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SERVIÇO SOCIAL, INSTRUMENTALIDADE E ESTUDOS SOCIAIS Charles Toniolo * 1. Introdução: teoria e prática no Serviço Social É comum associarmos, imediatamente, o debate sobre os estudos sociais a uma questão de caráter técnico-operativo. Também é bastante corriqueiro, ouvirmos em diversos espaços coletivos onde atuam ou se reúnem assistentes sociais, de que a formação não prepara os profissionais para a “prática”, pois os cursos de Serviço Social priorizam os debates teóricos e políticos em detrimento do debate técnico-instrumental. Como sinaliza Sarmento (2013), um verdadeiro “apelo” por “respostas”. Essas afirmações não ocorrem por um mero acaso. Como uma profissão essencialmente interventiva, o debate sobre a relação entre teoria e prática sempre foi tenso na literatura e na cultura profissional. Para fins de dar um status de cientificidade à profissão, sob a influência das ideias positivistas, Mary Richmond arvorou dizer que o procedimento “Estudo, diagnóstico e tratamento” se constituía na Teoria do Serviço Social (SILVA, 2004) – mesmo sendo, na verdade, procedimento metodológico. Na renovação profissional brasileira, todo o esforço do CBCISS em promover a “Teorização do Serviço Social” resultou na construção de um repertório metodológico de intervenção profissional – a própria apropriação pela profissão de correntes de impostações positivistas no marxismo levou ao mesmo lugar: a teoria seria um modelo de prática revolucionária, construída a partir da prática e para a prática, como previu a experiência do chamado “Método BH” (NETTO, 2004). Essa característica histórica produziu alguns discursos recorrentes na categoria. Com o avanço da produção teórica na profissão, com fortes impactos na formação e nas entidades da categoria, o mais frequente deles é que a teoria não tem nada a ver com a prática. Ou, “na prática a teoria é outra”. Essa assertiva em especial fez com que Santos (2010) publicasse um texto cujo título a questiona. Nele, a autora desenvolve uma reflexão que já vinha se gestando no âmbito da literatura profissional, e que vem se consolidando como uma possível e fértil resposta à questão: a de identificar que a prática profissional é composta por 03 * Assistente social, professor da Escola de Serviço Social da UFRJ, doutorando em Serviço Social pela PUC/SP. dimensões, que são indissociáveis: ético-política, teórico-metodológica e técnico- operativa. Isso vale, portanto, para o debate sobre o estudo social. Se no senso comum profissional ele é associado apenas à dimensão técnico-operativa, em razão do lugar que essa dimensão ocupa no cotidiano do exercício profissional, não difere de tudo que envolve a reflexão acerca da própria profissão: Apesar do reconhecimento de que as dimensões só existem em relação umas às outras, a dimensão técnico-operativa é a forma de aparecer da profissão, pela qual é conhecida e reconhecida. Dela emana a imagem social da profissão e sua autoimagem. Ela encontra-se carregada de representações sociais e da cultura profissional. É a dimensão que dá visibilidade social à profissão, já que dela depende a resolutividade da situação, que, às vezes, é mera reprodução do instituído, e em outras constitui a dimensão do novo. Não é supérfluo lembrar que a dimensão técnico-operativa vela a perspectiva político-ideológica da profissão, como aquela pela qual o Serviço Social atua na reprodução ideológica da sociedade burguesa ou na construção da contra- hegemonia. O que se pretende enfatizar é que a intervenção de natureza técnico-operativa não é neutra: ela está travejada pela dimensão ético-política e esta, por sua vez, encontra-se aportada em fundamentos teóricos, donde a capacidade de o profissional vir a compreender os limites e as possibilidades não como algo interno ou inerente ao exercício profissional, mas como parte do movimento contraditório constitutivo da realidade social (GUERRA, 2013, p. 46). Assim, entendemos ser importante apreender as dimensões do exercício profissional à luz da questão da instrumentalidade do Serviço Social – que vai além da questão técnico-operativa – é de fundamental importância para avaliarmos os diversos aspectos que envolvem a questão do estudo social. 2. As dimensões do exercício profissional e a instrumentalidade do Serviço Social De acordo com Guerra (2002), falar de instrumentalidade não é apenas falar dos meios necessários para se alcançar uma finalidade. Claro, é também isto: o “para quê” fazer deve determinar o “como” fazer 1 . Essa é uma mediação fundamental, mas não se encerra em si, tendo em vista que as ações humanas se realizam sob determinantes históricos concretos, alterando e sendo alteradas por estes, produzindo o próprio desenvolvimento histórico. 1 Também com base nas reflexões da autora, desenvolvemos com mais propriedade essa dimensão da instrumentalidade em outro momento (SOUSA, 2008). Não é diferente ao pensarmos o Serviço Social. Como uma especialização do trabalho coletivo, trata-se de “[...] pensar a instrumentalidade do trabalho do assistente social como propriedades/capacidades historicamente construídas e reconstruídas pela profissão” (GUERRA, 2000, p. 23). Neste marco, a autora então nos propõe pensar essa instrumentalidade em 03 (três) níveis. O primeiro nível da instrumentalidade, no âmbito de uma análise da profissão em uma perspectiva histórico-crítica, é analisar a própria condição de instrumento que é o Serviço Social. Isto é, a sua condição própria de profissão, como meio necessário à reprodução das relações sociais através de sua inserção na divisão sociotécnica do trabalho, a sua funcionalidade ao projeto reformista da burguesia monopolista. Iamamoto; Carvalho (2005), ao analisarem os serviços sociais, concretização das políticas sociais no cotidiano da vida social, afirmam que eles possuem um duplo aspecto, próprio da contradição fundante da sociedade capitalista: ao mesmo tempo que atuam segundo os interesses da classe burguesa, garantindo a reprodução material e ideológica da classe trabalho e o seu controle diante de suas ações políticas potencialmente anticapitalistas, também atuam segundo os interesses da classe trabalhadora, uma vez que responde a necessidades concretas por ela pautadas no processo de luta social permitindo o acesso a direitos e recursos que interferem concretamente no seu cotidiano de vida e ampliam as condições e possibilidades de bem-estar social. Portanto, não trata-se de uma visão monolítica, estruturalista 2 : ao se falar em interesses da sociedade capitalista, estamos falando em interesses em disputa, em interesses vinculados a projetos de classes e segmentos de classes. Na medida em que o assistente social opera na viabilização, operacionalização e execução dos serviços sociais, ele está polarizado por essas tensões e disputas no marco do próprio significado dos serviços sociais como espaço contraditório, pois as classes só existem em relação: “Reproduz também, pela mesma atividade, interesses contrapostos que convivem em tensão. Responde tanto a demandas do capital como do trabalho e só pode fortalecer um ou outro pela mediação de seu oposto” (IAMAMOTO; CARVALHO, 2005, p. 75, grifos dos autores). Portanto, a instrumentalidade do Serviço Social pensada em sua funcionalidade ao projeto de controle e reprodução ao intervir nas sequelas da “questão social”, não pode prescindir do seu oposto. Marx, pautado no materialismo-dialético, já nos 2 Coutinho (1972), analisando a influência do estruturalismo no marxismo, por meio do pensamento do marxista francês Louis Althusser. apontava no século XIX que as bases para a superação de algo estão colocadas pela negatividade concreta existente nelemesmo 3 . E essa é a chave para a superação de posturas fatalistas – que acham que não há nada mais para o Serviço Social fazer a não ser cumprir as ordens e as demandas burocráticas da instituição – ou messiânicas – que entendem que o Serviço Social é capaz de transformar a realidade social vivida pelos sujeitos a partir unicamente da sua intervenção no âmbito da institucionalidade (IAMAMOTO, 1995). Esse elemento é fundamental para entendermos a dimensão ético-política da profissão. Se pela mesma atividade, reproduzimos interesses antagônicos em disputa no âmbito das relações sociais, tendemos a ser cooptados pela tendência dominante – na maioria das vezes, os interesses das classes dominantes, sobretudo em tempos históricos de refluxos das lutas dos trabalhadores e de ascenso de ofensivas conservadoras e até mesmo reacionárias. É claro que, como profissão, encontraremos agentes profissionais que se coadunam com uma perspectiva ou outra – o que é característico das profissões e da própria heterogeneidade da classe trabalhadora. Contudo, reconhecer que só fortalecemos um lado pela mediação de seu oposto significa, explorando esta contradição, que podemos escolher os sujeitos históricos que queremos fortalecer, e construir estratégias profissionais para isso. Mas isso requer ter um posicionamento, ou seja, fazer escolhas. Daí que, associada diretamente à política, vem a questão ética. Ela está intrinsecamente ligada aos objetivos aos quais queremos alcançar com nossas ações. É o que orienta idealmente aquilo que pretendemos objetivar, parametrado por uma avaliação de valor, daquilo que é “bom” ou “ruim”, “certo” ou “errado” – e esses valores são construídos socialmente, no seio das disputas e lutas sociais sobre onde se quer chegar, e que orienta a conduta humana. O pôr teleológico, fundado na capacidade humana de projetar o resultado de suas ações e construir os meios para alcançá-las, permite o desenvolvimento do ser social como ser ético, o ser que escolhe entre alternativas postas e construídas na realidade – na causalidade (GUERRA, 2002; PONTES, 2002; SANTOS, 2010). A ética profissional se situa exatamente nesse marco. As profissões atuam no mundo, e interferem nas vidas das pessoas. Seu agir pressupõe uma dimensão ética, que historicamente se consolidou como um dever-ser das profissões, ou de cada profissão. 