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(Apost Filojur 2022 1) 11 Dworkin

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Ronald Dworkin
(1931-2013)
O Direito como integridade[footnoteRef:1] [1: O império do Direito, cap. 1.] 
O direito é um conceito interpretativo. Os juízes devem decidir o que é o direito interpretando o modo usual como os outros juízes decidiram o que é o direito. Teorias gerais do direito são, para nós, interpretações gerais da nossa própria prática judicial. Rejeitamos o convencionalismo, que considera melhor interpretação a de que os juízes descobrem e aplicam convenções legais especiais, e o pragmatismo, que a encontra na história dos juízes vistos como arquitetos de um futuro melhor, livres da exigência inibidora de que, em princípio, devem agir coerentemente uns com os outros. Ressalto a terceira concepção, do direito como integridade, que compreende a doutrina e a jurisdição. Faz com que o conteúdo do direito não dependa de convenções especiais ou de cruzadas independentes, mas de interpretações mais refinadas e concretas da mesma prática jurídica que começou a interpretar. 
Essas interpretações mais concretas são indubitavelmente jurídicas porque dominadas pelo princípio de integridade inclusiva na prestação jurisdicional. A jurisdição é diferente da legislação, não de uma forma única e unívoca, mas como a complexa consequência da predominância desse princípio. Avaliamos seu impacto reconhecendo a força superior da integridade na prestação jurisdicional, que a toma soberana nos julgamentos de direito, embora não inevitavelmente nos vereditos dos tribunais, ao observar como a legislação convida a juízos políticos, diferentemente da jurisdição, e como a integridade inclusiva aplica distintas restrições à função judicial. A integridade não se impõe por si mesma; é necessário o julgamento. Esse julgamento é estruturado por diferentes dimensões de interpretação e diferentes aspectos destas. Percebemos como as convicções a respeito da adequação são conflitantes e restringem os julgamentos de substância, e como as convicções a respeito de equidade, justiça e devido processo legal adjetivo são conflitantes entre si. O julgamento interpretativo deve observar e considerar essas dimensões; se não o fizer, é incompetente ou de má-fé, simples política disfarçada. Entretanto, também deve fundir essas dimensões numa opinião geral: sobre a interpretação que, todos os aspectos considerados, torna o histórico legal da comunidade o melhor possível do ponto de vista da moral política. Dessa forma, os julgamentos legais são difusamente contestáveis. 
Essa é a versão do direito como integridade. Acredito que oferece uma explicação melhor de nosso direito do que o fazem o convencionalismo e o pragmatismo em cada uma das duas principais dimensões da interpretação, de modo que nenhuma troca entre essas dimensões faz-se necessária no nível em que a integridade compete com outras concepções. O direito como integridade fornece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa de nossa prática jurídica como um todo. Defendo as exigências da justificativa identificando e estudando a integridade como uma qualidade claramente perceptível da política comum, diversa das virtudes da justiça e da equidade e, às vezes, entrando em conflito com ela. Devemos aceitar a integridade como uma virtude da política comum, pois devemos tentar conceber nossa comunidade política como uma associação de princípios; devemos almejar isso porque, entre outras razões, essa concepção de comunidade oferece uma base atraente para exigências de legitimação política em uma comunidade de pessoas livres e independentes que divergem sobre moral política e sabedoria. 
Discuti a primeira alegação – de que o direito como integridade fornece uma adequação esclarecedora com a nossa prática jurídica – ao mostrar como um juiz ideal comprometido com o direito como integridade decidiria três tipos de casos difíceis: pertinentes ao “common law”, à legislação e, nos Estados Unidos, à Constituição. Fiz com que Hércules decidisse vários casos que ofereci como exemplos práticos... Contudo, esse é um teste muito limitado para ser decisivo; os estudantes de direito e os juristas poderão testar o poder esclarecedor do direito como integridade em oposição a uma experiência muito mais ampla e variada do direito em funcionamento. 
Já disse o que vem a ser o direito? A melhor resposta seria: até certo ponto. Não concebi um algoritmo para o tribunal. Nenhuma mágica eletrônica poderia elaborar, a partir de meus argumentos, um programa de computador que fornecesse um veredito aceito por todos, uma vez que os fatos do caso e o texto de todas as leis e decisões judiciais passadas fossem colocados à disposição do computador. Mas não cheguei à conclusão que muitos leitores considerariam de senso comum. Não afirmei que nunca há um caminho certo, apenas caminhos diferentes, para decidir-se um caso difícil. Ao contrário, afirmei que essa conclusão aparentemente sofisticada é um sério equívoco filosófico, se a entendermos como um exemplo de ceticismo externo, ou uma posição política polêmica apoiada em convicções políticas dúbias, se a tratarmos da maneira que estou inclinado a fazer, como uma perigosa incursão pelo ceticismo interno global (...). 
O que é o direito? Ofereço, agora, um tipo diferente de 
resposta. O direito não é esgotado por nenhum catálogo de regras ou princípios, cada qual com seu próprio domínio sobre uma diferente esfera de comportamentos. Tampouco por alguma lista de autoridades com seus poderes sobre parte de nossas vidas. O império do direito é definido pela atitude, não pelo território, o poder ou o processo. Estudamos essa atitude principalmente em tribunais de apelação, onde ela está disposta para a inspeção, mas deve ser onipresente em nossas vidas comuns se for para servir-nos bem, inclusive nos tribunais. É uma atitude interpretativa e autorreflexiva, dirigida à política no mais amplo sentido. É uma atitude contestadora que torna todo cidadão responsável por imaginar quais são os compromissos públicos de sua sociedade com os princípios, e o que tais compromissos exigem em cada nova circunstância. O caráter contestador do direito é confirmado, assim como é reconhecido o papel criativo das decisões privadas, pela retrospectiva da natureza judiciosa das decisões tomadas pelos tribunais, e também pelo pressuposto regulador de que, ainda que os juízes devam sempre ter a última palavra, sua palavra não será a melhor por essa razão. A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter. 
[Distinção entre regras e princípios][footnoteRef:2] [2: Levando os direitos a sério, cap. 2, item 3. ] 
(...) A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.
Esse tudo-ou-nada fica mais evidente se examinamos o modo de funcionamento das regras, não no direito, mas em algum empreendimento que elas regem - um jogo, por exemplo. No beisebol, uma regra estipula que, se o batedor errar três bolas, está fora do jogo. Um juiz não pode, de modo coerente, reconhecer que este é um enunciado preciso de uma regra do beisebol e decidir que um batedor que errou três bolas não está eliminado. Sem dúvida, uma regra pode ter exceções (o batedor que errou três bolas não seráeliminado se o pegador [catcher] deixar cair a bola no terceiro lance). Contudo, um enunciado correto da regra levaria em conta essa exceção; se não o fizesse, seria incompleto. Se a lista das exceções for muito longa, seria desajeitado demais repeti-la cada vez que a regra fosse citada; contudo, em teoria não há razão que nos proíba de incluí-las e quanto mais o forem, mais exato será o enunciado da regra.
Se tomarmos por modelo as regras do beisebol, veremos que as regras do direito, como aquela segundo a qual um testamento é inválido se não for assinado por três testemunhas, ajustam-se bem ao modelo. Se a exigência de três testemunhas é uma regra jurídica válida, nenhum testamento será válido quando assinado por apenas duas testemunhas. A regra pode ter exceções, mas se tiver, será impreciso e incompleto simplesmente enunciar a regra, sem enumerar as exceções. Pelo menos em teoria, todas as exceções podem ser arroladas e quanto mais o forem, mais completo será o enunciado da regra.
A distinção lógica entre regras e princípios aparece mais claramente quando consideramos princípios que nem mesmo se assemelham a regras. Consideremos a proposição que aparece em '(d)' nos extratos da decisão Henningsen: "o fabricante tem uma obrigação especial no que diz respeito à fabricação, promoção e venda de carros". Essa formulação não pretende definir os deveres específicos que essa obrigação específica acarreta, nem nos informa que direitos os compradores de automóveis adquirem em consequência dela. Simplesmente afirma – e este é um elo importante no caso Henningsen – que os fabricantes de carros devem observar padrões mais elevados do que os de outros fabricantes e estão menos autorizados a basear-se no princípio competitivo da liberdade de contrato.
Essa primeira diferença entre regras e princípios traz consigo uma outra. Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.
As regras não têm essa dimensão. Podemos dizer que as regras são funcionalmente importantes ou desimportantes (a regra de beisebol segundo a qual o batedor que não conseguir rebater a bola três vezes é eliminado é mais importante do que a regra segundo a qual os corredores podem avançar uma base quando o arremessador comete uma falta, pois a modificação da primeira regra alteraria mais o jogo do que a modificação da segunda). Nesse sentido, uma regra jurídica pode ser mais importante do que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior.
Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes. (Nosso sistema jurídico [norte-americano] utiliza essas duas técnicas.)
