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Nem Sócrates

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NEM SÓCRATES, NEM TRASÍMACO[footnoteRef:1] [1: A propósito do primeiro livro de A República, de Platão.] 
Waldir Souza Guimarães
	
	Introdução 
	A justiça é o tema do primeiro livro de A República, e ele aparece como problema já no item 331c, quando Sócrates fala com Céfalo, homem rico e equilibrado, admirado pelos concidadãos e cumpridor de suas obrigações para com os deuses. Pergunta-lhe Sócrates se a justiça consiste realmente em “falar a verdade” e “dar a cada um o que lhe é devido”, como Simônides[footnoteRef:2] a definia. Céfalo concorda com Simônides, e acredita ter sido ele mesmo um homem justo de acordo com essas máximas, embora aceite o argumento de Sócrates segundo o qual nem sempre estas funcionam, sobretudo quando aquele a quem se deve não se encontra em perfeitas condições de seu juízo, como no caso da restituição de um bem que ele nos dera para guardar, por exemplo. [2: Simônides de Ceos (556-469 a.C.), poeta lírico grego, famoso por suas elegias, odes e epigramas.] 
	Céfalo se retira em seguida, para oferecer aos deuses seus sacrifícios. E Polemarco, o herdeiro de sua riqueza, toma-lhe o lugar, herdando também a conversa. Inicialmente, sua posição é a mesma de Céfalo. Mas Sócrates agora amplia seu horizonte investigativo. Em primeiro lugar, retifica sua interpretação da máxima, dizendo que Simônides na verdade queria dizer outra coisa, a saber: que aos amigos se deve fazer o bem e, o mal, aos inimigos. Por amigo entendem ambos, Sócrates e Polemarco, o homem de bem, e por inimigo o mau. A justiça é praticada pelo homem bom, e a injustiça pelo seu contrário. Mas aí se descobre outro problema: se a justiça é fruto da bondade, então o homem de bem jamais poderá causar danos a alguém, nem mesmo aos inimigos; “em nenhuma circunstância”, conclui Sócrates, “será justo causar dano a qualquer pessoa” (335e). A dúvida, no entanto, continua; mesmo com a hipótese dessa nova interpretação, passam a desconfiar de que a máxima seja mesmo de Simônides. É quando aparece um outro interlocutor, que discordava de tudo o que ouvira e estava há muito ansioso para entrar na conversa. Era Trasímaco, personagem tão importante como Sócrates daqui para frente.
	A tese de Trasímaco
	Trasímaco, que até então tinha controlado a sua língua, explode dizendo que tudo aquilo não passava de desatino, futilidade, tagarelice. Chama a atenção de Sócrates, para que, em vez de ficar ironizando com as definições alheias, desse ele próprio a sua definição de justiça. “Porém”, completa, “não me venhas dizer que a justiça é dever, ou utilidade, ou vantagem, ou interesse” (336c). Todos estes conceitos são deduzidos do que se dissera antes. Sócrates, como sempre, declara que não sabe; prefere ouvir a definição de Trasímaco, que ardia do desejo de dizê-la. E este disse: “o justo não é mais nem menos do que a vantagem do mais forte” (338c).
	Posição de Sócrates
	Observemos que Trasímaco exigira antes que não se falasse em justiça como “vantagem”; no entanto, ele mesmo assim a define. Não seria incoerência?
	Sócrates demora em compreender o que acabava de ouvir; sem dúvida era uma definição muito estranha, se comparada com o que vinha discutindo. Mas Trasímaco a esclarece, dizendo que basta lembrar da constituição dos governos – o democrático, o tirânico etc. – onde o conteúdo dessa definição de justiça melhor se aplica. “Cada governo promulga leis com vistas à vantagem própria”, categoriza ele. E Sócrates compreende, mas diz que precisam investigar se isto é verdadeiro. Observa que em algum ponto Trasímaco concorda com ele, naquilo exatamente que este lhe havia proibido de dizer, que era relativo ao vantajoso. Só havia um pequeno acréscimo, que à primeira vista parecia insignificante aos olhos de Sócrates; dizia respeito ao “mais forte”. Isto ele ignorava, razão por que se propunha investigar. 
	Sua investigação se inicia pela colocação da infalibilidade dos governantes. Se estes erram, segundo Sócrates, correm o risco de legislar, não em benefício, mas em prejuízo de si próprios. Trasímaco concorda com este raciocínio; mas logo se dá conta da sua postura contraditória. Adverte para o fato de que o médico é médico não porque erra, mas quando acerta; e isto se aplicaria a todos os tipos de profissão ou função, inclusive a dos governantes. Sua característica básica é a de não errar, sob o risco, sabemos, de não ser reconhecido, de ter cassado o próprio registro ou ser excluído da categoria.