3 Pontes (2002), ao discutir a ideia de negatividade em Marx, referencia-se em vasta literatura no âmbito da tradição marxista para demonstrar a influência da dialética do filósofo Friedrich Hegel na obra marxiana. Não foi e não é diferente no Serviço Social. Em nossa trajetória histórica, escolhemos, por meio de valores e de nossas ações cotidianas profissionais, a quem fortalecemos no bojo dos interesses em disputa na sociedade. E hoje, e apenas quando reconhecemos que o motor da história é a luta de classes e que seu resultado é fruto de sua ação política, é que pudemos afirmar compromissos com valores emancipatórios que colidem com a sociabilidade capitalista, e nos permitem fazer escolhas que apontem para o fortalecimento das classes e segmentos de classes que nesta sociedade são explorados, oprimidos e dominados, conforme previsto no Código de Ética Profissional do/a Assistente Social de 1993 (BARROCO, 2007). Os princípios éticos, que se materializam em normas de conduta moral através do Código de Ética, possibilitam aos profissionais de Serviço Social a ideação do seu pôr teleológico, de suas finalidades de ação, situadas nos diferentes contextos políticos 4 . O segundo nível da instrumentalidade apresentado por Guerra (2000), diz respeito a sua peculiaridade operatória, ao arsenal instrumental-operativo mobilizado pelos profissionais para construir respostas às demandas das classes, que é de onde advém a própria legitimidade da profissão. Diz a autora: [...] se o produto final do trabalho do assistente social consiste em provocar alterações no cotidiano dos segmentos que o procuram, os instrumentos e técnicas a serem utilizados podem variar, porém devem estar adequados para proporcionar os resultados concretos esperados. Para tanto, as ações instrumentais – mobilização de meios para o alcance dos objetivos imediatos – são, não apenas suficientes como necessárias. Contudo, não pode prescindir de um conjunto de informações, conhecimentos e habilidades que o instrumentalize (GUERRA, 2002, p. 157). Assim, não se trata de um nível menor ou menos importante. Sem os instrumentos, não concretizamos nossas finalidades, não construímos respostas às demandas que nos chegam, seja da estrutura organizacional, seja da população usuária. Entretanto, como alerta a citação, a dimensão técnico-operativa precisa ser instrumentalizada por um conjunto de conhecimentos. O que nos leva ao debate sobre ciência e técnica e sua relação com o Serviço Social. Assistentes sociais são reconhecidos socialmente como “técnicos”. Este termo causa estranheza em alguns em um primeiro momento. Como o sistema educacional brasileiro está organizado em diferentes níveis, o ensino técnico se consolidou já há algumas décadas como uma modalidade ligada à profissionalização de ensino médio, enquanto o Serviço Social, de nível superior. Mas nunca é demais lembrar que, no 4 Sobre os princípios do Código de Ética Profissional do/a Assistente Social vigente, sugerimos a coletânea de artigos organizada e publicada por CRESS/7ª REGIÃO (2013). Brasil, apenas no período da transição dos anos 1960 para os anos 1970 que o Serviço Social se consolidou como uma das áreas de conhecimento em âmbito acadêmico- científico, quando foi inserido no circuito universitário após a grande reforma educacional (e universitária) promovida pelo Estado autocrático burguês, no período da ditadura empresarial-militar (NETTO, 2004). O Serviço Social em si, não é ciência, apesar da possibilidade que lhe está posta de produzir conhecimento científico. Não possui teoria própria, método próprio, objeto de estudo específico. Por ser uma profissão interventiva, sempre teve relevada a sua dimensão técnica, prática. Marx, em vários textos, debruça-se sobre a questão da tecnologia para entender o processo de expropriação do trabalhador e as formas de extração de mais-valia. O ponto de partida, para ele, já anunciado em “A ideologia alemã” (MARX; ENGELS, 2007), são as formas de propriedades advindas, também, do desenvolvimento da separação entre trabalho manual e intelectual. Seus estudos apontam que o desenvolvimento tecnológico que culminou com a Revolução Industrial produziu uma subsunção real do trabalhador ao capital (MARX, 2004). Após a ciência se apropriar de um acúmulo de conhecimento sobre as diferentes técnicas utilizadas pelos trabalhadores em sua ação de transformação da natureza, ou seja, no processo de trabalho propriamente dito, ela desenvolveu máquinas-ferramentas (várias ferramentas reunidas em uma única, movida por outros meios que não pela destreza e pelo pôr teleológico do trabalhador) que permitiu acelerar o processo de produção mediante a retirada do controle que o trabalhador tinha sobre seus instrumentos, imprimindo o ritmo desejado aos interesses do processo de produção de valor e de mais-valor, coroando a supremacia do “trabalho morto” sobre o “trabalho vivo”: A própria noção de qualificação para o trabalho se altera porque os conhecimentos para uma profissão estão condicionados pela complexidade da máquina e não da profissão em si, como conhecimentos para a produção de um determinado tipo de produto. A qualificação operária se limita a tornar o trabalhador apto a manejar uma máquina; a própria ideia de aprender a trabalhar é aprender a manejar uma máquina, aprender a se inserir no processo de subsunção (ROMERO, 2005, p. 1999). Pareceque aqui reside a explicação daquilo que Sarmento (2013) qualificou como os “apelos” por “respostas” que assolam estudantes de graduação, de pós- graduação e profissionais de Serviço Social que atuam nas diversas áreas. A técnica, aparece revestida de “racionalidade” e “eficiência” para se alcançar os resultados desejados... pelo capital. Assim, um repertório de ações que atestam essas qualidades é legitimado e inserido no âmbito das burocracias organizacionais como forma de ditar o modus operandi eficiente, racional, verdadeiro. A técnica se torna, assim, a formalidade necessária para o melhor desenvolvimento do trabalho. Mas ela não é construída pelo trabalhador: ela vem “de fora”; ela vem daqueles que se dedicam a estudar, a conhecer, a testar e a comprovar as melhores teses e a afirmar os melhores experimentos. A ciência, torna-se assim, força produtiva do capital, ao racionalizar o processo de trabalho e dar-lhe o estatuto de “verdadeiro”. Aos “técnicos”, cabe aplicar os conhecimentos científicos. A ciência aparece aqui como o produto mais acabado da Razão (GUERRA, 2002). Essa é uma construção que se desenvolveu ao longo do período de crise da Idade Média, isto é, no processo de ascensão da burguesia como classe revolucionária. O conhecimento científico é considerado o conhecimento racional, e assim, expressa a verdade do mundo. Deve ser objetivo, livre de ideologias, de julgamentos de valor, neutro. E o conhecimento verdadeiro são as leis naturais que regem os fenômenos naturais, que devem ser dominados ao máximo para o usufruto do homem na Terra. E foi desta máxima, própria das Ciências Naturais, que surgiram as Ciências Sociais, já no momento em que a burguesia não era mais revolucionária, mas sim, a classe dominante (COUTINHO, 1972). Fazer ciência social era descobrir a verdade sobre os “fatos sociais”, o imutável, o verdadeiro. A tradição positivista inaugurada por Auguste Comte e desenvolvida por Émille Durkheim levam a cabo o formalismo necessário para continuar fazendo da ciência força produtiva do capital: a necessidade de manter a ordem social por meio da descoberta das “leis naturais da sociedade”. E uma vez descobertas, as leis naturais, a verdade imutável, eterna, racional, estava então comprovada cientificamente. Essa visão possibilitaria, assim, construir técnicas de intervenção social que assegurassem a ordem “racional” das coisas: “há um ‘núcleo racional’ na problemática positivista: a vontade do conhecimento, a investigação obstinada da verdade, a intenção da verdade é uma condição necessária da prática cientifica” (LÖWY, 2007, p. 33, grifos do autor). Como profissão que se consolidou, após sua legitimação, como uma atividade de cunho técnico-científico, em razão do diálogo que passou a estabelecer com as Ciências Sociais, o Serviço Social passa assim, a ser reconhecido como uma profissão que detém a capacidade cognitiva de operar (e construir) procedimentos técnicos-burocráticos que podem atestar a verdade acerca da realidade social, dado o fato de que se trata a técnica como o prolongamento interventivo do conhecimento científico, supostamente neutro de valores ético-axiológicos e de interesses políticos, sem conteúdo crítico – afirmação esta desmontada por Löwy e pela maioria dos pensadores filiados à tradição marxista, que denunciam o quanto essa afirmação serve aos interesses de reprodução da ordem social e das classes dominantes. Por fim, o terceiro nível da instrumentalidade do Serviço Social defendido por Guerra (2000) se apresenta como uma mediação que permite a passagem entre o universal e o singular, em contextos historicamente determinados. Mais uma vez, valemo-nos do pressuposto de que uma profissão requer a apropriação/produção de um grau de conhecimento que permita o desenvolvimento de habilidades com vistas à intervenção na realidade: [...] todo/a assistente social, no seu campo de trabalho e intervenção, deve desenvolver uma atitude investigativa: o fato de