A forma de um padrão nem sempre deixa claro se ele é uma regra ou um princípio. "Um testamento é inválido a menos que seja assinado por três testemunhas" não é muito diferente, quanto à forma, de "Um homem não beneficiar-se de seus atos ilícitos", mas quem conhece o direito norte-americano sabe que deve considerar a primeira frase como a expressão de uma regra e a segunda como expressão de um princípio. Em muitos casos a distinção é difícil de estabelecer — é possível que não se tenha estabelecido de que maneira o padrão deve funcionar; esse ponto pode ser ele próprio o foco da controvérsia. A primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos contém uma disposição determinando que o Congresso não pode cercear a liberdade de expressão. Será esta uma regra, de modo que se alguma lei específica cercear a liberdade de palavra, se poderá concluir que se trata de uma lei inconstitucional? Os que afirmam que a primeira emenda é "um absoluto" dizem que ela deve ser vista dessa maneira, isto é, como uma regra. Ou ela meramente enuncia um princípio, de modo que, se um cerceamento da liberdade de expressão for descoberto, ele será inconstitucional a menos que seu contexto revele a existência de uma outra política ou princípio que, nas circunstâncias, tenha força suficiente para permitir esse cerceamento? Essa é a posição dos que defendem o teste do "perigo real e iminente"[footnoteRef:3] ou alguma outra forma de "ponderação". [3: Clear and present danger - aqui traduzido por "perigo real e iminente". A doutrina do clear and present danger surgiu no direito constitucional norte-americano em 1917, como resultado da tentativa do governo americano de aplicar a Lei de Espionagem de 1917 aos que faziam propaganda contra o recrutamento para a guerra, limitando desse modo a liberdade de expressão garantida pela Primeira Emenda à Constituição (Schenck v. U. S.). Diz essa doutrina que "para que o governo possa punir uma manifestação [de opinião] é preciso, em geral, que tenha ocorrido em tais circunstâncias ou sido de tal natureza que pudesse criar um perigo evidente e atual do qual decorreriam "males substantivos" que o governo poderia prevenir". Ver Edward Corwin, American Constitutional Law, Haper & Row, Nova York, 1964, especialmente capítulo XI. Do mesmo autor, ver ainda A Constituição norte-americana e seu significado atual, Zahar, Rio de Janeiro, 1986, pp. 239 ss. Consultar igualmente Schenck v. U. S., 249 U. S. 47, 39 S. Ct. 247, 63 L. Ed. 470. (N. do T.)] 
[Integridade no direito][footnoteRef:4] [4: O Império do Direito, cap. VII.] 
Neste capítulo iremos desenvolver a terceira concepção do direito que apresentei no capítulo III. O direito como integridade nega que as manifestações do direito sejam relatos factuais do convencionalismo, voltados para o passado, ou programas instrumentais do pragmatismo jurídico, voltados para o futuro. Insiste em que as afirmações jurídicas são opiniões interpretativas que, por esse motivo, combinam elementos que se voltam tanto para o passado quanto para o futuro; interpretam a prática jurídica contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento. Assim, o direito como integridade rejeita, por considerar inútil, a questão de se os juízes descobrem ou inventam o direito; sugere que só entendemos o raciocínio jurídico tendo em vista que os juízes fazem as duas coisas e nenhuma delas. 
Integridade e interpretação 
O princípio judiciário de integridade instrui os juízes a identificar direitos e deveres legais, até onde for possível, a partir do pressuposto de que foram todos criados por um único autor – a comunidade personificada –, expressando uma concepção coerente de justiça e equidade. 
Segundo o direito como integridade, as proposições jurídicas são verdadeiras se constam, ou se derivam, dos princípios de justiça, equidade e devido processo legal que oferecem a melhor interpretação construtiva da prática jurídica da comunidade. Decidir se o direito vai assegurar à sra. McLoughlin uma indenização pelos prejuízos sofridos, por exemplo, equivale a decidir sevemos a prática jurídica sob sua melhor luz a partir do momento em que supomos que a comunidade aceitou o princípio de que as pessoas na situação dela têm direito a ser indenizadas. 
O direito como integridade é, portanto, mais inflexivelmente interpretativo do que o convencionalismo ou o pragmatismo. Essas últimas teorias se oferecem como interpretações. São concepções de direito que pretendem mostrar nossas práticas jurídicas sob sua melhor luz, e recomendam, em suas conclusões pós-interpretativas, estilos ou programas diferentes de deliberação judicial. Mas os programas que recomendam não são, em si, programas de interpretação; não pedem aos juízes encarregados da decisão de casos difíceis que façam novos exames, essencialmente interpretativos, da doutrina jurídica. O convencionalismo exige que os juízes estudem os repertórios jurídicos e os registros parlamentares para descobrir que decisões foram tomadas pelas instituições às quais convencionalmente se atribui poder legislativo. É evidente que vão surgir problemas interpretativos ao longo desse processo: por exemplo, pode ser necessário interpretar um texto para decidir que lei nossas convenções jurídicas constroem a partir dele. Uma vez, porém, que um juiz tenha aceito o convencionalismo como guia, não terá novas ocasiões de interpretar o registro legislativo como um todo, ao tomar decisões sobre casos específicos. O pragmatismo exige que os juízes pensem de modo instrumental sobre as melhores regras para o futuro. Esse exercício pode pedir a interpretação de alguma coisa que extrapola a matéria jurídica: um pragmático utilitarista talvez precise preocupar-se com a melhor maneira de entender a ideia de bem-estar comunitário, por exemplo. Uma vez mais, porém, um juiz que aceite o pragmatismo não mais poderá interpretar a prática jurídica em sua totalidade. 
O direito como integridade é diferente: é tanto o produto da interpretação abrangente da prática jurídica quanto sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos juízes que decidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contingentemente, interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso. Oferece-se como a continuidade – e como origem – das interpretações mais detalhadas que recomenda. 
Integridade e história 
A história é importante no direito como integridade: muito, mas apenas em certo sentido. A integridade não exige coerência de princípio em todas as etapas históricas do direito de uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma continuidade de princípio com o direito de um século antes, já em desuso, ou mesmo de uma geração anterior. Exige uma coerência de princípio mais horizontal do que vertical ao longo de toda a gama de normas jurídicas que a comunidade agora faz vigorar. Insiste em que o direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de princípios necessários à sua justificativa. A história é importante porque esse sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores. Nossa justificativa para considerar a Lei das Espécies Ameaçadas como direito, a menos (e até que) seja revogada, inclui o fato crucial de ter sido sancionada pelo Congresso, e qualquer justificativa que apresentemos para tratar esse fato como crucial deve ela própria incluir o modo como tratamos outros eventos de nosso passado político. 
O direito como integridade, portanto, começa no presente e só se volta para o passado na medida em que seu enfoque contemporâneo assim o determine. Não pretende recuperar, mesmo para o direito atual, os ideais ou objetivos práticos dos políticos que primeiro o criaram. Pretende, sim, justificar o que eles fizeram (às vezes incluindo, como veremos, o que disseram) em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado. O direito como integridade deplora o mecanismo do antigo ponto de vista de que "lei é lei", bem como o cinismo do novo "realismo". Considera esses dois pontos de vista como enraizados na mesma falsa dicotomia entre encontrar e inventar a lei. Quando um juiz declara que um determinado princípio está imbuído no direito, sua opinião não reflete uma afirmação ingênua sobre os motivos dos estadistas do passado, uma afirmação que um bom cínico poderia refutar facilmente, mas sim uma proposta interpretativa: o princípio se ajusta a alguma parte complexa da prática jurídica e a justifica; oferece uma maneira atraente de ver, na estrutura dessa prática, a coerência de princípio que a integridade requer. O otimismo do direito é, nesse sentido, conceitual; as declarações do direito são permanentemente construtivas, em virtude de sua própria natureza. Esse otimismo pode estar deslocado: a prática jurídica pode terminar por não ceder a nada além de uma interpretação profundamente cética. Mas isso não é inevitável somente porque a história de uma comunidade é feita de grandes conflitos e transformações. Uma interpretação imaginativa pode ser elaborada sobre terreno moralmente complicado, ou mesmo ambíguo. 
[O romance em cadeia][footnoteRef:5] [5: O império do Direito, cap. VII. ] 
...A interpretação criativa busca sua estrutura formal na ideia de intenção, não (pelo menos não necessariamente) porque pretenda descobrir os propósitos de qualquer pessoa ou grupo histórico específico, mas porque pretende impor um propósito ao texto, aos dados ou às tradições que está interpretando. Uma vez que toda interpretação criativa compartilha essa característica e tem, portanto, um aspecto ou componente normativo, podemos tirar proveito de uma comparação entre o direito e outras formas ou circunstâncias de interpretação. Podemos comparar o juiz que decide sobre o que é o direito em alguma questão judicial, não apenas com os cidadãos da comunidade hipotética que analisa a cortesia que decidem o que essa tradição exige, mas com o crítico literário que destrincha as várias dimensões de valor em uma peça ou um poema complexo. 
