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DOUGLAS_Como as Instituições Pensam

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COMO 
 
AS 
 
INSTITUIÇÕES 
 
PENSAM 
 
 
MARY DOUGLAS 
 
 2 
Copyright @ 1986 by Syracuse University Press 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do 
Livro, SP, Brasil) 
__________________________________________________________ 
Douglas, Mary 
Como as Instituições Pensam / Mary Douglas ; (tradução Carlos 
Eugênio Marcondes de Moura). - São Paulo: Editora da Universidade 
de São Paulo, 1998. (Ponta, 16) 
 
Título original: How Institutions Think 
Bibliografia 
ISBN 85-314-0455-X 
 
 1. Cognição e cultura 2. Comportamento organizacional 
3. Instituições sociais – Aspectos pedagógicos 1. Título. 
 
98-1938 CDD-306 
____________________________________________________________ 
 Índices para catálogo sistemático: 
1. Instituição: Pensamento: Sociologia 306 
 
 
 Mary Douglas, antropóloga, pesquisadora e professora, lecionou nas Universidades de Oxford e de Londres, na Northwestern University e atualmente é professora visitante na Princeton University. 
 
 
 
 
Digitalizado a partir de software HP OCR I.R.I.S. 
 
 
 3 
 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
 
 
 
Apresentação ... ....................................................................6 
Prefácio .. ............................................................................10 
Introdução ... .......................................................................19 
 
1. As Instituições Não Podem Ter Opiniões Próprias..........19 
2. Dar um Desconto à Pequena Escala...............................31 
3. Como os Grupos Latentes Sobrevivem...........................42 
4. As Instituições se Fundamentam na Analogia.................57 
5. As Instituições Conferem Identidade ...............................67 
6. As Instituições Lembram-se e se Esquecem...................82 
7. Um Exemplo de Esquecimento Institucional....................96 
8. As Instituições Operam a Classificação.........................108 
9. As Instituições Tomam Decisões de Vida e Morte ........130 
 
Bibliografia.......................................................................... 151 
 4 
APRESENTAÇÃO 
 
 
 
 Mary Douglas apresentou a sexta Conferência Abrams na Universidade 
de Siracusa, durante as duas semanas de março de 1985. O evento é 
realizado mediante uma dotação da Fundação Exxon Education, em memória 
de Frank W. Abrams, que foi presidente do Conselho da Standard Oil Company 
(New Jersey), a qual antecedeu a Exxon, e presidente do Conselho de 
Curadores da Universidade de Siracusa. 
 Durante toda sua vida o sr. Abrams liderou todos os esforços no sentido 
de oferecer apoio à educação superior. Ele fundou o Conselho para Ajuda 
Financeira à Educação, serviu como presidente do Fundo da Fundação Ford 
para o Avanço da Educação e foi curador da Fundação Alfred E. Sloan. O sr. 
Abrams exerceu um papel fundamental ao despertar os empresários 
americanos, por meio da educação e de precedentes legais, verdadeiros 
pontos de referência para a necessidade de se prestar apoio financeiro à 
educação superior privada. 
 A Fundação Exxon Education continua a expandir inspirada no trabalho 
desenvolvido por Frank Abrams. O papel de liderança da Fundação no apoio à 
educação superior é certamente muito conhecido e respeitado. Somos gratos à 
Fundação por seu generoso apoio a vários empreendimentos da Universidade 
e sentimo-nos particularmente orgulhosos da Conferência Abrams, já que 
Frank Abrams formou-se em 1912 na Universidade de Siracusa. 
 Um agradecimento especial é devido aos membros da Comissão de 
Planejamento da Conferência Abrams, à frente da qual se encontra Guthrie S. 
Birkhead, reitor da Escola Maxwell Para a Cidadania e Negócios Públicos. Com 
o reitor Birkhead trabalham Michael O. Sawyer, vice-chanceler da Universidade 
e professor de Direito Constitucional; Richard Oliker, reitor da Escola de 
Administração; Richard D. Schwartz; Ernest I. White, professor de Direito; Chris 
J. Witting, presidente do Conselho de Curadores da Universidade de Siracusa 
e ~obert Payton, presidente da Fundação Exxon Education. 
 5 
 Mary Douglas revelou-se uma conferencista e uma convidada 
extremamente obsequiosa. Realizou cinco magníficas conferências, teve 
encontros regulares com os membros do corpo docente e os alunos dos cursos 
de pós-graduação, visitou classes de graduação e trouxe a marca toda especial 
de seu calor humano aos dias, algumas vezes enregelados, do início da 
primavera em Siracusa. 
 6 
PREFÁCIO 
 
 
 
 Este livro é o resultado de um convite feito pela Universidade de 
Siracusa para realizar o sexto conjunto de conferências da série que 
homenageia Frank W. Abrams. Em semelhante caso, o tema é parcialmente 
indicado pela forma da ocasião. Um convite formulado pela Escola Maxwell 
para a Cidadania e Assuntos Públicos exige temas com grande 
desenvolvimento. Um convite para realizar conferências requer que esses 
temas sejam compactados para ocupar pouco espaço. O fato de ser escolhida 
como conferencista sugeria que uma síntese pessoal seria apropriada. Para 
mim esse convite era irresistível, já que eu teria a oportunidade de voltar a 
dizer o que tentei colocar. Dirigir-me, dessa vez, a um auditório crítico e atento 
na Universidade de Siracusa significava tentar abordar o tema sob novas luzes, 
torná-lo mais claro, mais convincente e, finalmente, transmiti-lo de maneira 
apropriada. 
 Torna-se necessária uma teoria das instituições que modifique a atual 
visão não-sociológica da cognição humana, bem como uma teoria cognitiva 
que ofereça um suplemento às debilidades da análise institucional. O tema é 
suficientemente amplo, de interesse momentâneo e pouco comentado para que 
se realize uma abordagem especulativa em torno dele. Este é o primeiro livro 
que eu deveria ter escrito após minha produção sobre a pesquisa de campo na 
África. Em vez disso escrevi Pureza e Perigo (1966), numa tentativa de fazer 
generalizações a partir da África e em relação à nossa própria condição. Meus 
amigos disseram-me, naquela época, que Pureza e Perigo era um livro 
obscuro, intuitivo e despreparado. Eles estavam corretos e, desde então, venho 
tentando compreender os fundamentos teóricos e lógicos de que necessitaria 
para apresentar uma argumentação coerente sobre o controle social da 
cognição. Este volume constitui, na verdade, uma introdução post hoc. É como 
um prolegômeno a Risk Acceptability (1986), que aponta um dedo acusador 
para certa cegueira profissional e para uma resistência arraigada ao tema. Risk 
Acceptability, por sua vez, é como uma introdução em acréscimo a Risk and 
 7 
Culture (publicado em 1982, em colaboração com Aaron Wildavsky), um livro 
que demonstra como a análise antropológica das crenças públicas pode ser 
aplicada ao nosso próprio caso. No entanto, Risk and Culture é a 
argumentação que deveria ter vindo à luz antes que lmplicit Meanings fosse 
publicado em 1970 com um ensaio intitulado “O meio-ambiente corre riscos". 
Todos eles deveriam ter sido editados em ordem inversa, terminando com The 
Lele of the Kasai (1963). Se isto tivesse acontecido, a Comissão das 
Conferências Abrams agora estaria acolhendo a primeira dessas publicações 
nas séries que ela vem promovendo. Mas como é que isto poderia ter 
acontecido se fiquei tão endividada no decorrer de um tempo tão longo? Muitos 
autores, jovens, velhos e alguns infelizmente mortos ajudaram-me em cada 
estágio. Espero que este livro possa ser tão aceitável a ponto de romper com o 
encantamento de tal forma que eu agora possa escrever para diante e não 
para trás. 
 Este livro começa com a hostilidade dispensada a Emile Durkheim e aos 
durkheimianos quando se referiram às instituições ou grupos sociais como se 
eles fossem indivíduos. A própria idéia de um sistema cognitivo suprapessoal 
provoca um sentimento profundo de insulto. A ofensa é indício de que, acimado nível do indivíduo, outra hierarquia de "indivíduos" está influenciando os 
membros que se situam num nível mais baixo a reagirem violentamente contra 
essa ou aquela idéia. Presume-se que um indivíduo que contenha em si seres 
humanos pensantes seja alguém detestável, totalitário, que constitua uma 
ditadura altamente centralizada e eficaz. Por exemplo, Anthony Greenwald 
recorre a Hannah Arendt e a George Orwell tendo em vista modelos totalitários 
daquilo que ele classifica como os domínios do conhecimento extrapessoal 
(1980). No entanto, a reflexão deixa bem claro que, em níveis mais elevados 
de organização, os controles sobre os membros que a constituem, situados em 
níveis mais baixos, tendem a ser mais fracos e mais difusos. Muitos 
pensadores sutis e capacitados ficam de tal forma nervosos devido à crua 
analogia entre a mente individual e as influências sociais que preferem 
descartar o problema. 
 Os antropólogos, entretanto, não podem descartá-lo. Emile Durkheim, E. 
Evans-Pritchard e Claude Lévi-Strauss são grandes líderes que devem ser 
seguidos. O estudioso cuja marca se faz sentir de maneira mais intensa no 
 8 
tema coberto por este escrito é Robert Merton. A ele, com respeito e afeição, 
dedico este livro, confiando que sua generosidade passará por cima de suas 
deficiências. Meu marido merece um tributo especial. Quando dois problemas 
parecem insolúveis, nossa longa experiência da vida doméstica tem sugerido 
uma abordagem enviesada. Em vez de atacar de frente cada questão 
separadamente, pode-se trabalhar com um conjunto de problemas para 
confrontar os demais. Tal estratégia, que produz novas definições sobre aquilo 
que deve ser solucionado, é que fornece a estrutura deste livro. 
 Durante duas deliciosas semanas gozei da afetuosa hospitalidade do 
chanceler e da sra. Eggers, bem como de muitos programas e departamentos 
na Universidade de Siracusa. O trabalho se fez menos penoso devido à boa 
acolhida e ao apoio de Guthrie Birkhead, reitor da Escola MaxwelI, aos sábios 
conselhos de Manfred Stanley (e não me esqueço das críticas construtivas e 
sólidas de sua família) e à perfeita organização de James G. Gies. 
 Sob uma forma ou outra diferentes segmentos do livro foram objeto de 
algumas tentativas. Os capítulos um e dois foram apresentados na Conferência 
sobre as Categorias Corretas, patrocinada pela Fundação WennerGren, em 
honra de Nelson Goodman, na Universidade Northwestern em 1985 e 
agradeço a todos seus participantes pelas discussões suscitadas. Agradeço 
também a Kai Erikson pela oportunidade de ensaiar partes do capítulo três 
durante a Hollingshead Memorial Lecture, na Universidade de Yale. Uma 
primeira versão dos capítulos seis e sete foi apresentada no painel sobre "A 
Ordem Social É Possível?", no encontro da Associação Americana de 
Sociologia, realizado em San Antonio em 1983. Agradeço ao presidente, 
James Shorter, a permissão de publicar este estudo alentado sobre a memória 
pública. Parte do capítulo nove foi divulgada no seminário de RusselI Hardin 
sobre a ética, realizado na Universidade de Chicago. Meus agradecimentos a 
Russell Hardin e a Alan Gewirth por suas valiosas críticas. David Bloor, Barry 
Barnes e Lawrence Rosen também contribuiram com críticas importantes. 
Muitos, na Universidade Northwestern, fizeram indagações e criticaram 
diferentes passagens. Reid Hastie proporcionou o equilíbrio necessário e uma 
pilha de referências, a partir de escritos psicológicos. Robert Welsch leu todo o 
manuscrito e formulou críticas que muito me ajudaram. Andrew Leslie trabalhou 
na bibliografia e Richard Kerber pesquisou as classificações relativas ao 
 9 
comércio do vinho. Helen McFaul foi a secretária ideal com que todo escritor 
sonha e ela foi muito além da execução de um dever profissional. 
 10 
INTRODUÇÃO 
 