não ser um/a pesquisador/a em tempo integral não o/a exime quer de acompanhar os avanços dos conhecimentos pertinentes ao seu campo de trabalho, quer de procurar conhecer concretamente a realidade da sua área particular de trabalho. Este é o principal modo para qualificar o seu exercício profissional, qualificação que, como se sabe, é uma prescrição do nosso próprio Código de Ética (NETTO, 2009, p. 694). A Modernidade produziu diferentes paradigmas, pautada na ideia de ciência, o que possibilitou a construção de métodos que buscassem conhecer a realidade, natural ou social. Do ponto de vista do conhecimento sobre a sociedade, o positivismo, a sociologia compreensiva e o materialismo histórico-dialético se consolidaram como os principais referenciais para tal – respectivamente, os pensamentos de Émille Durkheim, Max Weber e Karl Marx como fontes primárias fundantes de tais perspectivas. Ao qualificar daquela forma o terceiro nível da instrumentalidade do Serviço Social, Guerra revela sua filiação metodológica 5 : trata-se de entender a realidade a partir da perspectiva histórico-dialética. A concreticidade do real é o princípio norteador do materialismo histórico- dialético ou, nas palavras do próprio Marx (2003): “O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, unidade, na diversidade” (p. 248). Trata-se, portanto, de apreender a realidade como uma totalidade social, em que toda a sociedade é constituída de diferentes complexos, que se inter-relacionam intrinsecamente entre si. Do mesmo modo, ela própria (a sociedade) constitui um complexo. Cada “elemento” da sociedade é um complexo, com características qualitativamente diferentes de outros “elementos”, mas que, ao movimentar-se dialeticamente, modifica não apenas os 5 “O método de pesquisa é sempre uma opção política [...]” (MARTINELLI, 2012, p. 5). demais “elementos”, como toda a sociedade: a sociedade, como construção humana, unifica as singularidades existentes, e as movimenta. O pensamento moderno apenas conseguiu desenvolver a ideia de totalidade, uma vez que a sociedade burguesa, na história da humanidade, foi a primeira que conseguiu alcançar patamares universais, de alcance planetário. Ou seja, o modo de produção capitalista se expandiu de tal modo que se tornou um imperativo universal impossível de ser negligenciado para a análise de qualquer fenômeno social: “[...] o capitalismo é um processo simultaneamente social, econômico, político e cultural de amplas proporções, complexo e contraditório, mais ou menos inexorável, avassalador. Influencia todas as formas de organização do trabalho e vida social com as quais entra em contato” (IANNI, 1996, p. 136). As relações entre capital e trabalho são aquelas que estruturam a produção e a reprodução da sociedade capitalista. São relações econômicas, políticas, culturais, que se funda na contradição entre as classes sociais fundamentais e os efeitos das lutas que travam no cotidiano da vida social, a própria “questão social”: Questão social apreendida como o conjunto das expressões das desigualdades sociais da sociedade capitalista madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais coletiva, o trabalho torna-se mais amplamente social, enquanto a apropriação de seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade. [...] o desenvolvimento nesta sociedade redunda, de um lado, em uma enorme possibilidade de o homem ter acesso à natureza, à cultura, à ciência, enfim, desenvolver as forças produtivas do trabalho social; porém, de outro lado e na sua contraface, faz crescer a distância entre a concentração/acumulação de capital e a produção crescente da miséria, da pauperização que atinge a maioria da população nos vários países, inclusive naqueles considerados “primeiro mundo”. [...] Questão socialque, sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos que vivenciam as desigualdades e a ela resistem e se opõem (IAMAMOTO, 2004, p. 27-8, grifo da autora) As desigualdades produzidas pela “questão social”, pelas relações próprias da sociedade capitalista em sua fase monopolista (NETTO, 2005), se particularizam nas vidas dos sujeitos. As situações atendidas por assistentes sociais no cotidiano do exercício profissional não são atomizadas: elas são mediatizadas pelas dimensões universais e singulares que lhe dão concretude na dinâmica social. Pontes (2002), referenciado na interpretação lukácsiana da obra de Marx, apresenta a mediação como uma categoria ontológica, constituinte da realidade social, responsável pelos nexos e articulações dinâmicas e contraditórias entre os complexos que compõem a totalidade de uma estrutura sócio histórica, portanto, as particularidades que possibilitam a mediação entre os homens singulares e a sociedade. Compreender a “questão social” em sua complexidade e historicidade, nessa perspectiva, “é como uma iluminação geral em que se banham todas as cores e que modifica as tonalidades particulares destas. É como um éter particular que determina o peso específico de todas as formas de existência que aí se salientam” (MARX, 2003, p. 256). Desse modo, para realizar sua intervenção cotidiana, os assistentes sociais, de modo a conhecer esse cotidiano, necessitam de um conhecimento teórico-metodológico universal, que explique a realidade social. Apenas assim, é possível fazer as mediações entre o universal e o singular, em uma perspectiva totalizante. A dimensão teórico-metodológica aqui aludida não é gratuita ou menos importante. A filiação teórica a uma determinada perspectiva significa se posicionar acerca de uma determinada visão de mundo. Barroco (2007) nos lembra: foi apenas com a apropriação intelectual madura dos aportes oferecidos pela tradição marxista que foi possível elaborar e aprovar o Código de Ética Profissional vigente. Assim como Vasconcelos (2015) afirma que apenas a visão crítica acerca das relações sociais capitalistas pode afirmar um projeto profissional comprometido com a emancipação humana, bem como construir as mediações teórico-práticas no cotidiano da práxis profissional que se realiza no cenário da luta de classes. A teoria não é algo descolado da prática: ela é uma dimensão da prática. A partir de uma determinada visão de mundo, não-neutra (LÖWY, 2007), o assistente social pode produzir um conhecimento sobre a realidade social vivenciada pelos sujeitos, pesquisando-a, interpretando-a, avaliando-a, intervindo sobre ela a partir de finalidades construídas, mobilizando instrumentais e produzindo resultados concretos na vida dos sujeitos – enfim: o próprio estudo social. 3. Estudos sociais e Serviço Social: questões teórico-metodológicas, ético-políticas e técnico-operativas 3.1. O estudo social como inquérito Há exatos 100 atrás da produção deste texto, era lançado nos Estados Unidos da América um livro no âmbito do Serviço Social que influenciaria gerações de assistentes sociais em todo o mundo – e afirmamos, ainda influencia, ainda que anonimamente. Em Social Diagnosis, Mary Ellen Richmond em 1917 sistematizaria, após uma profícua pesquisa do trabalho desenvolvido pelas Charity Organization Societies (Sociedades de Organização da Caridade) daquele país, uma proposta metodológica de intervenção de assistentes sociais, ao qual chamou de “Teoria do Serviço Social”. A Sociologia Intervencionista desenvolvida nos EUA, herdeira da Escola de Chicago e da Universidade de Columbia, com forte conotação pragmática e de inspiração positivista (FERNANDES, 2001), foram influências determinantes na produção da autora. O rápido desenvolvimento das forças produtivas vivenciadas por aquele país, bem como sua própria formação sócio histórica particular e as contradições de classes lá colocadas, alçaram os segmentos dominantes estadunidenses a apropriar-se e desenvolver rapidamente o discurso moderno da racionalidade científica como ferramenta de controle e reforma social para o desenvolvimento do país. O projeto ao qual Richmond se vinculou se situava nesse contexto: um referencial teórico e em um posicionamento político calcado nos interesses de manutenção e reprodução da ordem. Mais ainda: a necessidade da reforma social, clamada pela burguesia norte- americana, também teve seus projetos em disputa 6 . Richmond representava aqueles segmentos que propunham que a reforma social passava por uma reforma moral dos indivíduos considerados “doentes”, “desajustados” de uma ordem social “harmônica”, acometidos de problemas morais e psicossociais que precisavam ser conhecidos, explicados e tornarem-se objetos de intervenção técnica (NETTO, 2005). Sob bases científicas, era possível trabalhar todas as potencialidades “adoentadas” nos indivíduos, de modo que ele encontrasse em si e na relação com o meio as possibilidades para superar suas dificuldades. Para atender a esses requisitos, a autora entendia que os passos metodológicos do assistente social se daria em três momentos: respectivamente, o estudo social, o diagnóstico social e o tratamento social (direto, com o indivíduo, e indireto, com o meio/comunidade). Assim, diz a autora: A investigação ou coleta de dados reais é o primeiro tempo do trabalho, seguindo-lhe o exame crítico, a comparação das realidades averiguadas e por fim, a interpretação e o esclarecimento da dificuldade social. Na prática comum, as assistentes sociais dos casos individuais chamam isso de “inquérito” a todas essas operações, mas como cometem a falta de se preocuparem muito mais com a coleta de dados do que com a sua interpretação e comparação, há conveniência educativa em usar no conjunto do processo um termo que mais especialmente designe a sua finalidade. O inquérito é indispensável para o diagnóstico: entra no laborioso e hábil apuramento da verdade, que se chama, com razão, pesquisa social e faz parte 6 Sobre os projetos de reforma social em disputa, que influenciaram a trajetória do processo de profissionalização do Serviço Social nos EUA, ver Martinelli (2003) e Silva (2004). importante de muitas averiguações sobre condições sociais que, não sendo profundamente dirigidas como a pesquisa, podem denominar-se investigações sociais (RICHMOND, 1950, p. 27~28). 