Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
51 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado Unidade II 5 Realidade BRasileiRa, expRessões da Questão social, diReitos sociais Retomando brevemente as análises sobre pobreza, seu dimensionamento envolve também as capacidades humanas, entendidas como uma série de combinações que permitem às pessoas realizações. Segundo Sen (1999, p. 16), “a capacidade é um tipo de liberdade: a liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos ou a liberdade para ter estilos de vida diversos”. As capacidades envolvem funções que estão associadas a como uma pessoa atribui valor ao fazer e ao ter. Essas funções, por sua vez, podem se diferenciar nas formas como as pessoas atribuem a si os valores, como adotar cuidados para manterem-se saudáveis ou escolher como participarão da vida da comunidade, ter respeito próprio etc. Para Sen (1999), algumas dessas capacidades são fundamentais para a preservação da vida e sua promoção ou privação pode conduzir até mesmo à morte. Exemplifica com estados de subnutrição que causam mortes prematuras, analfabetismo, que no mundo contemporâneo desencadeia uma série de privações e outras incapacidades. A pobreza também pode ser caracterizada por ausência de renda ou pela evidência de que as pessoas se encontram em patamares inferiores aos parâmetros que asseguram a vida e também pela ausência do acesso justo, resultante do trabalho e da efetiva participação social. As capacidades humanas são desenvolvidas segundo condições genéticas, sociais, culturais, econômicas, de gênero, fatores climáticos e ecológicos. Na cena contemporânea, essas capacidades são também afetadas pelo processo de acumulação capitalista, pelas más condições da vida urbana, que incluem a insegurança e violência em alguns bairros pobres e muito populosos e outras variações sobre as quais uma pessoa pode não ter controle ou apenas controle limitado. É evidente que não ter capacidades ou ser limitado no uso dessas causa desvantagens, reduz o potencial de participação das pessoas na lógica de pertencimento familiar e comunitário e no acesso a bens e serviços, recursos fundamentais para a existência humana. Esclarecendo, a distribuição de renda dentro da família acarreta complicações quando usada desproporcionalmente no interesse de alguns membros da família em detrimento de outros, quando há, por exemplo, uma incapacidade no equilíbrio de gênero, favorecimento de acesso aos meninos em detrimento, por razões diversas, às meninas. Essa análise de articular o entendimento de pobreza por meio das capacidades humanas melhora a compreensão da natureza e das causas da pobreza e da privação focadas somente em questões econômicas, porque fundamenta que as pessoas têm razão para buscar liberdades a fim de alcançar 52 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 certos fins e que há fatores básicos das capacidades que intensificam necessidades de desenvolvimento multidimensionais quando se trata de seres humanos. A ausência de liberdade e a pobreza encerram os dois sentidos, tanto de capacidades humanas insuficientemente contempladas quanto de acesso à renda reduzida ante as necessidades humanas. A renda é um dos meios de potencializar as capacidades humanas e, quanto maiores forem essas capacidades, maior será o potencial produtivo de uma pessoa, consequentemente maior a chance de obter uma renda mais elevada, evidenciando que essa relação é muito importante. Contudo, não é somente a renda que proporciona o aumento das capacidades, outros elementos são igualmente significativos, como, por exemplo, a educação, a saúde, o ambiente saudável, entre outros. Segundo Sen (1999, p. 108): [...] é importante ter em mente que a redução da pobreza de renda não pode ser o único objetivo de políticas de combate à pobreza. É perigoso ver a pobreza segundo a perspectiva limitada da privação de renda e a partir daí justificar investimentos em educação, serviços de saúde etc., com o argumento de que são bons meios para a redução da pobreza. Isso seria confundir os fins com os meios. Essa noção ampliada de analisar a pobreza leva a compreender que pobreza diz respeito à privação da vida que afeta as pessoas e das liberdades que de fato exercitem. Ao se ampliar os fatores que motivam a expansão das capacidades humanas, direta e indiretamente, promovem-se as chances de enriquecimento da vida humana. Portanto, as ações para combater a pobreza nas sociedades deverão eliminar as fontes de privações. Eliminar os fatores que levam as pessoas às situações de pobreza também significa defender direitos e aprofundar conhecimentos sobre bloqueios e imposições da estrutura socioeconômica, particularmente os que possam impedir o direito das pessoas de participar das decisões que afetam suas vidas cotidianas. lembrete As capacidades humanas são desenvolvidas segundo condições genéticas, sociais, culturais, econômicas, de gênero, fatores climáticos, ecológicos e, na cena contemporânea, pelos efeitos da acumulação capitalista. É necessário entender os direitos, nessa perspectiva do debate contemporâneo, sobre os impactos das transformações econômicas no movimento de globalização e na reestruturação produtiva nas cidades. 53 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado Na perspectiva ampliada, trata-se de um conjunto de reconhecimentos e garantias, resultado de uma aposta institucionalizada, universalista e includente, outorgados pela sociedade através do seu sistema legal a todos os indivíduos, e que determinam a cidadania civil, política e social atribuída pelo mesmo sistema legal (DAGNINO, 2002). Como esses direitos se expressam na nova ordem socioespacial, na qual a cidade revela uma estrutura social dividida entre classes e interesses, entre cidadãos e não cidadãos, o espaço é fragmentado por uma sociedade dominada pelas elites. Nesse espaço onde se pretende fortalecer direitos impera a desigualdade no acesso a bens e serviços e coloca-se na cidade a discussão sobre a natureza e a qualidade do conflito social, que está relacionado diretamente à capacidade de os grupos sociais se constituírem enquanto sujeitos sociais. Assegurar direitos implica formas de organização social, hoje com determinadas feições, reconhecidas como espaços privilegiados de debates e fomento à participação popular. Destacam-se, nessas formas organizadas, atores sociais representados em fóruns e redes nacionais, bem como suas respostas frente aos desafios urbanos. Estruturam-se por esse caminho estratégias de intervenção voltadas para a redução das desigualdades sociais e dos níveis de segregação e exclusão social que marcam a sociedade brasileira, na perspectiva da construção de um novo modelo de cidades, mais justo e democrático (DAGNINO, 2002). Esse processo de organização reivindicativa de direitos não está livre de tensões e embates. No Brasil, essas lutas, desde a década de 1980, são visíveis na esfera da defesa do acesso às políticas públicas, que embora tenham papel importante para assegurar condições de bem-estar, no entanto, estão longe de facilitar a ampliação dos espaços onde o público se sobrepõe às apropriações privadas. O que se observa, por exemplo, é que serviços de educação e saúde são cada vez mais privatizados. Alguns dos reflexos dessas apropriações privadas da terra, na década de 1990, são revelados pelo aumento dos assentamentos irregulares, em número, em densidade, em precariedade, em violência, e pelas ocupações espaciais urbanas, que se expandiram por áreas impróprias para a habitação, segundo as recomendações ecológicas e de estudos ambientais sobre as formas de preservação da vida. O Estado, por sua vez, não realiza planejamentos urbanos e se limita a, quando pressionado pelas denúncias de risco, realizar a regularização fundiária dasfavelas, numa lógica de diretriz federal para todo o país, sem consultar os habitantes e outras possibilidades de respostas para essa situação. As necessidades de moradia das populações deslocadas para centros urbanos densos, devido aos processos de transformação capitalista, promoveram a ocupação de áreas inapropriadas, em lugar de políticas habitacionais planejadas. Processo semelhante ocorreu na área da educação, que por falta de políticas e investimentos adequados levou o Estado a adotar uma política de cotas para inserir no ensino público superior pessoas que não acessaram por meios democráticos e equânimes esse espaço de desenvolvimento educativo. 