 
 
 Escrever sobre cooperação e solidariedade significa escrever, ao 
mesmo tempo, sobre rejeição e desconfiança. A solidariedade envolve 
indivíduos prontos para sofrer em benefício de um grupo mais amplo e sua 
expectativa de que cada membro desse grupo faça o mesmo por eles. É difícil 
falar sobre essas questões com distanciamento. Elas tocam em sentimentos 
íntimos de lealdade e sacralidade. Qualquer pessoa que tenha aceito a 
confiança, solicitado sacrifícios ou os tenha praticado voluntariamente conhece 
o poder do laço social. No caso de um compromisso com a autoridade, ódio à 
tirania ou algo que se situe entre esses dois extremos, o laço social é encarado 
como algo que se coloca acima da questão. Há resistências às tentativas de o 
expôr à luz do dia e de o investigar. Ele, no entanto, precisa ser examinado. 
Toda pessoa é afetada pela qualidade da confiança que a cerca. Algumas 
vezes uma firmeza simplória leva os líderes a ignorarem as necessidades 
públicas. Algumas vezes a confiança tem breve duração e é frágil, dissolvendo-
se facilmente e resultando em pânico. Algumas vezes a suspeita é tão 
profunda que a cooperação toma-se impossível. 
 Um exemplo contemporâneo ajudará a esclarecer questões abstratas. 
No campo da medicina nuclear há um registro magnífico de confiança e 
cooperação mútuas. Os cientistas dispõem de meios aceitáveis de conferir 
reciprocamente suas afirmativas. Acreditam em seus métodos e têm fé nos 
resultados, do mesmo modo que os pacientes e os médicos confiam um no 
outro. Se a força da solidariedade puder ser medida pelo mero poder das 
realizações, então dispomos de um exemplo eloqüente. Rosalyn Yalow 
apresentou recentemente (1985) um relatório sobre a história da subdisciplina 
à qual dedicou sua vida profissional. O relatório foi inspirado por indícios de 
que o trabalho está para ser interrompido. Ele sofre fortes ataques devido ao 
temor dos efeitos negativos da radiação nuclear. Nada do que os cientistas 
possam dizer em sua defesa conseguirá dissipar a desconfiança. 
 11 
 Rosalyn Yalow começou a trabalhar no Hospital Administrativo dos 
Veteranos, no Bronx, nos anos de 1940, a fim de implantar um Serviço de 
Radioisótopos que usaria detectores radioativos para investigar a doença. 
Desde então as realizações do Serviço têm suscitado admiração. Inicialmente 
os médicos usaram o iodeto de rádio para investigar a fisiologia da tiróide e 
tratá-la. Ao mesmo tempo empregaram-no para medir o volume do sangue em 
circulação no corpo. Isto os capacitou a desenvolver métodos experimentais de 
avaliação das taxas de síntese e degradação das proteínas de soro no sangue. 
Aplicar essas técnicas à circulação da insulina no corpo levou a uma ampla 
revisão do que até o momento se conhecia sobre a diabetes. A partir do 
sucesso obtido no tratamento da tiróide e da diabetes, o trabalho acabou 
resultando no princípio do radioimunoensaio (RIE). É um modo de tipificar 
processos fisiológicos administrando radioisótopos a pacientes e 
acompanhando seu comportamento no corpo. As aplicações do RIE são 
inúmeras em todos os campos da medicina. É empregado em amplos 
programas que objetivam detectar a baixa atividade das glândulas tiróides no 
recém-nascido. Trata-se de um distúrbio que não é perceptível pelos métodos 
clínicos e afeta um em 4000 nascimentos nos Estados Unidos e quatro em 100 
nascimentos no denominado "cinturão do bócio", na região sul dos Himalaias. 
Se não for tratado rapidamente após o nascimento, resultará em retardo mental 
irreversível. Desde a detecção e terapia do câncer maligno às doenças 
cardíacas, parece não haver limite para a aplicação do RIE 
 A outra face desse impressionante registro da medicina é que milhões 
de pessoas foram expostas a baixas doses de radiações nucleares e algumas 
centenas de milhares a doses moderadas. O acúmulo de evidências demonstra 
que uma exposição profunda a altas doses pode tomar-se rapidamente 
mortífera e que a exposição crônica a doses mais moderadas pode resultar em 
tumores malignos ou em morte prematura. As atuais críticasque ameaçam as 
aplicações médicas do RIE levam tais perigos em consideração. Como medir o 
que é uma baixa radiação? O que é uma exposição curta ou prolongada? O 
medo é justificado? São indagações a que o relatório de Rosalyn Yalow 
procura dar uma resposta. 
 O assunto é altamente técnico. Desde a alvorada da humanidade 
nossos ancestrais foram expostos à radiação da radioatividade natural do solo 
 12 
e do alimento, bem como dos raios cósmicos extraterrestres. Eles constituem 
os níveis da radiação do meio natural, que variam de uma região para outra. 
Em média, a exposição à radiação produzida pela medicina significa um 
acréscimo quase igual à radiação do meio natural. Para saber se isso é 
perigoso para a saúde, é factível realizar pesquisas em regiões do mundo onde 
a radiação do meio natural é particularmente elevada e então se verificará se 
aqueles que foram expostos a ela apresentam taxas mais elevadas de 
ocorrência de câncer. Nos Estados Unidos, sete estados apresentam radiação 
do meio natural mais elevada do que os demais, porém neles a taxa de 
ocorrência de câncer é mais baixa do que a taxa média da doença em todo o 
país. Altitudes elevadas implicam elevada exposição à radiação, mas nos 
Estados Unidos nota-se uma relação inversa entre a elevação e as leucemias e 
linfomas. Um estudo cuidadoso realizado na China examinou 150 mil 
camponeses da etnia han, que apresentavam essencialmente o mesmo estilo 
de vida e a mesma composição genética. Metade deles viviam em uma região 
de solo radioativo, onde recebiam uma exposição quase três vezes maior do 
que a outra metade. A pesquisa avaliou um grande número de possíveis efeitos 
da radiação sobre a saúde, mas não conseguiu detectar quaisquer diferenças 
entre os habitantes das duas regiões. Assim, essa e outras investigações 
levam à conclusão de que a exposição à radiação em níveis três ou até mesmo 
dez vezes maiores do que a do meio natural não afeta adversamente a saúde. 
 Este livro não se preocupa em julgar se aquilo que Yalow denomina "um 
temor fóbico à radiação" é correto ou não. Um exemplo esclarece vários outros 
pontos que serão discutidos nas páginas que se seguirão. A profunda 
discordância entre os cientistas que praticam a medicina nuclear, de um lado, e 
um setor do público, de outro lado, ilustra a surdez seletiva, na qual nenhum 
dos dois interlocutores conseguem, por ocasião de um debate, ouvir o que o 
outro está dizendo. Em capítulos posteriores atribuiremos a inabilidade da 
conversão a argumentos racionais ao domínio exercido pelas instituições em 
nossos processos de classificação e de reconhecimento. Os praticantes da 
medicina nuclear declaram que não correm riscos, em se tratando da vida de 
seus pacientes, ou que estão expondo o restante da população ao perigo. Os 
fóbicos nucleares negam essa afirmação, pois sabem que toda medicina 
acarreta um risco. Simplesmente ignorar a questão seria desonesto. O 
 13 
conhecimento e a capacitação médicas jamais podem bastar. Ao rejeitarem a 
alegação de que nenhum perigo se encontra presente, eles terão de enfocar a 
situação do doente que foi salvo e de toda uma população que foi colocada em 
perigo. Ninguém tem o direito de decidir quem será sacrificado pelo bem dos 
outros. O argumento contrário é que os fóbicos nucleares se arrogam o direito 
de tomar essa decisão, já que fazem os direitos das pessoas saudáveis vir 
antes das vidas das vítimas do câncer, do diabetes, das doenças do coração e 
da tiróide, além dos recém-nascidos à beira do retardo mental, que seriam 
salvos por novas técnicas de diagnose e de tratamento. A resposta estratégica 
consiste em declinar da honra de escolher entre as vítimas a serem 
sacrificadas. Isto implica insistir que a medicina alternativa e uma dieta 
equilibrada melhorariam, tanto quanto a medicina nuclear, nossas chances de 
vida, caso lhes fosse dada a mesma oportunidade. 
 O debate entre os que são favoráveis à medicina nuclear e os que têm 
fobia a ela constitui um exemplo relevante a favor e contra a solidariedade, 
expresso sob forma contemporânea e sensível, pois a solidariedade não passa 
de um gesto, quando não envolve sacrifício algum. No último capítulo serão 
tecidas considerações sobre semelhantes escolhas. Com o intuito de preparar 
o leitor, os capítulos anteriores insistirão laboriosamente na base compartilhada 
do conhecimento e dos padrões morais. A conclusão a que se chegará é que 
os indivíduos em crise não tomam sozinhos decisões relativas à vida e à morte. 
Para dar ênfase ainda maior à nossa colocação, diremos que o raciocínio 
individual não consegue resolver tais problemas. Uma resposta só parece ser 
correta quando apóia o pensamento institucional que já se encontra na mente 
dos indivíduos enquanto eles procuram chegar a uma decisão. 
 Recorreu-se a um exemplo fictício, "O processo dos exploradores 
espeleólogos", para ilustrar precisamente as respostas divergentes dos 
filósofos ao problema de se saber se uma pessoa deve ser sacrificada em 
benefício das vidas alheias (Fuller 1949). A história passa-se no Supremo 
Tribunal de um lugar chamado Newgarth, no ano de 4 300. Quatro homens 
foram condenados por homicídio em um tribunal de instância inferior e o 
processo subiu ao Supremo, em grau de apelação. O presidente do Tribunal 
resume o acontecido. Cinco membros da Sociedade de Espeleologia decidiram 
explorar uma caverna; a queda de uma enorme rocha bloqueou a única 
 14 
entrada; uma grande equipe de resgate começou a cavar um túnel através da 
rocha, mas o trabalho era árduo e perigoso. Dez membros da equipe morreram 
na tentativa de salvação. No vigésimo dia do desabamento foi estabelecido 
contato pelo rádio e os homens aprisionados perguntaram quanto tempo 
demoraria para serem resgatados. Estimou-se que o mínimo necessário seriam 
mais dez dias. Eles solicitaram conselhos médicos sobre a insuficiência de 
suas rações e ficaram sabendo que não poderiam esperar sobreviver por mais 
dez dias. Indagaram então se teriam chances de sobreviver se consumissem a 
carne de um de seus companheiros e, com muita relutância, lhes foi dito que 
