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© Hexag Sistema de Ensino, 2018 Direitos desta edição: Hexag Sistema de Ensino, São Paulo, 2019 Todos os direitos reservados. Autor Lucas Limberti Diretor geral Herlan Fellini Coordenador geral Raphael de Souza Motta Responsabilidade editorial, programação visual, revisão e pesquisa iconográfica Hexag Sistema de Ensino Diretor editorial Pedro Tadeu Batista Editoração eletrônica Arthur Tahan Miguel Torres Bruno Alves Oliveira Cruz Claudio Guilherme da Silva Eder Carlos Bastos de Lima Fernando Cruz Botelho de Souza Matheus Franco da Silveira Raphael de Souza Motta Raphael Campos Silva Projeto gráfico e capa Raphael Campos Silva Foto da capa pixabay (http://pixabay.com) Impressão e acabamento Meta Solutions Todas as citações de textos contidas neste livro didático estão de acordo com a legislação, tendo por fim único e exclusivo o ensino. Caso exista algum texto, a respeito do qual seja necessária a inclusão de informação adicional, ficamos à disposição para o contato pertinente. Do mesmo modo, fizemos todos os esforços para identificar e localizar os titulares dos direitos sobre as imagens publicadas e estamos à disposição para suprir eventual omissão de crédito em futuras edições. O material de publicidade e propaganda reproduzido nesta obra é usado apenas para fins didáticos, não representando qual- quer tipo de recomendação de produtos ou empresas por parte do(s) autor(es) e da editora. 2019 Todos os direitos reservados para Hexag Sistema de Ensino. Rua Luís Góis, 853 – Mirandópolis – São Paulo – SP CEP: 04043-300 Telefone: (11) 3259-5005 www.hexag.com.br contato@hexag.com.br PREFÁCIO Lista de obras da UFU explora pluralidade de gêneros Universidade Federal de Uberlândia cobra literatura internacional em seu vestibular A Literatura ganha um peso especial no vestibular da Universidade Federal de Uberlândia com oito obras que vão da poesia ao romance passando pelo teatro e pelo conto. Esta pluralidade de gêneros requer uma atenção especial do vestibulando no que diz respeito a entender como cada tipo de texto se comporta esteticamente. Um outro apontamento de atenção se dá no caráter internacional da escolha das obras, que vai de um escritor tcheco em língua alemã – Franz Kafka –, passando pelos clássicos de vários tempos da Literatura Brasileira – Machado de Assis e Clarice Lispector –, até chegar na literatura lusófona do moçambicano Mia Couto. A discussão sobre a condição humana pormenorizada pelo meio e pelo sistema aparece em “A metamorfo- se”, de Franz Kafka, em que o personagem principal, Gregor Samsa, acorda transformado em um inseto. Uma obra que revela o quão diminuta é a vida de grande parcela da população que vive a mercê da sociedade, sobretudo no que diz respeito ao lugar do trabalho. Uma escolha interessante da UFU é a obra “Destino: poesia”, um conjunto de poemas dos chamados “mar- ginais” que Italo Moriconi escolheu e dá um panorama interessante do que foi este momento transformador da poesia brasileira, com poetas como Wally Salomão, Cacaso, Ana Cristina César e Paulo Leminski. Na sequência, surgem alguns dos contos da obra “Felicidade clandestina”, da misteriosa Clarice Lispector. Escritos recheados de um olhar crítico e singelo para a condição da mulher a partir de um revelador mergulho em sua geografia íntima. Tal qual Clarice Lispector, surge na terceira geração modernista a figura do genial escritor João Cabral de Melo Neto, com uma das suas obras mais conhecidas, “Morte e vida severina”. Uma poesia rígida e forte na dicção existencial do sertão, na trajetória de Severino (“Severinos”), do interior ao litoral. A literatura contemporânea também está representada na lista pela figura de Cristovão Tezza, com sua obra “O filho eterno”. O autor discute a relação com seu filho, que possui necessidades especiais. As dificuldades e belezas dessa biografia tem a peculiaridade de serem narradas em terceira pessoa. “O santo e a porca”, de Ariano Suassuna, surge na