54 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Na área da saúde, a falta de investimento também revela sua face perversa, devido à falta de atenção com políticas públicas, que fez voltar epidemias e doenças anteriormente erradicadas e revelou um sistema de atendimento saturado e ineficiente, em que médicos, frente à impossibilidade de responder a toda demanda, são obrigados a escolher entre aqueles que têm mais condições de sobrevida. As mortes de juvenis impressionam por índices superiores ao de países em constante turbulência social, provocadas, em geral, por situações de guerra e fatores climáticos graves. O cotidiano urbano cada vez mais impacta, assusta e demonstra a ineficácia das iniciativas estatais para responder às expressões da Questão Social. A violência urbana extrapola para ações individuais ou de grupos, legais ou clandestinos, sem evidências de que possa merecer atenção das instâncias com políticas públicas eficientes e, ao mesmo tempo, denotando um aumento em intensidade e formas. Esses dilemas sociais exigem posicionamento estatal, o qual responde com políticas públicas focalizadas e seletivas, bem distantes de atender às necessidades mais substanciais das populações e de atacar a raiz dos problemas. No caso das péssimas condições habitacionais, o Estado tem respondido: Com políticas de regularização fundiária das favelas, substituindo uma política habitacional efetiva; na ampliação do acesso ao ensino em todas as instâncias, promovendo um rebaixamento geral do ensino; no abandono dos serviços de saúde; na ausência de procedimentos para qualificação e geração de emprego; na desassistência aos desempregados, aos velhos e às crianças (DAGNINO, 2002, p. 265). Em relação à atenção das necessidades humanas fundamentais, organismos internacionais, historicamente de cunho assistencialista, tendem a reconhecer o papel limitado de políticas paliativas. A posição do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2006) faz referência à necessária substituição das relações entre países por medidas mais efetivas e menos paliativas e propõe “política e não caridade” na relação desigual entre as nações, o que, no caso brasileiro, seria absolutamente desejável que se aplicasse no planejamento e na criação das políticas públicas. observação Assegurar direitos implica formas de organização social, hoje com determinadas feições, reconhecidas como espaço privilegiados de debates e fomento à participação popular. Em seu papel de vinculação ao capitalismo monopolista, o Estado transforma processos de desigualdades estruturais, com efeitos macros, coletivos e que expressam a Questão Social, em problemas individuais, fragmentados, isolados e de acesso parcializado, meritório, atribuindo às relações 55 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado de solidariedade social um caráter de sujeição, de socorro a pessoas sem condições de desenvolver suas capacidades. Essa posição do Estado reforça a competição entre classes e grupos sociais, pelo reconhecimento e pela valorização capitalista, o que acentua diferenças e “justifica” as políticas públicas deficientes e esvaziadas de respeito aos direitos. Nessa forma de analisar a lógica da globalização, percebe-se com clareza que, ao contrário do que a sociedade vislumbrava, o neoliberalismo não trouxe melhoria da qualidade de vida, sobretudo para as nações que se submeteram às condições impostas pelo sistema financeiro internacional. Na realidade brasileira, a partir da globalização, o que se evidencia de fato nas respostas do Estado são medidas emergenciais, que tendem somente a permitir a reprodução da lógica concentradora do processo de acumulação em escala globalizada. Os direitos nessa perspectiva merecem maior reflexão. A ascensão do capitalismo como modo de vida, definindo as relações de mercado, que envolvem contratualidades, escolhas individuais e negociações, cria o espaço para o surgimento dos direitos econômicos e sociais. Em outras palavras, para se fundar uma lógica de direitos sociais, foi fundamental opor-se ao sistema feudal para ampliar as forças comerciais, pois dessa forma, com cidadãos livres e com direitos, abriu-se a possibilidade da existência da sociedade de consumo e das relações de mercado. Por esse caminho, os direitos individuais foram reconhecidos e garantidos com apoio do movimento socialista no século XIX, que pautou em suas reivindicações os grandes direitos econômicos e sociais: liberdades individuais – direito de ir e vir, habeas corpus, igualdade de voto, livre associação. Sem essas conquistas, as liberdades civis e políticas, o movimento sindical teria tido enorme dificuldade para se desenvolver. Constitui-se dessa forma o primeiro patamar de direitos humanos na história. Trata-se de garantias e exercícios de cidadania que antes da Revolução Industrial e do surgimento do capitalismo não eram considerados tão significativos. Contraditoriamente, esses direitos, protetores da igualdade de direitos individuais, são os mesmos que vão encobrir uma nova divisão social, da sociedade em classes proprietárias e trabalhadoras, em ricos e pobres. Sobre isso, Dagnino (2002, p. 321) destaca: Em 1847, afirmava Alexis de Tocqueville: “a Revolução Francesa, que aboliu todos os privilégios e destruiu os direitos exclusivos, deixou, no entanto, subsistir um, o da propriedade [...] Dentro em pouco, é entre os que têm posses e os que não têm que se estabelecerá a luta política; o grande campo de batalha será a propriedade, e as principais questões da política passarão pelas modificações mais ou menos profundas a trazer ao direito de propriedade” (Souvenirs). O que se constata na realidade brasileira, como analisa Telles (2001, p. 147), é o “encolhimento do horizonte de legitimidade dos direitos”, um esvaziamento da própria noção de direitos que transforma 56 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 o direito em privilégio em nome de uma suposta modernização da economia que tem no mercado seu foco principal. Para saber mais sobre esse processo, faz-se necessário uma contextualização histórica de como se chegou a essa conformação. Nas pesquisas de Oliveira (2006), o autor aponta que o Golpe Militar de 1964 impactou o sistema político sem, no entanto, afetar o modelo de desenvolvimento. lembrete O neoliberalismo não trouxe melhoria da qualidade de vida, sobretudo para as nações que se submeteram às condições impostas pelo sistema financeiro internacional. As novas formas de acumulação industrial exigem estratégias eficientes de controle do operariado. O processo de ditadura, na opinião do autor, paralisou como nunca havia ocorrido antes as áreas mais significativas dos setores produtivos e manteve a tutela estatal sobre o proletariado, inaugurada pelo Estado Novo de Vargas nos anos 1930. 6 Mundialização e FinanceiRização do capital A mundialização do capital, também chamada de globalização, instituiu a financeirização do capitalismo, facilitando a entrada dos sistemas monetários e financeiros de cada capitalismo nacional, que veem acentuadas suas dívidas externas, contraídas ainda no período chamadode grande liquidez (1970). Ressalta-se que os países endividados foram deslocados para a periferia do sistema de financeirização do capital, incluindo o Brasil e a América Latina. Marcam as primeiras formas da mundialização a presença maciça das multinacionais, que operavam ainda num campo determinado pelas decisões internas. Essa nova forma de acumulação de capital originou um progresso técnico que elevou a produtividade do trabalho a níveis tão elevados que, segundo Oliveira (2006, p. 86), [...] de fato, parecia que o consumo de trabalho vivo de uma parte ponderável da força de trabalho começava a ser irrelevante: uma massa marginal, não funcional para a acumulação de capital, nos termos de José Nun que, aliás, pode ser considerado o precursor de toda a discussão sobre a perda da centralidade do trabalho, depois de Bernstein. Toda a literatura sociológica acusou o golpe e, além de Nun, desde Gorz se disse adeus ao proletariado, que havia perdido ou consumido suas energias utópicas no novo arranjo que deslocava sua antiga centralidade, substituída pela ação comunicativa. A financeirização do capital gerou a dominação do capital financeiro sobre o capital produtivo, ao movimentar com a velocidade da luz o capital fictício nas bolsas e nos mercados financeiros e promover o barateamento do trabalho, deslocando as fábricas para os territórios de periferia mundial, que até essa 57 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado fase não tinham expressão para a acumulação mundial, como Coreia do Sul e Taiwan, depois Indonésia, Malásia e Filipinas e, atualmente, a China. A circulação de capital financeiro é astronômica, mas reside aí sua fragilidade, porque se constitui num capital que depende da imagem como estratégia para sua expansão. Isso pode ser compreendido pela importância dos avanços tecnológicos, expressos por processos de digitalização e molecularização, que mudaram radicalmente a linguagem e as referências do próprio cotidiano e virtualizaram o capital, tornando-o mais eficaz para extrair mais-valia no momento do uso da força de trabalho, sem os constrangimentos da era industrial. Esse movimento virtualista do capital faz desmoronar a sociabilidade expressa na época do trabalho como categoria central, do trabalho fixo, previsível em longo prazo, base da produção fordista e do consenso welfarista (OLIVEIRA, 2006). Faz ruir também, com o renascimento de um cultivo fascista deflagrado com o ataque de 11 de setembro de 2001, sistemas políticos longamente amadurecidos no consenso welfarista, que vinham avançando em regimes de tolerâncias e reconhecimento dos direitos humanos. No entender de Oliveira (2006, p. 138): Esse cenário mundial se revela na realidade brasileira com o fracasso da experiência neoliberal no Brasil, conduzida, sobretudo pelo Governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) nos seus dois mandatos. O período de Luiz Inácio Lula da Silva (LULA), que findou sua primeira incursão ao governo, neste ano de 2006, foi caracterizado por analistas e pela maior parte da mídia como o terceiro mandato de FHC. Pois, no essencial, a política econômica apelidada neoliberal foi mantida e as políticas de desregulamentação seguem o mesmo roteiro. Os direitos sociais foram inscritos agora no registro das carências, sob a rubrica global do Programa Bolsa-Família. No Brasil, o neoliberalismo estimulou consideravelmente os domínios dos capitalistas, também sob a égide da financeirização da economia, que predetermina a acumulação possível e que lugar o Estado irá ocupar no sistema econômico e promoveu intensas privatizações que retiraram do Estado a capacidade de fazer política de produção. Como em outros países de periferia, as relações entre as classes mudaram estruturalmente com as privatizações e com a financeirização, fato visível