sim, mas ninguém − sacerdote, médico ou filósofo − se dispunha a aconselhá-
los sobre o que fazer. Depois disso cessou a comunicação pelo rádio. No 
trigésimo-segundo dia do desabamento o bloqueio da entrada foi rompido e 
quatro homens saíram da caverna. 
 Eles disseram que um deles, Roger Whetmore, havia proposto a solução 
de comer a carne de um dos companheiros e sugeriu que a escolha fosse feita 
por meio de um lance de dados. Mostrou então um dado que, por acaso, 
trouxera. Os outros acabaram concordando e estavam para pôr o plano em 
ação quando Roger Whetmore recuou, dizendo que preferia esperar mais uma 
semana. Eles, no entanto, foram em frente, jogaram o dado quando chegou a 
vez dele, e sendo Roger Whetmore indicado como vítima, mataram-no e 
comeram-no. 
 Iniciando a discussão, o presidente do Tribunal expressou a opinião de 
que o júri havia agido corretamente ao declará-los culpados, pois, segundo a 
lei, não havia a menor dúvida quanto aos fatos; eles, por vontade própria, 
haviam tirado a vida de outra pessoa. Ele propôs que o Supremo Tribunal 
confirmasse a pena e solicitasse clemência à mais alta autoridade do Poder 
Executivo. Seguiram-se as declarações de voto dos quatro outros juízes. 
 O primeiro deles afirmou que seria uma iniqüidade condená-los por 
homicídio. Em vez de um pedido de clemência, propunha que fossem 
inocentados. Sua argumentação invocava dois princípios distintos. Os homens, 
encurralados, haviam sido geograficamente subtraídos da força da lei; 
separados por uma sólida muralha de pedra, seria o mesmo que estar em uma 
ilha deserta, em território estrangeiro. Em circunstâncias desesperadoras, 
encontravam-se moral e legalmente no estado da natureza, e a única lei a que 
 15 
estavam sujeitos era o acordoou contrato que firmaram entre si. Já que a vida 
de dez trabalhadores havia sido sacrificada para salvá-Ios, quem quisesse 
condenar os acusados deveria preparar-se para processar, pela morte 
daqueles homens, quem organizou o socorro. Ele insistiu finalmente na 
diferença entre o texto da lei e a interpretação de seus objetivos. Não fazia 
parte dos propósitos da lei definir o homicídio para condenar aqueles homens 
famintos, que poderiam ter sido movidos por uma atitude de autodefesa. 
 O próximo juiz discordou veementemente dessa colocação, 
perguntando: "Baseados em que autoridade nos investimos em um Tribunal da 
Natureza?", Absteve-se em seguida de tomar uma decisão. 
 O terceiro juiz também não concordou com o primeiro, insistindo que 
todos os fatos demonstravam que os acusados haviam tirado a vida de seu 
companheiro por vontade própria. Discordou igualmente da decisão do 
presidente do Tribunal quanto ao pedido de clemência. Não cabia ao Poder 
Judiciário refazer a lei ou interferir em outros departamentos do governo. 
 O último juiz concluiu que os acusados eram inocentes não em relação 
aos fatos ou à lei, mas porque "os homens são regidos não por palavras 
escritas numa folha de papel ou por teorias abstratas, mas por outros homens". 
Nesse caso preciso, as pesquisas de opinião mostraram que 90% dos 
entrevistados estavam a favor do perdão. Ele, entretanto, não apoiou a 
recomendação do presidente do Tribunal por saber que o chefe do Executivo, 
entregue a si mesmo, recusaria o perdão e estaria menos inclinado a conceder 
a clemência caso uma recomendação nesse sentido partisse do Supremo 
Tribunal. Assim, ele não fez recomendação alguma para o perdão, mas 
favoreceu uma absolvição. 
 Somente o presidente do Tribunal se mostrava favorável no sentido de 
solicitar clemência. Dois juízes favoreceram a absolvição; dois eram a favor da 
condenação; um dos juízes se absteve. Estando o Supremo Tribunal 
igualmente dividido, foi confirmada a condenação do tribunal de primeira 
instância. Os homens foram sentenciados e condenados a morrer na forca. 
 Ao relatar essa fábula, Lon Fuller nos apresentou o padrão da opinião 
jurídica vigente desde a Era de Péricles até a época em que esse texto foi 
escrito. Dois dos juízes demonstraram forte simpatia pelos acusados e 
recomendaram a reversão da condenação, mas por motivos diferentes. É 
 16 
evidente que o primeiro juiz não se importa absolutamente com estatutos, 
conforme se queixa um de seus doutos confrades. Sente-se pessoalmente 
atraído pela idéia da natureza, limitada unicamente pelo contrato entre os 
indivíduos. Exprime-se de maneira comovente, como se se imaginasse na 
caverna, estabelecendo um pacto e jogando para ganhar ou perder. Seus 
conceitos liberais são apropriados a uma forma de sociedade na qual sua 
inclinação a assumir riscos e sua prontidão em negociar fariam sentido. É tão 
inerente a ele a idéia de um contrato que deixa de levar em consideração que a 
vítima havia-se retirado do pacto estabelecido. Ao propor o argumento da 
autodefesa ele chega até mesmo a ignorar outro fato: o de que a vítima não 
apresentava ameaça alguma à vida dos acusados. Os demais juízes não 
tiveram dificuldade em encontrar razões para discordar dele. 
 O último juiz, que também recomendou a absolvição, dificilmente parece 
estar raciocinando como um advogado. Quer deixar de lado as legalidades 
tolas. Sente que consegue ler os pensamentos dos acusados e considera que 
seria ultrajante condená-los depois dos horrores por que passaram. Os motivos 
e as emoções são o que contam para ele. Também consegue ler os 
pensamentos do presidente do Executivo, ao qual é ligado por laços de família. 
Aquilo que ele preconiza destina-se precisamente a fazer malograr as 
motivações negativas do chefe do Executivo. Este juiz, ardiloso e afável, honra 
a verdade emocional. Sua postura corresponde aos conceitos expressos pelas 
seitas igualitárias fundadas para rejeitar um ritualismo desprovido de sentido e 
pregar diretamente ao coração dos homens. 
 O terceiro juiz não se mostra nem simpático nem antipático. Para ele o 
que importa é a lei, a responsabilidade dos juízes em dispensá-la e a alocação 
existente de diferentes funções em um estado complexo. É um 
constitucionalista e sente-se à vontade em uma sociedade baseada na 
hierarquia. 
 Os três julgamentos expressam três filosofias jurídicas distintas. Não é 
por acaso que Lon Fuller escolheu temas recorrentes na história da 
jurisprudência. Esses temas surgem a cada momento por corresponderem a 
formas recorrentes da vida social. Em outro escrito, nós os descrevemos como 
individualistas, sectários e hierárquicos (Douglas & Wildavsky 1982). Nada fará 
com que esses juízes concordem diante de uma questão de vida e morte tão 
 17 
complicada. Eles recorrem a seus compromissos institucionais para chegar a 
uma reflexão. Este livro foi escrito precisamente para encorajar mais 
investigações em torno do relacionamento entre as mentes e as instituições. 
 Para enfocar ainda mais os princípios elementares da solidariedade e da 
confiança, voltemos à história no ponto em que os cinco homens ficam 
sabendo que não conseguirão o sobreviver com o alimento de que dispõem. 
Poderia ser um grupo de turistas de uma pequena cidade solidária. 
Suponhamos que eles compartilhassem o compromisso do último juiz com os 
princípios hierárquicos. Então aceitariam a idéia de que um deles poderia muito 
justamente ser sacrificado em prol da sobrevivência dos demais. A idéia de 
escolher a vítima por meio de um lance de dados pareceria irracional e 
irresponsável. O líder assumiria toda a responsabilidade e se proporia para a 
honra do sacrifício. Como o líder exerce um papel importante na comunidade 
onde vivem, os demais contestariam sua decisão. Eles jamais poderiam voltar 
a enfrentar a luz do dia após matar e comer o juiz de paz, o pároco ou o líder 
dos escoteiros. Então o membro mais jovem e menos importante se proporia; 
os demais não concordariam devido a sua juventude e a toda vida que ele teria 
pela frente. Seria então a vez do mais velho, sob o pretexto de que sua vida 
havia chegado ao fim e, então, entraria em cena o pai de uma numerosa 
família. Durante os dez dias de seu cativeiro eles passariam o tempo todo 
procurando, com muita civilidade, um princípio hierárquico satisfatório que 
designasse sua vítima, mas talvez jamais chegariam a encontrá-la. 
 Suponhamos agora que os prisioneiros da caverna são membros de 
uma seita religiosa que estão passando juntos um feriado. Ao tomar 
conhecimento de que 500 toneladas de pedra bloquearam a saída eles se 
rejubilam, pois se dão conta de que chegou o dia do julgamento supremo e que 
estão irrevogavelmente separados de Armagedon, para sua eterna salvação. 
Então passam o tempo de espera entoando hinos de louvor. 
 Somente os individualistas, a quem nenhum laço liga mutuamente, que 
não estão imbuídos de nenhum princípio de solidariedade, acolheriam o jogo 
do canibalismo como solução apropriada. 
 Discutindo a partir de diferentes premissas, jamais poderemos 
aperfeiçoar nossa compreensão, a menos que examinemos e reformulemos 
nossos pressupostos. Os capítulos que se seguem pretendem esclarecer até 
 18 
que ponto o pensamento depende das instituições. Trata-se de uma 
argumentação complexa, que necessita quadros de referência muito claros. 
Escolhi abordar a solidariedade e a cooperação por meio da obra de Emite 
Durkheim e de Ludwik Fleck. Para eles, a verdadeira solidariedade somente é 
possível na medida em que os indivíduos compartilhem as categorias de seu 
pensamento. O fato desse compartilhar ser possível é algo inaceitável para 
muitos filósofos. Ela contradiz os axiomas básicos da teoria do comportamento 
racional, segundo os quais cada pensador é tratado como um indivíduo 
soberano. No entanto, a teoria da escolha racional, desenvolvida a partirdesta 
estrutura axiomática, apresenta dificuldades insuperáveis no caso da 
solidariedade. O plano desses escritos foi juntar essas duas abordagens, 
propondo que os conceitos de Durkheim e de Fleck sejam encarados com 
maior seriedade do que aconteceu precedentemente ao se discutir a natureza 
do laço social. Há urna tendência de descartar Durkheim e Fleck porque eles 
parecem estar afirmando que as instituições têm opiniões próprias. É claro que 
as instituições não podem ter opiniões. Vale a pena dedicar um tempo à 
compreensão do que esses pensadores realmente disseram. 
 19 
1 
 
