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UNIP- UNIVERSIDADE PAULISTA Polo – Arcos – MG Curso: Letras Português/Inglês O FLUXO DA CONSCIÊNCIA E A EPIFANIA NAS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR E SUA NARRATIVA DE ESTRANHAMENTO ALLYNE SILVA MOREIRA GUEDES RA: 1870136 Arcos- MG 2021 Allyne Silva Moreira Guedes O FLUXO DA CONSCIÊNCIA E A EPIFANIA NAS OBRAS DE CLARICE LISPECTOR E SUA NARRATIVA DE ESTRANHAMENTO Trabalho Monográfico - Curso de Graduação - Licenciatura em Letras Português e Inglês, apresentado à comissão julgadora da UNIP – Polo Arcos, sob a orientação do Professor Mestre Adilson Silva Oliveira Arcos – MG 2021 Banca Examinadora Arcos – MG 2021 A Deus, pela força e luz no meu caminho e Para a pessoa cheia de coragem Que se empenhou e dedicou a esse momento, EU AGRADECIMENTOS Sou muito grata por cada momento em minha vida. Até mesmo aos obstáculos e dificuldades que me fortalecem e me enchem de orgulho. Agradeço a Deus pela oportunidade de realizar um sonho, minha graduação. Nunca é tarde para conquistar um sonho, basta querer muito. Gratidão, essa é a palavra que define esse momento. Tive muitas dificuldades em todos esses anos do curso, principalmente estando praticamente sozinha, o esforço foi triplicado. Foram momentos de desespero, ansiedades e muitas lágrimas, mas o gostinho da vitória é tão melhor assim! Sou mãe, esposa e dona de casa em uma família que muito dedico. E equilibrar tudo isso, não foi fácil. Agradeço ao meu esposo Johnny, pela compreensão e força, por eu estar um pouco afastada, focada e com a cabeça na lua nesse período. Amo você. Agradeço aos meus pais, Ana Maria e José, pela forma com que me educaram. Espelho em vocês pelo caráter, integridade e dignidade de viver. Aos meus filhos, Kauan e Miguel, por acreditarem em mim. Vocês são minha vida toda, minha melhor parte. Espero estar dando exemplo a vocês de que se queremos algo, temos que correr atrás e lutar. E por fim, um agradecimento especial a todos os professores que estiveram comigo nessa jornada, contribuindo com os seus saberes e fazendo com que eu me apaixonasse ainda mais pelo curso que escolhi e pela profissão que desejo seguir. E claro, gratidão ao meu orientador, Mestre Adilson Silva Oliveira, pelas dicas, auxílios e pelo apoio. O meu muito obrigado a todos. “Clarice veio de um mistério e partiu para outro. Ficamos sem saber a essência do mistério. Clarice não foi um lugar comum.” Carlos Drumond de Andrade SUMÁRIO INTRODUÇÃO …..........................................................................................................9 1 O ESTILO NARRATIVO DE CLARICE LISPECTOR E O MODERNISMO …..........11 1.1 O fluxo da consciência ….....................................................................................12 1.2 A epifania …...........................................................................................................15 2 QUEM É CLARICE LISPECTOR …..........................................................................17 2.1 O estilo único em sua narrativa de estranhamento ….......................................18 2.2 Por que Clarice escreve assim? …......................................................................20 2.3 Sua vida refletida em suas obras …....................................................................23 3 CLARICE LISPECTOR E A CRÍTICA …...................................................................27 3.1 Como a crítica a recebeu na época ….................................................................27 3.2 A relação do leitor com suas obras …................................................................31 CONSIDERAÇÕES FINAIS …......................................................................................35 REFERÊNCIAS …........................................................................................................36 RESUMO Essa pesquisa foi desenvolvida com a intensão de fazer com que os leitores compreendam melhor Clarice Lispector e suas obras. No início apresenta-se um pouco sobre sua história de vida, sua peculiaridade no modo de sentir as coisas e escrever sobre elas. A pesquisa também mostra duas técnicas narrativas muito utilizadas por ela, o fluxo da consciência e a epifania. Com definições objetivas e com clareza, deixando o leitor mais próximo do seu modo de escrever. Clarice Lispector é uma mulher incrível, com personalidade forte. Sua história de vida e suas obras são muito importantes para a literatura do Brasil e do mundo e atravessará gerações. A pesquisa também fala sobre a sua vida refletida em suas obras, com passagens que exemplificam os fatos. As dificuldades de publicação e as primeiras reações da crítica na época, que deixavam Clarice desconfortável, mas que a tornou um ícone da nossa literatura. E por fim, a sua relação com os leitores que é o objetivo central dessa pesquisa. Fazer com que os leitores mais que a compreendam, a sintam. E passem a observar suas obras com outros olhos, que se coloquem no lugar do próximo, como ela retrata em seus próprios personagens. E assim, o leitor possa mergulhar com Clarice nesse mundo de complexidade e entrar mais profundo dentro de si mesmo. Palavras – chave: Clarice Lispector, leitores, literatura, obras. ABSTRACT This research was developed with the intention of making readers better undertand Clarice Lispector and her works. At first it presents a little about his life story, his peculiarity in the way of feeling things and writing about them. The research also shows two narrative techniques widely used by her, the flow of consciousness and epiphany. With objective definitions and clarity, leaving the reader closer to your way of writing. Clarice Lispector is an amazing woman with a strong personality. His life story and works are very important for Brazilian and world literature and will cross generations. The research also talks about his life reflected in his works, with passages that exemplify the facts. The difficulties of publication and the first reactions of the criticism at the time, which made Clarice uncomfortable, but which made her an icon of our literature. And finally, its relationship with readers is the central objective of this research. Make the readers who understand it more, feel it. And come to observe her works with other eyes, which put themselves in the place of the next, as she portrays in her own characters. And so, the reader can dive with Clarice into this world of complexity and enter deeper into himself. Keywords: Clarice Lispector, readers, literature, works. 