no caso do Partido dos Trabalhadores, que, criado com força de alta representatividade dos interesses dos trabalhadores industriais, de serviços e nas estatais, se fragmentou sob o processo de privatizações e desregulamentações, devido à alta perda de empregos formais, à intensa informalização do trabalho, à desqualificação semântica dos privilégios dos servidores públicos e ao enorme desemprego (OLIVEIRA, 2006). A financeirização do capital é, sem dúvida, na opinião de Oliveira (2006), uma dominação de classe, que se faz pelo terror, diretamente, sem mediações, sem política, porque o capitalismo globalizado 58 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 rejeita a submissão à política, que foi uma invenção especificamente ocidental, para tratar as fortes assimetrias instauradas pelo poder econômico do capital. Sendo assim, na realidade brasileira: [...] vivemos tempos de despolitização da política, de redução da esfera pública, que vem acompanhada da supressão dos conflitos que lhe são próprios, do desentendimento, no sentido que desenvolve Rancière (1996), quando se refere ao dissenso estabelecido no momento em que o povo, a plebe, “aqueles que não têm parcela”, resolvem estabelecer a política do litígio, produzindo o escândalo de querer falar, de cobrar a sua parcela (OLIVEIRA, 2006, p. 145). No caso brasileiro, o neoliberalismo, a privatização que ocorre do patrimônio público o destrói sobre o domínio das classes dominadas, significando para elas “a destruição de sua política, o roubo da fala, sua exclusão do discurso reivindicativo e, no limite, sua destruição como classe; seu retrocesso ao estado de mercadoria, que é o objetivo neoliberal” (OLIVEIRA, 2006, p. 146). O cenário revela a desmontagem das instituições de representação coletiva em todos os níveis, a progressiva diminuição do alcance e da qualidade das políticas sociais, a redução dos espaços de negociação com diferentes atores da sociedade civil, com amplos rebatimentos na conformação da esfera pública e expressa profundas transformações no movimento de produção e reprodução da vida social, determinadas pelas mudanças na esfera do trabalho, pela reforma do Estado e pelas novas formas de enfrentamento da questão social, com grandes alterações nas relações público/privado. A globalização e o desenvolvimento tecnológico e informacional promoveram profundas mudanças nos processos de trabalho, no sistema de produção e nos mercados e impulsionaram a intensificação da competição intercapitalista, gerando a flexibilização e a corresponsabilização produtiva, que culminou na terceirização ou subcontratação de trabalho temporário, parcial, e nas diferentes formas de precarização do trabalho, para destacar apenas alguns dos elementos presentes nesse processo. Fruto de intensa participação popular, o Brasil promulga a Constituição de 1988, conhecida como “cidadã”, com objetivos de: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º) (BRASIL, 1988). Em seus fundamentos como Estado Democrático de Direito, o texto constitucional afirma serem soberanos: a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Os direitos sociais incluem 59 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado educação, saúde, moradia, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados (art.6º). (DAGNINO, 2002, p. 236). observação Não ter capacidades ou ser limitado no uso dessas causa desvantagens, reduz o potencial de participação das pessoas na lógica de pertencimento familiar e comunitário e no acesso a bens e serviços, recursos fundamentais para a existência humana. Os direitos humanossão fruto das lutas e das conquistas alcançadas em momentos revolucionários de mobilização da população mundial, na busca de garantir justiça e direitos fundamentais para a preservação da vida humana diante de exposições a situações de violência e contrárias à segurança existencial. Destacam-se, na história, as Declarações de Direitos das Revoluções Inglesa (1640 e 1688), da Independência Norte-Americana (1783), Francesa (1789), Russa (1917) e a Declaração dos Direitos Humanos de 1948, promulgada no pós-guerra. Esta transcende ao defender princípios e valores ético-políticos dirigidos à liberdade, à justiça e à luta contra a desigualdade (PEREIRA, 2007). Pautam esses direitos humanos a universalidade, que se contrapõe aos princípios capitalistas, os quais promovem a divisão de classes e a divisão estrutural das sociedades e sua consequente posse da propriedade privada e dos lucros do capital. De igual forma, ficam à mercê da dominância capitalista a socilização de direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, que são determinados por sua lógica historicamente no mundo. No entanto, os direitos humanos resultam da luta de classes, por meio de mobilização dos trabalhadores e sujeitos políticos para combater situações de opressão, exploração e desigualdades. Nela, consagram-se os direitos sociais, econômicos, civis, políticos defendidos no movimento operário dos séculos XIX e XX. Na cena contemporânea, outras lutas mais específicas redimensionaram e ampliaram a defesa desses direitos com novas pautas, como, por exemplo, diferentes aspectos da discriminação e das desigualdades sociais, em defesa de mulheres, negros, homossexuais, e o desenvolvimento de serviços públicos considerados de promoção fundamental da vida humana, como saúde, habitação, trabalho, previdência, assistência social etc. (PEREIRA, 2007). A existência de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos já sinaliza as desigualdades sociais e os desafios da humanidade para seu desenvolvimento, especialmente nas sociedades de capitalismo contemporâneo, que é o responsável pela fragmentação dos processos sociais, suas mediações, contradições, e pela construção estrutural de uma plataforma de dominação sobre 60 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 todos os processos que limitam e até eliminam liberdades, desenvolvimento das capacidades humanas em sua mais ampla concepção e de suas relações ecológicas. lembrete A mundialização do capital, também chamada de globalização, instituiu a financeirização do capitalismo a partir da década de 1970. Esse processo consistia na entrada de capitais internacionais nos países que tiveram suas dívidas externas acentuadas, incluindo o Brasil e a América Latina. A constituição brasileira contempla de forma articulada os direitos humanos e os direitos do cidadão, de tal forma que lutar pela cidadania democrática e enfrentar a Questão Social no Brasil praticamente se confundem com a luta pelos direitos humanos, porque se entende que ambos resultam de uma longa história de lutas sociais e de reconhecimento, ético e político, das capacidades humanas, independentemente de quaisquer distinções. A despeito dessas garantias amplas e considerando os efeitos perversos da acumulação capitalista, a realidade brasileira reflete em seu cotidiano profundas contradições com esses princípios constitucionais e é marcada por intensas desigualdades sociais, com uma gigante e flagrante concentração de renda. Segundo Pereira (2007), o país é impactado pelo processo de desrespeito aos direitos sociais conquistados nas lutas contra os avanços capitalistas e neoliberais e é em nome desse mesmo sistema que defende o “estado mínimo”, são reduzidas as expressões das lutas da população e destituídos de sua legitimidade os Direitos Humanos, entre eles, a cidadania, as liberdades civis e políticas etc. O mais recente relatório de indicadores sociais do PNUD coloca o Brasil em 79º lugar. O próprio Banco Mundial, insuspeito de simpatias “esquerdistas”, vem afirmando que a pobreza tem crescido muito devido à globalização econômica – e não o contrário, como apregoam nossos deslumbrados arautos do neoliberalismo (PEREIRA, 2007, p. 76). Em síntese, desde a década de 1980, o processo “reformista” que afetou a América Latina também conduziu o Brasil, especialmente nos últimos quinze anos, a passar por profundas mudanças políticas e institucionais. Em seus avanços, o país se redemocratizou, promulgou uma nova Constituição “cidadã” e seus governos sucessivamente, iniciando pelo de Collor de Mello (1989), desencadearam reformas econômicas estruturais de caráter neoliberal, que começaram a ser implementadas com a adoção de políticas de liberalização econômica e a privatização de empresas estatais. Esse mesmo processo fez aumentar a transferência de responsabilidades e de competências do governo nacional para os governos locais, impulsionando profundas transformações nas instituições de governo local do país, que alteraram o sistema de decisões municipais e as práticas dos atores políticos. 61 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado Desde então, verifica-se um crescente e generalizado processo de fortalecimento da esfera local de governo, centrado na descentralização e na municipalização das políticas públicas. 