Os juízes, porém, são igualmente autores e críticos. Um juiz que decide o caso McLoughlin ou Brown introduz acréscimos na tradição que interpreta; os futuros juízes deparam com uma nova tradição que inclui o que foi feito por aquele. É claro que a crítica literária contribui com as tradições artísticas em que trabalham os autores; a natureza e a importância dessa contribuição configuram, em si mesmas, problemas de teoria crítica. Mas a contribuição dos juízes é mais direta, e a distinção entre autor e intérprete é mais uma questão de diferentes aspectos do mesmo processo. Portanto, podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de "romance em cadeia". 
Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da melhor maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade. O projeto literário fictício é fantástico, mas não irreconhecível. a verdade, alguns romances foram escritos dessa maneira, ainda que com uma finalidade espúria, e certos jogos de salão para os fins de semana chuvosos nas casas de campo inglesas têm estrutura semelhante. As séries de televisão repetem por décadas os mesmos personagens e um mínimo de relação entre personagens e enredo, ainda que sejam escritas pordiferentes grupos de autores e, inclusive, em semanas diferentes. Em nosso exemplo, contudo, espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível[footnoteRef:6]. [6: Essa pode ser uma tarefa impossível; talvez o projeto esteja condenado a produzir não apenas um romance incrivelmente ruim, mas na verdade a não produzir romance algum, pois a melhor teoria da arte exige um único criador ou, em caso de mais de um, que cada qual exerça algum controle sobre o todo. (Que dizer, porém, de lendas e piadas? E sobre o Antigo Testamento ou, segundo certas teorias, a Ilíada?) Não é preciso levar a questão muito adiante, pois só estou interessado no fato de que a tarefa tem sentido, que cada um dos romancistas da cadeia pode ter algum domínio daquilo que lhe pediram para fazer, sejam quais forem as suas dúvidas sobre o valor ou a natureza do que será então produzido. ] 
[Casos difíceis][footnoteRef:7] [7: Levando os direitos a sério, cap. IV.] 
O positivismo jurídico fornece uma teoria dos casos difíceis. Quando uma ação judicial específica não pode ser submetida a uma regra de direito clara, estabelecida de antemão por alguma instituição, o juiz tem, segundo tal teoria, o "poder discricionário" para decidir o caso de uma maneira ou de outra.
Sua opinião é redigida em uma linguagem que parece supor que uma ou outra das partes tinha o direito preexistente de ganhar a causa, mas tal ideia não passa de uma ficção. Na verdade, ele legisla novos direitos jurídicos (new legal rights), e em seguida os aplica retroativamente ao caso em questão. Nos dois últimos capítulos, argumentei que essa teoria da decisão judicial é totalmente inadequada; no presente capítulo, vou descrever e defender uma teoria melhor.
Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente.
Já devo adiantar, porém, que essa teoria não pressupõe a existência de nenhum procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Ao contrário, o argumento pressupõe que os juristas e juízes sensatos irão divergir frequentemente sobre os direitos jurídicos, assim como os cidadãos e os homens de Estado divergem sobre os direitos políticos. Este capítulo descreve as questões que juízes e juristas têm que enfrentar, mas não garante que todos eles deem a mesma resposta a essas questões.
Alguns leitores podem objetar que, se não existe nenhum procedimento, mesmo em princípio, para demonstrar quais são os direitos jurídicos das partes nos casos difíceis, pode-se inferir que elas não têm nenhum. Essa objeção pressupõe uma tese polêmica de filosofia geral: nenhuma proposição pode ser verdadeira a não ser que possa, pelo menos em princípio, ter sua veracidade demonstrada. Não há razão alguma para se aceitar tal tese como parte integrante de uma teoria geral da verdade, mas há boas razões para rejeitar sua aplicação específica a proposições que dizem respeito aos direitos jurídicos.
[Princípios e políticas[footnoteRef:8]] [8: Levando os direitos a sério. Martins Fontes, 2002.] 
As teorias da decisão judicial tornaram-se mais sofisticadas, mas as mais conhecidas ainda colocam o julgamento à sombra da legislação. Os contornos principais dessa história são familiares. Os juízes devem aplicar o direito criado por outras instituições; não devem criar um novo direito. Isso é o ideal, mas por diversas razões não pode ser plenamente concretizado na prática. As leis e as regras do direito costumeiro (common law) são quase sempre vagas e devem ser interpretadas antes de se poder aplicá-las aos novos casos. Além disso, alguns desses casos colocam problemas tão novos que não podem ser decididos nem mesmo se ampliarmos ou reinterpretarmos as regras existentes. Portanto, os juízes devem às vezes criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita. Ao fazê-lo, porém, devem agir como se fossem delegados do poder legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema.
Isso é muitíssimo conhecido, mas nessa história conhecida acha-se oculto um novo nível de subordinação que nem sempre é percebido. Quando os juízes criam leis, a expectativa habitual é a de que eles ajam não apenas como delegados do poder legislativo, mas como um poder legislativo segundo. Eles criam leis, em resposta a fatos e argumentos, da mesma natureza daquelas que levariam a instituição superior a criar, caso estivesse agindo por iniciativa própria. Este é um nível mais profundo de subordinação, pois coloca qualquer entendimento do que os juízes fazem nos casos difíceis na dependência de uma compreensão anterior do que os legisladores fazem o tempo todo. Essa subordinação mais profunda é, portanto, simultaneamente conceitual e política.
Na verdade, porém, os juízes não deveriam ser e não são legisladores delegados, e é enganoso o conhecido pressuposto de que eles estão legislando quando vão além de decisões políticas já tomadas por outras pessoas. Este pressuposto não leva em consideração a importância de uma distinção fundamental na teoria política que agora introduzirei de modo sumário. Refiro-me à distinção entre argumentos de princípio, por um lado, e argumentos de política (policy), por outro[footnoteRef:9]. [9: Discuti a distinção entre princípios e políticas no capítulo 2. A formulação mais elaborada neste capítulo é um desenvolvimento do que se encontra naquele: entre outras virtudes, impede o colapso dessa distinção em decorrência dos pressupostos (artificiais) apresentados no capítulo anterior.
] 
Os argumentos de política justificam uma decisão política, mostrando que a decisão fomenta ou protege algum objetivo coletivo da comunidade como um todo. O argumento em favor de um subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção irá proteger a defesa nacional, é um argumento de política. Os argumentos de princípio justificam uma decisão política, mostrando que a decisão respeita ou garante um direito de um indivíduo ou de um grupo. O argumento em favor das leis contra a discriminação, aquele segundo o qual uma minoria tem direito à igualdade de consideração e respeito, é um argumento de princípio. Estes dois tipos de argumento não esgotam a argumentação política. Às vezes, por exemplo, uma decisão política, como a de permitir isenções extras de imposto de renda para os cegos, pode ser defendida como um ato de generosidade ou virtude pública, e não com base em sua natureza de política ou de princípio. Ainda assim, os princípios e as políticas são os fundamentos essenciais da justificação política.
A justificação de um programa legislativo de alguma complexidade vai normalmente exigir os dois tipos de argumento.
Mesmo um programa que seja basicamente uma questão de política, como um programa de subsídios para indústrias importantes, pode exigir elementos de princípios para justificar sua formulação específica. Pode ser, por exemplo, que o programa ofereça subsídios iguais para fabricantes com capacidades diferentes, com base no suposto de que os mais fracos entre os fabricantes de aeronaves têm direito de não se ver privados de sua capacidade de produção pela intervenção governamental, ainda que a indústria possa ser mais eficiente sem eles. Por outro lado, um programa que dependa basicamente de princípios, como um programa contra a discriminação, pode refletir a ideia de que os direitos não são absolutos, e não vigoram quando suas consequências para a política pública forem muito graves.
O programa pode determinar, por exemplo, que as regras relativas a práticas de emprego justas não vigorem sempre que se revelarem especialmente desagregadoras ou perigosas. No caso dos subsídios, poderíamosdizer que os direitos conferidos são gerados por uma política e qualificados por princípios; no caso contra a discriminação, são gerados por princípios e qualificados por uma política.
Não foge absolutamente à competência do poder legislativo aderir a argumentos de política e adotar programas gerados por tais argumentos. Se os tribunais forem legisladores segundos, eles também devem ser competentes para fazer o mesmo.
Sem dúvida, as decisões judiciais não originais, que apenas aplicam os termos claros de uma lei de validade inquestionável, são sempre justificadas pelos argumentos de princípio, mesmo que a lei em si tenha sido gerada por uma política. Suponhamos que um fabricante de aviões mova uma ação para receber o subsídio que a lei prevê. Ele invoca seu direito ao subsídio; sua argumentação é um argumento de princípio. Ele não argumenta que a defesa nacional seria melhorada com o subsídio que lhe fosse concedido; poderia, inclusive, admitir que a lei estava politicamente errada quando foi adotada, ou que, por razões políticas, deveria ter sido revogada já há muito tempo. Seu direito a um subsídio não mais depende de um argumento de política, pois a lei o transformou em uma questão de princípio.