lista da UFU com o gênero dramático, ou seja, um texto escrito para ser encenado no teatro, discutindo e ironizando a avareza humana. Machado de Assis – o bruxo do Cosme Velho – não poderia ficar de fora da lista da UFU, aliás, qualquer lista de vestibular que se preze terá ali elencada alguma obra de um dos mais geniais escritores da literatura mundial. No caso, “Quincas Borba”, seu segundo romance realista, conta a história de Rubião, que irá vivenciar as premissas do famoso filósofo louco, Quincas Borba, que, como é de conhecimento de todos, aparece já na obra anterior de 1881, “Memórias póstumas de Brás Cubas“. Encerrando o conjunto de oito obras, surge “Terra sonâmbula”, que traz a figura de grande destaque da literatura lusófona africana, o moçambicano Mia Couto. Um escritor contemporâneo que se destaca por retratar as mazelas de seu povo, mesclando as lendas míticas e perspectivas culturais com uma linguagem inventiva, cheia de neologismos, bem ao estilo do brasileiro Guimarães Rosa. Como ele gosta de afirmar, é um leitor assíduo e assumidamente influenciado pela obra roseana. Seguindo as orientações e as análises propostas neste volume especial do “Entre Aspas”, tenho certeza de que os estudantes darão conta de entender o processo constitutivo desta lista tão plural e potente. Boas leitura e análise! Lucas Limberti SUMÁRIO ANÁLISE DE OBRAS LITERÁRIAS ENTRE ASPAS Obra 1: A metamorfose 7 Obra 2: Destino: poesia 19 Obra 3: Felicidade clandestina 37 Obra 4: Morte e vida severina 51 Obra 5: O filho eterno 61 Obra 6: O santo e a Porca 71 Obra 7: Quincas Borba 79 Obra 8: Terra sonâmbula 91 0 1 A metamorfose Franz Kafka L C ENTRE ASPAS 0 1 A metamorfose Franz Kafka L C ENTRE ASPAS 9 Franz KaFKa “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós” “Precisamos de livros que nos afetem como um desastre, que nos angustiem profundamente, como a morte de alguém que amamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para florestas distantes de todos, como um suicídio. Um livro tem de ser o machado para o mar congelado dentro de nós.” (Franz Kafka) Franz Kafka nasceu em Praga, na época do Império Austro-húngaro, atual República Tcheca, no dia 3 de julho de 1883. Filho de Hermann Kafka, rico comerciante, de família judia, e de Julie Kafka. Cresceu sob a influência das culturas judaica, tcheca e alemã. Já na adolescência, revela-se socialista e ateu. Estudou Direito, em Praga, concluindo o curso em 1906. Trabalhou numa companhia de seguro e dedicou-se à literatura. Intimidado pela educação severa recebida do pai, constitui-se como um sujeito isolado e rebelde, comportamento característico que marcou profundamente sua obra. Fez parte da famigerada Escola de Praga e participou de reuniões com grupos anarquistas. Em 1917, se viu obrigado a afastar-se do trabalho devido a uma tuberculose. Escreveu em alemão toda a sua obra, sendo que a maior parte foi publicada postumamente. Seu estilo é marcado pelo realismo, pela crueza e pelo detalhamento com que descreve situações incomuns, como na obra O processo (1925), cujo personagem principal é preso, julgado e executado por um crime que desconhece. Em seus livros, é constante o confronto entre os personagens e o poder das instituições, demonstrando a impotência e a fragilidade do ser humano. Escreveu ainda A metamorfose (1916) e O castelo (1926). Engajou-se no movimento sionista. A relação perturbada com seu pai rendeu inspiração para escrever Carta ao pai. O texto, postumamente publicado, reflete – às vezes de forma exagerada – a relação entre pai e filho, em que este assume uma posição de fracasso perante aquele. 