7 Mundialização e podeR local Em reflexões sobre o poder local, Dowbor (1994) esclarece que as pessoas são condicionadas a entender as formas de organização cotidiana das sociedades como sendo “naturalmente” responsabilidade de uma esfera superior, hoje na cena contemporânea tão virtualizada quanto o capital financeirizado. Trata-se de uma gestão governamental distante, inacessível e que desconhece as realidades específicas, porque se direciona exclusivamente ao interesse do capital globalizado. Dowbor (1994) crê que não seja necessário empreender uma busca acelerada para alcançar o que se deseja, como ambiente saudável, ruas transitáveis etc. Na verdade, ele considera que as tecnologias da modernidade podem facilitar uma melhor gestão do “espaço de vida” por parte das comunidades. E, para que esse processo seja viável, há que ser recuperado o controle do cidadão sobre as decisões envolvendo o bairro, a comunidade, as formas de desenvolvimento, a criação das dinâmicas concretas para tornar as capacidades humanas plenas e a vida agradável e a não submissão a leis que forcem esse cidadão a se matar de trabalho para contribuir para um mundo que ele não deseja. Exemplificando com a cidade de São Paulo, o autor refere que fica evidente esta análise: [...] temos quatro milhões de automóveis, que não andam. Temos apenas oito mil ônibus, e que andam 15 quilômetros por hora, porque não há espaço nas ruas. Temos apenas 40 quilômetros de metrô, para 10 mil quilômetros de ruas, porque as opções básicas são pelo carro. Assim, não há espaço nem nos ônibus nem nas ruas. E temos cinco milhões de pessoas que diariamente vão ao trabalho ou à escola a pé. Em outros termos, conseguimos nos paralisar, de certa forma, por excesso de meios de transporte. E a deformação tende a se reforçar, pois, quanto pior a circulação, mais o transporte individual aparece como indispensável, e mais carros entram nas ruas (DOWBOR, 1994, p. 123). O centro do debate reside no abismo entre os avanços tecnológicos, as formas de crescimento econômico por um lado e as necessidades humanas de outro. A atitude contemplativa das sociedades é estimulada pelo liberalismo, que ensina as pessoas a não se intrometerem na construção do mundo que as cerca, porque existe uma “mão invisível” do mercado, que em tese dá garantias de que por meios automáticos do sistema todos chegarão ao ”melhor dos mundos” e há, ainda, a visão “estatizante”, que assegura que o planejamento central colocará ordem nas coisas e nas vidas das pessoas, simplificação quejá foi desmentida pelos fatos (DOWBOR, 1994). Em contradição aos processos desencadeados pelo capitalismo nas últimas décadas, surgiu uma nova tendência de as pessoas se organizarem para tomar em mãos, senão os destinos da nação, pelo menos o destino do espaço que as cerca, seguindo experiências similares ocorridas também nos países do Leste Europeu, onde a simples privatização está demonstrando seus limites. 62 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Aprofundando esse entendimento, Dowbor (1994, p. 129), refere que Este “espaço local”, no Brasil, é o município, unidade básica de organização social, mas é também o bairro, o quarteirão em que vivemos. Como é que se procede a esta racionalização do nosso espaço de vida? Como é que o cidadão recupera uma dimensão essencial da sua cidadania? [...] É o que aqui chamamos, de forma ampla, de “poder local”. A questão do poder local está rapidamente emergindo para se tornar uma das questões fundamentais da nossa organização como sociedade. Referido como “local authority” em inglês, “communautés locales” em francês, ou ainda como “espaço local”, o poder local está no centro do conjunto de transformações que envolvem a descentralização, a desburocratização e a participação, bem como as chamadas novas “tecnologias urbanas”. O Relatório de Desenvolvimento Humano 1992 das Nações estima dados no mínimo dramáticos sobre a situação social no mundo: Ainda há mais de um bilhão de pessoas em estado de pobreza absoluta, quase 900 milhões de adultos não sabem ler nem escrever, 1,75 bilhão de pessoas não têm acesso à água potável segura, cerca de 100 milhões estão completamente sem casa, cerca de 800 milhões passam os seus dias com fome, 150 milhões de crianças de menos de cinco anos (um em cada três) estão desnutridas e 14 milhões de crianças morrem anualmente antes do seu quinto aniversário. Em muitos países da África e da América Latina, os anos 1980 presenciaram estagnação ou até inversão em realizações humanas. As raízes desta situação catastrófica são mais políticas do que econômicas. O mundo produz atualmente mais de 4.000 dólares de bens e serviços por pessoa e por ano, o que significa que, com uma repartição um pouco mais justa, poder-se-ia assegurar uma vida digna e normal para toda a população do planeta, sem miséria, sem fome e sem as manifestações de violência que resultam da opressão. No próprio Brasil, onde a produção anual por habitante é da ordem de 2.000 dólares, uma repartição mais justa permitiria assegurar um nível de vida confortável para a totalidade da população. A realidade é que a metade do produto social é consumida por 10% das famílias mais ricas do país. O topo da pirâmide social, representando 1% dos mais ricos do país e cerca de 1,5 milhão de pessoas, obtém uma renda de cerca de 17% do total, enquanto a metade mais pobre do país não chega aos 13%. Isso significa que 1,5 milhão de ricos podem consumir mais do que os 75 milhões de pobres do país. As cifras preliminares do IBGE, referentes aos últimos anos, mostram que essa situação está se agravando. Apesar de sermos um dos países mais bem dotados para a agricultura do mundo, temos cerca de metade da população desnutrida. Somente Haiti, Bolívia e Honduras têm uma mortalidade infantil mais elevada que a nossa. Cerca de 63 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado 60% da nossa mão de obra são analfabetos ou semiletrados. O essencial do aparelho produtivo industrial está concentrado em três ou quatro cidades, o êxodo rural desestrutura a população camponesa e transforma as cidades em aglomerados cada vez menos controláveis (DOWBOR, 1994, p. 134-35). Retomando a questão de dinamismo do espaço local, tem-se observado que as decisões são tomadas longe do cidadão e correspondem muito pouco às suas necessidades. Essa dramática centralização do poder político e econômico que caracteriza a forma de organização da sociedade brasileira leva, em última instância, a uma apartação profunda entre as necessidades humanas e o conteúdo das decisões sobre o desenvolvimento econômico e social. A centralização do poder está diretamente vinculada à concentração de renda, pois apenas com imenso poder central, tanto ao nível do estado como ao nível empresarial, é possível que 1% da população se aproprie de um produto social maior do que os 75 milhões de pobres (DOWBOR, 1994, p. 141). Toda e qualquer ação que a sociedade desenvolve ocorre e materializa-se no território por meio de relações sociais entre os níveis mais diferenciados, nas escalas local, nacional e global, interferindo na vida social, política, econômica e cultural. lembrete A atitude contemplativa das sociedades é estimulada por meio do liberalismo, que ensina as pessoas a não se intrometerem na construção do mundo que as cerca, porque existe uma “mão invisível” do mercado que, em tese, dá garantias de que por meios automáticos do sistema todos chegarão ao “melhor dos mundos” (DOWBOR, 1994). Quando se menciona a tomada de decisão por parte das pessoas ao compartilharem um espaço de convivência, faz-se referência ao exercício do poder. Inicialmente, a reflexão de Bourdieu (1998) é de que o poder pode ser caracterizado como um campo de forças que envolve, de maneira diferenciada, atores sociais que buscam exercer uma relação de poder, dependendo do momento histórico, para assim tentar reproduzir suas relações sociais. A formação de um determinado grupo que articula relações de poder pode fazer com que essas relações se tornem diferentes de outras desempenhadas em determinados momentos históricos. As pessoas procuram se fortalecer ao criarem um campo de atuação diferenciado de outros campos que comportam poder e estimulam comportamentos sociais que produzem efeitos no ordenamento do território. As relações, nesses casos, estimulam o poder e incentivam os atores sociais na resolução de seus objetivos no território para garantir sua reprodução e fortalecer seus laços dentro de uma determinada ordem social. Segundo Bobbio (1987, p. 459), assim se cria 64 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 O poder político-social, aqui definido pelas suas ações que produzem efeitos no território, e é correlacionado ao campo de poder que se forma toda vez que existem diferentes interesses no território onde os mesmos não alcançam um grau de negociação, ocorrendo assim uma fragmentação na disputa pelo poder, onde os grupos mais coesos tendem a sobressair. Esse exercício do poder aqui analisado é composto por interesses político-econômicos que dão um conteúdo diferenciado às relações dos atores sociais e se concretiza por meio de alianças, define-se em práticas diferenciadas entre atores sociais que participam na mesma escala de poder e possuem interesses comuns. Contudo, também internaliza conflitos que permitem verificar fragmentos de interesses e, posteriormente, afetará a relação de poder. Depreende-se dessas reflexões que o poder é uma relação instável em que os conflitos surgem constantemente, obrigando as relações a se refazerem continuamente dentro da sociedade, o que torna as relações do processo de uso do território materializado concretizado, em que pessoas assumem posição porque detêm o controle material por conhecimento, por condições econômicas de manutenção ou por condições hierárquicas de desenvolvimento sobre outros. As relações de poder também podem ser virtualizadas pelas formas de atuação dos atores sociais locais, caso das representações políticas, lideranças etc. O poder expressa-se por meio de uma gama de interesses diferentes e fins comuns no uso do território para se atingir determinado objetivo, e os conflitos gerados expressam formas de poder político nesse uso, sendo um de seus recursos o convencimento do outro. Há três tipos de poder – formal,institucional e informal, que se origina dos movimentos sociais. O formal seria aquele da instituição política, vinculada à ideia da esfera municipal, estadual e federal; e o poder informal