Contudo, se o caso em questão for um caso difícil, em que nenhuma regra estabelecida dita uma decisão em qualquer direção, pode parecer que uma decisão apropriada possa ser gerada seja por princípios, seja por políticas. Tomemos, por exemplo, o problema do caso recente da Spartan Steel[footnoteRef:10]. Os empregados do réu haviam rompido um cabo elétrico pertencente a uma companhia de energia elétrica que fornecia energia ao autor da ação, e a fábrica deste foi fechada enquanto o cabo estava sendo consertado. O tribunal tinha de decidir se permitiria ou não que o demandante fosse indenizado por perda econômica decorrente de danos à propriedade alheia cometidos por negligência. [10: Spartan Steel & Alloys Ltd. vs. Martin & Co., [1973] 1 Q.B. 27.] 
O tribunal poderia ter chegado a sua decisão perguntando se uma empresa na posição do demandante tinha direito a uma indenização – o que é uma questão de princípio – ou se seria economicamente sensato repartir a responsabilidade pelos acidentes na forma sugerida pelo demandante – o que é uma questão de política.
Se os juízes fossem legisladores segundos, o tribunal deveria estar preparado para seguir a última alternativa, tanto quanto a primeira, e decidir em favor do demandante se fosse essa a recomendação do argumento. É isso, imagino, o que significa a ideia corrente de que um tribunal deve ser livre para decidir um caso novo como o da Spartan Steel em bases políticas; e foi assim, de fato, que lorde Denning descreveu sua opinião neste caso específico[footnoteRef:11]. Eu não suponho que ele pretendia estabelecer uma distinção entre um argumento de política e um argumento de princípio no mesmo sentido técnico que eu estabeleço, mas, ainda assim, ele não pretendia descartar um argumento de política nesse sentido técnico. [11: Ibid., 36.] 
Não obstante, defendo a tese de que as decisões judiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis como o da Spartan Steel, são e devem ser, de maneira característica, gerados por princípios, e não por políticas. É evidente que essa tese precisa de muita elaboração, mas podemos observar que certos argumentos da teoria política e da teoria do direito a apoiam, inclusive em sua forma abstrata. 
[Casos difíceis[footnoteRef:12]] [12: O império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 19 ss.] 
O caso Elmer 
Elmer assassinou o avô por envenenamento em Nova York, em 1882[footnoteRef:13]. Sabia que o testamento deixava-o com a maior parte dos bens do avô, e desconfiava que o velho, que voltara a casar-se havia pouco, pudesse alterar o testamento e deixá-lo sem nada. O crime de Elmer foi descoberto; ele foi declarado culpado e condenado a alguns anos de prisão. Estaria ele legalmente habilitado a receber a herança que seu avô lhe deixara no último testamento? Os legatários residuais incluídos no testamento, habilitados a herdar se Elmer tivesse morrido antes do avô, eram as filhas deste. Como seus nomes não são mencionados, vou chamá-las aqui de Goneril e Regan. Elas processaram o inventariante do espólio, exigindo que o patrimônio ficasse com elas, e não com Elmer. Argumentavam que, como Elmer havia matado o testador, seu pai, a lei não lhe dava direito a nada. [13: Riggs vs. Palmer, 115, Nova York, 506, 22. E. 188 (1889). 
] 
O direito relativo aos testamentos encontra-se, em sua maior parte, disposto em leis especiais, geralmente chamadas de leis sucessórias, que determinam a forma que um testamento deve ter para ser considerado legalmente válido: quantas, e que tipos de testemunhas devem assinar; qual deve ser o estado mental do testador; de que maneira um testamento válido, uma vez firmado, pode ser revogado ou alterado pelo testador, e assim por diante. A lei de sucessões de Nova York, como muitas outras em vigor naquela época, não afirmava nada explicitamente sobre se uma pessoa citada em um testamento poderia ou não herdar, segundo seus termos, se houvesse assassinado o testador. O advogado de Elmer argumentou que, por não violar nenhuma das cláusulas explícitas da lei, o testamento era válido, e que Elmer, por ter sido nominalmente citado num testamento válido, tinha direito à herança. Declarou que, se o tribunal se pronunciasse favoravelmente a Goneril e Regan, estaria alterando o testamento e substituindo o direito por suas próprias convicções morais. Todos os juízes da mais alta corte de Nova York concordavam que suas decisões deveriam ser tomadas de acordo com o direito. Nenhum deles negava que se a lei sucessória, devidamente interpretada, desse a herança a Elmer, eles deveriam ordenar ao inventariante do espólio que assim procedesse. Nenhum deles dizia que, naquele caso, a lei deveria ser alterada no interesse da justiça. Divergiam quanto à solução correta do caso, mas sua divergência - pelo menos assim nos parece com base na leitura dos pareceres que redigiram - dizia respeito à verdadeira natureza do direito, àquilo que determina a legislação quando devidamente interpretada. 
O voto dissidente, escrito pelo juiz Gray, defendia uma teoria da legislação mais aceita na época do que hoje em dia. A isso às vezes se dá o nome de teoria da interpretação “literal”, embora esta não seja uma descrição particularmente esclarecedora. Essa teoria propõe que aos termos de uma lei se atribua aquilo que melhor chamaríamos de seu significado acontextual, isto é, o significado que lhes atribuiríamos se não dispuséssemos de nenhuma informação especial sobre o contexto de seu uso ou as intenções de seu autor. Esse método de interpretação exige que nenhuma ressalva tácita e dependente do contexto seja feita à linguagem geral; o juiz Gray, portanto, insistia em que a verdadeira lei, interpretada da maneira adequada, não continha exceções para os assassinos. Seu voto foi favorável a Elmer. 
O juiz Earl, porém, escrevendo em nome da maioria usou uma teoria da legislação muito diferente, que dá às intenções do legislador uma importante influência sobre a verdadeira lei. “É um conhecido cânone da interpretação”, escreveu Earl, “que algo que esteja na intenção dos legisladores seja parte dessa lei, tal como se estivesse contida na própria letra; e que uma coisa que esteja contida na letra da lei somente faça parte da lei, se estiver presente na intenção de seus criadores.”[footnoteRef:14] (Observe-se como ele se apega à distinção entre o texto, que chama de “letra” da lei, e a própria lei, que chama de “lei” propriamente.) Seria absurdo, pensava ele, imaginar que os legisladores de Nova York que originalmente aprovaram a lei sucessória pretendessem que os assassinos pudessem herdar, e por essa razão a verdadeira lei que promulgaram não continha tal consequência. [14: II.Id., 189. ] 
Earl pretendia apegar-se a um princípio, que poderíamos chamar de intermediário, entre esses princípios excessivamente drásticos e frágeis:queria dizer que uma lei não pode ter nenhuma consequência que os legisladores teriam rejeitado se nela tivessem pensado[footnoteRef:15]. [15: Há problemas bastante sérios nesse princípio intermediário, e examinaremos alguns deles no capítulo IX. 
] 
O juiz Earl não se apoiou apenas em seu princípio sobre a intenção do legislador; sua teoria da legislação continha outro princípio relevante. Ele afirmava que na interpretação das leis a partir dos textos não se deveria ignorar o contexto histórico, mas levar-se em conta os antecedentes daquilo que denominava de princípios gerais do direito: ou seja, que os juízes deveriam interpretar uma lei de modo a poderem ajustá-la o máximo possível aos princípios de justiça pressupostos em outras partes do direito. Ele apresentou duas razões. Primeiro, é razoável admitir que os legisladores têm uma intenção genérica e difusa de respeitar os princípios tradicionais da justiça, a menos que indiquem claramente o contrário. Segundo, tendo em vista que uma lei faz parte de um sistema compreensivo mais vasto, o direito como um todo, deve ser interpretada de modo a conferir, em princípio, maior coerência a esse sistema. Earl argumentava que, em outros contextos, o direito respeita o princípio de que ninguém deve beneficiar-se de seu próprio erro, de tal modo que a lei sucessória devia ser lida no sentido de negar uma herança a alguém que tivesse cometido um homicídio para obtê-la. 
Os pontos de vista do juiz Earl prevaleceram. Outros quatro juízes acompanharam-no em sua decisão, enquanto o juiz Gray só conseguiu encontrar um aliado. Elmer, portanto, não recebeu sua herança. 
