quem não é capaz de tudo isto 
fica condenado a figurar entre as massas governadas. 
 
Dentro do ideal de educação socrático, rico em símbolos e dado a 
muitas interpretações, o que nos interessa especificamente é extrair um 
conceito de enorme importância para a cultura ética Ocidental, o qual é o de 
autodomínio (enkratéia). Fazendo-se assim perceber que a conduta moral deve 
brotar do mais íntimo de cada indivíduo, ou seja, o autodomínio enquanto 
virtude basilar para a formação ética do indivíduo representa a emancipação 
racional para com as seduções e os desregramentos da sua natureza animal11. 
O autodomínio representa na vida de Sócrates a virtude humana de 
dominar a tirania dos instintospelo poder do espírito. E aqui se deve notar que 
o Filósofo toca em um problema central, porque, uma vez que o homem se 
torna vulnerável aos seus desejos e presa dos seus instintos12, não se pode 
falar em um indivíduo livre nem tampouco em um cidadão ético (ações 
eticamente livres). O que denotará, por conseguinte, no plano das suas ações 
em atitudes moralmente imaturas. 
 Portanto, educar para Sócrates é muito mais que simplesmente 
domesticar, forjar habilidades e competências, “formar para a cidadania”, seguir 
alienadamente a cultura do entorno sem ter uma real dimensão do que seja o 
 
11 Torna-se interessante as leituras de Carta VII e República de Platão para ter uma melhor compreensão 
do que seja a paideia e os símbolos que tratam dos aspectos virtuosos para a formação do político, 
portanto cidadão maduro e excelente (Spoudaios). E vícios que o deformam levando à tirania e destruição 
da polis e consequentemente da ordem, harmonia, beleza, bem/justiça no seio da sociedade. 
12 O projeto de reengenharia social desenvolvido no século passado e em andamento no século atual 
rebaixou o ser humano ao nível de sua animalidade tornando-o presa dos seus instintos via cultura do 
hedonismo e saciamento dos prazeres (Cf. obra Poder Global Religião Universal de Juan Claudio 
Sanahuja e Maquiavel Pedagogo: ou o ministério da reforma psicológica de Pascal Bernardin). 
ente homem. Visto que, o homem nunca deverá ser tomado como meio, 
mesmo se compreendermos que a sua formação está intimamente ligada com 
o ethos preponderante; que a formação do homem enquanto cidadão é sempre 
voltada para o exercício de servir a polis, do engrandecimento da cidade, de 
suas leis e de seus cidadãos. 
No entanto, este cidadão é antes e inalienavelmente um sujeito ético e 
como tal, não deve se conduzir com relação às leis, normas, tradição enquanto 
um indivíduo alienado da sua condição de pessoa, logo, submisso. Mas sim, de 
acordo com uma conduta moral que brota do seu interior, que denota a 
maturidade (autodomínio) de um sujeito ético, a qual se expressa como uma 
ação consciente e deliberada, portanto, livre. 
 
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
A essência da verdadeira Educação humana deve estar num conjunto 
de saberes (virtudes) que ao longo da existência viabilize ao ser humano as 
condições necessárias para alcançar o fim autêntico de sua vida. – Segundo 
Jaeger (1995), em Sócrates é identificada com a aspiração ao conhecimento 
do bem, com a phronesis. – Em outras palavras, a Paidéia deve converter-se 
na aspiração a uma ordenança filosófica consciente da vida, a qual se propõe 
cumprir o destino espiritual e moral do homem. 
Sócrates apresenta-se não apenas como educador (filósofo) mas 
também como modelo de homem maduro (cidadão) e futuramente intelectual e 
profissional. É importante compreender que a Paidéia é o contrário daquilo que 
comumente chamamos educação. Ou seja, a formatação grosseiramente 
ideológica tão comum em nossa época seja de matiz econômica que propaga a 
tão ambicionada preparação e ingresso na vida profissional e como 
consequência sucesso financeiro, status, etc. ou, política que pretende 
doutrinar mentes e manipular capacidades e competências em conformidade 
com as ideologias gnóstico-revolucionárias propagadas (cujos fins são a 
tomada do poder, a corrupção, destruição e modificação radical da estrutura da 
sociedade e valores morais, etc.). 
A Paidéia, conforme Sócrates procura salientar busca formar tipos 
humanos (homens, mulheres virtuosos) que inevitavelmente agirão cônscia e 
deliberadamente (consciência ética) enquanto cidadãos que ocupem os mais 
diversos papéis dentro da sociedade. Pois o status, as atividades que os 
mesmos desempenhem na sociedade são elementos externos e secundários. 
Já a personalidade, o caráter, a alma humana é o elemento precípuo desta 
formação e dela tudo mais advém para o bem ou para o mal (como 
consequência da formação ou deformação adquirida) uma vez que uma única 
vida (alma humana) vale e tem consistência muito mais abrangente que 
qualquer artifício humano constituído na sua existência (história). 
 
REFERÊNCIAS: 
 
BLOOM, Allan. O declínio da cultura ocidental: da crise da universidade à crise da sociedade. São 
Paulo: Best Seller, 1989. 
 
BENDA, Julien. A traição dos intelectuais. São Paulo: Peixoto Neto, 2007. 
 
BERNADIN, Pascal. Maquiavel pedagogo ou o ministério da reforma psicológica. São Paulo: Ecclesiae: 
2012. 
 
BOUTROUX, Emile. Sócrates, fundador da ciência moral. São Paulo: Editora Danúbio, 2015. 
 
CARVALHO, Olavo. O projeto socrático, aula 2. Col. História Essencial da Filosofia. São Paulo: 2002. 
 
__________, O imbecil coletivo: atualidades inculturais brasileiras. Rio de Janeiro: Editora da 
Faculdade da Cidade, 1996. 
 
__________, O futuro do pensamento brasileiro: estudos sobre o nosso lugar no mundo. São Paulo É 
Realizações, 2007. 
 
HESSEN, Johannes. Filosofia dos valores. Coimbra - Portugal: Almedina, 2001. 
 
JAEGER, W. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 
 
LIONNI, Paolo. A conexão de Leipzig: a destruição sistemática da educação americana. São Paulo: Vide 
Editorial, 2020. 
 
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ATIVIDADE 
Fazer a leitura do diálogo platônico Apologia de Sócrates, procurando observar: 
a) Do que trata o diálogo? Quais as suas idéias principais? Como Platão apresenta 
as mesmas (etapas, momentos do diálogo)? 
b) Estabeleça a relação entre a aula 1 e o Diálogo Apologia de Sócrates. 
c) O que ambos os textos revelam acerca da formação do ser humano e como a 
educação se apresenta hodiernamente (educar para ser humano é o mesmo que 
formar para o mercado de trabalho ou para o ativismo político-ideológico)? 
d) É possível ser profissional sem ser ético? O que Sócrates (Paidéia) nos ensina a 
este respeito? 
e) O que Sócrates quer nos ensinar com sua máxima “uma vida sem exames não 
vale a pena ser vivida”?

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