é o da sociedade civil organizada, incorporado no papel dos movimentos sociais diversos e de seus representantes junto às três esferas governamentais (DOWBOR, 1994). O autor ressalta que essas relações de poder local levam ao estabelecimento de associações e negociações entre os poderes, sendo necessária a definição de acordos ante as divergências, que podem se tornar produtivos no território e permitem que determinada relação de poder possa ser concretizada no território, com uma definição que marca o papel de cada movimento social no território. O Estado faz parte da mesma unidade de controle do território, enquanto suas ações estão sujeitas a um tempo predeterminado, pois os governos mudam, mas suas políticas são subordinadas aos interesses dos seus instituidores, ainda que historicamente exerça seus poderes inclinado às forças capitalistas dominantes. O papel do Estado é definido pela Constituição, que, por sua vez, tem em seus princípios a defesa da preservação das necessidades humanas. A estrutura do Estado é legitimada por meio de sua regulamentação pelas leis, [...] ou seja, o Estado é um ente institucionalizado, e o governo é um dos seus elementos essenciais. Dessa forma, podemos observar que o 65 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado governo é uma estrutura para manter o Estado, sua existência depende do Estado e vice-versa. Podemos então destacar que o Estado é constituído por Elementos Materiais (Território e População), Elementos Formais (Ordenamento Jurídico e Governo Soberano) e Final (Bem Comum) (DOWBOR, 1994, p. 163). As referências ao poder local dizem respeito ao modo como a sociedade decide o seu destino, constrói a sua transformação e se democratiza, participando do Estado em suas contradições, conflitos e na busca de respostas aos processos de desigualdades que se configuram continuamente nos territórios. Em dados, no caso brasileiro, a população urbana passou de 50% em 1965 para 75% em 1988. Em 1980, cerca de 52% da população urbana vivia em cidades de mais de 500.000 habitantes, e a pressão continua forte: o crescimento da população urbana era de 3,6% ao ano no período 1980-88, quase o dobro da taxa de crescimento geral da população. Hoje a esmagadora maioria da população, mesmo quando trabalha na agricultura, vive em áreas urbanas, em vilas e cidades. A realidade simples que hoje se descobre é que os 80 ou 90% das ações que concernem as nossas necessidades do dia a dia, como a construção e gestão das escolas, a organização das redes comerciais e financeiras, a criação das infraestruturas de saúde, a preservação do meio ambiente, a política cultural e tantas outras, podem ser resolvidas localmente, e não necessitam de intervenção de instâncias centrais de governo, que tendem a burocratizar o processo (DOWBOR, 1994, p. 165-6). As forças do poder local são objeto de desconfianças, baseadas na crença de que uma vez que as reivindicações da comunidade sejam atendidas, desaparecerão as redes de organização política, entendendo que o que as aproximou foram objetivos específicos que deixam de existir quando contemplados. No entanto, as relações sociais estabelecidas são mais complexas, porque se constituem de pessoas que compartilham o mesmo território, os mesmos desafios e desigualdades e, uma vez obtendo resultados em empreitada coletiva, são fortalecidas em sua identidade coletiva e na experimentação de ser esse um caminho a ser preservado. Essa visão está evoluindo gradualmente para a compreensão de que as comunidades estão simplesmente aprendendo a participar da organização do seu espaço de vida e de que o processo está mudando profundamente a forma como nos organizamos como sociedade. A articulação de comunidades nesse exercício de poder local se traduz cada vez mais em estratégia para enfrentamento da pobreza e das suas manifestações na cidade e no campo, exigindo milhares de pequenas iniciativas de melhoria, tanto de racionalização da pequena e média agricultura e dos “cinturões verdes” das cidades como de infraestruturas e serviços sociais nas periferias urbanas (DOWBOR, 1994). 66 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 observação As pessoas procuram se fortalecer ao criarem um campo de atuação diferenciado de outros campos que comportam poder e estimulam comportamentos sociais que produzem efeitos no ordenamento do território. Pequenos projetos como esses precisam de organização e controle, algumas qualificações que deverão ser objeto de preparação tecnológica das comunidades, lideranças e atores envolvidos de modo geral, que impõem ao Estado um esforço de investimentos econômicos e tecnológicos para que as comunidades consigam de fato elaborar, implementar e controlar os projetos e responder às necessidades mais prementes do desenvolvimento. A municipalização apresenta-se nesse contexto de poder local como a esfera a ser mais fortalecida, para se caracterizar como um agente de justiça social, procurando desenvolver as principais ações redistributivas com fomento para soluções vitalícias locais e movimentos políticos e enfrentando interesses dominantes organizados e complexidades políticas que inviabilizam os projetos. É essa esfera do município que permite uma democratização das decisões, na medida em que o cidadão pode intervir com muito mais clareza e facilidade em assuntos da sua própria vizinhança e dos quais tem conhecimento direto, sem a mediação de grandes estruturas políticas. O espaço local está em plena transformação. Surge com a informática uma nova geração de inovações no plano das técnicas de gestão municipal. Pela primeira vez, torna-se relativamente barato ter e manter cadastros atualizados. As fotos de satélite nos permitem realizar seguimentos mais sofisticados, por exemplo, na área ambiental. O custo de terminais de computador, que tem caído vertiginosamente, permite sistemas de informação ao cidadão nos próprios bairros e uma nova transparência administrativa, com tudo o que isso pode representar em termos de democratização. Na área da limpeza pública, está igualmente despontando uma nova geração de tecnologias, com participação do cidadão na separação do lixo, e as diversas formas de reciclagem que isso permite: compostagem, produção de energia, reaproveitamento de diversos produtos (DOWBOR, 1994, p. 175). Surgem, na cena contemporânea, muitas vantagens relacionadas a essas formas de organização local, como o modo de enfocar as finanças municipais, novos sistemas jurídicos orientados para uma política ativa de redistribuição de renda, tributação progressiva sobre imóveis, transformações sociais decorrentes dos avanços tecnológicos e a formas mais flexíveis e diversificadas de gestão do desenvolvimento. 67 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado Para Dowbor (1994), afastar-se dos discursos ideológicos e trabalhar com mecanismos flexíveis e diversificados de gestão abre espaço para que os administradores municipais, as organizações comunitárias e outros atores do poder local passem a buscar formas práticas mais adequadas para responder às suas necessidades, sem medo de inovar, de organizar parcerias, de mexer nas hierarquias tradicionais de decisão. Assim, assistimos à difusão de experiências de participação social e democratização do poder local em um contexto de aprofundamento da crise econômica e social no país, durante a década de 1990. A análise da Questão Social no Brasil passa pelo entendimento da vinculação entre a democracia e os direitos dela decorrentes, com ênfase nos direitos econômicos e sociais pautados na Declaração dos Direitos HumanosFundamentais. A democracia propicia a consolidação e a expansão da cidadania social, com a garantia das liberdades e da efetiva autonomia da participação popular (BEHRING, 2003). O Estado democrático é uma forma de manifestação política assentada na soberania dos interesses expressos da população e na defesa instransigente dos direitos humanos associados às liberdades. Essa ênfase democrática depende da plenitude da cidadania única, que engloba as liberdades civis e a participação política, ao mesmo tempo em que reivindica a igualdade e a prática da solidariedade. Os direitos econômicos fazem parte fundamental desse modo de compreender a democracia, no entanto, por força do sistema capitalista, historicamente constituído, nunca foram reconhecidos nem priorizados nas garantias vinculadas às condições básicas do desenvolvimento humano. Destarte, estão aí as divisões de classes, a existência dos grupos despossuídos, sem poder econômico, sem autonomia cultural, sem poder político, os indicadores constrangedores das desigualdades sociais. Os direitos humanos dependem para sua efetivação de um sistema de poder que articule as dimensões orgânicas entre desenvolvimento humano (econômico, políticos, cultural, social, ecológicas etc.) e as formas equânimes de compartilhamento da vida social. Considerando-se as várias reflexões desse estudo, percebe-se com clareza que esse processo sempre foi e será objeto de embates políticos intensos, por causa justamente das complexidades que compõem a sociedade contemporânea como ela se apresenta. As mediações são sempre fruto de pressões por parte da população, organizada em movimentos sociais, trabalhistas e outros que representem de alguma forma as expressões de poder social e que denunciem os flagrantes de injustiças sociais. A defesa dos direitos econômicos e sociais precisa se traduzir em políticas públicas ou programas de ação governamental e ser disponibilizada pela via do direito, e não da tutela, a todas as pessoas. É importante assinalar que os direitos fundamentais, justamente por serem direitos já reconhecidos e proclamados oficialmente – em nossa Constituição e em todas as convenções e pactos internacionais dos quais o Brasil é signatário – não podem ser revogados por emendas constitucionais, leis ou tratados internacionais posteriores (BEHRING, 2003, p. 24). 