O caso do snail darter 
Passarei agora a descrever um caso bem mais recente, através do qual pretendo demonstrar que esse tipo de controvérsia continua a ocupar os juízes[footnoteRef:16]. Em 1973, durante um período de grande preocupação nacional com a preservação das espécies, o Congresso dos Estados Unidos promulgou a Lei das Espécies Ameaçadas. Essa lei autoriza o ministro do Interior a designar as espécies que, em sua opinião, estariam correndo o risco de desaparecer devido à destruição de alguns hábitats que ele considere essenciais à sobrevivência delas, e também exige que todos os órgãos e departamentos do governo tomem “as medidas necessárias para assegurar que as ações autorizadas, financiadas ou executadas por eles não ponham em risco a continuidade da existência de tais espécies ameaçadas?”[footnoteRef:17] [16: Tennessee Valley Authority vs. Hill, 437 U.S. 153 (1978). John Oakley chamou a atenção para o valor desse caso como exemplo. ] [17: Lei das Espécies Ameaçadas de 1973, Pub. L. W 93-205, seco 7, 87. Lei. 884, 892 (codificada como foi emendada em 16 U .S. C. seco 1536 [1982]). ] 
Um grupo de preservacionistas do Tennessee vinha se opondo aos projetos de construção de uma barragem da Administração do Vale do Tennessee, não devido a alguma ameaça às espécies, mas porque esses projetos estavam alterando a geografia da área ao transformarem regatos que corriam livremente em feios e estreitos fossos, com a finalidade de produzir um aumento desnecessário (como pensavam os preservacionistas) de energia hidrelétrica. Esse grupo descobriu que uma barragem quase concluída, que já consumira mais de cem milhões de dólares, ameaçava destruir o único hábitat do snail darter, um peixe de 7,5 cm, destituído de qualquer beleza, interesse biológico ou importância ecológica especiais. Convenceram o ministro a apontar esse peixe como uma espécie ameaçada de extinção e a tomar as medidas legais para impedir que a barragem fosse concluída e usada. 
Quando o ministro assim procedeu, a Administração do Vale argumentou que a lei não podia ser interpretada de modo a impedir a conclusão ou operação de qualquer projeto já em fase avançada de construção. Afirmou que as palavras “ações autorizadas, financiadas ou executadas” deviam ser entendidas como uma referência ao início de um projeto, não à conclusão de projetos já iniciados. Para sustentar seu pedido, chamou-se a atenção para várias leis do Congresso, todas aprovadas depois de o ministro ter declarado que a conclusão da barragem destruiria o snail darter, o que sugeria que o Congresso desejava que a barragem fosse concluída a despeito da declaração. O Congresso autorizara, especificamente, a dotação de recursos para a continuidade do projeto mesmo após o ministro ter apontado aquele peixe como espécie ameaçada, e várias de suas comissões declararam, específica e reiteradamente, discordar do ministro, aceitar a interpretação da lei feita pela Administração do Vale e desejar que o projeto prosseguisse. 
Não obstante, a Suprema Corte ordenou que a barragem fosse interrompida, apesar do enorme desperdício de recursos públicos. (O Congresso então aprovou uma outra lei, estabelecendo um procedimento geral para excluir a incidência da Lei das Espécies Ameaçadas com base nas conclusões de uma junta revisora.[footnoteRef:18]) [18: Emendas à Lei das Espécies Ameaçadas de 1978, Pub. L. W 95-632, 92 Lei 3571 (codificada como foi emendada em 16 U.S.C. sec. 1536 [1982]). ] 
McLoughlin 
O caso Elmer e o caso do snail darter têm, em sua origem, uma lei. Em cada caso, a decisão dependia da melhor interpretação da verdadeira lei, a partir de um texto legislativo específico. Em muitos processos judiciais, porém, o pleiteante não se fundamenta em uma lei, mas em decisões anteriormente tomadas por tribunais. Ele argumenta que o juiz do seu caso deve seguir as normas estabelecidas nesses casos anteriores, os quais, segundo alega, exigem um veredito que lhe seja favorável. O caso McLoughlin foi assim[footnoteRef:19]. [19: McLoughlin vs. O'Brian [1983] 1 A.C. 410, modificando [1981] Q.B.599. ] 
O marido e os quatro filhos da sra. McLoughlin foram feridos num acidente de carro na Inglaterra, mais ou menos às quatro da tarde do dia 19 de outubro de 1973. Ela estava em casa quando um vizinho lhe trouxe a notícia do acidente, por volta de seis horas, e dirigiu-se imediatamente ao hospital, onde foi informada de que a filha havia morrido e o marido e os outros filhos estavam em estado grave. Teve um colapso nervoso e mais tarde processou o motorista cuja negligência provocara o acidente, bem como outras pessoas de alguma forma envolvidas, exigindo uma indenização por danos morais. Seu advogado chamou a atenção para várias decisões anteriores dos tribunais ingleses concedendo indenização às pessoas que haviam sofrido danos morais ao verem um parente próximo gravemente ferido. Em todos esses casos, porém, o pleiteante tinha estado na cena do acidente ou ali chegara logo em seguida. Em um caso de 1972, por exemplo, uma mulher foi ressarcida - recebeu indenização - por danos morais; ela vira o cadáver do marido imediatamente após o acidente que lhe tirara a vida[footnoteRef:20]. Em 1967, um homem sem parentesco algum com as vítimas de um acidente de trem trabalhou durante horas tentando resgatá-las; a experiência o levou a um colapso nervoso, e ele conseguiu obter a indenização que pediu[footnoteRef:21]. O advogado da sra. McLoughlin fundamentou-se nesses casos como precedentes, decisões que haviam incorporado ao direito a norma jurídica segundo a qual pessoas na situação dela têm direito a ser indenizadas. [20: Marshall vs. Lionel Enterprise Inc. [1972] O.R. 177. ] [21: Chadwickvs. British Transport [1967]1 W.L.R. 912. 
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As diferenças de opinião sobre a natureza da doutrina estrita e a força da doutrina atenuada explicam por que certos processos são polêmicos. No mesmo caso, diferentes juízes divergem sobre o ponto de serem ou não obrigados a seguir alguma decisão tomada no passado, envolvendo a mesma questão de direito com que deparam no momento. Não foi esta, porém, a essência da controvérsia no caso McLoughlin. Seja qual for o ponto de vista dos advogados sobre a natureza e a força do precedente, a doutrina só se aplica a decisões passadas que apresentem suficiente semelhança com o caso atual para serem consideradas, como dizem os advogados, “pertinentes”.Às vezes, uma facção argumenta que certas decisões passadas são muito pertinentes, enquanto a outra afirma que essas decisões são “discrimináveis”, querendo com isso dizer que são diferentes do caso atual em algum aspecto que as isenta da doutrina. O juiz diante do qual a sra. McLoughlin apresentou sua petição pela primeira vez, o juiz de primeira instância, decidiu que os precedentes citados por seu advogado, sobre outras pessoas que haviam sido indenizadas por danos morais sofridos ao verem vítimas de acidentes, eram discrimináveis porque, em todos aqueles casos, o colapso nervoso ocorrera na cena do acidente, enquanto ela só sofrera o colapso cerca de duas horas mais tarde, em outro local. É evidente que nem todas as diferenças nos fatos relativos a dois casos tornam o anterior discriminável: ninguém podia imaginar que seria importante o fato de a sra. McLoughlin ser mais jovem que a pleiteante nos casos anteriores. 
O juiz de primeira instância considerou que o fato de o colapso nervoso ter ocorrido longe da cena do acidente constituía uma diferença importante, pois significava que os danos morais da sra. McLoughlin não eram “previsíveis” no mesmo sentido daqueles sofridos por outros pleiteantes. Os juízes britânicos e norte-americanos seguem o princípio do direito consuetudinário, segundo o qual as pessoas que agem com negligência só são responsáveis por danos razoavelmente previsíveis causados a terceiros, danos que uma pessoa sensata poderia antever se refletisse sobre a questão. O juiz de primeira instância foi obrigado, em virtude da doutrina do precedente, a admitir que o dano moral de parentes próximos na cena de um acidente é razoavelmente previsível, mas afirmou que o mesmo não se pode dizer do dano sofrido por uma mãe que viu os resultados do acidente mais tarde. Portanto, achou que desse modo podia fazer uma distinção entre os supostos precedentes, e decidiu contra a reivindicação da sra. McLoughlin. 