100 anos depois, chama-nos a atenção a atualidade dessa concepção. Para Richmond, o diagnóstico social prevê o exame crítico dos dados que são coletados durante a investigação realizada pelo assistente social para interpretar e esclarecer uma determinada dificuldade social. Trata-se do “caso individual”. Assim, investigação, coleta de dados, significa conhecer e se apropriar do maior número de informações possíveis sobre a história psicológica e social e a situação do indivíduo que produz a dificuldade social por ele vivenciada – conhecer a Evidência Social (SILVA, 2004). As operações necessárias para coletar esses dados são chamadas, aqui, pela autora e pelas assistentes sociais da época, como inquérito. Mas também, de acordo com a própria citação podem ser designadas como investigações sociais (por não serem profundamente dirigidas como a pesquisa). O termo “investigação social” é comumente utilizado no âmbito das Ciências Sociais, em ambiente acadêmico, para designar operações referentes à pesquisa e ao conhecimento da realidade social. Em Richmond, o termo “investigação” está diretamente ligado ao termo “inquérito”. “Inquérito” vem do latim “inquaeritare”, que significa, “procurar com ardor”. Em vários dicionários da língua portuguesa, a palavra “inquérito” designa os procedimentos para se alcançar a verdade dos fatos. Em inglês (língua original da autora), inquiry também pode ser traduzido como “inquirição”,que, por sua vez, é sinônimo de “inquisição”. “Inquérito” e “inquisição” são termos que não se associam fortuitamente, mas por razões históricas. Os Tribunais de Inquisição típicos da Idade Média eram meticulosos na investigação para o combate à heresia, para a descoberta da verdade e a severa punição dos hereges, tendo por base a defesa de um conhecimento revelado, verdadeiro, as leis divinas defendidas pela Igreja católica. Não à toa o termo “inquérito” é imediatamente associado ao Direito – seja ela administrativo ou penal. Apurar a verdade é tarefa primordial para produzir as sanções necessárias e, assim, manter a ordem vigente. Richmond (1917) fala em termos como “fatos”, “testemunhas”, “realidades”, “documentos” 7 . 7 A utilização de terminologias e concepções, por Mary Richmond, advindas da Medicina e do Direito não são gratuitas. Não obstante serem profissões milenares, o processo de profissionalização do Serviço Se Auguste Comte, mentor do positivismo, já dizia que “a ciência é a nova religião da humanidade”, não é de se estranhar que uma metodologia profissional que se propõe, no início do século XX, a ser construída em bases científicas, afirme que é tarefa do assistente social o “apuramento da verdade” e “averiguar condições sociais” por meio de práticas de inquérito, de inquirição. Desta concepção decorre um desdobramento fundamental sobre o estudo social e os documentos dele resultantes. O estudo social realizado por um assistente social seria o processo de conhecimento da verdade, justamente por se basear em procedimentos técnicos e fundamentos científicos – dado o significado sócio-político da ideia de ciência na Modernidade, conforme aludimos anteriormente. Assim, a não-crítica à sociedade, o desajustamento individual, são pressupostos dados pelo conhecimento que permitem a construção de procedimentos técnico-operativos que buscam essa verdade nos casos individuais atendidos pelo Serviço Social. As profissões, como tais, constroem sua legitimidade e seu significado social ao responderem a necessidades da própria sociedade que as cria e as reproduz, a partir de um mercado de trabalho constituído para elas (NETTO, 2005). Mas na sociedade moderna, dado o paradigma da racionalidade científica, elas buscam fundamentos e conhecimentos a partir do que se acumula em termos de conhecimentos técnicos e científicos. Isso coloca uma questão fundamental: o que os assistentes sociais falam e escrevem são consideradas “verdades”, dado que parte do seu reconhecimento como profissão advém do conjunto de conhecimentos científicos e preparo técnico ao qual é submetido em seu processo de formação e qualificação. E isso inclui o Serviço Social brasileiro, cuja formação se dá em nível acadêmico-universitário, consolidado no final dos anos 1960. 3.2. A produção da “verdade” e as possibilidades dos estudos sociais Ao analisar as dimensões do acúmulo histórico que envolve o estudo social, faz- se então necessário situar o debate sobre o mesmo na literatura profissional contemporânea, que é assim definido por uma das principais referências do tema, que, mesmo ao tratar especificamente sobre a atuação do Serviço Social no Poder Judiciário, Social nos EUA foi alavancado pela inserção dos assistentes sociais tanto na área da saúde – o “Serviço Social Médico” – como na área da justiça – o “Serviço Social nos Tribunais da Infância” (MARTINELLI, 2003). nos brinda com uma definição que muito contribui para entender do que estamos falando: Por meio de observações, entrevistas, pesquisas documentais e bibliográficas, ele [o assistente social] constrói o estudo social, ou seja, constrói um saber a respeito da população usuária dos serviços judiciários. Um saber que pode se constituir numa verdade. As pessoas são examinadas, avaliadas, suas vidas e condutas interpretadas e registradas, construindo-se, assim, uma verdade a respeito delas (FÁVERO, 2006, p. 28, grifo nosso). A autora, aqui, é bastante prudente ao dizer que o estudo social produz “uma verdade” sobre as pessoas. Vimos anteriormente o quanto a ideia de verdade é cara ao positivismo e ao paradigma moderno do conhecimento científico. Mas é também objeto de reflexão que foi colocada para o pensamento humano desde a Antiguidade. Chauí (2015) nos mostra que a filosofia encontrou diferentes formas de qualificar o que seria a verdade. Independente da explicação, todas essas definições partem de uma premissa universal: a de que a humanidade construiu ao longo da história a necessidade de descobrir como as coisas realmente são – em outras palavras, a busca da verdade. E isso parte de uma visão de mundo com a qual o sujeito se reconhece e toma como parâmetro para realizar essa busca. A necessidade de se construir uma verdade a respeito das situações remete ao debate sobre aparência/essência. Uma demanda por conhecimento parte do pressuposto de que é necessário analisar com maior profundidade uma situação que se apresenta como objeto de análise. Contudo, a depender do referencial metodológico que se utiliza, essa essência pode ser, apenas, reflexo da aparência. Guerra (2002) demonstra o quanto o paradigma positivista, pautado na racionalidade formal-abstrata burguesa, não rompe com a imediaticidade própria da aparência dos fenômenos. Uma perspectiva que parte de uma descrição empírica dos fatos, calcada no uso de uma linguagem técnica para a legitimação científica de uma verdade, não reconhece que os processos sociais são construídos a partir da contradição e do fetichismo, em especial no marco das relações sociais capitalistas. Kosik (2002) analisa profundamente essa relação, o quanto a realidade é repleta de pseudoconcreticidade, em como a sociedade de classes, para garantir sua reprodução, esconde a essência da realidade por trás de uma aparência fetichizada. Ao não romper com a imediaticidade, com o que aparece de imediato, e não analisá-la criticamente, o sujeito que conhece contribui para a reprodução das relações sociais dominantes. Por isso que Pontes (2002) propõe a centralidade da categoria “mediação” para pensar o Serviço Social. Buscar as mediações significa romper com o imediato, e situar os fatos nos processos sociais em seu movimento – a relação entre universalidade e singularidade. E fazer isso requer, necessariamente, saber de que relações sociais estamos falando: das relações sociais próprias da sociabilidade burguesa. Essa é outra forma de se construir uma “verdade”, oposta àquela pautada na racionalidade positivista – e como dissemos, parte necessariamente de uma visão de mundo. A definição de estudo social de Fávero acima citada, ao fazer referência a construção de uma verdade, faz referência aos usuários dos serviços judiciários. O texto da autora fala do estudo social no universo do Poder Judiciário. E isso não é gratuito, especialmente por duas razões. A primeira diz respeito ao próprio rito processual típico dos Tribunais. A ideia é a de que a formulação de um juízo, que enseja uma decisão com força impositiva, requer que a verdade seja apurada e constatada por meio da produção de provas. Esse debate no âmbito do Direito já reconhece as contradições e as dificuldades que se colocam no debate sobre a produção da “verdade”. Contudo, não abdicam dessa premissa para pensar na ação própria do Poder Judiciário, de modo a não cair em um relativismo que, segundo juristas, produziria uma inércia judicial (ZAGANELLI; LACERDA, 2009). Pra isso, comumente reivindica e se vale da realização de práticas de inquérito, das mais diversas naturezas, no campo da instrução processual, como método de se alcançar essa verdade – como já vimos, todo o referencialpositivista que está subjacente às práticas de inquérito: a verificação empírica pela via de investigação inquisitorial. A segunda é porque o Poder Judiciário é um dos espaços sócio ocupacionais mais antigos do Serviço Social (IAMAMOTO; CARVALHO, 2005; FÁVERO et. al,, 2008), e que, historicamente, sempre requisitou a realização de estudos sociais por assistentes sociais. E com o advento da Constituição Federal de 1988, que confere às instituições do chamado campo sociojurídico 8 (em especial o Poder Judiciário e o Ministério Público) a requisição de serviços prestados por diversos órgãos do Poder Executivo, a requisição por estudos sociais extrapola, hoje, os muros do Judiciário. Fazemos esse registro porque, também na literatura contemporânea da profissão, a ideia de estudo social comumente se associa a de perícia social. 