68 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Para a autora, os direitos humanos são, também, indivisíveis e irreversíveis, porque, à medida que são proclamados, se tornam direitos positivos fundamentais e não podem mais ser revogados. Logo, ao não serem considerados na formulação de políticas públicas ou ao serem alterados por meio de suplantação das leis, emendas constitucionais ou outra forma particularizada constituem meios ilegítimos e contrários ao desenvolvimento humano, justificando denúncias e ações de resistência. No entender de Behring (2003), são três as igualdades a serem defendidas no processo de defesa da plena cidadania democrática: a igualdade diante da lei, a igualdade da participação política e a igualdade de condições socioeconômicas básicas para garantir a dignidade humana. A igualdade é valorizada como prioridade porque se expressa em situações de equilíbrio social e como força, quando serve de parâmetros na aplicação da lei, por meio da qual se garante a correta implementação de políticas públicas e de programas de ação do Estado. A participação cidadã é considerada uma forma democrática de participação da comunidade no poder local, porque permite que formas espontâneas de organização popular ou de entidades da sociedade civil exercitem seus poderes de expressão e influência nas decisões e na gestão do Estado, considerado maior responsável pelo desenvolvimento nacional para a garantia efetiva dos direitos dos cidadãos. Os poderes públicos devem se submeter aos interesses coletivos, por meio de formas de controle das ações do Estado e de um contínuo fortalecimento da participação popular nas tomadas de decisões, no planejamento e na gestão do acesso de novas propostas de cidadania social e programas de políticas públicas. lembrete A análise da Questão Social no Brasil passa pelo entendimento da vinculação entre a democracia e os direitos dela decorrentes, com ênfase nos direitos econômicos e sociais pautados na Declaração dos Direitos Humanos Fundamentais. Na relação entre cidadania social e democracia, os cidadãos não são apenas titulares de direitos já estabelecidos, precisam mobilizar continuamente os interesses e as lutas sociais para ampliar as possibilidades de expansão, de criação de novos direitos, de novos espaços, de novos mecanismos. O processo, portanto, não se dá no vácuo. Lembra Marilena Chauí que a cidadania exige instituições, mediações e comportamentos próprios, constituindo-se na criação de espaços sociais de lutas (movimentos sociais, sindicais e populares) e na definição de instituições permanentes para a expressão política, como partidos, legislação, órgãos dos poderes públicos e mecanismos de participação popular (como conselhos, orçamento participativo, consultas populares como referendos e plebiscitos e a prática da iniciativa popular legislativa). Distingue-se, portanto, a cidadania passiva 69 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado – aquela que é outorgada pelo Estado, com a ideia moral da tutela e do favor – da cidadania ativa, aquela que institui o cidadão como portador de direitos e deveres, mas essencialmente participante da esfera pública e criador de novos direitos para abrir espaços de participação (BEHRING, 2003, p. 32). Há uma estreita relação entre os direitos sociais e as desigualdades sociais, à medida que ambos se originam no contexto da sociedade capitalista. As desigualdades sociais resultam do movimento mundial de acumulação do capital, que atenta contra os impulsos necessários ao desenvolvimento humano. E os direitos sociais configuram-se nesse contexto em reação às forças opressivas do capital para imobilizar qualquer manifestação popular que atente contra o processo de acumulação de capital e de domínio político e social. A questão social, em qualquer lugar do mundo e em análises históricas, configura-se a partir da expressão coletiva das desigualdades sociais e dos movimentos de esfacelamento dos direitos sociais, originados da relação entre capital e trabalho. O capitalismo é um sistema econômico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção, na organização da produção, visando ao lucro e empregando o trabalho assalariado, tendo como fim a acumulação de bens materiais. Conduz o trabalhador a um processo de alienação que surge durante a jornada de trabalho, em que se divide no tempo necessário de produção para ganhar o próprio salário e no tempo de produção excedente, que é a mais-valia. A classe trabalhadora aprisiona-se ao sistema de produção e consumo e perde a liberdade para produzir livremente e se apropriar do resultado da sua produção. A partir daí, a sobrevivência fica subordinada à venda da sua força de trabalho, que passa se constituir como a única alternativa de obter recursos para sobreviver. A lógica do sistema é centrada no trabalho, e quem não integra essa forma de trabalho não serve para o sistema e também não assegura sua sobrevivência, pois para os capitalistas quem não trabalha não possui meios para a reprodução da vida, deixando de participar do conjunto da vida social, como dizem Iamamoto & Carvalho (1983, p. 77): [...] A exploração se expressa tanto nas condições de saúde, de habitação, como na degradação moral e intelectual do trabalhador; o tempo livre do trabalhador é cada vez menor, sendo absorvido pelo capital nas horas extras de trabalho, no trabalho noturno, que desorganiza a vida da família. O período da infância se reduz pelo ingresso precoce de menores na atividadeprodutiva. E as mulheres tornam-se trabalhadoras produtivas [...]. Nota-se que a grande maioria dos pesquisadores dedica-se a analisar as relações do capital e do trabalho e conclui que a exploração do trabalho causa inúmeras consequências, especialmente relacionadas às desigualdades sociais, como, por exemplo, a não efetivação dos direitos assegurados na Constituição Federal de 1988, em seu artº 6: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, 70 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. Sobre esse processo de alienação que afeta os trabalhadores, Yazbek (2004) refere que o capitalismo promove a falsa ideia de sobrevivência, quando esses trabalhadores aceitam, sem questionamentos, submeter-se ao sistema, encobrindo os mecanismos de exploração, imobilidade e esfacelamento social que de fato nutrem o processo de acumulação capitalista. observação O capitalismo é um sistema econômico e social baseado na propriedade privada dos meios de produção que visa sempre ao lucro e emprega o trabalho assalariado. Quando a alienação ultrapassa os limites da autonomia e infiltra-se na vida social, produz transformações que agravam a estabilidade de toda a sociedade, uma vez que esta perde o potencial de defesa da dignidade, que é a consciência de sua opressão, esquece-se das lutas de classe e não consegue identificar as tramas que a alienam. Digamos que o capitalismo mantém estratégias para individualizar as estruturas da questão social e afastar do coletivo de trabalhadores as possibilidades de se defender e até organizar-se para lutar pelos direitos e garantir sua liberdade, igualdade e dignidade, inclusive lançando mão do aparato legislativo e das políticas públicas, que deveriam voltar-se para essa direção. O crescimento econômico, fruto da industrialização no Brasil, foi mais expressivo na década de 1930 e, consequentemente, as desigualdades sociais e as expressões da questão social aumentaram consideravelmente nessa fase. Pressionados pelas manifestações organizadas dos trabalhadores por melhores condições de vida e temerosos por perder o controle, Estado e capitalistas unem-se para atender algumas das reivindicações, formalizando alguns direitos e serviços de interesse dos trabalhadores. Para manter o controle sobre o social, o Estado usava um aparato de repressão policial, e a Igreja, aliada nesse processo, adotava uma forma de controle moral sobre as famílias operárias. saiba mais Para saber mais, leia: Relações sociais e Serviço Social no Brasil, de Carvalho & Iamamoto, Cortez Editora, 2008. A configuração do Estado na lógica de bem-estar social ocorre após a Segunda Guerra Mundial, porque nitidamente as dimensões da situação de pobreza passaram a exigir mecanismos de responsabilidades coletivas e sociais. 