9 INTRODUÇÃO Esta pesquisa visa estudar sobre a escrita peculiar de Clarice Lispector, como o fluxo da consciência e a epifania, tão presentes em suas obras. Esses elementos narrativos revolucionaram a literatura brasileira na fase do Modernismo e Clarice foi a pioneira com esse estilo narrativo e o fez com maestria. O fluxo da consciência é uma técnica narrativa que transcreve o complexo processo de pensamento de uma personagem, desde as coisas mais banais, entremeando raciocínio lógico feitos pelo narrador com impressões pessoais momentâneas e mostrando os processos de associação de ideias. Não cabe nestapesquisa o rigor científico sobre a técnica de fluxo da consciência, os diferentes tipos e termos técnicos. A intensão é entender o conceito e saber identificar o estilo nas obras e exemplos que serão citados. A epifania também está presente em algumas de suas obras e num sentido literário, é definido como uma inspiração, uma ideia que se desenvolve a partir da observação de algo. É uma revelação inesperada a partir do momento que se vê um objeto ou um ser, que traz reflexões filosóficas e psicológicas aos personagens e chegando ao leitor. Clarice Lispector foi uma escritora que se destacou no século XX. Uma mulher misteriosa, mística e que carregou uma história de vida muito difícil desde o ventre de sua mãe. A estranha, a estrangeira que não se adequava, que não se encaixava e que causou um rebuliço entre os críticos da época. Suas obras causam um estranhamento no leitor e tudo que é estranho causa curiosidade, fascínio, mas também desconforto. Ela provoca, traz confusão, reflexão e transformação. Clarice escreve com a alma, ela exterioriza os seus sentimentos. Sua vida reflete em suas narrativas. Por isso ela foi e é tema de pesquisas, dissertações e doutorados. Esta pesquisa tem como objetivo definir os dois elementos narrativos em algumas de suas obras de forma objetiva e relacionar de forma breve vida e obra, que 10 muitas vezes se confunde. Obras que causam estranhamento e admiração nos leitores até nos dias de hoje. Clarice Lispector nunca deve ser esquecida. Uma escritora pesquisada e estudada até mesmo por psicanalistas e filósofos, ela traz o mais íntimo do seu interior transformados em simples enredos, mas com muita profundidade. O que falar sobre uma escritora que se tornou um mito? Falar de Clarice nunca é o suficiente, mesmo à tantas pesquisas e estudos sobre a autora. Mergulhar em seu mundo é se colocar diante de um abismo, e melhor, junto com ela. O objetivo desta pesquisa é esclarecer como ela escreve e porque ela escreve assim. Contribuindo para a compreensão dos leitores de suas obras, formando um elo entre leitor e escritora. Conhecendo-a profundamente e entendendo suas técnicas narrativas, o leitor poderá ler suas obras de alma e mente aberta e assim, sentir. 11 1- O ESTILO NARRATIVO DE CLARICE LISPECTOR E O MODERNISMO Cada movimento literário tem seu estilo narrativo que se alteram com o passar do tempo. E com o Modernismo no século XX, não foi diferente. O Modernismo no Brasil foi marcado por vários acontecimentos históricos, como as duas grandes guerras mundiais, a ditadura de Getúlio Vargas, depois quando foi deposto, abrindo espaço para a democracia no país. Moderno é tudo que vai contra o tradicional. Nesse período a Literatura deixou a característica de denúncia e crítica social e voltou-se para a questão interna, valorizando o indivíduo e a subjetividade. Começou-se a trabalhar muito com questões psicológicas e introspectivas, conhecido como, o fluxo da consciência. Surgem as Vanguardas, novas expressões de arte, novos modos de experimentações. Aqui, tem-se uma ideia do que a própria Clarice pensava sobre o Modernismo e as Vanguardas em seu texto “Literatura de vanguarda no Brasil”. O movimento de 1922 foi um movimento de profunda libertação, libertação significa sobretudo um novo modo de ver, libertação é sempre vanguarda, e também nessa de 1922 quem estava na linha de frente se sacrificou. Mas libertação é às vezes avanço apenas para quem se está libertando, e pode não ter valor de moeda corrente para os outros. Para nós, 1922 significou vanguarda, por exemplo, independente de qualquer valor universal. Foi movimento de posse: movimento de tomada de nosso modo de ser, de um dos nossos modos de ser, o mais urgente naquela época, talvez. (Lispector, 2020, p. 101) Clarice Lispector foi a pioneira no Brasil a utilizar esse novo estilo, revolucionando a literatura brasileira na fase do Modernismo. Ela assume um estilo único, sendo elogiada e criticada por ser impulsiva, peculiar e abordar o tema da alma. Sua escrita é algo que envolve e que destrói ao mesmo tempo, deixando o leitor imerso nessa explosão de palavras. 12 1.1 - O fluxo da consciência É uma técnica literária utilizada que transcreve o processo de pensamento da personagem com opiniões pessoais, intercalando entre a narrativa e essas expressões momentâneas de ideias. A característica não linear deste processo de pensamento trás rupturas na sintaxe e na pontuação, misturando consciente e inconsciente, realidade e desejo, as lembranças da personagem e o enredo narrado. Os personagens passaram a ter voz e o enredo deixado um pouco de lado. Consciências das personagens são reveladas ao leitor de forma simultânea com o narrador, conduzindo a história em uma espécie de transcrição direta dos pensamentos. De acordo com Carvalho, No caso do eu-protagonista, a visão do narrador não é periférica: é central. Tem, entretanto, a desvantagem de ser fixa. O narrador protagonista é um personagem que, por definição, é atuante, não podendo ser, ao mesmo tempo, espectador, crítico ou colecionador de opiniões alheias. (Carvalho, 2020, p.28) A técnica de fluxo da consciência apresenta o pensamento ainda não claramente formulado do ponto de vista lógico, exprimindo a fluida realidade psíquica saindo dos moldes da linguagem tradicional. Segundo Carvalho, “O leitor é orientado para os fatos externos, para a situação, ao mesmo tempo que é usado um estilo que caracteriza a personagem, apresentando-se a sequência não lógica dos seus pensamentos”. (Carvalho, 2020, p.77). Também de acordo com o teórico Alfredo Leme de Coelho Carvalho, “o fluxo da consciência é um método ficcional que pode ser definido como a apresentação idealmente exata, não analisada, do que se passa na consciência de um ou mais personagens” (Carvalho, 2020, p. 72). Quantas vezes as pessoas se perdem em seus pensamentos, desde as situações mais banais do cotidiano, lembranças de algo ou algum tempo, planejando coisas a curto e longo prazo, fazendo críticas internas sobre alguém ou alguma situação ao redor e até mesmo nas lutas e conflitos internos com seus próprios fantasmas. Às vezes esses pensamentos até escapolem em voz alta, em um monólogo interior, “definem monólogo 13 interior como a apresentação direta e imediata, na literatura narrativa, dos pensamentos não falados de um personagem, sem a intervenção de narrador”, diz (Carvalho, 2020, p. 74). Na literatura isso é chamado de fluxo da consciência. O fluxo da consciência é metafísico, muito trabalhado na psicanálise, pois trabalha a complexidade dos pensamentos. E na literatura transforma em uma realidade para as personagens, retratando em forma de arte. Os autores que utilizam esse estilo permeiam entre os pensamentos inconscientes e conscientes de suas criaturas, num indo e vindo que pode durar toda a extensão do enredo. Cada pensamento é único e os sentimentos estão ligados ao pensamento. O estado da mente, as sensações e memórias nunca serão os mesmos. Os sentimentos podem ser conscientes ou inconscientes. Usados em textos narrativos, onde os personagens são construídos em processos literários, as representações verbais, tornam-se claros e concretos porque os processos internos do pensamento foram transformados em percepções, assim sendo cientes de suas emoções. Inaugurado pelo escritor Marcel Proust(1871 – 1922) e depois explorado por James Joyce e Virgínia Woolf, o fluxo da consciência escreve de forma fiel o fluir dos pensamentos, desde os mais banais. No Brasil, Clarice inaugura esse estilo com maestria. Ela rompe com a sequência de começo, meio e fim, deixando o enredo em segundo plano e focando no universo particular. Um exemplo de fluxo da consciênciaestá em um trecho de sua obra Perto do coração Selvagem, onde pode-se observar, Não se sentia fraca, mas pelo contrário possuída de um ardor pouco comum, misturado a certa alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de repente e