AS INSTITUIÇÕES NÃO PODEM TER OPINIÕES PRÓPRIAS 
 
 
 
 Não é qualquer ônibus lotado ou um ajuntamento aleatório de pessoas 
que merece o nome de sociedade. É preciso que entre seus membros exista 
algum pensamento e algum sentimento que se assemelhem. Isto não quer 
dizer, porém, que um grupo que se associa possua atitudes próprias. Se ele 
possui algo, é devido à teoria legal que o reveste de uma personalidade fictícia. 
A existência legal, entretanto, não basta. Os pressupostos legais não atribuem 
vezes emocionais ao grupo que se associa. Somente pelo fato de ser 
legalmente constituído não se pode dizer que um grupo "comporta-se" e muito 
menos que ele pensa ou sinta. 
Se isso for literalmente verdade é algo implicitamente negado por boa parte do 
pensamento social. A teoria marxista presume que uma classe social pode 
perceber, escolher e agir de acordo com seus próprios interesses grupais. A 
teoria democrática baseia-se no conceito da vontade coletiva. No entanto, 
quando se trata de empreender uma análise detalhada, a teoria da escolha 
racional individual só encontra dificuldades ao abordar o conceito de 
comportamento coletivo. É axiomático, para a teoria, que o comportamento 
racional se baseia em motivos de auto-referenciação. O indivíduo calcula o que 
é aquilo que melhor atende a seus interesses e age de acordo com isso. Este é 
o fundamento da teoria sobre a qual se baseia a análise econômica e política, 
e, no entanto, ficamos com a impressão contrária. Nossa intuição nos diz que 
os indivíduos contribuem, sim, para o bem público com generosidade, até 
mesmo sem hesitações, sem a intenção óbvia de obter um benefício próprio. 
Esmiuçar o significado do comportamento auto-referenciado até que cada 
possível motivo desinteressado seja incluído apenas serve para tomar a teoria 
em algo ocioso, inútil. 
Emile Durkheim tinha outro modo de pensar a respeito do conflito entre 
o indivíduo e a sociedade (Durkheim 1903, 1912). Ele o transferiu para os 
 20 
elementos conflitantes na pessoa. Para ele o erro inicial está em negar as 
origens sociais do pensamento individual. As classificações, as operações 
lógicas e as metáforas que nos guiam são dadas ao indivíduo pela sociedade. 
Acima de tudo, o senso da correção apriorística de algumas idéias e a 
ausência de sentido de outras são lidadas como algo que faz parte do entorno 
social. Durkheim era de opinião que a reação de indignação quando 
julgamentos estratificados são desafiados é uma resposta visceral devida 
diretamente a um compromisso com um grupo social No seu modo de ver, o 
único programa de pesquisa que explicaria como um bem coletivo é criado 
seria trabalhar a questão da epistemologia. 
O pensamento de Durkheim é muito adequado a nossa época. Ele 
acreditava que o utilitarismo jamais seria responsável pelas bases da 
sociedade civil. Na época dele, muitos dos sofisticados problemas e paradoxos 
do utilitarismo não eram levados em conta. Ele, porém, estava convencido o 
tempo todo de que o modelo benthamita, segundo o qual uma ordem social é 
produzida automaticamente devido a ações auto-interessadas de indivíduos 
racionais, era por demais limitado, já que não explicava a solidariedade grupal. 
A epistemologia sociológica de Durkheim suscitou considerável oposição 
e, até nossos dias, não se desenvolveu. Ao enaltecer o papel da sociedade na 
organização do pensamento, ele amesquinhou o papel do indivíduo. Por isso 
foi atacado como racionalista e radical. Como não explicou detaIhadamente os 
passos precisos de sua argumentação funcionalista, Durkheim suscitou a 
queixa oposta − não ser racional demais, mas ser atraente para o 
irracionalismo. Parecia estar invocando uma entidade mística, o grupo social, 
revestindo-o de poderes superorgânicos, auto-suficientes. Devido a isto foi 
atacado como um teórico social conservador. Apesar dessas fraquezas, seu 
conceito ainda era bom demais para ser descartado. Os recursos 
epistemológicos podem ser capazes de explicar aquilo que não pode ser 
explicado pela teoria do comportamento racional. 
De acordo com Robert Merton, o interesse francês pela sociologia do 
conhecimento era grandemente independente das prolíficas discussões sobre 
a ideologia e a consciência social travadas na Alemanha naquela mesma 
época. O ensaio de Merton sobre Karl Mannheim fornece elementos essenciais 
para essa questão (1949). Ele assinalava que os franceses, ao escolher 
 21 
problemas, enfatizavam "a gama de variações entre diferentes povos, não só 
no que se referia a estruturas morais e sociais, mas também no que dizia 
respeito à orientação cognitiva". Por outro lado, a sociologia alemã do 
conhecimento era profundamente marcada pelo hegelianismo de esquerda e 
pela teoria marxista. Em suas primeiras formulações, a sociologia do 
conhecimento alemã estava presa a problemas relativistas e era dominada por 
intenções propagandísticas. Na medida em que tais elementos foram 
gradualmente eliminados, o enfoque do assunto voltou-se muito mais para as 
relações do indivíduo com a ordem social em geral. Fazia-se e ainda se faz 
visla grossa em relação ao efeito da variação na ordem social. Todo o enfoque 
se direcionava para os interesses. A habitual tipologia do conhecimento, por 
exemplo, tendia a explicar diferentes pontos de vista de acordo com os 
interesses conflitivos de diferentes setores na moderna sociedade industrial. 
Não havia uma tentativa de se comparar pontos de vista baseados em tipos de 
sociedade totalmente diferentes. Merton conclui seu ensaio listando as Calhas 
lógicas na argumentação de Mannheim e expõe os estratagemas teóricos 
empregados por este último com o objetivo de as superar. Fica bem claro que 
nenhuma estrutura comparativa disciplinada poderia surgir de uma sociologia 
que não se mostrava interessada na gama de variedades existentes entre 
diferentes sociedades. 
Os conceitos durkheimianos franceses têm sido menos assimilados pela 
sociologia da ciência em comparação com a contribuição alemã. Em primeiro 
lugar, eram menos impositivos devido ao fato de serem menos políticos, pois 
lidavam com exemplos referentes a povos distantes e exóticos. Em segundo 
lugar, a sociologia, embora possa ter abordado inicialmente questões 
filosóficas e temas políticos, recebeu grande impulso para seu desenvolvimento 
porque forneceu um instrumento indispensável para propósitos administrativos. 
Assim, o programa intelectual de Durkheim extenuou-se. 
Felizmente o atual interesse pela obra de Ludwik Fleck em tomo da 
filosofia da ciência coincide com um vivo interesse pela teoria política, ao 
abordar as fontes do compromisso e do altruísmo. Em seu livro sobre a 
identificação da sífilis, The Genesis and Development of a Scientific Fact 
(1935), Fleck elaborou e ampliou a abordagem de Durkheim. Valeria a pena 
realizar uma comparação detalhada entre seus pontos de concordância e suas 
 22 
diferenças. Em várias passagens FIeck foi muito além de Durkheim; em outras 
faltou-lhe a idéia central, sintetizadora. Ambos eram igualmente enfáticos em 
relação à base social da cognição. 
Em seu ataque tão cético às teorias causais, David Hume já havia 
colocado a questão para Durkheim. Ele afirmou que em nossa experiência 
encontramos apenas sucessão e freqüência, mas nenhuma lei ou necessidade. 
Somosnós que atribuímos a causalidade. Citando Hume, Durkheim colocou a 
mesma questão para uma platéia imaginária de filósofos apriorísticos, 
desafiando-os a nos demonstrar "se detemos esta surpreendente prerrogativa 
e como é possível ver certas relações em coisas cujo exame nada nos pode 
revelar." Sua resposta era que as categorias de tempo, espaço e causalidade 
possuem uma origem social. 
 