8 Utilizamos aqui o termo “campo sociojurídico”, cujo debate sobre a terminologia e o que o caracteriza pode ser encontrado em CFESS (2014). Partimos aqui de uma importante afirmação de Fávero: “A perícia, quando solicitada a um profissional de Serviço Social, é chamada de perícia social, recebendo esta denominação por se tratar de estudo e parecer cuja finalidade é subsidiar uma decisão, via de regra, judicial. Ela é realizada por meio do estudo social e implica na elaboração de um laudo e emissão de um parecer” (2006, p. 43, grifos nossos). A palavra “perícia” também não é neutra: ela é carregada de determinações históricas. Ele provém do latim “peritia”, que significa conhecimento. O prefixo “per” significa percorrer, mover-se através; designa assim, processo. O termo “perito” vem de “peritus”, designa o que tem experiência, que sabe fazer algo. Como já vimos, assistentes sociais produzem conhecimento sobre a realidade, e são preparados, formados, qualificados para fazerem algo, adquirindo experiência em realizar algo. Portanto, não é de estranhar que é no campo judiciário que o termo ganha centralidade. A necessidade da produção de provas que aferem uma verdade faz com que, nos vários Códigos Processuais, a perícia apareça como uma das possibilidades de realizar essa aferição. Assim, diz um jurista: “[...] perícia é a pesquisa, o exame, a verificação da verdade ou da realidade de certos fatos, por pessoas que tenham reconhecida habilidade ou experiência na matéria de que se trata. Estas pessoas examinam as coisas, os fatos e depois opinam sobre as causas e efeitos da matéria examinada de forma imparcial” (FIGUEIREDO, 2009, p. 29). E continua o autor: “O perito é aquele profissional que realiza os exames necessários, nos vários ramos do conhecimento, cujo objetivo é atingir a verdade real ou a materialidade do fato ou do delito” (p. 31). É de se observar o quão impregnado por postulados positivistas estão carregadas essas definições 9 . Diante disto, observamos a necessidade de pensarmos que relações existem entre estudo social e perícia social. Mioto (2001), oportunamente, situa a perícia social no âmbito das requisições de autoridades, em especial as judiciárias. E assim a define: “[...] um processo através do qual um especialista, no caso o assistente social, realiza o exame de situações sociais com a finalidade de emitir um parecer sobre a mesma” (p. 146). E esse parecer constitui uma verdade acerca da situação examinada. Entretanto, reside nesse contexto uma diferença técnica fundamental, e que se não explicitada pode produzir confusões diversas. A perícia está regulada no 9 O próprio surgimento da perícia judicial remonta a especialidades profissionais que possuem em sua base de fundamentação técnica conhecimentos provenientes das Ciências Exatas – a Medicina e posteriormente a Engenharia, no diálogo com o Direito: não obstante, as chamadas, pela Sociologia das Profissões, de “profissões imperiais”, áreas que serviram de inspiração para o positivismo. ordenamento jurídico brasileiro com atribuições bastante específicas, e que tem efeitos quando se fala em perícia social. Quando as autoras situam a perícia social no âmbito dos estudos sociais realizados pelo Poder Judiciário, ambas estão absolutamente corretas. O Código de Processo Civil (BRASIL, 2017), que foi reformulado em 2015, situa claramente o papel do perito: trata-se de alguém nomeado pelo Juiz, para se manifestar, em matéria de seu conhecimento, em um determinado processo judicial, de modo a auxiliá-lo em sua decisão final. A perícia é realizada a partir de quesitos definidos pelo Juízo, e ao final, é produzido um laudo pericial. Desse modo, do ponto de vista jurídico, nem todo estudo social é perícia social, e nem todo assistente social ocupa a função de perito, mesmo quando realiza estudo social. Essa é uma questão polêmica e que requer muito cuidado por parte dos profissionais, sob vários aspectos. O primeiro deles diz respeito à herança positivista que envolve a concepção de perícia e a relação com a “verdade”. Não à toa, a perícia se torna um recurso designado pelo Juízo. Trata-se, juridicamente, de conceber o laudo produzido pelo especialista como uma prova, uma prova pericial, uma expressão da verdade, tecnicamente construída e, portanto, cientificamente fundamentada, e que constará nos autos do processo judicial. Diz Figueiredo: “Do perito espera-se que faça, primordialmente, o visum et repertum, expressão antiga que se tornou o lema, dos profissionais, peritos que significa ver bem (examinar minuciosamente) e referir (descrever, documentar) exatamente o que viu” (2009, p. 31). Assim, a perícia aparece como um processo de análise que pressupõe descrições minuciosas, empíricas, como critério de verdade a ser aferido no laudo. Uma concepção positivista de perícia, e que, não poderia ser diferente, se relaciona intimamente com a concepção de “inquérito”. Mas essa concepção de perícia, que se vale da concepção inquisitorial, não é a única existente. E isso nos remete, necessariamente à dimensão ético-política do exercício profissional. O Código de Ética Profissional do/a Assistente Social vigente é claro quando fala sobre o perito. As conclusões do seu lado devem resguardar o sigilo profissional, e quando intimado para depor, o assistente social deve esclarecer tal prerrogativa em Juízo (Art. 19). Assim, inclusive quando da atuação na condição de perito, a descrição pela mera descrição pode violar a prerrogativa ética do sigilo profissional, que se constitui como um direito do assistente social, mas também um dever, com base nos princípios nas normativas do Código de Ética, como dissemos em outro momento: Todas as informações prestadas por assistentes sociais que contribuam para que a população usuária, em sua universalidade, possa ampliar o seu acesso a direitos, e denunciar as formas de violação, não só não são sigilosas, como devem ser reveladas. [...] é informação sigilosa qualquer informação que possa, sem a menor necessidade, prejudicar o acesso de qualquer indivíduo a seus direitos – usuário direto ou não (SOUSA, 2013, p. 7 grifos do autor) É ainda pela via do Código de Ética Profissional que se coloca outro desafio para a realização da perícia social, que também guarda relação com o sigilo profissional, mas o extrapola. Diz respeito aos “quesitos” formulados que são encaminhados pelo Juízo ao perito, para que ele possa respondê-los. Trata-se, segundo o Código de Processo Civil, de formulações do Juiz que requer que o perito as responda – e é disso que se trata a perícia. Assim, a observância do critério do sigilo profissional e das regras para sua quebra deve estar no horizonte de respostas a serem dadas pelo assistente social em seu laudo. Todavia, outro dever ético se coloca nesse contexto: a de quando os quesitos formulados não guardam nenhuma relação com as competências ou atribuições profissionais,pois de acordo com o Código de Ética é vedado ao assistente social: “[...] aceitar nomeação como perito e/ou atuar em perícia quando a situação não se caracterizar como área de sua competência ou de sua atribuição profissional [...]” (CRESS/7ª REGIÃO, 2008, p. 41). Nesse sentido, além de recusar-se a realizar a perícia propriamente dito, o assistente social pode e deve, nessas situações, informar em seu laudo que a resposta a determinado quesito está “Prejudicada”. Aliás, a depender da situação, só o assistente social poderá dar essa informação com a fundamentação necessária, uma vez que ele é o profissional que detém o saber necessário para qualificar e esclarecer ao Juízo ou que e o que não é área de sua competência ou atribuição. Isso diz respeito, necessariamente, à dimensão teórico-metodológica do exercício profissional, da capacidade teórica que o profissional deve ter para realizar o seu trabalho. Outra questão importante que envolve o estudo social e o Judiciário tem a ver com as requisições de estudos sociais que chegam aos serviços sociais provenientes do Poder Judiciário (e do Ministério Público), em especial na saúde mas sobretudo na assistência social, conforme dados já levantados pelo Ministério da Justiça (2015). Muitas vezes estas requisições apontam para a realização de um estudo com a marca da perícia social, mesmo que a requisição não esteja designada com esse nome – o que significa uma distorção tanto do que é a perícia social como do que é o papel desses serviços e sua relação com o Judiciário. Do ponto de vista técnico-operativo, o estudo social a ser realizado, nessas situações, deve levar em consideração o papel dos serviços e da instituição na qual o profissional está vinculado, que não é o Judiciário – e o documento final a ser produzido e encaminhado deve estar sintonizado com os objetivos da política social, levando também em consideração as atribuições, competências e a ética profissional. Por fim, um grave alerta: em 2016, o Conselho Nacional de Justiça publicou uma Resolução instituindo o Cadastro Nacional de Peritos e Órgãos Técnicos ou Científicos (CPTEC), que exclui a possibilidade de servidores com cargo público no âmbito do