71 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado No caso brasileiro, esse pretenso Estado de bem-estar social ganha contornos no período getulista, dadas as transformações que culminaram em situações de extrema pobreza com a crescente urbanização, industrialização e transição da economia agrária para a urbana, alterando de forma significativa as estruturas e os valores da sociedade. A “Questão Social” relaciona-se à generalização do trabalho livre, numa sociedade com marcas da escravidão. Destaca-se o longo processo de transição, através do qual se forma um mercado de trabalho em moldes capitalistas, em especial ao momento em que a constituição desse mercado está em amadurecimento nos principais centros urbanos. Momento em que o capital já “se liberou” do custo de reprodução da força de trabalho, limitando-se a procurar, no mercado, a força de trabalho tornada mercadoria (IAMAMOTO & CARVALHO, 1983, p. 85). Historicamente, muitas mudanças se seguiram no processo produtivo, e as relações do sistema capitalista, ao se consolidarem no Brasil e no mundo, provocaram ondas de desemprego, formas diversas de exclusão social, alterações substanciais nas lógicas de conformação social. Essas transformações na cena contemporânea decorrem da mundialização do capital e são responsáveis pelas novas expressões da Questão Social, a partir dos anos 1990, com a consolidação do capitalismo neoliberal, que se caracteriza por ações globalizadas e de dimensões tão complexas que não dependem mais exclusivamente apenas das iniciativas das nações isoladamente. A inserção ou “desinserção” dos trabalhadores no sistema capitalista origina uma multiplicidade de fatores desencadeantes das desigualdades sociais, começando pelo desemprego, muitas vezes associado a não qualificação profissional. A própria alienação, estimulada pelo sistema, impede os trabalhadores de se identificarem em uma classe e de visualizarem as tramas cotidianas, que vão pouco a pouco limitando seus vínculos profissionais (caso da flexibilização das relações de trabalho, por exemplo), desmobilizando qualquer iniciativa de luta ou de resistência, de tal forma que esses trabalhadores corroboram com a fragilização de suas relações familiares, sociais e de trabalho e até consigo mesmo, quando não se sentem mais pertencendo ao contexto. Esse processo de desregulamentação leva inicialmente a uma apartação nas relações do próprio trabalho, e amplia-se para a perda dos afetos familiares. Sem estabilidade e garantias, o trabalhador, no sistema capitalista, é desvalorizado e passa a bloquear manifestações espontâneas de criação e de desejos, que no caso do mundo capitalista somente são acessíveis para quem faz parte do jogo e se submete sem questionamentos. As formas de opressão são tão intensas e alienantes que, uma vez tolhidos e excluídos do sistema, o isolamento e a degradação vão conduzindo as pessoas apartadas do trabalho a outras formas de apartação, como, por exemplo, da moradia, da convivência social e, mais grave, da identidade social e cidadã a que todos fazem jus. Trata-se de um processo que ideologicamente tira da perspectiva de quem não está no sistema de contestação e de legitimamente debater e exigir direitos. 72 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 As capacidades humanas desenvolvem-se quando as necessidades básicas são atendidas e seus processos de desenvolvimento são assegurados. Então, quando as pessoas enfrentam rupturas, causadas pelo sistema capitalista, também se rompem a seguir suas forças de pertencimento a um dado contexto social. Dependendo de sua historicidade, da realidade em que vive nas suas redes de pertencimento, a começar pela familiar, responsável pelo afeto, carinho, valores, cultura, entre outros, poderá torna-se um apartado social. O Estado, no âmbito político, social e jurídico, ocupa um território definido, em que as leis se fundamentam, no caso brasileiro, na Constituição Federal de 1988. Para que o governo tenha um reconhecimento interno e externo e seja responsável pela organização e pelo controle social, em sua função de promover o bem comum, articulando as ações dos indivíduos e exercendo o poder que foi concedido pelo povo, deve organizar, articular-se com regras e normas, implementar políticas sociais capazes de reduzir as desigualdades, promover a inclusão social e manter o padrão mínimo de bem- estar, comprometido política e dialeticamente com a sociedade. Ao Estado brasileiro, segundo sua Carta Magna, competem responsabilidades de inclusão social, promoção dos direitos sociais, estabelecimento de formas de seguridade social baseadas nos princípios da universalidade e na implementação de políticas públicas adequadas e articuladas aos interesses da população. Na contramão desses objetivos, o Estado capitalista, incluindo o brasileiro, fundamenta suas iniciativas no interesse do capital,mantendo a classe trabalhadora com um padrão de vida mínimo, suficiente para manter a lógica da reprodução que vai mantê-la submissa aos interesses do capital. O poder público estatal alimenta as condições de apartação e relativiza as ações públicas aos interesses privados e à lógica de direitos apenas para quem está inscrito no sistema e aceita alienadamente a subordinação. O Estado tem o dever de assegurar serviços, garantindo dignidade e direitos de cidadania com equidade, no caso social, por meio da política de assistência social, que tem por função a defesa dos direitos socioassistenciais, expressos na criação de investimentos diversos, programas e projetos para distribuir e redistribuir os bens produzidos por toda a sociedade. O controle social constitui uma estratégia para que a população participe desse processo de responsabilidade do Estado, em todas as dimensões, na lógica do desenvolvimento local, que singulariza as necessidades regionais e assegura a politicidade descentralizada e mediadora dos interesses expressos nessa esfera decisória. Cabe ao Estado instrumentalizar e articular as políticas públicas e não tornar-se proprietário delas. O sujeito social tem que ter consciência de suas capacidades humanas para definir e compreender as causas das desigualdades e das injustiças sociais, e que tem direito a empreender formas coletivas de participação e pertencimento local para usufruir compartilhadamente de tudo que a sociedade produz, inclusive dos ganhos de capital e das contrapartidas globais. O neoliberalismo tem demonstrado incompatibilidades para fortalecer o Estado democrático, pois induz governos a criarem estratégias com política públicas compensatórias que inibam a participação do processo social. 73 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado Expresso na Constituição de 1988, o controle social constitui uma forma de participação popular, configurada na forma de conselhos, e em resposta aos movimentos das décadas de 1970 e 1980, que lutavam contra o autoritarismo, a corrupção, o corporativismo dos tradicionais mecanismos de luta popular (partidos, sindicatos, associações etc.) e por melhores condições de vida, reivindicando espaços de controle social das políticas públicas sociais, até então dominadas pelos agentes estatais (RAICHELIS, 2000). A cultura de subordinação do tudo ao sistema do capital forma uma sociedade pouco estimulada ao exercício de cidadania e à politicidade democrática, que faz com que a representatividade social nas esferas decisórias seja mais fortemente estruturada por segmentos sociais dominantes, elitizantes e pouco comprometidos com as transformações sociais. Para reequilibrar essa esfera participativa é que o controle social foi instituído, embora seja uma estratégia que dependa de articulação com outras iniciativas de desenvolvimento social. Dessa forma, o controle social possibilita dar visibilidade às iniciativas do Estado na criação e na implementação das políticas públicas e na execução das ações da assistência social, tais como: investimento em recursos públicos, programas, distribuição e redistribuição de renda, serviços em defesa de direitos, entre outros, pois não tem a divulgação necessária para o conhecimento da população. No entanto, é necessário que a população entenda o papel desse importante instrumento de participação, que o componha por meio democrático e que o concretize, nas esferas de desenvolvimento em todas as instâncias, legitimando e ocupando seu lugar por direito e, principalmente, assumindo também por esse instrumento suas responsabilidades para escolher e decidir, coletivamente, o que melhor cabe enquanto política pública para atender aos interesses e necessidades de seu coletivo (RAICHELIS, 2000). A politicidade que envolve o controle social passa pela participação da população em conselhos, congressos, fóruns, conferências, seminários, entre outros, fazendo desenvolver as garantias dos direitos constitucionais. Espera-se que as pessoas participem e se representem nesses espaços de debates e decisões locais e que os coletivos informais e formais contemplem de alguma forma os mais diversos interesses da comunidade. E também que se crie oportunidade para debates em que se fomentem negociações para que o consenso seja estabelecido de modo equânime, garantido, assim, a força da organização local. Na proposta e formação dos conselhos, reside a instituição de mecanismos publicizadores na aplicação do dinheiro público, uma vez que competem a esses mesmos conselhos essa fiscalização e a administração dos fundos de apoio às políticas sociais. Trata-se de uma forma estratégica para as pessoas participarem da gestão das políticas públicas em busca do acesso aos direitos e à cidadania e de reconquistarem a soberania popular na gestão do bem público, o que dependerá da democratização da cultura política da sociedade, assim como da publicização de todas as ações do Estado e dessas instâncias de participação popular. 