Ela recorreu de sua decisão ao tribunal imediatamente superior na hierarquia britânica, o Tribunal de Apelação[footnoteRef:22]. Esse tribunal confirmou a decisão do juiz de primeira instância - recusou a apelação da sra. McLoughlin e manteve a decisão judicial -, mas não com base na argumentação usada pelo juiz. O Tribunal de Apelação afirmou que era razoavelmente previsível que uma mãe corresse para o hospital para ver os membros feridos de sua família, e que sofresse um colapso emocional ao vê-los nas condições em que a sra. McLoughlin os encontrou. Esse tribunal discriminou os precedentes, não por esse motivo, mas pela razão muito diversa de que aquilo que ele chamou de política judiciária justificava uma distinção. Os precedentes haviam estabelecido responsabilidade por dano moral em certas circunstâncias restritas, mas segundo o Tribunal de Apelação o reconhecimento de uma esfera mais ampla de responsabilidade, incluindo danos a parentes que não estavam na cena no momento, poderia ter muitas consequências adversas para a comunidade como um todo. Incentivaria um número muito maior de processos por danos morais, o que exacerbaria o problema da saturação dos tribunais. Abriria novas oportunidades a reivindicações fraudulentas de pessoas que não haviam sofrido danos morais realmente graves, mas que podiam perfeitamente encontrar médicos dispostos a testemunhar o contrário. Aumentaria o custo do seguro de responsabilidade civil, encarecendo o ato de dirigir carros e, talvez, impedindo para sempre que alguns pobres dirigissem. As alegações dos que haviam sofrido um verdadeiro dano moral longe da cena do acidente seriam mais difíceis de comprovar, e as incertezas do litígio poderiam complicar seu estado de saúde e retardar sua recuperação. [22: [1981] Q.B. 599. ] 
A sra. McLoughlin apelou da decisão uma vez mais, desta vez à Câmara dos Lordes, que revogou a decisão do Tribunal de Apelação e ordenou um novo processo[footnoteRef:23]. A decisão foi unânime, mas os lordes divergiram sobre aquilo que chamavam de verdadeiro direito. Vários deles afirmaram que as razões de senso comum, do tipo descrito pelo Tribunal de Apelação, poderiam, em algumas circunstâncias, ser suficientes para discriminar uma série de precedentes e, desse modo, justificar a recusa de um juiz em estender o princípio daqueles casos a uma esfera mais ampla de responsabilidade. Mas não acharam que essas razões de política judiciária fossem suficientemente plausíveis ou meritórias no caso da sra. McLoughlin. Não acreditaram que o risco de um “dilúvio” de litígios fosse suficientemente grave, e afirmaram que os tribunais deveriam ser capazes de estabelecer uma distinção entre as reivindicações autênticas e as fraudulentas, mesmo no caso dos que sofressem o alegado dano várias horas após o acidente. Não se comprometeram a dizer quando argumentos de política judiciária poderiam ser utilizados para limitar as indenizações por danos morais; deixaram em aberto, por exemplo, a questão de se a irmã da sra. McLoughlin na Austrália (caso ela tivesse uma irmã lá) poderia ser indenizada pelo choque que sofreria ao ler sobre o acidente semanas ou meses depois, em uma carta. [23: [1983]1 A.C. 410. 
] 
Dois lordes adotaram uma concepção do direito bem diferente. Disseram que seria errado que os tribunais negassem a indenização a um pleiteante meritório, pelos tipos de razões que o Tribunal de Apelação havia mencionado, os quais, para os outros lordes, podiam ser suficientes em algumas circunstâncias. Os precedentes deviam ser vistos como discrimináveis, diziam eles, somente se, por alguma razão, os princípios morais admitidos nos casos anteriores não se aplicassem da mesma maneira ao pleiteante. E, uma vez admitido que o dano causado a uma mãe no hospital, horas depois do acidente, é razoavelmente previsível a um motorista negligente, nenhuma diferença pode ser encontrada entre os dois casos. A saturação dos tribunais ou o aumento do preço do seguro de responsabilidade civil para os motoristas, diziam eles, por mais que representem um inconveniente para a comunidade como um todo, não podem justificar a recusa em fazer satisfazer direitos e deveres individuais que anteriormente se reconheceram e fizeram cumprir. Afirmavam que esses eram os tipos errados de argumentos a se fazer aos juízes enquanto argumentos de direito, por mais convincentes que pudessem ser quando dirigidos a legisladores como argumentos favoráveis a uma mudança na lei. A argumentação dos lordes revelou uma importante diferença de opinião sobre o papel que cabe às considerações de política judiciária ao se decidir a quais resultados têm direitos as partes de uma ação judicial. 
Brown
Terminada a Guerra Civil norte-americana, o norte vitorioso emendou a Constituição para pôr fim à escravidão e a muitos de seus incidentes e consequências. Uma dessas emendas, a Décima Quarta, declarava que nenhum Estado poderia negar a ninguém “igualdade perante a lei”. Depois da Reconstrução, os Estados sulistas - de novo no controle de suas próprias políticas - praticaram a segregação racial em muitos serviços públicos. Os negros tinham de viajar na parte de trás dos ônibus e só podiam frequentar escolas segregadas, junto com outros negros. No famoso caso de Plessy vs. Ferguson[footnoteRef:24]; o réu alegou, perante a Suprema Corte, que essas práticas segregacionistas violavam automaticamente a cláusula da igualdade perante a lei. A Corte rejeitou a alegação, afirmando que as exigências dessa cláusula estariam sendo atendidas se os Estados oferecessem serviços separados, porém iguais, e que, por si só, o fato da segregação não tomava esses serviços automaticamente desiguais. [24: 163 U.S. 537 (1896). ] 
Em 1954, um grupo de crianças negras que frequentavam uma escola em Topeka, no Kansas, provocou a retomada da discussão do problema[footnoteRef:25]. Nesse ínterim, muitas coisas haviam acontecido nos Estados Unidos – um grande número de negros havia morrido pelo país numa guerra recente, por exemplo –, e a segregação parecia agora mais profundamente errada aos olhos de muitomais pessoas do que quando se decidira o caso Plessy. Não obstante, os Estados que praticavam a segregação resistiram ferozmente à integração, sobretudo nas escolas. Seus advogados argumentavam que, sendo Plessy uma decisão da Suprema Corte, era necessário respeitar o precedente. Dessa vez, a Corte tomou uma decisão favorável aos queixosos. [25: Brown VS. Board of Education, 347 U.S. (1954). O julgamento consolidou casos ocorridos em escolas segregadas em Topeka, Kansas; condado de Clarendon, Carolina do Sul; condado de Prince Edward, Virgínia, e condado de New Castle, Delaware. Ver 347 U.S. na página 486 n.I. 
] 
Sua decisão foi inesperadamente unânime, ainda que a unanimidade tenha sido obtida graças ao voto escrito por Earl Warren, presidente do Supremo Tribunal, o qual sob muitos aspectos era uma solução conciliatória. Ele não rejeitou cabalmente a fórmula “separado porém igual”; em vez disso, baseou-se em controvertidas evidências sociológicas para mostrar que as escolas nas quais se praticava segregação racial não podiam ser iguais por esta única razão. Ele também não disse, de modo categórico, que a Corte estava então revogando o caso Plessy. Disse apenas que se a presente decisão estivesse em contradição com o caso Plessy, então aquela decisão anterior estaria sendo revogada. Em termos práticos, o compromisso mais importante estava na intenção de reparação que o parecer outorgou aos queixosos. Esse voto não ordenou que as escolas dos Estados sulistas abolissem imediatamente a segregação, mas apenas, segundo uma expressão que se tomou um emblema de hipocrisia e demora, "a toda velocidade adequada”[footnoteRef:26]. [26: Essa frase foi usada num segundo julgamento sobre o assunto relativo a remédios jurídicos, Brown vs. Board of Education, 349 U.S. 294, 301 (1955). ] 
A decisão foi muito polêmica, o processo de integração que se seguiu foi lento, e o progresso significativo só foi obtido ao preço de muitas outras batalhas jurídicas, políticas e até mesmo físicas. Os críticos afirmaram que a segregação, apesar de deplorável em termos de moralidade pública, não era inconstitucional[footnoteRef:27]. Observaram que, por si mesma, a expressão “igual proteção” não determina se a segregação é proibida ou não; que os congressistas que haviam aprovado a Décima Quarta Emenda tinham plena consciência da segregação nas escolas e, ao que parece, achavam que a emenda preservaria sua legitimidade; e que a decisão da Corte no caso Plessy era um importante precedente, de linhagem quase antiga, e não deveria ser levianamente derrubada. Tratava-se de argumentos sobre os fundamentos reais do direito constitucional, não de alegações de moralidade ou reparação: muitos dos que as sustentavam estavam de acordo quanto à natureza imoral da segregação e admitiam que a Constituição seria um documento melhor se a houvesse proscrito. Tampouco os argumentos daqueles que concordavam com a Corte eram argumentos de seu valor moral ou reforma. Se, do ponto de vista jurídico, a Constituição não proibia a segregação racial oficial, então a decisão do caso Brown era uma emenda constitucional ilícita, e muito poucos dos que apoiaram a decisão pensariam estar apoiando tal coisa. Em torno desse caso, como de outros que aqui apresentamos como exemplos, travou-se uma batalha sobre a questão do direito. Ou assim pareceu aos que travaram essa batalha. [27: Ver Charles Fairman, “Forward: The Attack on the Segregation Cases”, 70 Harvard Law Review 83 (1956). 