Poder Judiciário o exercício do encargo de perito, devendo este somente ser acionado a partir de uma lista previamente organizada pelo Cadastro (CNJ, 2017), cuja remuneração, forma de contrato e formas procedimentais de realizar a perícia estão previstas no Código de Processo Civil – a saber, a serviço do juiz que nomeou o perito e remunerado por perícia. Levada a cabo, essa resolução aprofunda as formas precarizadas de contratação de assistentes sociais para a realização de perícias, e pode funcionar como um motor de pressão contra múltiplas outras experiências de estudo social já realizadas por profissionais que são servidores do Poder Judiciário, reduzir as práticas de instrução social de processos da área do Serviço Social (FÀVERO, 2009) à perícia, ou pior, diminuir a inserção profissional nesse espaço sócio- ocupacional ao mero papel de perito, e pela via da terceirização do contrato. Situar essas relações entre estudo social e perícia social não são mera formalidade técnica ou jurídica. Contudo, diferenças jurídicas não anulam o fato de que a perícia social é realizada por meio do estudo social. Em síntese: nem todo estudo social é perícia social, mas toda perícia social é estudo social. E as implicações políticas, com desdobramentos técnicos, dessa relação passam, inclusive, pela legislação profissional. A Lei de Regulamentação da Profissão – Lei Federal nº 8662/1993 prevê, em seu Artigo 5º, a realização de perícias técnicas sobre a matéria de Serviço Social como atribuição privativa, isto é, que apenas os assistentes sociais, ou seja, profissionais graduados em Serviço Social com registro profissional ativo no Conselho Profissional (no caso o Conselho Regional de Serviço Social do estado onde atua), podem realizá-las. E mesmo sendo a perícia uma forma de estudo social, a mesma lei não prevê o estudo social como atribuição privativa do assistente social, mas como competência. No mundo do trabalho, podemos identificar várias categorias profissionais que realizam estudos sociais: sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos, geógrafos, estatísticos, e assistentes sociais. O que aparece na lei é a atribuição privativa de elaborar e executar estudos na área de Serviço Social. O campo dos diversos espaços sócio-ocupacionais em que atuam os assistentes sociais não é área exclusiva do Serviço Social. No Art. 4º, que trata das competências profissionais, ou seja, das atividades para as quais assistentes sociais estão capacitados para realizar, mas não apenas os assistentes sociais, aparece em seu inciso XI: “realizar estudos sócio-econômicos com os usuários para fins de benefícios e serviços sociais junto a órgãos da administração pública direta e indireta, empresas privadas e outras entidades” (CRESS/7ª REGIÂO, 2008, p. 24). Apesar disso, vislumbramos que Mioto (2009) apresenta uma reflexão bastante interessante, que em nossa opinião, contribui para evitar uma leitura legalista do texto da Lei da Regulamentação (e que também impede que caiamos em uma postura pobre e corporativista que afirma que, apesar de tudo o que analisamos até aqui, a perícia social daria mais segurança de inserção de assistentes sociais no mercado de trabalho do que o estudo social, por ser aquela uma atribuição privativa). A autora afirma que, no bojo da construção histórica do debate, os estudos socioeconômicos foram se consolidando terminologicamente como estudos sociais. Contudo, não em qualquer concepção de estudo social. Após a virada crítica realizada pelo Serviço Social brasileiro, que passa a adotar o referencial teórico-metodológico pautado no materialismo histórico-dialético, para pensar o Serviço Social e as ações profissionais, “[...] eles passam a ser entendidos como ações significativas no processo de efetivação, garantia e ampliação dos direitos fundamentais e no enfrentamento das expressões da questão social. Assim, exige-se a ampliação da ação profissional para além dos sujeitos singulares que serve de subsídio para as respostas coletivas às demandas que são ‘singulares’” (MIOTO: 2009, p. 485). Aqui, a dimensão teórico-metodológica da prática profissional aparece claramente. A viabilização de acesso a serviços e benefícios requer que assistentes sociais partam de uma concepção de mundo que situem a população atendida no contexto social de desigualdades produzidas na sociedade capitalista – a “questão social”. Também aparece a dimensão ético-política: a escolha profissional de assistentes sociais parte de um posicionamento de que sua ação se volta para a efetivação, garantia e ampliação de direitos, campo de disputas políticas no contexto social que requer respostas coletivas. E nesse sentido que situamos o papel do estudo social e seu lugar no contexto do exercício profissional de assistentes sociais. Se o seu objetivo é produzir uma avaliação sobre a realidade com a qual o profissional se depara, estamos falando, em outras palavras, que o estudo deve produzir um parecer: O parecer social diz respeito a esclarecimentos e análises, com base em conhecimento específico do Serviço Social, a uma questão ou questões relacionadas a decisões a serem tomadas. Trata-se de exposição ou manifestação sucinta, enfocando-se objetivamente a questão ou situação social analisada e os objetivos do trabalho solicitado e apresentado; a análise da situação, referenciada em fundamentos teóricos, éticos e técnicos, inerentes ao Serviço Social – portanto, com base em estudo rigoroso e fundamentado – e uma finalização, de caráter conclusivo ou indicativo (FÀVERO, 2006, p. 47). Assim, estamos falando de uma opinião emitida pelo profissional, que se constituirá em umaverdade, e que mobiliza as dimensões técnico-operativa, ético- política e teórico-metodológica do exercício da profissão – e que só é possível de ser construída mediante a realização do estudo social. Assim, o estudo social ganha contornos de ação própria de assistentes sociais: quando este implica, na produção de um parecer social, uma vez que a emissão de pareceres técnicos em matéria de Serviço Social está previsto na Lei de Regulamentação como atribuição privativa de assistentes sociais (CRESS/7ª REGIÃO, 2008) 10 . Quando o texto da Lei de Regulamentação fala em “matéria de Serviço Social” para qualificar a atribuição privativa, não se trata de um debate que se esgota no âmbito técnico. Na verdade, essa dimensão é apenas o ponto de partida. Isso porque, a depender da perspectiva ético-política e do referencial teórico-metodológico, podemos obter diferentes definições do que é a matéria de Serviço Social. Portanto, não há nenhuma neutralidade aí. Richmond (1917) definia como os desajustamentos provocados pelos distúrbios psicossociais dos indivíduos. Dantas (1978) circunscrevia no âmbito das situações-sociais problemas. Ambas as perspectivas partiam de um modelo positivista de análise da sociedade, como se esta produzisse deformações que precisavam ser “tratadas”, “mudadas” mediante a intervenção profissional. Deslocar para o universo das singularidades a explicação das situações sociais que eram objeto de intervenção do Serviço Social tinha uma clara orientação ético-política: a da conservação da ordem, a ordem burguesa (NETTO, 2004, 2005). 10 A Lei 8662/93 também fala em “laudos periciais” sobre a matéria de Serviço Social como atribuição privativa de assistentes sociais, o que remete a todo o debate aqui resgatado sobre perícia social. Aportamo-nos então aqui, fiel às referências que utilizamos nas autoras que discutem o estudo social, à contribuição de Iamamoto (2012) para o debate sobre a “matéria de Serviço Social” e interpretar o que prevê a Lei de Regulamentação. Calcada em todo o projeto de formação profissional construído ao longo das décadas de 1980 e 1990 no Brasil, resultado da virada ético-política que conforma um novo projeto, uma nova teleologia profissional, e entendendo que o fazer profissional se inscreve a partir de demandas e necessidades que são construídas na dinâmica concreta da vida social, diz a autora: “Para avançar na efetivação desse projeto [profissional], é necessário considerar a matéria do Serviço Social, consubstanciada na questão social em suas múltiplas expressões concretas, como condição de enraizar o projeto nas condições reais de sua implementação” (p. 47, grifos nossos). Voltamos, assim, para o debate inicial sobre a centralidade da categoria “questão social”. Pareceres em matéria de Serviço Social significa reconhecer que as situações singulares estudadas, analisadas, interpretadas, avaliadas são determinadas pelo conjunto de desigualdades, resistências e lutas que existem nos processos sociais típicos da sociedade capitalista. Ao reconhecer isso, se coloca o cerne da questão ético- política: o profissional parte de um posicionamento contrário às formas de exploração, opressão, dominação que se reproduzem nesta ordem social. Isso requer, necessariamente, visão de mundo crítica e posicionamento de classe (VASCONCELOS, 2015). Trazer a categoria “questão social” para a base da concepção de estudo social traz outras implicações para além das que analisamos até aqui, não menos importantes. Falar de “questão social” não é apenas falar de suas manifestações no cotidiano da vida social, mas é também se referir às formas históricas construídas de seu enfrentamento. Como vimos, as políticas sociais, e os serviços que as materializam, se constituíram como uma dessas estratégias. Uma das conquistas do processo de renovação profissional vivenciada pelo Serviço Social brasileiro foi a incorporação, por parte de assistentes sociais, de competências que iam além daquilo que Netto (2005) qualificou como “funções terminais de políticas sociais”: a profissão passa, a