Elas representam as relações mais gerais existentes entre as coisas; 
ultrapassando em extensão todas as outras nossas idéias, elas 
dominam todos os detalhes de nossa vida intelectual. Se os homens não 
concordassem com essas idéias essenciais em qualquer momento, se 
não tivessem os mesmos conceitos de tempo, espaço, causa, número 
etc., todo contato entre suas mentes seria impossível e, com isso, toda 
vida em coletividade. Assim, a sociedade não poderia abandonar as 
categorias relativas à livre escolha do indivíduo sem abandonar a si 
mesma (...) Existe um mínimo de conformidade lógica que ela não pode 
ultrapassar. Devido a esse motivo, ela lança mão de toda a autoridade 
que exerce sobre seus membros para impedir tais dissidências (...) A 
necessidade com a qual as categorias nos são impostas não é o efeito 
de simples hábitos, um jogo de que podemos livrar-nos com pouco 
esforço; também não é uma necessidade física ou metafísica, já que as 
categorias mudam em diferentes lugares e épocas; é um tipo especial 
de necessidade moral, que representa, para a vida intelectual, aquilo 
que a obrigação moral representa para a vontade (Durkheim 1912, p.29-
30). 
 
Comparemos isto com o que escreve Fleck: 
 
A cognição é a atividade do homem mais socialmente condicionada e o 
conhecimento é a suprema criação social. A própria estrutura da 
linguagem apresenta uma filosofia impositiva, característica daquela 
comunidade e até mesmo uma simples palavra pode representar uma 
teoria complexa (...) é banal toda teoria epistemológica que não leve em 
conta a dependência sociológica de lodo cognição, de maneira 
fundamental e detalhada (Fleck 1935, p. 42). 
 
 23 
 Fleck foi mais longe que Durkheim ao analisar o conceito de um grupo 
social. Ele introduziu vários termos especializados: a coletividade de 
pensamento (equivalente ao grupo social de Durkheim) e seu estilo de 
pensamento (equivalente às representações coletivas de Durkheim), que 
conduz e treina a percepção e produz uma provisão de conhecimentos. 
Para Fleck, o estilo de pensamento estabelece as pré-condições para 
qualquer cognição e determina o que pode ser considerado uma questão 
razoável e uma resposta verdadeira ou falsa. Tal estilo propicia o contexto e 
fixa limites para qualquer julgamento relativo à realidade objetiva, Seu traço 
essencial é que ele está oculto dos membros da coletividade de pensamento. 
 
O indivíduo, no contexto do coletivo, nunca, ou quase nunca, tem 
consciência do estilo de pensamento predominante que, quase sempre, 
exerce uma força absolutamente compulsiva sobre seu pensamento, e 
com o qual não é possível discordar (Fleck, 1935, p. 41). 
 
O estilo de pensamento de Fleck está muito próximo da idéia de um 
esquema conceitual, que, de acordo com alguns filósofos, limita e controla a 
cognição individual com tamanho rigor que exclui a comunicação transcultural. 
Para Fleck, o estilo de pensamento é tão soberano para o pensador quanto a 
representação coletiva o era na cultura primitiva, segundo defendia Durkheim. 
Fleck, porém, não estava se referindo aos primitivos. 
Para Durkheim, a divisão do trabalho é responsável pela grande 
diferença entre a sociedade moderna e a primitiva. Para compreender a 
solidariedade deveríamos examinar aquelas formas elementares de sociedade 
que não dependem da troca de serviços e produtos diferenciados, De acordo 
com Durkheim, nesses casos elementares, os indivíduos passam a pensar da 
mesma forma, ao internalizar sua concepção de ordem social e ao sacralizá-la. 
O caráter do sagrado é ser perigoso e estar exposto ao perigo, convocando 
todo bom cidadão a defender seus baluartes. O universo simbólico 
compartilhado e as classificações da natureza incorporam os princípios de 
autoridade e coordenação. Em um sistema como esse, problemas de 
legitimidade são resolvidos porque os indivíduos carregam a ordem social no 
seu íntimo onde quer que vão, projetando-a na natureza. No entanto, uma 
divisão avançada do trabalho destrói essa harmonia entre a moralidade, a 
 24 
sociedade e o mundo físico, substituindo-a por uma solidariedade que depende 
do comportamento do mercado. Durkheim não era de opinião que a 
solidariedade baseada em símbolos sagrados fosse possível na sociedade 
industrial. Na época moderna a sacralidade foi transferida para o indivíduo. 
Essas duas formas de solidariedade constituem a base da principal tipologia na 
teoria de Durkheim (Durkheim 1893, 1895). 
Fleck distinguia as comunidades de pensamento coletivo, 
compreendendo os verdadeiros crentes, da comunidade de pensamento, 
anteriormente membros daquela primeira, mas não necessariamente sujeitos 
às coerções do estilo de pensamento. Admitia que as comunidades de 
pensamento coletivo variassem de acordo com sua persistência ao longo do 
tempo, das formações mais transitórias e acidentais às formações mais 
estáveis. Julgava o estilo de pensamento das formações estáveis mais 
disciplinado e uniforme, a exemplo do que ocorria nas associações, sindicatos 
e igrejas. Fleck se deu ao trabalho de discutir a estrutura interna dos grupos. 
Uma elite interna, de iniciados hierarquizados, existe no centro e a massa se 
localiza nas bordas. O centro é o ponto que põe tudo em movimento. As bordas 
adotam suas idéias em um sentido literal e inquestionável; a ossificação ocorre 
exatamente aí. Fleck divisava muitos universos de pensamento, cada um com 
seu centro e suas bordas, interceptando, separando e se fundindo. Era algo 
paralelo à densidade moral presente na teoria de Durkheim. Fleck reconhecia 
que a quantidade de interação podia variar; o grau de concentração e energia 
no centro depende da pressão da demanda por parte das bordas externas. 
Quando essa interação é forte, a questão da divergência individual mal se 
coloca. Fleck não estava interessado na sacralidade ou na evolução social. 
Ainda assim ele aplicava à sociedade moderna e até mesmo à ciência a idéia 
durkheimiana de um estilo de pensamento soberano, o que teria horrorizado 
Durkheim. Conforme disse Fleck, os durkheimianos ostentavam "um respeito 
excessivo, que chegava aos limites de uma reverência pia, aos fatos 
científicos" (p. 49-51). Ele ridicularizava essa atitude, achando que ela era um 
obstáculo simplório à construção de uma epistemologia científica. 
As afirmações de Durkheim evocam freqüentemente uma mente grupaI, 
misteriosa e supra-orgânica. Fleck, com toda certeza, não pode ser acusado da 
mesma falha. Sua abordagem era inteiramente positivista. Ao lidarmos com as 
 25 
críticas que afetam a ambos, a boa estratégia consiste em deixar que Durkheim 
e Fleck realizem uma defesa comum. Algumas vezes Fleck tem a melhor 
resposta, outras vezes, Durkheim. Lutando como aliados, de costas um para o 
outro, cada um, com sua força, pode suprir a fraqueza do outro. 
Em seu prefácio, o organizador-tradutor do livro de Fleck compara a 
rejeição inicial que ele sofreu por parte dos resenhadores ao sucesso 
instantâneo e ruidoso alcançado por Logic der Forschung, de Karl Popper, 
publicado quase na mesma época (Trenn 1979, p. X). A diferença quanto à 
receptividade pode ser explicada em boa parte pelo relativo vigor da 
coletividade de pensamento a que cada um desses escritores pertencia. 
Popper era uma personalidade bastante conhecida na prestigiosa confraria de 
filósofos vienenses e Fleck, um intruso em relação à filosofia, mas gozava de 
consideração. Um esboço biográfico descreve Fleck como "um humanista com 
conhecimento enciclopédico" (Fleck, p. 149-53). Médicoe bacteriologista, cujas 
publicações e pesquisas se referiam à serologia do tifo, da sífilis e de vários 
organismos patogênicos, ele não estava bem posicionado para impressionar os 
filósofos. Seria mais durkheimiano adotar o próprio conceito de Fleck, segundo 
o qual a coletividade de pensamento, isto é, a organização social, explica a 
falta de atenção com que ele foi acolhido inicialmente. Ainda assim, é 
interessante seguir a idéia do organizador da edição, segundo a qual seu 
fracasso inicial foi uma questão de estilos de pensamento incompatíveis. Com 
efeito, parece que os primeiros resenhadores acusaram Fleck de uma 
minimização reducionista do papel do cientista. Ele foi censurado por 
negligenciar as personalidades individuais na história da ciência. Sua análise 
sociológica foi descartada por acrescentar pouco àquilo que Max Weber já 
havia dito. No todo, foi criticado por toda sua mensagem global e não por 
quaisquer elementos incidentais. O vigoroso apelo que fez a favor da 
epistemologia sociológica e comparativa foi rejeitado. Os organizadores das 
edições de seus livros acreditam que os tempos mudaram e que agora ocorreu 
uma mudança decisiva no estilo de pensamento. 
Existe certamente um novo interesse por distintos estilos de raciocínio 
na história da ciência. Galileu introduziu um novo estilo de pensamento que 
tomou impossíveis antigas indagações. O capítulo "Language, Truth and 
Reason" ("Linguagem, Verdade e Razão"), de Ian Hacking (1982), resenha 
 26 
rapidamente inúmeros ensaios recentes e influentes na história da ciência 
sobre "novos modos de raciocínio que têm início e trajetórias específicas de 
desenvolvimento" (p. 51). Na maioria dos casos, entretanto, a tendência é 
interessar-se pelo estilo de pensamento e não por sua relação com o 
pensamento coletivo. Se a mudança de direção, em Fleck, for criativa, ela não 
deverá separar estilo de pensamento de coletividade de pensamento, o que, 
mais uma vez, levaria ao fracasso da parte sociológica do . empreendimento. 
Thomas Kuhn foi o primeiro desde 1937 a chamar atenção para o livro 
de Fleck, fazendo uma referência a ele (Kuhn 1962). Em seu prefácio à 
tradução inglesa, ele exprime certas hesitações que ainda serão amplamente 
compartilhadas. A posição de Fleck, afirmou, não está livre de problemas 
fundamentais. 
 