] 
O caso Sorenson 
A sra. Sorenson sofria de artrite reumatoide e, durante muitos anos, tomou um medicamento genérico – Inventum – para aliviar seu sofrimento. Ao longo desse período, o Inventum foi fabricado e comercializado com diferentes nomes comerciais por onze laboratórios farmacêuticos diferentes. Na verdade, o medicamento apresentava efeitos colaterais graves e não divulgados, dos quais os fabricantes deveriam ter tido conhecimento, e a sra. Sorenson passou a ter problemas cardíacos permanentes. Ela não conseguiu provar quais comprimidos de qual fabricante havia tomado, nem quando, e é evidente que também não conseguiu provar quais comprimidos de que fabricante tinham, de fato, causado seu problema. Ela processou de uma só vez todos os laboratórios que haviam fabricado o Inventum, e seus advogados argumentaram que todos eram responsáveis perante ela de acordo com sua participação no mercado do medicamento durante os anos de tratamento da sra. Sorenson. Os laboratórios farmacêuticos contestaram que a petição da demandante era totalmente inédita e contradizia a antiga premissa da responsabilidade civil de que ninguém é responsável por danos que não se consiga provar que tenha causado. Para eles, uma vez que a sra. Sorenson não tinha como comprovar que nenhum demandado em particular a havia prejudicado, ou mesmo fabricado o Inventum por ela tomado, não era possível exigir que ela fosse indenizada por nenhum deles. 
Como os advogados e os juízes poderiam decidir qual das partes – a sra. Sorenson ou os laboratórios farmacêuticos – estava certa em suas afirmações sobre o que é, de fato, exigido pelo direito? Em minha opinião, como já afirmei aqui, eles deveriam tentar identificar os princípios gerais que fundamentam e justificam o direito estabelecido de responsabilidade civil do fabricante de um produto, e depois aplicar esses princípios ao caso. Eles poderiam descobrir, como insistiam os laboratórios, que o princípio de que nenhuma pessoa é responsável por danos que não se possa provar que tenham sido causados por essa pessoa ou por qualquer outra encontra-se tão solidamente arraigado no precedente que a sra. Sorenson deve, portanto, ter suas pretensões categoricamente recusadas. Por outro lado, eles também poderiam encontrar apoio considerável a um princípio antagônico - por exemplo, aquele segundo o qual quem lucrou com algum empreendimento também deve arcar com seus custos - que possa justificar a ação judicial para o problema inédito de participação de mercad0. Portanto, do ponto de vista que defendo, a sra. Sorenson poderia, mas não necessariamente, obter o melhor resultado em sua ação judicial. Tudo depende da melhor resposta à difícil questão de saber que conjunto de princípios oferece a melhor justificação para essa área do direito como um todo. 
Snepp e Richmond Newspapers[footnoteRef:28]* [28: DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2005. Publicado originalmente em The New York Times Review of Books, 4 de dezembro, 1980. ] 
A imprensa tem passado por uma fase de altos e baixos nos tribunais recentemente. Várias decisões excitaram seu temor de que a proteção da Primeira Emenda à Constituição estava diminuindo. Um ponto baixo foi a decisão do Supremo Tribunal em 1980 no caso surpreendente de Estados Unidos contra Snepp, no qual a Corte ordenou que um autor cedesse ao governo todos os seus lucros sem sequer realizar uma audiência sobre a questão. Mas a imprensa também conseguiu o que considera importantes vitórias. Uma foi o caso Richmond Newspapers, de 1980, no qual o Tribunal inverteu sua decisão de um caso anterior e sustentou que os repórteres, pelo menos em princípio, têm direito de assistir a julgamentos criminais mesmo quando o réu deseja excluí-los[footnoteRef:29]. [29: O caso anterior foi Gannett contra DePasquale do qual a imprensa se ressentiu especialmente. A decisão permitiu que um juiz excluísse repórteres de uma audiência pré-julgamento, e o arrazoado do presidente do Tribunal, o juiz Burger, no caso Richmond Newspapers, declara que a decisão anterior tinha a intenção de aplicar-se apenas a tais audiências, não a julgamentos efetivos. Mas a opinião de Burger no caso Gannett, assim como as opiniões dos outros juízes, parecia abranger também julgamentos efetivos, de que a decisão de Richmond Newspapers foi, provavelmente, uma mudança de opinião, como diz o juiz Blackmun no parecer separado que emitiu no segundo caso. 
] 
Estados Unidos contra Snepp é, de longe, o mais importante dos dois casos. Snepp assinouum contrato quando se juntou à CIA, prometendo submeter-lhe qualquer coisa que escrevesse posteriormente a seu respeito. A CIA argumenta que esse acordo, que obtém de cada agente, é necessário para que ela possa julgar antecipadamente se algum material que um autor proponha publicar é confidencial, e promover ação jurídica para proibir o que realmente julga confidencial se o autor não aceita seu julgamento. Depois de deixar a agência, Snepp escreveu um livro chamado Decent interval, no qual critica asperamente a conduta da CIA no Vietnã durante os últimos meses da guerra[footnoteRef:30]. Ele temia que a agência utilizasse seu direito de rever o original para retardá-lo ou hostilizá-lo, afirmando que questões sem importância eram confidenciais, como a agência certamente fizera no caso de Victor Marchetti, outro antigo agente que escrevera um livro e o submetera a apreciação[footnoteRef:31]. Depois de muita indecisão, Snepp decidiu publicar o livro sem submetê-lo antes à CIA. [30: Frank Snepp, Decent Interval: an Insider's Account of Saigon's Indecent End Told by the CIA’s Chief Strategy Analyst in Vietnam (Nova York: Random House, 1977). ] [31: Victor Marchetti e John D. Marks, The CIA and The Cult of Intelligence (Nova York: Knopf, 1974). 
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A CIA valeu-se do contrato para processá-lo. Snepp argumentou que a Primeira Emenda tornava nula sua aceitação do contrato, pois este era uma forma de censura. Contudo, nem a Corte do distrito federal nem o Tribunal de Apelação, ao qual Snepp recorreu, aceitou a reivindicação. O tribunal do distrito ordenou que Snepp, à guisa de reparação, entregasse ao governo todos os lucros obtidos com o livro – seus únicos ganhos durante vários anos de trabalho –, mas o Tribunal de Apelação alterou a decisão do tribunal do distrito nesse ponto. Disse que o governo deveria contentar-se com o reparo efetivo dos danos que pudesse provar ter sofrido pelo fato de Snepp ter rompido seu contrato, que é a reparação normal em casos de quebra de contrato. 
Snepp recorreu ao Supremo Tribunal baseado na Primeira Emenda. O governo pediu ao tribunal que não aceitasse o caso para revisão e disse que, nas circunstâncias, estava satisfeito com a reparação por danos que o Tribunal de Apelação ordenara. Acrescentou, porém, que se o tribunal realmente aceitasse o caso, aproveitaria a oportunidade para argumentar no sentido de que o tribunal restabelece a separação muito mais onerosa do tribunal do distrito. No fim, o tribunal realmente aceitou o caso, contra os desejos do governo, mas, como se revelou depois, apenas com o propósito de restabelecer a pena mais severa. O tribunal fez isso, contrariando todas as tradições de equidade judicial, sem oferecer oportunidade de argumentação a ninguém. Um tribunal supostamente dominado pelo ideal de comedimento judicial distorceu princípios de equidade processual para chegar a um resultado que nenhuma das partes pedira. 
O caso de Bakke: as quotas são injustas?[footnoteRef:32] [32: DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo, Martins Fontes, 2005. Publicado originalmente em The New York Review of Books, 10 de novembro, 1977. Publicado originalmente em The New York Review of Books, 17 de agosto, 98.
] 
Em 12 de outubro de 1977, o Supremo Tribunal ouviu a sustentação oral no caso Regentes da Universidade da Califórnia contra Allan Bakke. Nenhuma ação judicial foi acompanhada tão de perto ou tão debatida pela imprensa nacional e internacional antes da decisão do Tribunal. Ainda assim, alguns dos fatos mais pertinentes colocados perante o Tribunal não foram resumidos claramente. 
A escola de medicina da Universidade da Califórnia em Davis tem um programa de ação afirmativa (chamado “programa de força-tarefa”) com o intuito de admitir mais estudantes negros e de outras minorias. Reserva dezesseis vagas para as quais concorrem apenas membros de “minorias em desvantagem educacional e econômica”. Allan Bakke, branco, candidatou-se a uma das oitenta e quatro vagas restantes; foi rejeitado mas, como as notas de seu teste eram relativamente altas, a escola de medicina reconheceu que não podia provar que ele teria sido rejeitado se as dezesseis vagas estivessem abertas a ele. Bakke promoveu uma ação, argumentando que o “programa de força-tarefa” o havia privado de seus direitos constitucionais. O Supremo Tribunal da Califórnia concordou e ordenou que a escola de medicina o admitisse. A universidade recorreu ao Supremo Tribunal. 
O programa de Davis para minorias é, em certos aspectos, mais franco que os planos similares hoje em vigor em muitas outras universidades e escolas profissionalizantes dos Estados Unidos. Tais programas têm como objetivo aumentar a matrícula de estudantes negros e de outras minorias admitindo que o critério racial conte afirmativamente como parte das razões para admiti-los. Algumas escolas estabelecem o “alvo” de uma quantidade específica de vagas para minorias em vez de estabelecer um número fixo de vagas. Davis, porém, não queria preencher as vagas reservadas a menos que houvesse dezesseis candidatos de minorias que considerasse claramente qualificados para a formação médica. A diferença, portanto, é de estratégia administrativa e não de princípio. 