partir da renovação, a circunscrever os processos de concepção, planejamento, administração e avaliação dessas políticas, como herança de importantes experiências já em curso desde os fins dos anos 1950 (IAMAMOTO; CARVALHO, 2005), assim como das lutas profissionais provenientes do Movimento de Reconceituação latino-americano, mas também como uma nova requisição por parte das agências empregadoras (NETTO, 2004). Essa importante mudança foi reconhecida na Lei de Regulamentação da profissão, em diversas dimensões. Assistentes sociais, através de ações no âmbito da gestão da política, da assessoria ou consultoria a instituições ou a movimentos sociais e organizações populares, ou no âmbito da própria necessidade de conhecer a rede de serviços sociais que atendam necessidades e demandas da população usuária atendida, desenvolveram a capacidade também de avaliar políticas sociais. Assim, avaliar instituições, planos, programas, projetos, redes de serviços sociais, sistemas de políticas sociais, também podem ser realizadas mediante estudos sociais. Aliás, os compromissos ético-políticos afirmados pelo Serviço Social acabam por fazer da avaliação de políticas sociais uma exigência profissional. Os desdobramentos de um estudo social de outra natureza, por exemplo, requerem que assistentes sociais conheçam os serviços disponíveis, e os não disponíveis, para o atendimento dos direitos dos usuários. Esse conhecimento pode reverberar em ações políticas concretas, visando a melhoria dos serviços prestados à população. Mas também requer mobilizar a dimensão teórico-metodológica, a partir dialética universalidade-singularidade-particularidade. Uma instituição, um serviço, uma política específica, um projeto, também é uma singularidade, determinada e atravessada pelas determinações sociais mais amplas, universais; portanto, situadas no contexto das necessidades sociais e das lutas/reivindicações existentes pelo atendimento às mesmas, ou seja, na própria “questão social”: A avaliação de uma política social pressupõe inseri-la na totalidade e dinamicidade da realidade. Mais que conhecer e dominar tipos e métodos de avaliação ou diferenciar análise e avaliação, é fundamental reconhecer que as políticas sociais têm um papel imprescindível na consolidação do Estado democrático de direito e que, para exercer essa função, como seu objetivo primeiro, devem ser entendidas e avaliadas como um conjunto de programas, projetos e ações que devem universalizar direitos. Para tanto, toda e qualquer avaliação de políticas sociais (ou de programas e projetos) deve se sobrepor à mera composição de técnicas e instrumentos e se situar no âmbito da identificação do Estado e de política social que determina o seu resultado (BOSCHETTI, 2009, p. 577). A autora também é bastante assertiva quando afirma que a avaliação de políticas sociais requer, do ponto de vista da defesa da democracia como valor ético, avaliar a participação dos usuários em todas as suas etapas: concepção, execução, avaliação e controle. O Código de Ética profissional também define que é dever do assistente social “contribuir para a viabilização da participação efetiva da população usuária nas decisões institucionais” (CRESS/7ª REGIÃO, 2008, p. 37). Assim, nenhum serviço, nenhuma instituição, nenhuma política social está descolada de uma população atendida, de uma determinada comunidade, de um território. “Participação” e “comunidade” não são categorias alheias à história do Serviço Social. Castro (2000) e Amann (2003) nos mostram como a influência dos métodos de “Organização de Comunidade” do Serviço Social norte-americano e o projeto desenvolvimentista capitaneado pelo imperialismo norte-americano no II pós-Guerra expandiramo Serviço Social na América Latina a partir de projetos de Desenvolvimento de Comunidade e de Desenvolvimento e Organização de Comunidade (CARVALHO; IAMAMOTO, 2005). Mesmo na renovação profissional, o trabalho com comunidades e populações se tornaram centrais no contexto de ampliação das competências profissionais de planejamento, administração e avaliação de políticas sociais (DANTAS, 1978). Contudo, analisando esse período, podemos identificar o quanto o conhecimento sobre as comunidades e as populações estavam a serviço de projetos de controle social, e desenvolvimento econômico social pela via da modernização conservadora (NETTO, 2004). A participação era uma estratégia de mobilização de comunidades para pensar em práticas que alavancassem o desenvolvimento capitalista – econômico e social – e integrá-las à ordem burguesa. Entretanto, conhecer e avaliar as condições de um determinado território (seja ele bairro, distrito, favela, município, estado, país), as necessidades de grupos populacionais, como se mobilizam para reivindicar o atendimento de suas demandas e necessidades, o poder local, os interesses econômicos e políticos em jogo, é fundamental para entender os fios que tecem as políticas sociais. Lembremos que a “questão social” não é apenas a manifestação das desigualdades econômicas e sociais, mas também as formas cotidianas de resistência, de mobilização e de luta que as enfrentam e denunciam. Produzir um conhecimento sobre os meandros dos territórios onde as populações estabelecem suas relações cotidianas, à luz dos determinantes e das contradições próprias da sociedade contemporânea, também é produzir uma avaliação social com base na dialética universalidade-singularidade-particularidade. Territórios e grupos populacionais também são singularidades, e buscar conhecê-los na perspectiva teórico-metodológica histórico-dialética é não buscar as explicações nelas mesmas, mas requer iluminar a análise luz dos processos mais amplos da realidade social. Desse modo, é possível romper com avaliações imediatistas que fetichizam e até mesmo moralizam as relações locais e possibilitando uma análise das realidades que vão para além de uma perspectiva integracionista (ABREU, 2017), mas que de fato contribua para mobilizar a participação da população e lutar por processos de ampliação do acesso a direitos e serviços, com base nas necessidades concretas. Assim, também são os territórios e grupos populacionais potenciais objetos de conhecimento pela via do estudo social. Por fim, uma observação fundamental, de cunho metodológico. O movimento próprio do processo de conhecimento em uma perspectiva histórico-dialética. Um território ou uma política social pode ser analisado sob o ponto de vista de uma singularidade. Podem ainda ser uma mediação fundamental, por exemplo, quando uma determinada dinâmica familiar está sendo estudada pelo assistente social – são particularidades fundamentais para entender aquela situação singular. Assim, os objetos não ficam estanques, qualificados em um só lugar: eles são tratados como “complexos” que se articulam dentro de outros “complexos” – podendo assim serem conhecidos e avaliados em uma perspectiva de totalidade. As diferentes possibilidades de estudo social podem ser realizadas mediante uma clara filiação teórico-metodológica, em uma perspectiva crítico-dialética. 4. Considerações finais: a instrumentalidade própria do estudo social O processo de conhecimento de diferentes dimensões da realidade social, de conhecer as coisas como elas realmente são, rompendo com a aparência fetichizada e com a pseudoconcreticidade fenomênica, e alcançando a essência dos processos sociais que envolvem os sujeitos com os quais atuamos, tem no estudo social uma grande potência para a intervenção profissional de assistentes sociais. Como se vê, em todas as possibilidades de realização de estudo social, são as dimensões ético-política e teórico-metodológica que direcionam a dimensão técnico- operativa: as escolhas do “como fazer”, dos instrumentos utilizados e das ações a serem realizadas, atenderão a essas finalidades, e o resultado da avaliação profissional, bem como de suas intervenções, produzirão verdades sobre as situações examinadas que podem permitir, assim, o alcance desses objetivos. Isso dá outro sentido político para a produção da verdade por meio de estudos sociais, bem diferente da lógica inquisitorial. Ela se torna uma ferramenta política que pode possibilitar a ampliação de uma leitura crítica da realidade na perspectiva da ampliação de direitos, a partir da mobilização do saber profissional que, fundamentado teoricamente, pode usar a verdade em uma perspectiva que não aponte o “desvio”, a “dificuldade individual”, mas o “[...] conhecer com profundidade, e de forma crítica uma determinada situação ou expressão da questão social, objeto da intervenção profissional – especialmente nos seus aspectos econômicos e culturais” (FÁVERO: 2004, 42). A escolha dos instrumentos técnico-operativos para a realização do estudo social precisa levar em consideração esses aspectos. Todo esse processo requer planejamento da ação. Quem será entrevistado, se haverá abordagens individuais ou grupais, realização de visitas domiciliares, visitas institucionais, vistorias técnicas 11 , contatos ou reuniões com profissionais de outras áreas ou de outras instituições, realização de reuniões com grupos diversos, participação em atividades de mobilização e discussões coletivas, levantamento de documentação acerca da situação e/ou política social, pesquisas de indicadores sociais, estudos bibliográficos, e como o documento final será produzido, depende desses objetivos e finalidades construídas, a partir de uma visão de mundo e de um referencial metodológico. Mioto (2001) já registra com muita propriedade que a realização de um estudo social produz intervenções que são realizadas pelo profissional, seja durante ou seja depois de sua realização, uma vez que a própria presença de um