74 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Os conselhos gestores de políticas públicas são espaços públicos de composição plural (que agregam a diversidade e as mais diferentes concepções) e paritária (entre Estado e representações da sociedade civil), de natureza deliberativa e consultiva, cuja função é formular e controlar a execução das políticas públicas setoriais. Os conselhos são espaços públicos porque constituem uma arena de debate e discussão na construção de acordos e na elaboração de políticas públicas. É, pois, o local de explicitação dos interesses, reconhecimento da existência das diferenças e da legitimidade do conflito e da troca de ideias como procedimento de tomada de decisões sobre a elaboração, acompanhamento, fiscalização e avaliação das políticas públicas (RAICHELIS, 2000, p. 110). Esclarecendo um pouco mais, a composição dos conselhos deve ser plural para permitir a participação de pessoas de qualquer gênero, crença religiosa, etnia, filiação partidária, convicção filosófica, ou seja, existe a possibilidade de que os conselhos sejam compostos por toda a pluralidade de pessoas que constituem a sociedade brasileira. Isso implica a adoção das diferenças como fator essencial na elaboração, supervisão, acompanhamento, fiscalização e avaliação das políticas públicas. E com relação à paridade, entende-se que os conselhos devam se compor por um número de conselheiros em idêntica proporcionalidade de representantes estatais, da população e de atores que lhe prestem serviços. A natureza deliberativa dos conselhos é sua capacidade própria de decidir sobre a formulação, controle, fiscalização, supervisão e avaliação das políticas públicas, inclusive nos assuntos referentes à definição e aplicação do orçamento, como instituição máxima de decisão. Por isso representa uma instância superior ao Estado. (Por exemplo: se o prefeito quiser desenvolver um projeto social e o conselho quiser a implantação de outro no lugar daquele, deve prevalecer a vontade do conselho, dado seu caráter deliberativo) (RAICHELIS, 2000, p. 127). Outra perspectiva interessante dos conselhos é a natureza consultiva que impõem ao Estado, o qual, ao decidir sobre o direcionamento das políticas públicas, deverá consultar o conselho correspondente ao setor/segmento em questão. Com isso, o Estado ficará subordinado aos interesses determinados por esse coletivo sobre qual forma deverá atender às reais necessidades do setor/segmento a que se destinam as políticas públicas. observação Cabe ao Estado instrumentalizar e articular as políticas públicas, e não tornar-se proprietário delas. O controle social se equivale ao exercício da cidadania, em que a cultura política cultiva o valor da participação popular no espaço da vida pública, para embasar as regras jurídicas e as normas de 75 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gram aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado convivência social, visando ao planejamento das políticas públicas e ao funcionamento das estruturas institucionais a fim de operarem para os cidadãos de direitos. Ter cidadania significa praticar direitos inalienados fundados em certas institucionalidades, o direito de viver descentemente com dignidade. O direito de ter direito é uma conquista da humanidade, a sociedade lutou pela liberdade e para que todos sejam iguais perante a lei. Analisando a noção de cidadania que surge no Brasil, relacionada às experiências dos movimentos sociais no final dos anos 1980, Dagnino (1994) distingue-a da visão liberal, ressaltando alguns elementos que configuram o seu caráter inovador e estratégico. Em primeiro lugar, mostra a noção de direitos que ela supõe, cujo ponto de partida é a concepção de “um direito a ter direitos” e não diz respeito apenas às conquistas legais, mas inclui a “invenção criativa de novos direitos”. É também uma noção de cidadania, que surge “de baixo para cima”, como estratégia dos não cidadãos. Isso possibilita a difusão de uma “cultura de direitos”, em que a cidadania se constitui como “uma proposta de sociabilidade”. Nessa perspectiva, a relação com o Estado que essa cidadania supõe não é baseada numa relação entre este e o indivíduo, como na lógica liberal, ao contrário, inclui, cada vez mais, a sociedade civil. Isso implica um elemento que a autora considera central nessa nova cidadania: a “exigência do direito a participar efetivamente da própria definição do sistema político”, por meio de fóruns e conselhos de gestão participativa (DAGNINO, 1994, p. 188). Ainda segundo Dagnino (1994, p. 236): [...] esta nova noção de cidadania pode constituir um quadro de referência complexo e aberto para dar conta da diversidade de questões emergentes nas sociedades latino-americanas, à medida que incorpora tanto a noção de igualdade como a de diferença de raça, gênero, etnia. É no campo de uma cidadania que exige “direito a ter direitos” que se coloca a importância da assistência social como política pública no Brasil. Num país que não chegou a construir um sistema de proteção social, em que a cidadania sempre foi um privilégio para os incluídos no mercado, a defesa da política de assistência social, na perspectiva da justiça social, da redistributividade e da cidadania, assume uma dimensão estratégica, no sentido de ampliar a capacidade das classes subalternas de alterar o que lhes é imposto e construir novas possibilidades para a conquista de políticas sociais universalizantes, do seu reconhecimento enquanto sujeitos de direitos e da construção da sua hegemonia. No Brasil, as conquistas de direitos não atingem as expectativas, no sentido de assegurar as expansões civis e sociais, devido às burocracias e hierarquias do Estado e sua forte tendência neoliberal globalizada e fundada na acumulação capitalista. 76 Unidade II Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 lembrete O sujeito social tem que ter consciência de suas capacidades humanas para definir e compreender as causas das desigualdades e das injustiças sociais, e que tem direito a empreender formas coletivas de participação e pertencimento local. As políticas públicas desenvolvidas com influências da participação popular possibilitam maior êxito no exercício da cidadania e no respeito à igualdade como dever ético-político do Estado, eliminando, ao menos em parte, os efeitos devastadores das políticas neoliberais. Contextualizando, a Questão Social não desapareceu nem teve respostas estruturalmente adequadas, mas foi assumindo diferentes configurações e manifestações relacionadas à história particular de cada sociedade nacional, de suas instituições, de sua cultura. É importante observar que foram as lutas sociais que transformaram a Questão Social em uma questão política e pública, transitando do domínio privado das relações entre capital e trabalho para a esfera pública, exigindo a intervenção do Estado no reconhecimento de novos sujeitos sociais como portadores de direitos e deveres e na viabilização do acesso a bens e serviços públicos pelas políticas sociais. A Questão Social não é sinônimo de “problema social”, situação social problema – termo adotado nas origens conservadoras de Serviço Social ou da pobreza remetida ao indivíduo isolado ou a certos grupos sociais, responsabilizados ou culpabilizados pelo conjunto de carências e privações por ela produzidas. A “Questão Social”, é entendida como: [...] conjunto das desigualdades sociais engendradas na sociedade capitalista madura, impensáveis sem a intermediação do Estado. Tem sua gênese no caráter coletivo da produção contraposto à apropriação privada da própria atividade humana – o trabalho –, das condições necessárias à sua realização, assim como de seus frutos. É indissociável da emergência do “trabalhador livre”, que depende da venda de sua força de trabalho como meio de satisfação de suas necessidades vitais. A questão social expressa, portanto, disparidades econômicas, políticas e culturais das classes sociais, mediatizadas por relações de gênero, características étnico-raciais e formações regionais, colocando em causa as relações entre amplos segmentos da sociedade cível e o poder estatal (IAMAMOTO, 2001, p. 62). Igualmente, não se confunde com o termo exclusão social, que vem se generalizando amplamente na literatura e no discurso de diferentes atores sociais, e que se presta a variadas interpretações. Nem faz referência à situação nomeada pela sociedade capitalista das pessoas que “estão fora da sociedade”, posto que ali siginifica excluído do sistema de trabalho, realidade construída pela lógica de inserção e exclusão do capital e que não faz sentido, quando aplicada na esfera social. 77 Re vi sã o: A nd ré ia - D ia gr am aç ão : F ab io - 2 4/ 08 /1 2 Serviço Social integrado A sociedade constitui o conjunto das organizações, constituições políticas, relações, tempos e histórias de uma determinada população que vivencia suas existências localmente e que lhe dá sentido de pertencimento. O capitalismo, mesmo o trabalho sendo tão central, não contém a sociedade, modifica-a, transforma-a, e por tempos prolongados pode manter domínios sobre essa esfera, mas não a abarca nem tem esse poder, porque dela também depende para instaurar os domínios do capital. lembrete Expresso na Constituição de 1988, o controle social constitui uma forma de participação popular, configurada na forma de conselhos, e em resposta aos movimentos das décadas de 1970 e 1980, que lutavam contra o autoritarismo e a corrupção. O capital depende de um sistema social para se expandir e é sobre essa forma de organização que exerce seus domínios, mas, ao aplicar as regras, o sistema capitalista aliena as pessoas desses agrupamentos sociais para o trabalho e para o consumo. No entanto, é na produção da pobreza da vida coletiva, das formas de organização desiguais da sociedade e das forças opressivas da sua cultura dominante que o capitalismo vai se fortalecendo, tornando evidente ser essa sociedade fruto de um sistema de produção e de organização social marcado pelo “capitalismo”. O “capitalismo” historicamente tem sido considerado como a única forma de organização social, econômica e democrática possível e que não existem outras formas e organização das sociedades se não forem baseadas na lógica do capital. Com essa análise, é possível entender que, quando se faz referência a uma sociedade, capitalista ou não, afirma-se que ela se compõe de um grupo populacional, o qual compartilha e ocupa um tempo- espaço político, social, cultural, econômico que lhe confere identidade de pertencimento mútuo. Quando um sistema se desenvolve nesse contexto social, ainda que escolhido e defendido pela maioria de seus cidadãos e reconhecido como de origem nesse contexto, por maior dominância
Compartilhar