10 Franz Kafka, gravura de Jan Hladík (1978) Estátua de Kafka, em Praga Kafka escreveu A metamorfose em 21 dias (en- tre 17 de novembro e 7 de dezembro de 1912). Quan- do apresentou o primeiro capítulo da obra aos seus amigos, sua leitura foi primeiramente recebida com chacota e risos. Porém, Max Brod enxergou a quali- dade daobra e procurou alguém que pudesse editar a história Por meio de imensa angústia, Kafka queria fa- zer com que o leitor percebesse em suas obras o que estava se passando no mundo, queria fazê-lo “acordar com uma pancada na cabeça”, como diz em uma carta de 1904. Franz Kafka morreu na Áustria, em Klosterneu- burg, no dia 3 de junho de 1924. a metamorFose Estrutura em três partes A obra A metamorfose é dividida em: § Primeira parte: acompanhamos um Gregor Samsa – o protagonista da história – recém- -metamorfoseado e observamos a maneira como é recebido por sua família em sua nova forma. § Segunda parte: observamos o cotidiano de um Gregor rejeitado e isolado. § Terceira parte: acompanhamos o fim de um Gregor fraco e psicologicamente abalado. Personagens § Gregor Samsa: um caixeiro-viajante que não tem muitos amigos e trabalha ininterrupta- mente. Pressionado pelo emprego, apenas se 11 mantém no cargo porque é o único que pode sustentar a família. No início, transforma-se num inseto monstruoso e, por conta disso, pas- sa por diversos problemas, como rejeição de sua família, localização no mundo e perda do senso de humanidade. § Grete Samsa: é irmã de Gregor, uma jovem dócil e que não sofre por preconceitos. É a úni- ca que tem uma relação direta com ele, mesmo após sua transformação. Adorava violino e toca- va muito bem, mas a família não tinha dinheiro para pagar seus estudos. Durante a metamorfo- se, tem um emprego de vendedora. § Sr. Samsa: pai de Gregor. Recusava e odiava seu filho em forma de inseto. Era muito precon- ceituoso e não trabalhava, pois tinha problemas na coluna. § Sra. Ana: mãe de Gregor, tinha nojo de seu fi- lho em forma de inseto, chegou a desmaiar, mas ainda o amava. § Os três inquilinos: alugam um quarto na casa dos Samsa, após a transformação de Gregor. § Gerente do escritório: chantageava Gregor por causa da dívida da família, obrigando-o a trabalhar desesperadamente. Foco narrativo A metamorfose é narrada por um narrador onis- ciente (heterodiegético), a partir da perspectiva do per- sonagem principal. Essa ligação do narrador ao prota- gonista perdura até o momento da morte de Samsa. Troca de instância – neste momento da mor- te do personagem principal, vale uma atenção especial à mudança de instância, quando o narrador se des- prende de Gregor Samsa e se projeta na descrição, cujo enfoque passa a ser sua família. Tempo e espaço O tempo da narrativa é cronológico, ou seja, os fatos estão dispostos em ordem de acontecimento. O quarto do protagonista é um espaço fundamental da narrativa, grande parte da história se passa neste espa- ço, pois é lá, afinal, que ele passa a maior parte de seu tempo depois da metamorfose. Todavia, não é esclare- cido em que época a história se passa, pois datas nun- ca são especificadas no decorrer da obra. A transição do tempo é exposta ao leitor através de horas e dias. 12 Enredo Gregor Samsa é um caixeiro-viajante que não gosta do seu trabalho e tão pouco de seu patrão. Po- rém, uma dívida da família o obriga a manter o tra- balho e sustentar seus pais e a sua irmã caçula. Até que um dia, numa manhã, Gregor acorda atrasado para pegar o trem e se vê metamorfoseado em um inseto gigante. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que pa- recia revestido de metal. Suas diversas pernas, compa- radas com o resto do corpo, eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente perante seus olhos. Que me aconteceu? – pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, en- tre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotogra- fia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia! Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado – ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este de- lírio? – cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara. Sua preocupação inicial não é o fato de ter se transformado em um inseto repugnante, mas sim de estar atrasado para o trabalho e não conseguir sair da cama devido a sua nova forma. A sua luta para levantar é angustiante e se torna ainda pior quando o gerente da firma dirige-se até a sua casa por conta do atraso. Na sequência, ocorre a luta de Gregor para acalmar o gerente e a sua família, enquanto tenta le- vantar da cama e abrir a porta do quarto. A preocupa- ção de sua família mistura considerações e opiniões sobre a sua saúde e uma tensão com a ameaça de Gregor perder o emprego, uma vez que havia ali a pre- sença do gerente. O trágico e irônico da situação é que Gregor, mesmo na condição de um inseto gigante, não se pre- ocupa tanto com o que se transformou, contudo queria convencer o gerente de que estava tudo bem, preocu- pava-se com seu emprego. Ele tenta convencer a todos que aquilo era apenas um contratempo, mas que agora já está pronto para ir ao trabalho. Nesse ínterim, sua voz se transforma em ruídos. Gregor Samsa fica sem comunicação, a família fica ainda mais preocupada e chama um médico e um marceneiro para destrancar o quarto. Antes mesmo da chegada da ajuda, Gregor consegue abrir a porta e vai logo de encontro ao gerente para dar uma expli- cação sobre o seu atraso sem se importar com a sua estranha aparência. A visão de Gregor se destaca e assusta a todos, sua mãe quase desmaia e o gerente foge vagarosa- mente. O único que toma atitude é seu pai, que, por meio de uma bengala que sacudia, expulsa Gregor de volta para o quarto. A vida de Gregor passa a ser no quarto, sua irmã o alimenta e limpa o cômodo, pelo menos por algum tempo. 13 No início, fala sobre ele ou a situação financeira, tema este que o preocupa muito. Ele se acalma apenas quando descobre que o pai tem ainda alguma reserva de dinheiro. Toda a família que antes era sustentada por Gregor começa a trabalhar. Passado o tempo, Gregor aprende a andar me- lhor com as suas novas pernas e começa a ziguezague- ar pelo quarto, andar pelas paredes e pelo teto (esta passa a ser uma de suas atividades prediletas). Sua irmã, Grete Samsa, percebe, pois, por mais que ele fi- que escondido, quando ela entra no quarto, consegue perceber as andanças do irmão, por conta do rastro que ele deixa no caminho. Grete resolve retirar os móveis do quarto para que ele possa andar mais livremente, porém, como os móveis são pesados, ela precisa do auxílio de sua mãe. Gregor fica ansioso com a movimentação no quarto, uma vez que a retirada dos móveis significava acabar com o que restava de humanidade em sua vida. Quando Gregor tenta intervir, algo tenso se desenrola, a sua mãe fica chocada e desmaia com a visão, já que ainda não havia visto seu filho após a metamorfose. O pai de Gregor chega em casa e vai pra cima de Gregor para o fazer voltar ao quarto diante daquela cena. Gregor retorna ao quarto, ferido com uma maçã alojada nas suas costas. Com poucos recursos financei- ros, a família decide alugar um dos quartos. Três inqui- linos começam a morar na casa e ocupar o ambiente. Certo dia, os inquilinos escutam a irmãde Gregor pra- ticando violino na cozinha e pedem para ela tocar na sala de estar. Nesse mesmo dia, a porta do quarto de Gregor ficou aberta e, atraído pela música, ele caminha para a sala de estar, onde os inquilinos o avistam. Os inquilinos rompem o contrato de aluguel e ameaçam processar a família. A irmã de Gregor, que até então tentava protegê-lo, passa também a atacá- -lo e dá a entender que a família pensa em se livrar dele. Na sequência, confirma-se o trágico: Gregor morre de inanição. O que aparentemente seria algo pesado na nar- rativa, no que diz respeito à ideia do falecimento do personagem principal, a morte de Gregor representa uma libertação para todos, principalmente para ele mesmo, pois é esquecido. Todavia, uma outra perspec- tiva pode ser adotada no sentido de que a verdadeira transformação ocorrerá não com ele, mas com os ou- tros. O pai do narrador sai da completa apatia para a atividade, a irmã sai da solidão para o convívio, a família (pai, mãe e filha), antes presa ao escuro do lar, sai para o sol, para a vida, para um futuro que promete felicidade. Por mais que um sujeito imagine