profissional no cotidiano da vida dos sujeitos necessariamente produz modificações e alterações em sua dinâmica. Não podemos ainda alimentar ilusões sobre a “neutralidade” profissional, concepção que é herdeira do positivismo – e da própria ideia weberiana de ciência livre de valores axiológicos (LÖWY, 2007). Essa é novamente uma visão que a profissão herda quando associa o estudo social a uma concepção de perícia calcada no positivismo – a de que o “perito” apenas ouve, observa, descreve e depois relata e analisa. Uma das competências do assistente social, previsto no Art. 4º da Lei de Regulamentação Profissional é “orientar indivíduos e grupos de diferentes segmentos sociais no sentido de identificar recursos e de fazer uso dos mesmos no atendimento e na defesa de seus direitos” (CRESS/7ª REGIÃO, 2008, p. 24). Se ainda analisarmos o Capítulo I do Título III do Código de Ética Profissional (op, cit., p. 37), que trata dos deveres de assistentes sociais nas suas relações com os usuários, veremos claramente que os artigos lá dispostos requisitam necessariamente que os profissionais realizem 11 Sobre a realização de vistorias técnicas, conforme previsto na própria Lei Federal nº 8662/93, fizemos uma aproximação a partir de uma experiência profissional particular (SOUSA, 2010), situando-as, sobretudo, no processo de avaliação de políticas sociais realizado por assistentes sociais. intervenções no âmbito de seu exercício profissional – e isso acontece também na realização de estudos sociais, inclusive na modalidade de perícia. Ao realizar entrevistas, visitas, reuniões, dinâmicas de grupos, os assistentes sociais não são meros expectadores da vida e do cotidiano alheio. Lidamos com sujeitos políticos, pois indivíduos expressam a história. Afirmamos várias vezes tratar oServiço Social de uma profissão essencialmente interventiva. Dada a nossa própria inserção na divisão sociotécnica do trabalho, atuamos no âmbito dos serviços, e estes produzem alterações concretas no cotidiano da vida social dos indivíduos e instituições com as quais nos relacionamos profissionalmente. Os usuários dos nossos serviços não são “objetos” inanimados que são estudados passivamente, mas sujeitos que se mobilizam a partir de interesses, desejos, projetos, expectativas, conforme sinalizamos em outro momento: [...] além de observador, o profissional também é observado. E ainda: na medida em que o Assistente Social realiza intervenções, ele participa diretamente do processo de conhecimento acerca da realidade que está sendo investigada. Por isso, não se trata de uma observação fria, ou como querem alguns, “neutra”, em que o profissional pensa estar em uma posição de não- envolvimento com a situação. Por isso, trata-se de uma observação participante – o profissional, além de observar, interage com o outro, e participa ativamente do processo de observação (SOUSA, 2008, p. 126). Com isso, esperamos que fique definitivamente claro que o estudo social mobiliza dimensões e elementos de complexidade tamanha que ele não pode ser reduzido à realização de uma única entrevista com um dos sujeitos envolvidos. Ou ser reduzido à realização de uma visita domiciliar. Ou, que muito menos, os profissionais se submetam a responder requisições de realização de um estudo social e produção de documento no prazo de 24 horas, ou mesmo em até 05 dias úteis. A própria concepção do que é o estudo social e tudo o que nele está implicado confere ao assistente social a capacidade – e a responsabilidade – de construir argumentos sólidos, fundamentados teórica e tecnicamente, de que visões como essas são descabidas 12 . Urgência, celeridade, eficiência, são necessárias. Algumas situações requerem ações de emergência e respostas rápidas. Mas nenhuma delas não podem prescindir da qualidade necessária ao exercício de uma profissão de nível superior, conforme está regulado no Código de Ética Profissional – inclusive como um princípio fundamental. Reside aqui uma dimensão de grande responsabilidade ética (e política). Sucumbir acriticamente a 12 Interessante observar que mesmo a compreensão do estudo social como “inquérito social” tal como formulou Richmond em 1917, respostas profissionais que reforçam essa concepção eram absolutamente inconcebíveis. essas pressões levam a pelo menos, três resultados desastrosos: o primeiro, é de criar uma imagem de que é possível atender a solicitações e expectativas esdrúxulas como essas; a segunda, é a de não atender às expectativas que a sociedade tem em um trabalho profissional desenvolvido com qualidade; e a terceira, a mais grave de todas, é a de produzir violações e impactos que atinjam negativamente a população usuária dos nossos serviços, seja nas intervenções realizadas durante o contato com os mesmos, seja nos resultados e ações que são produzidas a partir do relato e de sua avaliação. Esclarecer a quem solicita, com a devida fundamentação teórica e técnica, é tarefa dos profissionais, pois só eles têm a qualificação necessária para fazê-lo. Por outro lado, com o processo de realização do estudo social, muitas possibilidades se abrem. O processo de conhecimento da realidade social da população usuária nesta direção requer, acima de tudo, que o assistente social se disponha a conhecer a narrativa dos sujeitos com os quais ele estabelece relações. A história só se revela quando o profissional se propõe a conhecê-la, construindo as mediações entre singular e universal. É, nessa perspectiva, “a busca da história” e da “história da história”: Cada acontecimento individual tem múltiplas relações com os acontecimentos mais gerais. Ao pesquisador cabe conhecer a interação entre os fatos, entre o antes e o depois do fato narrado, incluindo “acontecimentos imaginários e falsas recordações”. [...] O indivíduo é horizonte de muitos, é situado social e culturalmente, suas escolhas não são arbitrárias, expressam determinações, por isso é preciso conhecê-las e historicizá-las (MARTINELLI, 2012, p. 5). Trata-se de usar o saber profissional como instrumento a serviço de um projeto ético-político, de fortalecimento dos interesses da classe trabalhadora. Seja no processo de intervenção direta com os sujeitos, seja em como fortaleceremos seus interesses no interior da instituição e na própria sociedade. E mais: em como podemos, a partir da sistematização da nossa prática profissional, propor e realizar intervenções que coletivizem as demandas encontradas e conhecidas por meio dos estudos sociais e potencializem a organização dos usuários. O conhecimento produzido de cada situação singular, se tratado na perspectiva de totalidade, revela processos sociais mais amplos, que podem ser decifrados e publicizados mediante uma atitude profissional que vai além das requisições institucionais propriamente ditas. Essa não é uma posição gratuita. Assistentes sociais são também trabalhadores assalariados. Sintonizar todo o processo de realização do estudo social em ações que não reproduzam a lógica do inquérito, do inquisitorial, significa potencializar uma autoimagem profissional comprometida com os interesses da classe da qual nós mesmos somos membros. Como disse Faleiros (2001): Esta transformação da atuação profissional teórica e política se manifesta na luta ideológica para levar o Serviço Social a desculpabilizar a população das situações – problema que em seu imaginário apresentam as questões do cotidiano como resultantes de falhas individuais ou falta de sorte. A hegemonia e a contra-hegemonia no Serviço Social se constroem a partir de uma vinculação prática entre a atuação do profissional e a da própria população-alvo de seus serviços: profissional e população compartilham a condição de trabalhadores, de cidadãos, portanto, de explorados e dominados (p. 56). A autonomia relativa do assistente social, exaustivamente debatida por Iamamoto (1995) e outros autores, não existe para ficar nos livros e nos discursos. Ela contribui para reconhecer os limites de uma profissão, mas ela também é ferramenta teórica e política para que, a partir dos nossos saberes, possamos potencializar as formas de acesso a direitos humanos e de lutas e resistências da classe trabalhadora, bem como de todos os segmentos historicamente explorados, dominados ou oprimidos, sem deixar de responder a demandas institucionais – a “mediação do seu oposto”. O estudo social é requisitado a profissionais de Serviço Social em diversos espaços sócio-ocupacionais. Possui então, sua instrumentalidade, de ser funcional à ordem burguesa. Mas os assistentes sociais, ao realizar os estudos sociais, bem como construir as “verdades” dele decorrentes, podem produzir um conhecimento crítico sobre a realidade social, em uma dimensão teórico-metodológica que permite fazer a passagem entre o universal e o singular, situando as situações singulares que se constituem como objeto de estudo em uma perspectiva de totalidade. Mobilizar os instrumentos, o arsenal técnico-operativo, para a realização do estudo social pressupõe, nesta opção metodológica, um posicionamento ético-político comprometido com valores emancipatórios, é, sem dúvida, uma poderosa ferramenta para o alcance dos objetivos ético-políticos com os quais o Serviço Social brasileiro se propôs em seu projeto profissional hegemônico. Referências bibliográficas ABREU, Maria Helena Elpídio. Território e política social no contexto da ideologia neodesenvolvimentista no Brasil. Disponível em: <http://cress- mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ae/ae8d522a-c8bc-4295-8df0-0fa8473977e5.pdf>. Acesso em: 25 de abril de 2017. http://cress-mg.org.br/hotsites/Upload/Pics/ae/ae8d522a-c8bc-4295-8df0-0fa8473977e5.pdf
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