	Nenhum governante, portanto, poderá errar enquanto governa. Ou então, sendo mais exato, só porque é governante não significa que não erra. Mas não é o erro que determina a sua natureza. Textualmente diz Trasímaco: “enquanto governante, jamais erra, e, não errando, só legisla em vantagem própria” (341a). E o súdito lhe obedece, cumprindo ou realizando assim a verdade da sua definição de justiça. 
	Nossa análise
	O que está em jogo aqui, tanto em Sócrates como em Trasímaco, é a relação entre justiça e conhecimento, ou em termos mais amplos, entre saber e poder. Os interlocutores concordam com a tese de que aquele que sabe possui as condições para levar a efeito o que intenciona, planeja ou deseja. Se a justiça tem a ver com a efetividade de alguma idéia, projeto ou desejo, então, deste ponto de vista, haverá uma íntima relação, ou equivalência, entre justiça e conhecimento, do mesmo modo que se equivalem injustiça e ignorância. O conhecimento é sinônimo de poder, virtude, eficiência e, a ignorância, o contrário disto: fraqueza, vício, incompetência. 
Indo mais longe, se o conhecimento tem por objetivo a produção da verdade, a verdade do conhecimento leva automaticamente à produção da justiça. Ou: nenhuma distinção semântica existiria entre estes dois conceitos. Procurar a verdade é procurar a justiça. Conhecer é tornar-se justo. Por isto Sócrates diz que o justo é verdadeiro. A inversa também é correta: o verdadeiro é justo. E, por conseguinte, o falso é injusto. É inadmissível o falso, porque ele representa a ausência de conhecimento, isto é, de verdade, justiça. Não-verdade, ou ignorância, injustiça, exprimem debilidade e imperfeição. 
O que é verdadeiro e o que é falso? Falso, depreende-se pelas últimas palavras de Trasímaco, é quando se erra e, verdadeiro, quando se acerta. Isto quer dizer: se a justiça tem a ver com o conhecimento e a injustiça com a ignorância, o justo é aquele que acerta e, injusto, o que erra. O justo é sábio e o injusto o seu contrário. Esclarecendo: erra-se ou se acerta em relação ao alvo que se visa. A veracidade e a falsidade, ou a justiça e a injustiça, constituem um problema teleológico. A razão do falso e do verdadeiro se encontraria, não numa qualidade do ser que conhece, mas no objetivo que este visa quando conhece. Não haveria, para Trasímaco, algo como neutralidade no saber, e a sua verdade ou falsidade se expressam em termos de eficácia. Estaria aí a origem da visão pragmático-utilitarista do conhecimento?
Quem tem a força pelo saber é também o “mais forte”, pois, conforme a argumentação do filósofo citado, Trasímaco, acertar sempre é tarefa do mais forte, isto é, do governante, como o é do médico, do mestre, do sábio etc. O que acerta não só é o mais forte como leva vantagem sobre os que estão em erro, os mais fracos ou ignorantes; e o destino destes é obedecer, ser súdito, fazer (ou reconhecer) a vantagem do mais forte. O menos forte, isto é, o que não é governante, médico, mestre etc., e portanto o que ignora, demonstrará a sua “justiça” na medida em que obedece. Logicamente a maior vantagem será do primeiro; ou nos termos do interlocutor de Sócrates, o conhecimento que ele tem realizará em plenitude a sua “vantagem própria”. 
Procurando entender Trasímaco
Sócrates pergunta ao seu interlocutor se ele está sendo rigoroso em sua definição de governante, e exige mais esclarecimentos. Pois, em seu entender, é preciso ver intrinsecamente em que consiste cada coisa. Neste sentido procura examinar o que significa em si mesma cada arte citada – do governante, do médico, do marinheiro etc.,– no que é concordado por seu interlocutor. E mais: reporta a este em si o que até agora foi entendido por “vantagem”; o aspecto vantajoso seria também intrínseco à arte, por sua própria utilidade, embora tal vantagem seja limitada pela imperfeição da mesma arte. Trasímaco está de acordo.
A vantagem aqui, sugere Sócrates, não está numa abstração da arte enquanto arte e nem na relação daquele que a possui, e sim, no objeto a que cada uma serve: a da medicina, por exemplo, está em servir ao corpo, a da equitação ao cavalo, a do piloto ao marinheiro e assim por diante. Mais uma vez assente Trasímaco. E daí Sócrates conclui que, na medida em que procuram esse interesse, as artes têm o poder dos objetos, isto é, dos homens a que se aplicam. O que quer dizer que elas determinam a vantagem do mais fraco. Se o objeto fosse o mais forte, naturalmente não haveria necessidade de nenhuma arte que o servisse, ou governasse. Trasímaco não tem como discutir. 