surpreendeu-se. Estou sofrendo, dizia-lhe uma consciência à parte. E subitamente esse outro ser agigantou-se e tomou o lugar do que sofria. Nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer... (Lispector, 2019, p. 50). É nítida a mistura entre o narrador em terceira pessoa e a intromissão dos pensamentos da personagem Joana em primeira pessoa. Há várias formas de apresentar essa técnica em um discurso narrativo: o monólogo interior direto, o monólogo interior direto, a descrição por autor onisciente e o solilóquio. Para (Carvalho, 2020, p. 79), em todas essas formas “há falta de elucidação 14 lógica. Os pensamento são enunciados como se o fossem para ser ouvidos”. Segundo o mesmo pesquisador: existe o autor onisciente ou analítico. Neste caso o autor penetra na mente dos personagens e nos desvenda os seus pensamentos e sentimentos. (…) o autor onisciente pode assumir duas atitudes: a) apenas relatar os pensamentos, sentimentos e fatos; b) não só relatá-los, como também fazer comentário sobre ele. (Carvalho, 2020, p.21) Tais pensamentos provocam rompimentos com o tempo e o espaço da narrativa. Fatos exteriores surgem do nada, intrometendo na sequência da narrativa, aparentemente sem importância, mas que leva o leitor para o interior da personagem. Para a pesquisadora Sônia Maria Machado (1981), em sua dissertação de mestrado, o fluxo da consciência na ficção se prende especialmente ao lado psicológico da personagem, quer pronunciado por ele mesmo, por outro personagem ou por outro recurso impetrado pelo narrador para exteriorizar o conteúdo existente na consciência da personagem. (Machado, 1981, p. 16) O narrador tem o privilégio de levar o leitor a seguir as pegadas de uma narrativa que diz mais do que se pretende dizer. E isso se observa nos pensamentos das personagens. Narrador e personagem andam juntos em um mesmo contexto. A pesquisadora Sônia Maria Machado diz que os pensamentos das personagens são descritos da maneira que vem à mente, de forma natural, sem refinamentos na escrita: mesmo usando o monólogo interior direto, o narrador, pretendendo-se onisciente, quer dominar o conteúdo mental dos seus personagens em todos os níveis […], inclusive aqueles que nem ele mesmo entende, posto que são expressos na forma mesma com que são concebidos, sem passar pelo buliramento literário. (Machado, 1981, p.122). As personagens de Clarice Lispector nem sempre são descritas no começo das histórias. Conforme essa narrativa intercalada vai acontecendo, é através da própria consciência das personagens que o leitor vai compreendendo a história. Ainda complementando Machado, 15 O fluxo da consciência, servindo-se do mecanismo da livre associação de ideias, também evoca ideias espontâneas, num estado de consciência, buscando acontecimentos passados que vêm à mente através da associação com algo que se passa no momento atual do ser humano. (Machado, 1981, p.13). O conceito de fluxo da consciência é a maneira de questionar, de filosofar a vida de acordo com o desenrolar do enredo em uma obra. É difícil ser entendido e entender o próximo sem julgamentos, muitas coisas que pensamos são indizíveis. Para (Carvalho,pág. 77) “o leitor é orientado para os fatos externos, para a situação, ao mesmo tempo que é usado um estilo que caracteriza o personagem, apresentando-se a sequência não lógica dos seus pensamentos”. Nessa característica de narrativa, as personagens dialogam consigo mesmos e é papel do narrador expor essa consciência ao leitor, tornando a leitura mais profunda, às vezes pouco compreendida, mas muito sentida. Por isso essa técnica é muito valorizada e admirada em Clarice. Ela sempre foi ela mesma, dentro e fora de suas obras e sempre fez questão de deixar isso bem claro. Em suas obras a distância entre as vozes do narrador e personagem são indefinidas. Assim tudo se mistura, passado e presente, realidade e fantasia, falas e ações, amor e ódio, desejo e repulsa. Como a própria autora disse, sua narrativa não se prende a uma lógica ou ordem de ideias e escrita. As personagens surgem em suas obras sem uma definição de espaço e tempo, simplesmente contam a continuação de algo que já está acontecendo. As reações e o consciente simplesmente fluem. Suas personagens expressam a realidade, com intuições que surgem do nada como uma epifania. 1.2- A Epifania Epifania na literatura é como uma inspiração, uma iluminação que surge do nada. É uma revelação banal, cotidiana, uma ideia súbita e repentina sem nenhuma importância aparente. É algo que vem na mente quando se olha para um objeto qualquer. Uma explosão de ideias, características muito presentes nas obras de Clarice Lispector. Um grande exemplo de epifania, encontra-se em seu conto “O ovo e a galinha” no livro (A legião estrangeira, 2020, p. 51), logo em seu início: “De manhã na cozinha 16 sobre a mesa vejo o ovo.” “Ver um ovo nunca se mantém no presente: mal vejo um ovo e já se torna ter visto um ovo há três milênios”. A narradora tem uma iluminação ao ver o ovo, um objeto banal do cotidiano e a partir disso, começa a ter ideias filosóficas, questionamentos sobre a vida, sobre a maternidade: “Eu te amo, ovo. Eu te amo como uma coisa nem sequer sabe que ama outra coisa”. Ovo é coisa que precisa tomar cuidado. Por isso a galinha é o disfarce do ovo. Para que o ovo atravesse os tempos a galinha existe. Mãe é para isso. O ovo vive foragido por estar sempre adiantado demais para a sua época. Ovo por enquanto será sempre revolucionário. (Lispector, 2020, p. 53). A epifania é dada como um processo de manifestação entre o eu do indivíduo que é modificado na sua forma de ver e pensar, através de um evento aparentemente comum e que ocorre de forma natural e abrupta em seu cotidiano. É nessa explosão epifânica que emerge grande parte da obra de Clarice. Ao ler suas obras, o leitor parece entrar em um transe, em um mundo onde só Clarice consegue explicar o inexplicável. Outro exemplo de epifania clariciana é em seu primeiro livro “Perto do coração selvagem”, onde a personagem Joana ainda menina tem um vislumbre ao olhar o relógio do pai: A máquina do papai batia tac-tac...tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa- roupa. Não não. Entre o relógio, a máquina e o silêncio havia uma orelha à escuta, grande, cor-de-rosa e morta. Os três sons estavam ligados pela luz do dia e pelo ranger das folhinhas da árvore que se esfregavam rediantes. (Lispector, 2019. p.11). Ela escrevia ao mesmo tempo em que era dona de casa e mãe. O espanto pelo mistério e as coisas do dia a dia surgem em suas obras em forma de arte, de filosofia. Com a correria dos dias, as pessoas deixam de observar, de questionar. Simplesmente seguem o fluxo no automático. E Clarice traz esse olhar para o interior, para as questões da alma. 17 Dentre várias de suas obras, um exemplo de epifania está em sua obra de maior destaque, A Paixão segundo G.H. O livro todo é um misto de epifania e monólogo interior, quando a personagem se depara com uma barata no quarto da antiga empregada: Só que ter descoberto súbita vida na nudez do quarto me assustara como se eu descobrisse que o quarto morto era na verdade potente. Tudo ali havia secado - mas restara uma barata. Uma barata tão velha que era imemorial. O que sempre me repugnara em baratas é que elas eram obsoletas e no entanto atuais. (Lispector, 2020, p. 46) Muito lida e estudada por psicanalistas, pois ela tem a capacidade de mostrar a perspectivano olhar do outro, em diferentes pontos de vista. Ajuda muitos leitores, principalmente mulheres a questionarem sobre a própria