Naturalmente, se Bakke está certo em que tais programas, não importa quão eficazes sejam, violam seus direitos constitucionais, eles não devem ter permissão para continuar. Mas não devemos proibi-los em nome de alguma máxima descuidada, como a de que não pode estar certo combater fogo com fogo ou de que o fim não pode justificar os meios. Se as alegações estratégicas a favor da ação afirmativa são válidas, não podem ser descartadas com a justificativa de que testes racialmente explícitos são repugnantes. Se tais testes são repugnantes, só pode ser por motivos que tornam ainda mais repugnantes as realidades sociais subjacentes que os programas atacam. 
Dizem que, numa sociedade pluralista, a condição de membro de um grupo específico não pode ser usada como critério de inclusão ou exclusão de benefícios. Mas a condição de membro de um grupo, como questão antes de realidade social que de padrões formais de admissão, é hoje parte do que determina a inclusão ou a exclusão para nós. Se devemos escolher entre uma sociedade realmente liberal e uma sociedade não liberal que evita escrupulosamente critérios raciais formais, não podemos recorrer aos ideais do pluralismo liberal para preferir a segunda. 
Se Allan Bakke tem um direito constitucional tão importante que os objetivos urgentes da ação afirmativa devam ceder, isso deve ser porque a ação afirmativa viola algum princípio fundamental da moralidade política. Esse não é um caso no qual o que se poderia chamar de Direito formal ou técnico exija uma decisão em um sentido ou em outro. Não há nenhum texto na Constituição cujo significado claro proíba a ação afirmativa. Apenas as teorias mais ingênuas de interpretação legislativa poderiam afirmar que tal resultado decorre de qualquer decisão anterior do Supremo Tribunal, da Lei dos Direitos Civis de 1964 ou de qualquer outra decisão do Congresso. Se Colvin está certo, deve ser porque Allan Bakke tem não somente um direito jurídico técnico, mas também um importante direito moral. 
O que poderia ser esse direito? O argumento popular, colocado com frequência nas páginas de editoriais, é o de que Bakke tem direito de ser avaliado segundo seu mérito. Ou que tem direito de ser avaliado como indivíduo, não como membro de um grupo social. Ou que tem direito, tanto quanto qualquer negro, de não ser sacrificado ou de ter uma oportunidade excluída apenas por causa de sua raça. Mas essas expressões capciosas são enganosas no caso porque, como a reflexão demonstra, o único princípio genuíno que descrevem é o de que ninguém deve sofrer com o preconceito ou o desprezo dos outros. E esse princípio não está absolutamente em jogo nesse caso. Apesar da opinião popular, a ideia de que o caso Bakke apresenta um conflito entre um objetivo social desejável e direitos individuais importantes é uma confusãointelectual. 
Considere, por exemplo, a afirmação de que indivíduos que se candidatam a vagas na escola de medicina devem ser avaliados segundo o mérito, exclusivamente. Se esse lema significa que os comitês de admissão não devem levar mais nada em consideração, além das notas em algum teste de inteligência específico, ele é arbitrário e, de qualquer modo, contestado pela prática consagrada de todas as escolas de medicina e significa, por outro lado, que uma escola de medicina deve escolher os candidatos que, segundo acredita, serão os médicos mais úteis, tudo depende do julgamento de quais fatores tornam úteis diferentes médicos. A escola de medicina de Davis atribuiu a cada candidato regular, assim como a cada candidato de minorias, aquilo que chamou de “nota de referência de nível”. Essa nota refletia não apenas o resultado de testes de aptidão e médias do colégio, mas uma avaliação subjetiva das chances do candidato de atuar como um médico eficiente, em vista das presentes necessidades de serviço médico da sociedade. Presumivelmente, as qualidades consideradas importantes eram diferentes daquelas que uma escola de Direito, engenharia ou administração buscaria, exatamente como os testes de inteligência que uma escola médica poderia usar seriam diferente dos testes que essas outras escolas julgariam adequados. 
Não há nenhuma combinação de capacidades, méritos e traços que constituam o “mérito” no sentido abstrato; se mãos ágeis contam como “mérito” no caso de um possível cirurgião, é somente porque mãos ágeis irão capacitá-la a atender melhor o público. Se uma pele negra, infelizmente, capacita outro médico a fazer melhor um outro trabalho médico, a pele negra, em prova do que digo, também é um mérito. Para alguns, esse argumento pode parecer perigoso, mas apenas porque confundem sua conclusão – que a pele negra pode ser uma característica socialmente útil em dadas circunstâncias – com a ideia muito diferente e desprezível de que uma raça pode ter inerentemente mais valor que outra. 
Considere a segunda das expressões capciosas que mencionei. Dizem que Bakke tem direito de ser avaliado como “indivíduo” na decisão de admiti-la ou não na escola de medicina e, assim, na profissão médica, e não como membro de algum grupo que está sendo julgado como um todo. O que isso pode significar? Qualquer processo de admissão deve valer-se de generalizações sobre grupos justificadas apenas estatisticamente. O processo de admissão regular em Davis, por exemplo, estabeleceu uma nota de corte para médias do colégio. 
Candidatos cujas médias estivessem abaixo desse número não eram chamados para nenhuma entrevista e, portanto, eram rejeitados imediatamente. 
Um candidato cuja média fosse um ponto abaixo do limite poderia muito bem possuir qualidades pessoais de dedicação ou solidariedade que se teriam revelado numa entrevista, e isso faria dele um médico melhor que algum candidato cuja média fosse um ponto acima do limite. Mas o primeiro é excluído do processo com base numa decisão tomada por conveniência administrativa e fundada na generalização, cuja validade para todos os indivíduos é improvável, de que todos os que têm médias abaixo do limite não terão outras qualidades suficientemente persuasivas. Mesmo o uso dos testes padrão de aptidão para a faculdade de medicina como parte do processo de admissão exige que se avaliem as pessoas como parte de grupos, pois supõe que as notas dos testes são um guia para a inteligência médica, que, por sua vez, é um guia para a capacidade médica. Embora esse julgamento, sem dúvida, seja verdadeiro estatisticamente, não é válido para todos os indivíduos. 
O próprio Allan Bakke foi recusado em duas outras escolas de medicina, não por causa de sua raça, mas por causa de sua idade: as escolas acharam que um estudante que entrasse na escola de medicina com 33 anos provavelmente contribuiria menos para o serviço médico ao longo de sua carreira do que alguém que entrasse na idade padrão de 21 anos. Suponha que, para determinar se Bakke tinha capacidades que negariam a generalização no seu caso específico, essas escolas tenham se baseado não numa investigação detalhada mas numa regra empírica que permitia apenas um exame superficial de candidatos acima de, digamos, 30 anos. Essas duas escolas de medicina violaram o direito dele de ser avaliado como indivíduo e não como membro de um grupo? 
A reivindicação de Bakke, portanto, deve tornar-se mais específica. Ele diz que foi excluído da escola de medicina por causa de sua raça. Quer dizer que foi excluído porque sua raça é objeto de preconceito ou desprezo? Essa sugestão é absurda. Uma proporção muito alta dos que foram aceitos (e, presumivelmente, dos que dirigem o programa de admissão) eram membros da mesma raça. Portanto, ele quer dizer simplesmente que se fosse negro teria sido aceito, sem nenhuma sugestão de que isso teria ocorrido porque os negros são considerados mais dignos ou honrados que os brancos. 
Isso é verdade: sem dúvida, ele teria sido aceito se fosse negro. Mas também é verdade, e exatamente no mesmo sentido, que teria sido aceito se fosse mais inteligente, se causasse melhor impressão na entrevista ou, no caso de outras escolas, se fosse mais jovem quando decidiu tornar-se médico. A raça não é, no caso dele, uma questão diferente desses outros fatores igualmente fora do seu controle. Não é uma questão diferente porque no seu caso a raça não se distingue pelo caráter especial do insulto público. Pelo contrário, o programa pressupõe que sua raça ainda é amplamente considerada superior às outras, ainda que isso seja um equívoco. 
No passado fazia sentido dizer que um estudante negro ou judeu excluído estava sendo sacrificado por causa de sua raça ou religião; isso significava que sua exclusão, por si só, era tida como desejável, não porque contribuísse para algum objetivo do qual ele e o resto da sociedade poderiam orgulhar-se. Allan Bakke está sendo “sacrificado” no mesmo sentido artificial por causa de seu nível de inteligência, já que teria sido aceito se fosse mais inteligente do que é. Em ambos os casos, está sendo excluído não por preconceito mas por causa de um cálculo racional do uso socialmente mais benéfico de recursos limitados para a educação médica.

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