ser possível viver sozinho, mesmo que ele seja esquecido, seus atos produzirão efeitos nos outros. Essa transcendência do eu para o outro pode ganhar sentidos filosóficos, reli- giosos e psicológicos. Análise: o viés metamorfósico de Franz Kafka A transformação da lagarta – uma criatura ras- tejante – em borboleta – um ser que ganha os céus em liberdade – é representada alegoricamente pelo mito grego de Psique, cuja história representa a purificação da criatura que, após sofrer os mais penosos acintes, ganha a imortalidade da alma. Nesta obra, Franz Kafka inverte o significado dessa transformação. O protagonista de seu conto, Gregor Samsa, é um trabalhador explorado que labuta por endividamento, portanto, um ser humilhado que certa manhã vê-se metamorfoseado num inseto raste- jante e repugnante. De uma vida mesquinha de caixeiro-viajante, Gregor Samsa passa a viver a angústia ante sua pró- pria existência. Rejeitado pela família Samsa, leva a vida enclausurado no seu quarto, arrastando-se pelo chão; subindo pelas paredes; escondendo-se dos de- mais embaixo do sofá; alimentando-se de comidas po- dres e confundindo-se com o lixo despejado em seu 14 recinto, e sempre a espreitar atrás da porta as lamúrias de seus familiares, o que o faz sentir-se culpado por sua nova aparência física, já que seus sentimentos con- tinuam humanos a despeito de todo o resto. O subjetivismo de A metamorfose tem aberto espaço para as mais variadas interpretações da obra kafikiana. Essa plurissignificância engloba desde leitu- ras psicanalíticas a marxistas. Porém, o que mais chama atenção nesta obra é como Kafka, através do seu pro- tagonista, considera a existência por si só um absurdo. Na mídia Apresentamos, a seguir, uma matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, versão on-line, de 31 de outubro de 2015, comemorando os cem anos da publicação de A metamorfose. Um besouro? Uma aula de Vladimir Nabokov sobre a anatomia de Gregor Samsa O escritor russo Vladimir Nabokov (1899- 1977), célebre por Lolita, não passou incólume por A metamorfose. Ele estudou o livro a fundo, com uma série de rascunhos sobre o romance em que tentava desvendar, seguindo as pistas do texto kafkiano, em qual inseto Gregor Samsa havia se metamorfoseado, sem explicação alguma. Sua análise para a novela de Franz Kafka inte- gra o volume Lições de Literatura, publicado no Brasil pela editora Três Estrelas. Leia um trecho, abaixo: Ora, em que tipo de “inseto“ foi transformado tão subitamente Gregor, o infeliz caixeiro-viajante? Sem dúvi- da pertence à linhagem dos artrópodos (“de membros ar- ticulados“) do qual fazem parte os insetos, as aranhas, os centípedes e os crustáceos. Se as “numerosas perninhas articuladas“ mencionadas no começo significam mais que seis, então Gregor não seria um inseto do ponto de vista zoológico. Mas acredito que um homem deitado de costas, ao acordar e descobrir que tem seis pernas vibran- do no ar, pode considerar que seis é o bastante para ser chamado de “inúmeras“. Por isso, assumiremos que Gre- gor tem seis pernas, que é um inseto. A pergunta seguinte é: que inseto? Alguns estudiosos dizem ser uma barata, o que obviamente não faz sentido. Uma barata é um inseto com formato chato e pernas grandes, e o corpo de Gregor nada tem de achatado: é convexo nos dois lados, ventre e dorso, e as pernas são pequenas. Sua única semelhança com uma barata está na cor marrom. Isso é tudo. Além do mais, ele tem uma barriga extremamente convexa, dividi- da em segmentos, e costas duras e abauladas, sugerindo a existência dos estojos de asas. Nos besouros, esses esto- jos escondem delicadas asinhas que podem se expandir e carregá-los ao longo de quilômetros em um voo bastante acidentado. Curiosamente, o besouro Gregor nunca per- cebeu que tinha asas debaixo do duro invólucro de suas costas (essa é uma interessante observação minha que vocês devem guardar por toda a vida: alguns Gregors, alguns Joes e algumas Janes não sabem que têm asas). Ademais, ele possui