vida. “É que eu olhara a barata viva e nela descobria a identidade de minha vida mais profunda. Em derrocada difícil, abriam-se dentro de mim passagens duras e estreitas.” (Lispector, 2020, p. 56). Esses pensamentos geralmente acontecem em fatos triviais do cotidiano e a personagem já mergulhada nesse fluxo da consciência, passa a ter um novo olhar sobre o mundo e sobre si mesma, levando o leitor a enxergar de diferentes formas e fazer reflexões sobre a vida. II- QUEM É CLARICE LISPECTOR Chaya Pinkhasovna Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920. De origem judáica Russa, sua família veio buscar refúgio no Brasil, chegando em 1922 quando era ainda bem pequena. Todos os cinco membros da família receberam nomes da língua portuguesa, onde Chaya virou Clarice. Era a casula de três filhas. Teve uma infância muito difícil em meio a fome, a doença de sua mãe e a difícil adaptação de seu pai em busca de trabalho. Chegaram primeiro em Maceió, onde já viviam alguns parentes refugiados. Mas em meio à tantas dificuldades, logo partiram para Recife, onde Clarice viveu a maior parte da sua infância. E após a morte de sua mãe, foram para o Rio de Janeiro onde Clarice viveu a maior parte de sua vida. 18 Desde pequena devorava os livros que pegava emprestado na biblioteca. Ela disse em uma entrevista dada no dia 20 de outubro de 1976, na sede do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, encontrada no livro (Outros Escritos, 2020, p.142): “Não sabia que havia um autor por trás de tudo. Lá pelas tantas eu descobri que era assim e disse: Isso eu também quero”. Foi naturalizada com 21 anos, mas Clarice sempre se considerou brasileira e nordestina. Se formou em direito, mas seu interesse sempre foi pela escrita. Trabalhou como tradutora, jornalista, escritora, contista e ensaísta. Como diz (Moser, 2017, p. 15) em sua obra Clarice, uma biografia: “Seu ar indecifrável fascinava e inquietava todos os que a encontravam”. Se casou com o diplomata Maury Gurgel no Rio e teve dois filhos, passando a viver de país em país. Cansada dessa vida instável de não pertencer à lugar nenhum e o amor pelo Brasil falando mais alto, em 1959, Clarice se separa de Maury e volta para o Brasil com os filhos, onde vive o resto de sua vida. Faleceu em 1977, um dia antes de completar 57 anos, por complicações de um câncer no ovário. Clarice deixou uma ampla coleção de suas obras, entre contos, novelas e romances, além de um grande exemplo de mulher forte, única e destemida. Em um ano em que estaria com 100 anos se estivesse viva, é um imenso prazer estudar, pesquisar e falar sobre ela. 2.1- O estilo único em sua narrativa de estranhamento Seu estilo literário foi comparado com alguns escritores que já usavam tais técnicas, como James Joyce e Virgínia Woolf, mas ela dizia nunca ter lido nada deles antes. Foi conhecer só depois de publicar seus primeiros livros. Clarice não gostava das comparações e disse que sempre evocou ela mesma desde sua primeira obra até a última, encontrada depois de sua morte. Como diz o pesquisador Moser, a garota cujas histórias nunca foram lineares e que esteve sempre muito menos interessada no aparato romanesco de trama e personagens do que no processo através do qual a escrita poderia alcançar a verdade interior. (Moser, 2017, p. 109) 19 Sua literatura foge dos rótulos, causa espanto, estranhamento. Não se encaixa nas convenções. Como diz a pesquisadora Nádia Battella Gotlib, A escrita já nasce aí de uma certa inquietação, explode subvertendo valores convencionais, com vistas a buscar um novo sentido. […] é a personagem, ora mais, ora menos consciente do seu papel; é a narradora solta, levemente dissimulada, ao mesmo tempo trágica, ao mesmo tempo irônica e com postura crítica; é a autora implícita, manifestando-se diante dessas todas, de modo ora mais direto, ora dissimulado. (Gotlib, 2013, p.184). Ela mesma sentia não pertencer ao mundo e isso é exteriorizado em suas obras. Sempre esteve muito à frente de sua época. Os temas de Clarice são psíquicos e humanos, as relações entre as personagens, os problemas nas relações familiares, os jogos enganosos e principalmente a condição social das mulheres, são assuntos de destaque em sua narrativa, deixando de lado o enredo e buscando o interior. Sua produção traz questões filosóficas, sociais e de existencialismo. As personagens femininas são fortes, autênticas, mesmo em meio ao machismo e totalitarismo da época, assim como a própria Clarice. Seu processo de construção textual é um misto de eulírico, metáfora e fluxo da consciência. Ela escrevia com profundidade. Em suas obras, o narrador é tão intrigante quanto a personagem, causando um desconforto ao leitor. Muito da interpretação está no silêncio do narrador, com fragmentos dos pensamentos das personagens. O entendimento se constrói nas entrelinhas. Estranho é aquilo que está de fora, que não pertence a um determinado grupo e suas regras, que não se encaixa. Mas são considerados estranho porque não compreendemos. A própria pessoa pode se considerar estranha por não se enquadrar e por não se compreender, como no caso de Clarice, tanto sua pessoa como suas obras. Estranha e estrangeira, ela não se adequava aos vários lugares onde viveu, não se sentia pertencer a lugar nenhum. Isso reflete em muitas histórias que ela escreveu. Ela torcia a compreensão do real, tornando sua escrita não linear. Não tem começo, meio e fim, a história simplesmente começa de um ponto ou acontecimento que a personagem 20 já estava vivendo, e assim segue com a história. Atemporal, sem riqueza de enredo, suas personagens não encontram seu lugar dentro de um círculo qualquer. 2.2- Por que Clarice escreve assim? Em sua relação com a escrita, Clarice disse em uma entrevista dada à TV Cultura em 1977, “Escrevo porque encontro nisso um prazer que não sei traduzir. Não sou pretenciosa. Escrevo para mim, para que eu sinta minha alma falando e cantando e as vezes chorando.” Seus dramas pessoais refletem na força de suas palavras: a perda da mãe ainda criança que lutava contra uma sífilis proveniente de um estupro cometido por soldados antes de chegar ao Brasil, o assassinato do avô no período da guerra, a perda do pai vítima de um erro médico durante uma cirurgia de rotina, todo esse sofrimento era absolvido pela menina Clarice. Em suas poucas entrevistas citadas na obra de Moser, ela relata, Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher da doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinadda e eu falhei. (Lispector, 1977, apud Moser, 2017, p. 45) Ela tinha um dom e um talento incrível junto com uma força de colocar para fora sua luta interior e os questionamentos de sua existência, que só poderiam resultar em uma explosão de palavras e sensações. Como ela mesma diz em uma passagem encontrada na obra (Clarice: uma vida que se conta), de Nádia Battella Gotlib, Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste. Nesta altura da crônica, define explicitamente a situação: Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como é. E uma espécie de solidão de não pertencer começou a me invadir como heras num muro. (Lispector,1971, apud Gotlib, 2013, p. 136). 21 Desde menina, Clarice sempre foi autêntica, com um talento para liderança e persuasão. Começou a escreverbem cedo e enviava suas histórias para concursos, mas nunca foi escolhida porque ela fugia dos padrões do “Era uma vez”. Clarice sempre externou o que trazia de mais íntimo em suas obras, com o compromisso de expressar a sua verdade impressa nas inquietações de sua alma. Seus escritos não devem ser entendidos e sim sentidos. Teve depressão por muito tempo e escrever era sua válvula de escape. Ela transformou tudo que era escuro e vazio dentro de si na arte de escrever. Como ela mesma relatou em seu leito de morte à sua amiga Olga Borelli, trecho encontrado no livro: “Clarice – uma vida que se conta”. Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: sou um objeto querido por Deus e ele gostou de ter me criado como eu gostei de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus se satisfaz. (Lispector, 1977, apud Gotlib, 2013, p. 601) Sua tendência à tristeza foi se intensificando com o passar do tempo. Já carregava a culpa de não ter conseguido salvar sua mãe da doença, que na sua cabeça, foi concebida só para isso. Depois veio a paixão proibida por seu grande amigo, Lúcio Cardoso. Mais tarde o casamento com o diplomata Maury Gurgel e as mudanças de país em país que em nada agradava Clarice o fato de estar em vários lugares e não pertencer a lugar nenhum. As coisas só pioraram quando ela deixou Maury em 1959 e voltou para o Brasil com os dois filhos. Mesmo trabalhando para uma conceituada revista na época, não lhe sobrava muito tempo para escrever seus livros, que era sua maior paixão. Passou por dificuldades financeiras e nesse período também teve problemas com seu filho Pedro, que foi desenvolvendo fortes crises de esquizofrenia. Depois de alguns anos, sua tendência à depressão se intensificou quando sofreu um acidente. Ela dormiu sobre o efeito de remédios com um cigarro aceso em seu quarto e este ficou destruído pelo fogo. Teve queimaduras em várias partes do corpo e quase perdeu uma de suas mãos. Em sua última entrevista à TV Cultura, em 1977 no programa Panorama Especial, é notório ver a depressão em seu olhar e durante a entrevista fumava sem parar. Nesse 22 período já lutava contra sua doença e já previa seu destino. Seu sotaque parece de estrangeiro, mas é problema de dicção, tinha a língua presa e não viu necessidade em cirurgia. Ela se considerava desde a adolescência uma pessoa caótica, intensa, totalmente fora da realidade da vida. Tinha muita dificuldade de se comunicar com os adultos, “todo adulto é triste e solitário”, preferia as crianças e os animais. Clarice não tinha nenhuma pretensão com suas histórias, não tinha a intensão de mudar o mundo, simplesmente escrevia, desabrochava. “Enquanto estou escrevendo estou vivendo”, disse. Também nunca se assumia como escritora, se considerava amadora, pois queria a liberdade de escrever quando tivesse vontade, às vezes produzindo muito, outras vezes pouco. Clarice se considerava tímida e ousada ao mesmo tempo, tinha opinião própria e corria atrás de puplicações para seus livros. Ela deu poucas entrevistas, não se sentia à vontade. E em uma delas, gravada em 20 de outubro de 1976, na sede do Museu da Imagem e do Som, no Rio, ela responde à Affonso Romano de Santanna: Eu elaboro muito inconscientemente. Às vezes pensam que eu não estou fazendo nada. Estou sentada numa cadeira e fico. Nem eu mesma sei que estou fazendo alguma coisa. De repente vem uma frase... (Lispector, 1976, apud Outros Escritos,2020, p.154) Era de poucas palavras, mas seu silêncio transmitia muito de si. Conseguia traduzir as emoções humanas. Transformava sua indignação com os fatos da vida em histórias, transmitindo a dor de viver. Ela se sentia vazia quando não estava escrevendo. Uma mulher de alma inquieta que deixava claro em suas obras, o choque entre expectativa e realidade da vida. Nessa mesma entrevista ela diz sobre seus escitos: Eu não releio. Eu enjoo. Quando é publicado já é como um livro morto, não quero mais saber dele. E quando leio, eu estranho, acho ruim, por isso não leio. Também não leio as traduções que fazem dos meus livros para não me irritar. (Lispector, 1976, apud Outros Escritos, 2020, p.157) Amigos mais próximos e colegas de trabalho diziam que era muito difícil lidar com ela. “Era assim que muitas pessoas a viam: estranha, misteriosa e difícil, um gênio místico 23 incognoscível, muito acima, e fora, do grosso da humanidade”, assim diz seu pesquisador e biógrafo (Moser, 2017, p. 382). Descobriu também na pintura, uma forma de aquietar a sua alma. Existe a literatura antes e depois de Clarice Lispector. Foi novidade na sua época com seu estilo único e ousado, mas demorou décadas para se tornar conhecida e aclamada. Uma mulher sensível que via as coisas de fora, em um olhar inaugural. Como se fosse uma criança que estivesse vendo pela primeira vez e aprendesse. Ela muda a sintonia dos sentidos, via com espanto e leva o leitor a enxergar assim. Para Clarice o amor é sufocante, sofredor e esperança é maldição. Sentimentos que são positivos para a maioria dos seres humanos, para ela é nostálgico e depressivo, motivos de inspiração. Escreve pela graça de escrever em um ato libertador. 2.3- Sua vida refletida em suas obras Sua história de vida influencia em suas obras. Através das palavras ela pode expressar sentimentos e emoções, como também tocar o corarão de quem lê. Falar de sensações e sentimentos é algo muito presente na vida humana, principalmente nos dias de hoje. Sua arte trás o íntimo do pensamento da mulher, embora também tenha personagens masculinos, seu enfoque é na mulher e com isso podemos compreender sua história de vida, pois ela transmite seus mais profundos sentimentos através da sua arte em escrever. Sua personalidade na infância foi claramente retratada na personagem Joana menina em Perto do Coração Selvagem, sua primeira obra. Como diz o pesquisador (Moser, 2017, p. 234), “a personagem principal, Joana, guarda uma notável semelhança com sua criadora: as mesmas circunstâncias familiares, a mesma personalidade obstinada, a mesma resistência às convenções”. Clarice tinha uma proximidade muito forte com os animais e tudo que era selvagem. 24 Também na infância, Clarice relembra no conto Felicidade Clandestina, uma situação que ocorreu com ela quando menina. Ela sempre gostou de ler, mas sua situação não permitia ter os livros em casa, dependia de empréstimos. Uma coleguinha, filha de um livreiro, vivia lhe prometendo emprestar, mas quando ia à sua casa buscar o livro, a coleguinha enrolava e não emprestava. “Olhando bem para meus olhos, disse- me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo”. (Lispector, 2020, p.8). Era o livro As reinações de Narizinho de Monteiro Lobato. A mãe da menina descobriu toda a tramoia e reprimiu a filha, dizendo que o livro sempre estivera ali. Emprestou o livro à Clarice e disse que podia ficar o tempo que quisesse com o livro: Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo. (Lispector, 2020, p. 10). O próprio ex marido, Maury Gurgel entendeu a identificação de Clarice com as personagens Joana e Lídia em Perto do coração selvagem. Ele faz essa comparação em uma carta sua para Clarice tentando reconciliação, trecho da carta encontrado na obra de Moser: Mas intuitivamente jamais deixei de acreditar que coexistissem em você, Clarice, Joana e Lídia. Rejeitei Joana porque o seu mundo me inquietava, ao invés dedar- lhe a mão. Aceitei, demais, o papel de Otávio e acabei me convencendo de que éramos incapazes de nos libertar por amor. Fui incapaz de desfazer a apreensão de Joana de se ligar a um homem sem lhe permitir que a aprisione. […]Lídia, ao contrário, e que também é uma faceta de Clarice, não tem medo do prazer e o aceita sem remorso. Perdoe-me, meu benzinho, de não ter sabido, embora sentisse difusamente a unidade de ambas, de não ter sabido, em dezesseis anos de