(...) para mim eles se agrupam, conforme aconteceu na primeira leitura, 
em tomo do conceito de uma coletividade de pensamento (...) Considero 
este conceito intrinsecamente equivocado e uma fonte permanente de 
tensão no texto de Fleck. Colocado de maneira resumida, a coletividade 
de pensamento parece funcionar como a mente individual em larga 
escala, pelo fato de muitas pessoas o possuírem (ou serem possuídas 
por ele). Com o intuito de explicar sua aparente autoridade legislativa, 
FIeck recorre repetidamente a termos emprestados do discurso sobre os 
indivíduos (Kuhn 1979, p. X). 
 
Resumindo: pensamento e sentimento são para as pessoas, enquanto 
indivíduos. Pode, entretanto, um grupo social pensar ou sentir? Este é o 
paradoxo central, incongruente. Kuhn aprecia no livro de Fleck inúmeras 
percepções, mas não a principal argumentação deste autor. Ao rejeitá-la, Kuhn 
compartilha um certo mal-estar com muitos liberais. A filosofia da justiça de 
John Rawls fundamenta-se em total individualismo; na sua opinião, "a 
sociedade constitui um todo orgânico, com vida própria, distinta e superior à 
vida de todos seus membros em suas relações mútuas" (Rawls 1971, p. 264). 
É verdade que existem agora vários movimentos de idéias em cuja 
direção Fleck apontava com tamanha premência. Por exemplo, podemos lidar 
mais facilmente com termos desconfortáveis. Os tradutores refletiam e 
rejeitavam várias alternativas para o termo denkkollectiv: "escola de 
pensamento" ou "comunidade cognitiva", antes de adotarem a tradução literal, 
"coletividade de pensamento". Agora, porém, o termo "universo" adquiriu um 
 27 
sentido apropriado, embora universo (incluindo os universos distinguíveis da 
teologia, da antropologia e da ciência), no lugar de coletividade de 
pensamento, seria um termo fiel ao conceito essencial de Fleck, ligando-o 
apropriadamente às obras Ways of Worldmaking, de Goodman (1978), e a Art 
Worlds, de Becker (1982). O tema de Fleck era a descoberta científica, o de 
Becker, a criatividade artística, e o de Goodman, a cognição em geral. 
Cada um desses pensadores muito independentes tem notável afinidade 
com os demais. Becker insiste que o esforço coletivo produz uma obra de arte, 
embora ela seja atribuída a determinado artista. Inclui no universo da arte, 
juntamente com o artista, a colaboração anônima dos fornecedores, os 
fabricantes de telas e tintas, os moldureiros, os distribuidores, os designers 
gráficos dos catálogos, as galerias e o público. É um acaso histórico que faz 
com que uma classe de atores no mundo artístico da pintura ocidental seja 
designada individualmente e celebrada como "artistas". Em outros universos, 
em outras épocas e lugares, a coletividade do estúdio ou a corporação de 
ofícios sobrepuja a fama do indivíduo. Todos os universos da arte dependem 
da existência de um público para a obra de arte. A interação com a solicitação 
do público constitui uma parte fundamental e criativa do universo da música ou 
da pintura. Fleck adotou o mesmo partido, enfatizando o papel da prática de 
laboratório e o papel do apoio público. 
 
Se não fosse o insistente clamor da opinião pública a favor do teste de 
sangue de Wassermann jamais teriam gozado daquele respaldo social 
absolutamente essencial ao desenvolvimento da relação, à sua 
"perfeição técnica" e à acumulação da experiência coletiva. Somente a 
prática laboratorial explica com facilidade porque o álcool e, 
posteriormente, a acetona deveriam ser tentados, além da água, tendo 
em vista o preparo do extrato, e porque deveriam ter sido usados órgãos 
saudáveis, além de órgãos atingidos pela sífilis. Muitos investigadores 
realizaram essas experiências quase simultaneamente, mas a 
verdadeira autoria se deve à coletividade, à prática do trabalho 
cooperativo e em equipe (FIeck, 1935, p. 77-78). 
 
Fleck chegou mesmo ao ponto de prescrever o anonimato e a modéstia 
a todos os cientistas. Este ideal democrático pode explicar em parte por que 
ele escolheu o modelo russo de uma fazenda coletiva para descrever os 
universos da ciência. 
 28 
Nelson Goodman coloca que a correção das categorias depende de 
como elas se adequam a um universo. A correção, com o significado de 
adequação à ação e adequação a outras categorias, corre paralelamente ao 
conceito de harmonia, elaborado por Fleck, entre elementos pertencentes a um 
estilo de pensamento. Quase se equipara ao conceito de Fleck, segundo o qual 
a verdade, em certo sentido, é feita de ilusões (frase que perturbava Kuhn). O 
modo pelo qual FIeck explicava a construção da realidade objetiva por meio 
das experiências sociais da coletividade de pensamento está muito próximo da 
explicação de Goodman, segundo a qual a correção se adequa à prática. 
 
Sem a organização e a seleção de diferentes espécies, efetuada por 
uma tradição que se desenvolve, não existe correção ou erros de 
categorização, validade ou invalidade da referência indutiva, 
amostragem representativa ou não-representativa, uniformidade ou 
disparidade entre as amostragens. Assim, justificar testes tendo em vista 
a correção poderá consistir basicamente em demonstrar, não que eles 
sejam confiáveis, mas que sejam fundamentados (Goodman 1978, pp. 
138-39). 
 
Os antropólogos têm empregado modos de pensamento para referir-se aos 
mesmos universos e idéias fundamentalmente entrelaçados (Horton & 
Finnegan 1973). 
Agora é mais fácil empregar as expressões universo da ciência, das 
artes, da música ou do pensamento no lugar de coletividade de pensamento 
para aquele agrupamento social que é definido por seu estilo de pensamentopróprio, pois invoca os contemporâneos laços de apoio ao conceito básico de 
Fleck. 
O cenário poderá estar bem preparado, mas o programa de Durkheim-
Fleck relativo à sociologia do conhecimento fracassará caso se baseie em um 
erro fundamental. Duas graves objeções se levantam contra ele. A primeira 
delas diz respeito a explicações funcionais imprecisas. A tese central de 
Durkheim, segundo a qual a religião mantém a solidariedade do grupo social, é 
uma explicação funcional. FIeck tem sua própria versão de um circuito 
funcional auto-sustentável: 
 
A estrutura geral de uma coletividade de pensamento implica que a 
comunicação de pensamentoa em uma coletividade, 
 29 
independentemente de conteúdo ou justificativa lógica, deveria levar, por 
razões sociológicas, à corroboração da estrutura de pensamento (Fleck 
1935. p. 103). 
 
Ambos eram funcionalistas. Coloca-se uma interrogação: suas argumentacoes 
falham ao não proporcionar os passos lógicos necessários? Caso contrário, 
poderia existir uma argumentação funcionalista melhor que justificaria as 
correlações deles? 
A segunda objeção diz respeito à base racional da ação coletiva. Se se 
presume que os indivíduos sejam racionais e procurem seu próprio interesse, 
farão alguma vez sacrifícios em benefício do grupo? E caso eles ajam contra 
seu próprio interesse, que teoria de motivação humana explicaria esse 
comportamento? Durkheim recorre à religião para oferecer algumas 
explicações. Para Fleck, qualquer sistema de conhecimento é uma espécie de 
bem público, conseqüentemente, a própria religião coloca os mesmos 
problemas. Para ambos, a verdadeira questão é a emergência da própria 
ordem social. As páginas que se seguem não dizem respeito a quem quer que 
afirme que a ordem social nasce espontaneamente. A teoria da escolha 
racional proíbe que um engajamento espontâneo se incorpore à argumentação, 
sob o disfarce da religião. O engajamento que subordina os interesses 
individuais a um todo social mais amplo precisa ser explicado. Para muitos 
leitores de Durkheim, sua argumentação parece apoiar-se demais na religião e 
se, tendo em vista os propósitos da epistemologia sociológica desses leitores, 
a crença religiosa deve equacionar-se com qualquer outro sistema de 
conhecimento, então a assertiva de Fleck, segundo a qual um estilo de 
pensamento reina soberano sobre seu universo de pensamentos, também é 
algo que parece suspeito. Como foi que surgiu essa soberania? É isso que os 
teóricos da escolha racional exigem que seja explicado. 
Por outro lado, a teoria da escolha racional apresenta grandes 
limitações. As pessoas não parecem agir de acordo com os princípios dela 
(Hardin 1982). O programa de Durkheim e Fleck pode dar uma resposta à 
crítica funcionalista e à crítica da escolha racional apenas quando desenvolve 
uma dupla visão do comportamento social. Uma dessas visões é cognitiva: a 
existência individual de ordem, coerência e controle da incerteza. A outra visão 
é transacional: a utilidade individual maximiza a atividade descrita em um 
 30 
cálculo que envolve o custo-benefício. Na maior parte deste volume pouco 
diremos a respeito desta última visão, que já se encontra muito bem 
representada nos escritos acadêmicos. O exemplo mal representado é o papel 
desempenhado pela cognição na formação do laço social. 
 31 
2 
 
DAR UM DESCONTO À PEQUENA ESCALA 
 
 
 