De forma sucinta observaríamos o seguinte: o que ambos não parecem perceber é que, do ponto de vista da arte, não há mais forte e nem menos forte, mais vantajoso e nem menos vantajoso; nós, os seus objetos, somos todos iguais em necessidade e poder, aos quais elas se aplicam indiscriminadamente. A única diferença que haveria, seria uma diferença de consumo. 
Seguindo o raciocínio de Sócrates, o passo seguinte e logicamente obrigatório era concluir que a arte de comandar busca o interesse também do comandado, isto é, do mais fraco ou menos sábio, o súdito, e não o contrário. Obviamente, não por causa da natureza mesma da arte de comandar, que tem suas regras ou exigências próprias, mas – fazendo oposição a Trasímaco –, porque o comandante não seria justo ou virtuoso querendo sobrepor-se ao comandado, tirando dele a sua vantagem pessoal. 
Sócrates muda o enfoque
Pelo que se vê, a questão da justiça toma uma conotação essencialmente ética. O justo não é o que tem algum conhecimento para alcançar vantagem própria, o que “fala a verdade” ou dá “a cada um o que lhe é devido”. Ele não se prende ao cálculo e à medida. A justiça não é uma questão aritmética. E muito menos o que busca a sua vantagem exclusiva. É engano, aliás, supor que a máxima do levar vantagem em tudo não está sujeita a desvantagem nenhuma. 
Trata-se, portanto, de uma concepção que diverge, não só do político Trasímaco, como também do poeta Simônides. A justiça não é fruto somente do conhecimento; há um outro aspecto envolvido, tão ou mais importante quanto o primeiro, e que nos é intrínseco. Algo que se manifesta numa espécie de evidência imediata, e pelo qual sabemos o que podemos e/ou devemos fazer. 
	Quando se coloca a resposta ao problema da justiça na figura do governante, porque ele é o “mais forte” e pode por isto alcançar a sua “vantagem própria”, cumpre perguntar se tal colocação é legítima. Trata-se de uma postura subjetiva, sem qualquer fundamentação teórica. E mesmo que fosse rigorosa, não conseguiríamos entender que a força simplesmente e o interesse pessoal sejam critérios para a ação válida. 
	
	Um poderoso equívoco
 Poderíamos perguntar também se existe alguma relação entre o poder e as artes. Pois, segundo Trasímaco, a força do governante é tanto mais eficaz quanto mais vinculada estiver a estas últimas. Isto supõe que o poder seja algo exclusivamente técnico. O que não é verdade. As artes – como disse Sócrates – se justificam por algo exterior, um objeto a que servem, e dependem deste para existir, ao contrário dos governantes, cuja causa primordial não se encontra fora deles. O seu poder não advém do mundo que governam, ou das técnicas que utilizam para isto, mas de uma fonte inconfessável. Os governantes são tão misteriosos como os deuses. Nem mesmo na democracia as intenções são muito claras. Se os governantes visam fins que só dizem respeito a eles próprios, como observou Trasímaco, fica ainda mais fácil perceber a inconsistência que há na opinião que liga as artes ao poder. Pois aquelas, como foi dito, procuram fins universais, ao contrário deste, que está a serviço do interesse particular.
	Como Sócrates recorrera às artes, Trasímaco replica recorrendo ao pastor e suas ovelhas, lembrando que aquele jamais visa o bem destas últimas e, sim, o seu e o do seu senhor. Ao nosso ver, trata-se de uma medíocre analogia, um sofisma. Ninguém pode, em sã consciência, comparar um homem a uma ovelha. Sócrates, no entanto, é cauteloso. Ele nada toma por certo à primeira vista; percorre pacientemente todas as hipóteses, na esperança de encontrar uma boa luz. 
	Trasímaco mesmo admite que o homem verdadeiramente justo não é aquele que está no poder usufruindo de suas vantagens. “Por injusto”, diz ele, “tenho em mente o que disse há pouco: quem sabe obter para si as maiores vantagens” (344 a). O verdadeiro justo está sob o jugo do injusto, sendo dominado e prejudicado por ele. Pois observa: “O que precisas considerar, meu Sócrates simplacheirão, é que por toda a parte o homem justo perde do injusto” (343d). Com isto ele demonstra também a sua desconfiança dos homens fortes; Trasímaco não é um reacionário; talvez apenas um homem capitulado diante da própria fraqueza. Por isso afronta Sócrates, como acreditando achar na companhia desse sábio algum motivo extra de orgulho. Para vingar-se, ironiza; um finge que nada sabe e, o outro, que tudo vai bem, obrigado. Se a conversa tivesse ao menos um aroma de verdade... Tal, porém, não permite seu objeto.
	E então? 