casamento, realizar a reconciliação de ambas. Não ter sabido convencer Joana de que ela e Lídia eram, e são, a mesma pessoa em Clarice. (Moser, 2017, p.294) Clarice em sua adolescência, teve um fascínio por um professor, vivia fazendo expeculações sobre assuntos que não condiziam com as aulas. Ela insistia mesmo, contou sua irmã Tania a uma entrevistadora. Como conta (Moser, 2017, p.92), “O professor aparece em Perto do coração selvagem e em Os desastres de Sofia, a história 25 de uma selvagem e brilhante menina de nove anos que atormenta um professor que ela ama e despreza ao mesmo tempo”. No conto A legião estrangeira, título dado à uma coletânea de contos, a personagem Ofélia representa muito de sua infância: “A menina começa a visitar a vizinha, que tem um pintinho assustado, o pinto cheio de graça, coisa breve e amarela”, conta Moser, 2017, p.339. E também diz: A referência à sua mãe ausente não está longe. “Ele trocará todas as possibilidades de um mundo por: mãe. Mãe é: não morrer.” No conto que dá título ao livro, percebe-se que Clarice se identifica tanto com a inteligente e travessa Ofélia como o pintinho desamparado, que perdeu a mãe. (Moser, 2017, p. 340) Como em todas as suas obras, Uma aprendizagem e depois Água Viva são as que mais se aproximam de autobiográficas. A própria autora diz estar se humanizando e os livros refletem isso. Em Uma Aprendizagem, o nome de Clarice está escondido dentro do nome da personagem Lucrécia. Em Água Viva, Clarice o escreve quase como um diário, misturando prosa poética e metáforas. Como mostra em tais citações, Escrevo-te toda inteira e sinto um sabor em ser e o sabor-a-ti é abstrato como o instante. É também com o corpo todo que pinto os meus quadros e na tela fixo o incorpóreo, eu corpo a corpo comigo mesma. (Lispector, 2020, p. 8) As obras foram acompanhando a vida da autora. É notório e de fácil percepção para quem conhece sua história e suas obras. Em uma passagem de A maçã no escuro, o romance que Clarice escreveu quando vivia em Washington, fase em que ela já estava depressiva, fazendo uso de calmantes e com saudades do Brasil, ela descreve: Ah, disse ela com simplicidade, é assim: vamos dizer que uma pessoa estivesse gritando e então a outra punha um travesseiro na boca da outra para não se ouvir o grito. Pois quando eu tomo calmante, eu não ouço o meu grito, sei que estou gritando mas não ouço, é assim, disse ela ajeitando a saia. (Lispector, 2020, p.187) A loucura em A maçã no escuro é uma ferramenta em busca do conhecimento, não um meio de autodestruição. 26 Em uma entrevista na sede do Museu da Imagem e do Som, em 1976 no Rio de Janeiro, Clarice diz à entrevistadora Marina Colasanti sobre a personagem Macabéa de A hora da Estrela, encontrada na obra Outros Escritos: Mas existe a pessoa, eu vejo a pessoa, ela se comanda muito. Ela é nordestina e eu tinha que botar para fora um dia o Nordeste que eu vivi. Então estou fazendo, com muita preguiça, porque o que me interessa é anotar. Juntar é muito chato. (Lispector, 1976, apud Outros Escritos,2020, p.151) Sua vida sempre foi claramente relacionada com suas obras, desde a primeira até a última. Podemos ver essa evolução desde sua infância até sua morte. Todos os seus sofrimentos, suas buscas internas e seu estranhamento em relação ao mundo. Para Clarice, custava muito viver, era doloroso. Mas como ela mesma disse em uma crítica referente ao suicídio de Virgínia Woolf, a arte estava em aguentar até o final. Já próximo de sua morte, no ano de 1977, Clarice estava escrevendo alguns fragmentos que se tornariam Um sopro de Vida, estruturado e publicado postumamente por sua amiga Olga Borelli. Uma obra que também era uma prosa poética, relacionando muito com sua doença e seu fim. Como mostra o pesquisador: Em Um sopro de Vida tanto Ângela como o personagem masculino do Autor que Clarice interpõe entre ela própria e Ângela são Clarice Lispector, muito mais do que o foram suas criaturas anteriores. Mesmo num conjunto de obra com tal riqueza autobiográfica como o de Clarice, nenhum personagem, nem mesmo Martim, Joana ou G.H., jamais foi tão ousada e transparente Clarice. (Moser, 2017, p.433) Mais à frente no mesmo capítulo Moser diz, Os dois personagens entram num diálogo encantatório que se estende por todo livro, mudando nomes, trocando papéis e embarcando em especulações místicas que ardem com intensidade feroz à medida que a autora, neste caso a “verdadeira” autora, Clarice Lispector, sente a aproximação da morte. (Moser, 2017, p.436) Sua amiga Olga Borelli, que organizou os fragmentos deixados por Clarice e depois o publicou, também compreendeu essa conexão. Ela omitiu uma frase dita por um dos personagens na época para a família não ficar muito sofrida, como vemos em um trecho na obra de Moser: 27 Eu pedi a Deus que desse a Ângela um câncer e que ela não pudesse se livrar dele. Porque a Ângela não tem coragem de se suicidar. Ela precisa, porque ela diz “Deus não mata ninguém. É a pessoa que se morre”. Clarice dizia também que cada pessoa escolhe a maneira de morrer. (Moser, 2017, p.438) Clarice Lispector foi considerada juntamente com Guimarães Rosa, a escritora de maior destaque do século. Foi alvo de muitas críticas, tanto positivas quanto negativas, atraindo cada vez mais o leitor, desde sua época até os dias de hoje. Leitor esse, que como a própria Clarice diz, não precisa de nenhuma inteligência superior para compreender suas obras, apenas sentir, se conectar. Esses são assuntos para o próximo capítulo. III- CLARICE LISPECTOR E A CRÍTICA 3.1- Como a crítica a recebeu na época Clarice foi considerada uma escritora inqualificável no estilo e na forma. “Não escrevo para agradar ninguém”, disse ela várias vezes quando reclamavam de não entender o que ela escrevia em suas obras. Um jornal em Pernambuco rejeitou todos os seus contos enviados quando menina e mesmo assim, nunca se importou com isso. Mesmo estudando direito, sempre quis escrever e não atuou só como escritora, mas também como jornalista escrevendo artigos de opinião. Ela era uma artista genial, difícil de se enquadrar nos parâmetros normais. Como diz o crítico Tristão de Athayde, que publicou um artigo sobre Clarice na Folha de São Paulo, 12 de janeiro de 1978, encontrado no livro de (Gotlib, 2013, p.23), Clarice via demais, e o sofrimento lhe brotava da crispação de suas retinas expostas às agulhas de luz que saltam do coração selvagem da vida. […] Vidente e visionária, Clarice era fustigada, crucificada pelo excesso de estímulos, 28 conscientes e inconscientes, que tinha de domar. (Athayde, 1978, apud Gotlib, 2013) Os temas que ela abordava eram sobre mulheres, sobre o cotidiano, temas simples, mas escritos de uma maneira que ia além, com uma escrita que causava estranheza no estilo e na forma. Sua intenção não era transmitir fatos e sim, sensações. Como a própria Clarice disse sobre escrever e sobre os críticos em uma entrevista, encontrada no livro “Outros Escritos”: Escrever, e falo de escrever de verdade, é completamente mágico. As palavras vêm de lugares tão distantes dentro de mim que parecem ter sido pensadas por desconhecidos, e não por mim mesma. Os críticos consideram que escrevo o que chamam de “realismo mágico”. E um crítico, não me lembro de qual país da AméricaLatina, escreveu sobre mim: ela não é escritora, é uma bruxa. (Lispector, apud Outros Escritos, 2020, p.126) Ela era um enigma e se tornou um mito, mal dando atenção às críticas em suas entrevistas. Até mesmo alguns grupos de brasileiros cultos se viram desconcertados pelo ardor que ela