As sociedades em pequena escala são diferentes. Muitos daqueles que 
são bem informados sobre a dificuldade de explicar a ação coletiva no bojo da 
teoria da escolha racional contentam-se em abrir exceções. A pequena escala 
alarga o campo de ação dos efeitos interpessoais. Todo o campo da psicologia 
localiza-se aqui, juntamente com as emoções irracionais. Quando a escala das 
relações é suficientemente pequena para ser pessoal qualquer coisa pode 
acontecer e a teoria da escolha racional reconhece os limites de seus 
domínios. Em conseqüência, parece não existir um problema teórico em 
relação ao altruísmo quando a organização social é muito pequena. Entretanto, 
um exame mais detido revela que isentar as sociedades de pequena escala da 
força da análise racional é algo que não resiste bem a lima crítica. Elas não 
podem ser mais isentas do que as organizações religiosas. O objetivo deste 
capítulo é ampliar os argumentos da escolha racional, de tal modo a abrir 
aquelas áreas interditas onde não se supõe que a teoria penetre. Então a teoria 
se desnuda. Ela enfrentará inelutavelmente dificuldades agudas que não 
podem ser escamoteadas tomando como referência a escala ou fatores 
religiosos, emocionais ou irracionais. Este passo é necessário para se 
confrontar o registro empírico inoportuno. Sabemos que os indivíduos 
submetem seus interesses particulares ao bem dos outros, que o 
comportamento altruísta pode ser observado, que os grupos exercem uma 
influência sobre o pensamento de seus membros e até mesmo desenvolvem 
estilos de pensamento distintos. Sabemos isso sem dispormos de uma teoria 
do comportamento que leve tal fato em conta. 
Na seqüência aplicaremos a análise da ação coletiva, realizada por 
Mancur Olson, às questões habitualmente disfarçadas pelos efeitos da escala. 
Em The Logic Of Collective Action (1965), Olson parte da teoria econômica dos 
bens públicos, mas termina por uma teoria geral da ação coletiva. Os bens 
 32 
públicos constituem um conceito híbrido na teoria econômica. O termo foi 
adaptado para definir gastos governamentais legítimos. Se os impostos foram 
recolhidos para servir objetivos públicos, estes devem se distinguir dos 
benefícios individuais e ser mantidos sob o controle legislativo público. Um bem 
público deve beneficiar a todos, conforme ocorre, por exemplo, com o ar não-
poluído ou, pelo menos, deve ser acessível a todos, a exemplo de uma auto-
estrada pública. Começando por exemplos escolhidos para ilustrar um 
determinado problema político, o conceito se baseou em três formulações 
complexas e distintas: primeiro, que o suprimento de um bem não é diminuído 
pelo consumo individual; segundo, que um dos lados não pode reivindicar um 
reembolso pelo fato de o ter produzido, já que ele é propiciado pela 
coletividade; e terceiro, que nenhum membro da coletividade pode ser excluído 
de seu uso. É, essencialmente, um tipo de bem que escapa ao mecanismo dos 
preços e, assim, se esquiva da análise econômica padrão. 
Segundo a formulação geral de Olson, um indivíduo que se comporta de 
acordo com o interesse próprio racional não contribuirá para o bem coletivo e, 
do mesmo modo, não produzirá o benefício que deseja tendo em vista seu 
próprio interesse. Isto ocorre por dois motivos distintos. Uma argumentação 
depende da natureza dos bens públicos, dos problemas que surgem da 
necessidade de cooperação para providenciá-los e da impossibilidade de 
excluir quem quer que seja de gozá-los, uma vez produzidos. A outra 
argumentação depende da diminuição dos retornos para cada pessoa que 
contribuiu para a produção à medida que aumenta o número de pessoas que 
gozam do produto. O primeiro exemplo é muito eloqüente. O segundo, baseado 
em efeitos de escala, precisa ser qualificado. Separemos essas duas questões 
e comecemos apreciando o primeiro conjunto de problemas que surgem da 
natureza dos bens públicos. Olson argumenta que, na medida em que a 
contribuição dele não for suficiente para produzir o bem coletivo e na medida 
em que, por definição, a produção desses bens depende de muitos 
contribuintes, o cálculo racional do indivíduo tenderá a levá-lo a deixar de 
proporcionar qualquer bem. Por um lado, sua própria contribuição tem 
conseqüências limitadas. Assim como ele pode esperar que a ausência de seu 
pequeno óbolo não fará diferença, poderá também esperar pegar uma carona 
nas contribuições dos outros. "Pode deixar que fulano faz" é o princípio do 
 33 
teorema da inconseqüência formulado por Olson. Poroutros motivos, ele pode 
esperar que os outros sucumbam à mesma tentação de pegar uma carona e 
assim, se a contribuição deles não for acessível, sua própria contribuição se 
desperdiçará. Nesses exemplos, a baixa probabilidade de uma colaboração 
nada tem a ver com a escala. 
Estas argumentações explicam convincentemente muitas das 
dificuldades enfrentadas pelas organizações voluntárias. Embora as tenha 
analisado tão bem, o próprio Olson dá mais peso à argumentação da escala. É 
verdade que, em certos casos, o benefício obtido por cada usuário é diminuído 
por cada aumento do número total de usuários. Os parques e as estradas 
públicas constituem nítidos exemplos de como o congestionamento, é um 
obstáculo à fruição. Isto, porém, não se aplica a outros tipos de bens públicos, 
corno a defesa nacional, a proteção de polícia, a iluminação pública, ou os 
sindicatos que negociam em benefício dos trabalhadores em determinada 
indústria. Talvez não possa aplicar-se à educação, se concedermos que os 
benefícios resultantes de cada pessoa escolarizada são multiplicados por 
maiores oportunidades proporcionadas por um discurso escolarizado. 
Certamente não se aplica à criação de uma ordem social. Quanto mais 
pessoas puderem ser envolvidas no sistema de confiabilidade, mais vantagens 
resultarão para cada uma delas. Esta é a saída mais eficaz que responde à 
interrogação de como se pode explicar a ação coletiva. O exemplo de Olson 
vale com muito mais eloqüência para os problemas de confiança gerados pela 
possibilidade de se pegar uma carona e isto se aplica a instâncias que são de 
escala verdadeiramente muito pequenas. 
De acordo com Olson, os problemas de ação coletiva tal como são 
colocados na teoria da escolha racional só podem ser resolvidos por meio da 
coerção ou por uma atividade que é um subproduto, de baixo custo, de ações 
empreendedoras direcionadas para benefícios individuais seletivos ou por uma 
mescla de ambas. Uma comunidade que não conta com nenhum desses 
estímulos é atormentada pela indecisão e pela dissenção. Cada indivíduo 
racional que decida ser um membro, que saiba que sanção alguma pode ser 
aplicada a ele e que não existem recompensas especiais no serviço público, 
calculará se ele poderia sair-se melhor sozinho, contando apenas consigo. 
Quando este é o caso para todos os membros, o grupo deve permanecer 
 34 
latente. Enquanto tal, deve convocar um esforço combinado tendo em vista 
uma atividade a curto prazo − levantamento de fundos ou protestos −, porém 
não muito mais do que isto. 
Olson isentou a organização religiosa de sua teoria geral. Vinte anos 
mais tarde, entretanto, a isenção da organização religiosa constitui claramente 
um engano. A história da religião corrobora sua teoria. Sempre que as 
organizações religiosas tiveram acesso aos poderes coercitivos ou foram 
capazes de oferecer recompensas seletivas de riqueza ou influência a seus 
membros mais dedicados, suas religiões tiveram uma carreira estável e 
florescente. E sempre que elas estiveram ausentes, quaisquer que fossem os 
motivos, ocorreu uma história de fricção e cismas contínuos (Douglas & 
Wildavsky 1982). Não ajuda nossa compreensão da religião para protegê-la de 
um minucioso exame profano traçando em torno dela uma fronteira respeitosa. 
A religião não deveria ser isenta de modo algum. 
Olson também se mostra disposto a isentar pequenos grupos das 
implicações de sua teoria. Ele confere uma influência decisiva à escala da 
organização (Chamberlin 1982) e espera que suas observações não se 
apliquem a um determinado ponto de uma escala que decresce. Se as 
comunidades de pequena escala devem ser isentas assim como as 
comunidades religiosas, então aquilo que Durkl1eim tem a dizer não seria 
relevante, já que baseou sua argumentação em ambas. 
Existe, além disso, a crença de que em algo denominado "comunidade" 
os indivíduos podem colaborar desinteressadamente uns com os outros e 
construir um bem comum. Em uma comunidade como esta as injunções da 
escolha racional não se aplicam. Trata-se de uma idéia emotiva 
extraordinariamente vigorosa. 
Estas isenções aparentemente melhores à investigação analítica 
representam um território não demarcado pelo qual uma pessoa pode 
perambular conforme lhe agradar. Tal liberdade é prejudicial ao projeto de 
Durkheim e de Fleck. As isenções não são de pouca monta ou carecem de 
importância. Sua aceitação debilita a força de toda a investigação. Em 
particular, as isenções desviam a atenção do interessante e pessimista 
conceito de Olson relativo ao grupo latente. Ninguém que esteja empenhado 
em explicar a ação coletiva pode descartar superficialmente os formidáveis 
 35 
problemas enfrentados por uma pequena comunidade que tenta continuar 
existindo tal como é. Pior ainda é identificar as áreas isentas da vida social 
como aquelas que são pequenas em escala. Isto implica afirmar que, na época 
moderna, ela são poucas e carecem de importância. Porém, esta colocação é 
falsa. Estamos falando de coações sistemáticas à colaboração, que se aplicam 
a uma extensa gama, que vai da Associação de Pais e Professores local aos 
sindicatos, aos representantes do Poder Legislativo e à cooperação 
internacional (Olson 1965, pp. 66-131). É vasta a escala dos grupos latentes na 
sociedade; as conseqüências de seu fracasso em se aglutinar são graves. 
Assim, deveríamos nos encorajar e entrar naquela reserva toda cercada. A 
essa altura a religião pode ser parcialmente deixada de lado porque é por 
demais óbvio que a organização religiosa não constitui exceção ao exemplo 
geral e porque algumas coisas específicas serão ditas sobre a religião e a 