	
O justo não tem vez. Mesmo que este venha ocupar o governo, seus interesses correm perigo, pois não lhe agrada tirar proveito dos negócios públicos. Eis porque, dentre outras conseqüências, a fala de Trasímaco obriga seus interlocutores a aceitar “que a justiça é o interesse do mais forte e que a injustiça só trabalha para o proveito e benefício próprio” (344d). 
	Sócrates está profundamente preocupado com o que acaba de ouvir. Para ele, não é possível que um indivíduo venha sentir-se satisfeito e feliz vivendo na injustiça. Exige de Trasímaco melhores explicações, o que este confessa não estar em condições de dar. Só ele? O primeiro retoma, então, o argumento das artes, apontando a falta de rigor em que caiu seu interlocutor. Querendo saber se de fato a injustiça é mais vantajosa que a justiça, conduz agora o diálogo para a questão do vício e da virtude. Pergunta se a justiça é virtude e a injustiça vício. “Não”, responde seu opositor (348c). A justiça não é virtude e nem vício, mas “generosa ingenuidade” (348d). Quanto à injustiça, não passa de “discrição”. E atendendo ao interesse de Sócrates, diz também que os indivíduos injustos são “prudentes e sábios” (ibid.). Tais indivíduos aqui não são os ladrões de bolsas, mas os que conseguem enganar a toda uma cidade ou povo. Eles parecem justos, sendo injustos. 
	Raciocinando com base no semelhante e no contrário, Sócrates faz ver a Trasímaco que o justo se assemelha ao bom, por não querer tirar vantagem “de todo mundo”, como faz o injusto. Trasímaco concorda que o justo só pretende levar vantagem sobre o injusto. E o injusto se assemelha ao mau por querer tirar vantagem não só do justo como do injusto. Por não querer ser diferente (ultrapassar) o seu semelhante, como faz qualquer especialista em sua área, Sócrates conclui que o justo é também mais sábio, ao contrário do injusto, que, assim, além de mau é ignorante.
	Mas a tese de Trasímaco era a de que o injusto é mais forte. Ora, pensa Sócrates, se o justo é bom e sábio, naturalmente ele é que é o mais forte. É curioso, mas para que a injustiça sobrepuje, é preciso recorrer à justiça (sabedoria e virtude); “a injustiça faz nascer ódio entre os homens, lutas e dissensões, enquanto a justiça gera amizade e concórdia” (351d). Homens radicalmente injustos não poderiam fazer nada em comum; destruiriam a si mesmos e à cidade. Isto eqüivale a dizer que só mediante a justiça podemos viver bem – é o que Sócrates pretende mostrar ao final do diálogo.
	Conclusão
	A título de conclusão, podemos dizer que ambos os personagens têm e nãotêm razão. Sócrates, por acreditar num mundo melhor, mas também impossível, e Trasímaco, por ser fiel ao que ocorre, mas desiludido. A desilusão é um veneno para o homem. 
A injustiça, sem dúvida, é gritante; mas também a justiça existe, oficializada. Há bons motivos para nos comprometermos como cidadãos. Pelo menos é o que Sócrates demonstrou com o seu exemplo. 
Se a justiça tem a ver com a sabedoria e a virtude, como pensava Sócrates, então é preciso uma profunda reforma ou mudança (dos homens). Por isto A República é também um tratado sobre educação. Acredita Platão que se pode formar o homem justo, quer dizer, o que tem todas as paixões em equilíbrio. 
Diante da injustiça que predominava em sua decadente Atenas (séc. IV a . C.), a mesma que condenou o seu mestre – “um homem tão bom e justo” –, era preciso interessar-se pela questão. O diálogo começa com Sócrates perguntando pelo que é a justiça. E no último parágrafo (354c) lamenta ele por ter fugido do assunto. Procuravam saber o que ela é e acabam falando sobre a virtude e o vício. É fundamental saber em que a justiça consiste. Só assim tem sentido tratar do vício e da virtude. E também saber se quem a possui é ou não feliz. Trasímaco afirmara que o homem injusto vive melhor que o justo. 
Como a conversa foi desviada de seu objetivo principal, não se aprendeu nada, conclui Sócrates. A ignorância, mais uma vez, levou a melhor, não só no conteúdo como em relação ao método, que os conduziu para onde não queriam. 
Será que não se aprendeu nada realmente? perguntamos. A grande lição, a nosso ver, não é sobre aquilo em que alguma coisa consiste, pois isto tem demonstrado ser muito difícil, senão impossível, mas sobre a própria filosofia, que sobrevive a qualquer conteúdo ou método, posicionamento, resposta ou conclusão. Ela, a filosofia, continua viva entre nós, atiçando os mesmos temas. Neste sentido, o autor de A República é um grande mestre.

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