inspirava, sem serem capazes de compreender o que ela escrevia. O mistério em torno da vida e das obras de Clarice foi tema de inúmeras análises, pesquisas e estudos entre críticos e leitores. Como pode-se observar no comentário do crítico Antonio Callado: Clarice, que, ao isolar-se voluntariamente, cercava-se de uma aura de mistério, permanecendo intocável e favorecendo, quem sabe, certas mitificações: belíssima, sobretudo na mocidade; em qualquer época, sedutoramente atraente; antissocial, esquisita, complicada, difícil, mística, bruxa... (Callado, apud Gotlib, 2013, p.22) Clarice sempre teve dificuldades em absorver as críticas, mesmo as elogiosas. Como ela responde à Marina Colasanti em uma entrevista, encontrada no livro “Outros Escritos”. Quando eu estou trabalhando, uma crítica sobre mim interfere na minha vida íntima, então eu paro de escrever para esquecer a crítica. Inclusive as elogiosas, pois eu cultivo muito a humildade. De modo que, às vezes, me sentia quase agredida com os elogios. (Lispector, 1976, apud Outros Escritos, 2020, p.170) 29 O professor e crítico literário mais famoso desde a época de Clarice, Antônio Cândido foi o seu primeiro crítico. Ele escreveu sobre Perto do Coração Selvagem na Folha de São Paulo, em 16 de julho de 1944: “Em relação a Perto do Coração Selvagem, se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração, permanece o fato de que, dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade.” A escritora sempre teve dificuldades com as publicações de seus livros, desde os primeiros contos quando criança, como ela mesma dizia, suas histórias eram sensações enquanto a das outras crianças começavam com Era uma vez. Como lembra o jornalista Paulo Francis em um depoimento à imprensa logo após a morte de Clarice, Tinha fama, sim, mas entre intelectuais e escritores. Os editores a evitavam, como a praga, o que se devia ao caráter moderno da sua literatura, que não seguia o realismo socialista e representava a realidade em relances, indireta e indutivamente. (Francis, 1977, apud Gotlib, 2013, p.383) Sempre foi muito influenciada e ajudada por um grupo de amigos escritores, como Lúcio Cardoso, Fernando Sabino, Mário de Andrade, Érico Veríssimo, Ledo Ivo, entre outros, mas no momento de encontrar uma editora, era sempre um problema. Álvaro Lins, da editora José Olympio, a princípio rejeitou o seu primeiro romance, como a própria Clarice conta, Eu man...eu dei o livro, telefonei para ele, perguntei se ele...se valia a pena publicar. Ele disse: Telefone daqui a uma semana. E eu telefonei e ele disse: Olha, não entendi seu livro não, viu? Fala com o Otto Maria Carpeaux, é capaz de ele entender. Eu não falei com ninguém e publiquei meu livro que foi rejeitado pela José Olympio. (Lispector, apud Gotlib, 2013, p.200) E não ficou só por isso. Clarice foi alvo de Álvaro Lins em muitos de seus artigos, criticando sua obra de estreia, Perto do Coração Selvagem. Ela não reagia bem à tais críticas e ficava mal, como pode-se ver em uma declaração sua para a irmã em uma carta: […] as críticas, de um modo geral, não me fazem bem: a do Álvaro Lins me abateu e isso foi bom de certo modo. Escrevi para ele dizendo que não conhecia Joyce 30 nem Virgínia Woolf nem Proust quando fiz o livro, porque o diabo do homem só faltou me chamar de representante comercial deles. (Lispector, apud Gotlib, 2013, p.204) Em compensação, seu amigo e também escritor, Lúcio Cardoso defende o livro das críticas negativas, Gosto do ar mal arranjado, até mesmo displicente com que está armado. Parece- me uma das qualidades do livro este ar espontâneo e vivo, esta falta de jeito e dos segredos do métier, que dá a Perto do Coração Selvagem uma impressão de coisa estranha e agreste. Cardoso, 1946, apud Gotlib, 2013, p.211) Fernando Sabino escreveu em uma carta direcionada à Clarice, em 6 de julho de 1946, mostrando sua admiração e preocupação com a escritora: Não concordo com você quando diz que faz arte apenas porque “tem um temperamento infeliz e doidinho”. Tenho uma grande, uma enorme esperança em você e já te disse que você avançou na frente de nós todos, passou pela janela, na frente deles todos. Apenas desejo intensamente que você não avance demais, para não cair do outro lado. Você tem que ser equilibrista até o fim da vida. (Sabino, 1946, apud Gotlib, 2013, p.286) Mais tarde, Lúcio Cardoso fala sobre as mais recentes obras de Clarice, A cidade sitiada, e A maçã no escuro, obras que a escritora demorou anos para conseguir publicação, sendo enrolada por algumas editoras. Seus livros são muros que circundam perpetuamente uma cidade indefesa – de fora, assistimos ao resplendor da sua cólera. Mas nesse mundo, o romancista não penetra: a cidade de Clarice, como essa maçã que brilha melhor no escuro, arde sozinha: dentro dela não há ninguém. (Cardoso, apud Gotlib, 2013, p.299) Clarice era a mais rara personalidade literária no mundo das letras, algo de excepcional, dotada de uma estonteante riqueza verbal. Entre esse misto de críticas tanto positivas quanto negativas, no decorrer de toda sua vida de escritora, Clarice Lispector foi crescendo. Se tornou alvo de curiosidade e 31 mistério. Uns foram cativados, outros se afastavam, e assim, um ícone da literatura brasileira foi surgindo. 3.2- A relação do leitor com suas obras Ler as obras de Clarice realmente não é uma tarefa fácil. Suas histórias não lineares e sem a composição de um enredo tradicional, exige total concentração do leitor, do começo ao fim. E isso torna a leitura um pouco massante. Mas o fato de você aprender a olhar para dentro de si através de seus personagens, expandir os horizontes e enxergar as coisas com outros olhos, é muito prazeroso e enriquecedor. O leitor que lê suas histórias do começo ao fim, se vê perdido em uma busca incessante de interpretação, uma instabilidade linguística que impedem uma leitura rápida e fluida, querendo uma compreensão imediata e que muitas vezes não consegue. Os livros de Clarice devem ser sentidos na alma, o leitor deve ler de coração e mente abertas. O leitor que aprecia as obras de Clarice, se torna mais íntimo dela, compreendendo-a e admirando-a em cada palavra escrita. Segundo Nádia Battella Gotlib, Eis o que a literatura de Clarice nos traz: em meio à banalidade do cotidiano, a ruptura do tempo histórico, mergulhando numa outra realidade que se eterniza e se repete no gosto doce e amargo das coisas de que somos feitos. Essa experiência de passeio pelo jardim ou de leitura dessa Clarice - realça a inevitável convivência com a difícil e paradoxal realidade da condição humana. (Gotlib, 2013, p.70) O grande leitor de Clarice entende como ela se tornou um mito, absorve toda a sua história de vida, desde sua infância, todo sofrimento e perdas. Compreende que ela era uma mulher intensa que não cabia dentro de si, causando uma erupção de palavras. Ela dá voz aos seus pensamentos através de suas famosas e enigmáticas personagens. Seu pensamento é um turbilhão e as palavras precisam sair de si em um atropelamento de ideias desconexas que deixam o leitor confuso e perdido. 