sacralidade em capítulos posteriores. Este é o ponto em que se devem 
concentrar os efeitos de escala. 
A argumentação falha pode ser expressa da seguinte maneira: a escala 
pequena promove a confiança mútua; a confiança mútua é a base da 
comunidade; a maior parte das organizações, caso não se baseiem em 
benefícios individuais seletivos, têm seu início sob a forma de comunidades 
pequenas e confiantes. Então, as características especiais da comunidade 
resolvem o problema de como a ordem social pode aflorar. Muitos mantêm 
que, após o nascimento inicial, por meio da experiência comunitária, o restante 
da organização social pode ser explicado pelo complexo entrelaçamento de 
sanções e recompensas individuais. O próprio Olson parece adotar esta visão. 
As duas grandes dificuldades em aceitá-Ias são de natureza empírica e teórica. 
Na prática, as sociedades de pequena escala não exemplificam a visão 
idealizada da comunidade. Algumas delas promovem a confiança e outras não. 
Alguém já escreveu sobre este tema já viveu alguma vez em uma aldeia? Já 
leu romances? Já tentou levantar fundos É claro que existem comunidades 
bem-sucedidas, mas vai contra o espírito da investigação racional selecionar 
apenas os exemplos que se adequam e negligenciar tantos outros. Pode-se 
indagar se isto é uma forma de investigação, uma ideologia ou uma doutrina 
quase religiosa. Ela fornecerá um exemplo pertinente de um conjunto de idéias 
que adquirem sua validade e, portanto, seu poder mais pelos usos 
 36 
reconhecíveis, no interior das instituições, do que pela força da razão. A 
atração exercida pela comunidade pequena, idealizada, íntima é forte na 
retórica política. 
Michael Taylor apresenta o mérito especial de ter tratado a ordem social como 
um bem público. Ele também se inclui entre muitos daqueles que acreditam 
que as comunidades pequenas são uma forma de sociedade na qual o auto-
interesse racional não impõe o desfecho das decisões (1982). Contanto que a 
comunidade seja suficientemente pequena e estável, supõe-se que seus 
membros tenham a liberdade de fazer contribuições que eles manteriam em 
aglomerações maiores e mais fluidas. Esta fórmula é um tanto imprecisa, pois 
a questão consiste em saber como a comunidadeconsegue ser estável. Taylor 
analisou três espécies de comunidades. Em primeiro lugar, temos as comunas 
modernas (ou comunidades intencionais), estudadas por muitos. Em segundo 
lugar, existem as sociedades camponesas, que geraram toda uma indústria de 
pesquisa acadêmica em torno da vida campestre. Seguem-se, finalmente, as 
sociedades tribais de pequena escala, descritas na literatura antropológica. 
Todos os três tipos de comunidade possuem uma documentação tão vasta, 
variada, repleta de detalhes, que a maior parte dos filósofos, em uma atitude 
compreensível, a evitam e assim, o conceito segundo o qual as pequenas 
comunidades são isentas da análise do comportamento racional, tende a 
escapar aos constrangimentos impostos pela crítica. 
 Taylor começa localizando a comunidade no extremo, em pequena 
escala, de um continuum de elementos, cada um deles vulnerável ao aumento 
da escala. Assim a comunidade é, por definição, pequena, interage face a face 
e é multiforme em seus relacionamentos. Em segundo lugar, a participação em 
seus processos de tomada de decisão é ampla. Em terceiro lugar, os membros 
da comunidade apresentam crenças e valores em comum; seu exemplo mais 
perfeito seria o consenso total. Em quarto lugar, a comunidade se mantém 
enquanto tal devido a uma rede de trocas recíprocas. 
Taylor afirma que tais disposições tornam inaplicável a análise da 
escolha racional. "Em muitas comunidades de pequena escala não se 
necessita de 'incentivos seletivos' ou de controles; é racional cooperar 
voluntariamente na produção do bem público da ordem social" (Taylor 1982, p. 
94). 
 37 
Deixando de lado essa afirmativa tão pouco matizada, segundo a qual 
os indivíduos que se beneficiariam do bem público na verdade combinam para 
produzi-lo, precisamos saber quais são as etapas de suas negociações uns 
com os outros. Qualquer ordem social envolve questões controvertidas de 
justiça e moral. Taylor supõe que elas são resolvidas, em comunidades muito 
pequenas, ao se instituir a igualdade econômica e a ampla participação nos 
negócios públicos. 
A fim de manter essa posição em relação à sociedade tribal, Taylor 
precisaria excluir o governo que opera pelas associações secretas, panelinhas 
e intrigas, o que equivale a grandes e arbitrárias supressões de seus próprios 
exemplos de comunidade. Além disso, ele sugere que, em uma comunidade 
real, a coerção física inexiste. Isto depende do que ele considera coerção. A 
menos que se dê a este termo um significado muito restrito, seria sensato 
eliminar desta definição muitas sociedades tribais de pequena escala. É 
verdade que em muitos bandos errantes de caçadores, a igualdade e a 
participação estão bem exemplificadas. Nesses bandos, porém, não é 
especificamente a escala diminuta, mas outros fatores, que criam as condições 
favoráveis para uma vida comunitária não-coercitiva. A dispersão da 
população, a abundância de recursos destinados a satisfazer as necessidades 
em um nível baixo e a fácil movimentação entre os bandos de caçadores 
permite que o conflito se tome difuso graças à separação (Service 1966; Lee & 
DeVore 1968). Muito provavelmente são estas as condições que a teoria de 
Olson espera que os grupos latentes apresentem com abundância: o indivíduo 
não tem muito a ganhar ou a perder permanecendo com o grupo; sua lealdade 
muda facilmente e ele resiste prontamente a qualquer tentativa de coerção, 
ameaçando cindir-se. O baixo nível do dispêndio de energia por parte desses 
grupos e o baixo grau em que sua existência pressionou os recursos do meio 
ambiente sugere que, pelo menos, seja corroborada a tese, segundo a qual, 
quando as condições são favoráveis ao indivíduo, não se obtém muita coisa 
em termos de colaboração. 
David Hume afirmou que o problema da ação coletiva pode ser melhor 
resolvido em comunidades muito pequenas, já que elas possuem muito pouca 
coisa que seja objeto de disputas. Isto também marca um ponto a favor de 
outro argumento: as comunidades pequenas fracassaram ao criar evidências 
 38 
muito visíveis de um benefício coletivo. Quando nos distanciamos do exemplo 
especial dos bandos de caçadores, outras comunidades em pequena escala 
não são visivelmente bem-sucedidas ao criar uma ordem social que proteja 
efetivamente as poucas pessoas e seus modestos haveres. 
Na perspectiva da antropologia, os fatores favoráveis têm menos a ver com a 
escala e mais com a proporção da população que tem acesso aos recursos, 
juntamente com a possibilidade de satisfazer necessidades sem obrigar 
alguém a executar aquele tipo de trabalho árduo, monótono e contínuo que 
tenta alguns a coagir outros a prestar serviço. Seria, entretanto, um grande erro 
qualificar essas comunidades como grupos latentes no sentido empregado por 
Olson. Elas, na verdade, constituem comunidades morais, persistentes e 
verdadeiras. Está ocorrendo algo que não desafia a análise e nada tem a ver 
com a escala, mas que é deixado de lado devido à falsa plausibilidade dos 
efeitos da escala. 
Suponhamos que uma forma de ordem social tenha se realizado de 
certa forma; então, no segundo estágio, Michael enumera quatro maneiras 
pelas quais a comunidade trabalha para manter essa ordem. Muitos outros 
escritores aderiram a essa lista. Nenhuma dessas formas constitui um exemplo 
convincente. A primeira dessas supostas formas extra-racionais de controle 
social se apóia em ameaças e ofertas. Elas não passam de apelos ao interesse 
próprio do indivíduo, Este processo é, com efeito, muito bem documentado 
pelos antropólogos, porém sua análise é por demais compatível com a teoria 
predominante da escolha racional para poder isentar as pequenas 
comunidades de seu vigor. 
A socialização é o segundo modo pelo qual se afirma, com freqüênIcia, 
que a ordem social é mantida. Os adultos são expostos ao vexame público e as 
crianças passam por iniciações dolorosas que as ensinam a tomar as atitudes 
corretas. Podemos, entretanto, imaginar como os pais são induzidos a deixar 
seus filhos passar por esses tormentos e indignidades, que fazem parte de um 
padrão. As sanções coletivas são uma forma de ação coletiva. Retrair-se do 
processo da socialização é outra maneira de não cooperar. O que acontece 
quando uma mãe alega que seu filhinho é por demais sensível ou 
excessivamente jovem? O que a impede de afastar seu filho e todas as outras 
mães de afastar os seus, por meio de uma ação precipitada, que os subtrai à 
 39 
socialização? A resposta está em seu compromisso com determinada ordem 
social. Mas não é essa escolha coletiva o que estamos tentando explicar? 
A terceira maneira pela qual a ordem social é presumivelmente mantida 
nas sociedades primitivas se dá pelas características estruturais daquelas 
sociedades. Trata-se de uma questão sutil. Essas características não 
constituem mecanismos específicos de controle social; não podem ser 
separadas daquilo que é controlado, mas fornecem uma estrutura para os 
controles sociais. Elas são, essencialmente, os padrões de reciprocidade, 
parentesco e casamento. Entretanto, tais padrões de troca constituem a 
articulação da ordem social que, em si, é apenas uma articulação do 
comportamento; assim, o argumento é circular. Pode ser salvo unicamente por 
uma presunção funcionalista explícita de um sistema de atividades interligadas 
que mantém a si mesmo. 
A característica mais amplamente demonstrada da sociedade primitiva 
que, segundo se diz, mantém a ordem social, é a crença nas sanções 
sobrenaturais como o medo à bruxaria, à feitiçaria ou aos ancestrais punitivos, 
Se outros argumentos falham e se essas crenças carregam o principal fardo 
naquele exemplo que separa a comunidade do resto do mundo, então toda a 
argumentação submeteu-se a fatores irracionais, Ou a criação da comunidade 
é algo que apenas os primitivos podem fazer graças a suas crenças 
supersticiosas na bruxaria e nos ancestrais, ou tais

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