32 É através do estilo de fluxo da consciência e de ideias epifânicas de suas personagens, muitas vezes intrometido nas falas do narrador, que o não dito faz o leitor mergulhar de cabeça na leitura e simplesmente sentir. Para muitos ainda hoje esse tipo de leitura pode ser um choque. Muitas coisas ficam sem dizer, sem respostase cabe ao leitor construir esse sentido. Não é uma leitura pronta, suas obras devem ser contempladas. O que o leitor encontra é o vislumbre de uma dor. Seus textos sozinhos não transmitem nada, não tem um enredo elaborado por isso suas primeiras histórias foram classificadas como inqualificadas para publicação na época. De acordo com a pesquisadora, Essa seria uma das causas de certo estranhamento que o livro pode causar, numa primeira leitura. Sua estrutura, basicamente alegórica, propicia o trabalho de decifração para a constatação das equivalências. Mas surge daí uma narrativa estranha, às vezes desfocada, descentrada, tal como a visão da própria personagem, segundo a narradora. (Gotlib, 2013, p.322) Depende do leitor com sua bagagem de vida e literária, produzir significados e compreensão à suas obras. É no não dito que a palavra escondida se manifesta abrindo possibilidades diferentes de significados. Clarice tinha problemas com o mundo e consigo mesma. Ela estranhava e enxergava aquilo que era invisível no cotidiano da maioria das pessoas. Uma mulher sensível. Através desse estranhamento, ela olhava a si mesma e ao mundo a partir de outras perspectivas, como se estivesse observando pela primeira vez. Muitos leitores que tem um primeiro contato com a escrita de Clarice pode sofrer um impacto e se afastar. É normal esse estranhamento, mas depois que se conhece essa grande mulher, sua história, seus conflitos internos e externos, sua capacidade única de criação, o leitor aprende a criar novos sentidos para coisas que eram invisíveis aos seus olhos. Como a autora mesmo dizia, não precisa ser inteligente e culto para entender seus livros, apenas ser sensível e conectar. Suas tramas são mínimas, mas cada detalhe é explorado intimamente. Suas personagens são transformadoras e fortes, 33 demonstradas através de cenas banais. Como ela mesma conta em uma entrevista à TV Cultura: Por exemplo, o meu livro A paixão segundo G.H., um professor de português do Pedro II veio lá em casa e disse que leu quatro vezes o livro e não sabe do que se trata. No dia seguinte uma jovem de dezessete anos veio me visitar e disse que esse livro é o livro de cabeceira dela. (Lispector, 1977, apud Moser, 2017, p.451) O estranhamento convida a despertar, a abrir novos horizontes, a enxergar as coisas de outras perspectivas. Clarice mexe com zonas sombrias, a mente humana. Ela vai aos lugares mais profundos da complexidade das pessoas. Essa percepção tão aguçada dos detalhes da vida pode ser uma das causas de seu sofrimento interno e sua constante busca para se encontar e se situar em relação ao mundo. Ela provoca o leitor, traz confusão, reflexão, transformação. Alguns correm desse tipo de leitura, outras já se identificam tanto e querem desmitificar. Clarice dizia que essa mitificação toda a tornava um monstro sagrado, deixando-a infeliz. As pessoas, principalmente as mais próximas, a temiam, e isso fazia com que ela temesse a si própria. As pessoas se afastavam e ela ficava sozinha. Alguns diziam, que mulher incrível, mas sua narrativa é estranha. Tudo o que é estranho causa curiosidade, fascínio, mas também repulsa, desconforto. Há o medo de se envolver com o que é estranho e arrebatador. Talvés por esses motivos, Clarice tenha se tornado um ícone. O leitor que consegue entrar em suas obras, passa a reconhecer coisas com olhar diferente. Adquire um alargamento do seu conhecimento interno, para compreender o outro, se colocar no lugar do outro. A maioria dos contos é narrado no pretérito imperfeito, causando uma certa nostalgia no leitor. Alguns personagens nem tem nomes, representando qualquer um. Clarice tinha um estranhamento em relação ao mundo e ela passa isso à seus personagens. Suas obras mesmo hoje após 44 anos de sua morte, ainda causam fascínio nos novos leitores. Essa característica intimista e misteriosa de Clarice promove um elo entre leitor e escritora, como se o eu clariciano introduzisse na essência de suas personagens, comunicando-se também com a interioridade de quem a lê. 34 No Brasil de hoje seu rosto sedutor adorna selos postais. Seu nome empresta classe a condomínios de luxo. Suas obras, muitas vezes rejeitadas como herméticas ou incompreensíveis quando ela era viva, são vendidas em distribuidores automáticos em estações de metrô. Na internet fervilham centenas de milhares de fãs, e é raro passar um mês sem que surja um livro examinando um ou outro aspecto de sua vida e obra. (Moser, 2017, p.14) No ano em que a escritora completaria cem anos de vida, muitas homenagens aconteceram. Documentários, nova publicação de suas obras em coleção especial, brindes entre clubes de leitura homenageando a escritora e várias outras coisas. Clarice passou por tanta luta com as publicações, teve tantas dificuldades financeiras, já que não recebia quase nada com seus livros. É uma pena que essa glória toda que ela tem hoje, não aconteceu em vida. 35 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em minha pesquisa sempre pretendi falar sobre um assunto que gosto, um escritor que amo. Em um ano do centenário de Clarice Lispector, não poderia ser mais propício. Resolvi estudar sobre a escritora que passei a admirar a partir de uma obra lida, “A Hora da Estrela”, mesmo sem conhecer nada sobre sua vida. Mas o que falar? Que problemática encontrar em uma escritora que se tornou um ícone? No decorrer do meu fichamento, percebi quão conflituosa Clarice é, rendendo assuntos desde sua estreia até os dias de hoje. Decidi falar sobre sua escrita peculiar, seus métodos narrativos que causam estranhamento nos leitores. Um estranhamento que atrai, mas também afasta. Clarice Lispector tem uma forma diferente de ver o mundo. Toda sua história de vida reflete em suas obras. Cada livro, cada personagem representa um pedacinho da sua vida, seja em romances, contos e até mesmo nos livros infantis. Ela é sensitiva, observadora, analítica e enxerga a dor, o sofrimento como um processo de criação. É através de suas obras que Clarice exterioriza seus sentimentos. Depois de tantas biografias lidas, suas obras, documentários, artigos e outras pesquisas, pensei que fosse me cansar sobre o assunto, que fosse enjoar de estudar sobre Clarice, e pelo contrário, só me trouxe mais admiração por essa mulher. Só posso concluir, e com experiência própria, que Clarice convida o leitor a mergulhar de cabeça em uma percepção interior, em enxergar as coisas de outras perspectivas, coisas que não estamos habituados a fazer. Vivemos em uma sociedade líquida, onde tudo é descartado, onde tudo é correria. E com isso, muitos detalhes em nossas vidas que realmente deveriam importar, nos passam despercebidos. Inclusive o nosso próprio conhecimento, o nosso interior. Conhecendo melhor nosso interior, é muito mais fácil desenvolvermos a empatia, o ato de se colocar no lugar dos outros, e é isso que a leitura de Clarice oferece. Como a escritora mesmo disse algumas vezes, não precisa ser intelectual para entender sua escrita, basta ter a capacidade de sentir. A relação entre o leitor e suas 36 obras é de afinidade, criando um elo forte capaz de atravessar gerações. Clarice é inesquecível. A leitura se torna muito mais prazerosa e envolvente quando o leitor conhece sua história de vida, que não foi nem um pouco fácil, e entende sua capacidade de transformar em palavras toda a dor e todo o sofrimento que é viver. Ela tem um dom incrível de transformar sentimentos em palavras. Eu termino meu trabalho com lágrimas nos olhos e a sensação de dever cumprido. Quero buscar mais sobre Clarice, sempre reler suas obras e poder conversar muito sobre ela. REFERÊNCIAS CÂNDIDO, Antônio. 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