fortes mandíbulas, que usa para fa- zer girar a chave na fechadura enquanto se ampara nas pernas de trás, o terceiro e poderoso par de pernas. Daí se deduz que seu corpo mediria cerca de noventa centíme- tros. No curso da história, ele gradualmente se acostuma a usar essas extremidades – pés e antenas. Esse besouro marrom, convexo e do tamanho de um cachorro é bem largo. Imagino que tenha a seguinte aparência: Reprodução Reprodução 15 No original em alemão, a velha arrumadeira o chama de “Mistkäfer“ – besouro rola-bosta. É óbvio que a boa senhora está lhe dando esse nome só para ser simpática. Tecnicamente, ele não é um besouro rola-bosta. É simplesmente um besouro (devo acres- centar que nem Gregor nem Kafka viram esse besouro com total clareza). Examinemos mais de perto a transformação. A mudança, embora chocante e notável, não é tão estra- nha quanto possa parecer à primeira vista. Um obser- vador de bom senso (Paul L. Landsberg, em “The Kafka Problem“. Ed. Angel Flores, 1946) comenta: “Quando vamos para a cama em um local desconhecido, é co- mum termos um momento de pasmo ao acordar, uma repentina sensação de irrealidade, e essa experiência deve ocorrer muitas e muitas vezes na vida de um cai- xeiro-viajante, um modo de vida que torna impossível qualquer senso de continuidade“. O senso de realida- de depende da continuidade, da duração. Afinal, acor- dar como um inseto não é muito diferente de acordar como Napoleão ou George Washington (conheci um homem que acordou como imperador do Brasil). Por outro lado, o isolamento e o afastamento da chamada realidade são aquilo que, em última análise, caracteri- za constantemente o artista, o gênio, o descobridor. A família Samsa em torno do fantástico inseto nada mais é do que a mediocridade circundando o gênio. Fonte: <http://temas.folha.uol.com.br/metamor- fose/um-besouro/uma-aula-de-vladimir-nabokov- -sobre-a-anatomia-de-gregor-samsa.shtml>. Nos quadrinhos Adaptações geralmente perdem qualidade na mudança de linguagem, mais ainda quando se trata de um clássico da literatura universal. Raras são as exce- ções em que essas adaptações viram verdadeiras obras de arte e tornam-se referência naquilo que se propõe. O caso em si é o livro A metamorfose, de Franz Kafka, que virou graphic novel ilustrada por Peter Kuper. Na verdade, este quadrinhista, que publicava a série Spy vs. Spy na revista Mad, já fez outras adaptações de Kafka para os quadrinhos. Contudo, essa foi a única (até o momento) publicada no Brasil. Quem conhece a história sabe que se trata de um drama pesado com forte psicologia que provoca identificação em muitas pessoas que vivem a agonia familiar (muitas mesmo). O convíviocom personali- dades problemáticas, que tem de ser toleradas por fazerem parte da família; a rejeição ou discriminação familiar em conter um indivíduo componente de uma minoria, e até mesmo racismo, são aspectos visíveis no enredo que mostra o personagem principal meta- morfoseado, num simples amanhecer, em um inseto gigante. Seu quarto passa a ser o seu confinamento, onde seus parentes passam a enojá-lo e procuram es- condê-lo do restante do mundo. Incrível como Kafka consegue ter sua literatura sempre atual, apesar de ter sido escrita mais de cem anos atrás. Num mundo que se encontra cada dia mais individualista e vemos barbáries de filhos matarem pais e vice versa, não há dúvidas de que é um escrito profético de atualização constantemente natural, dentro da morbidez humana em suas crises sociais. Quanto à arte de Peter Kuper nesta graphic novel, é grandiosa. Se na Mad ele conseguia o humor negro, aqui ele alcança o drama doentio psiquiátrico. O denso contraste do preto e branco torna o conto mais sombrio, mais dramático, misterioso e incrivelmente perturbador. 16 A miscigenação de estilos é explícita. Alguns quadros remetem os desenhos ao cubismo, sem deixar de ser detalhista com trabalhosas hachuras. O texto em si já é surrealista (chamado mais comumente de “literatura fantástica”). O ex- pressionismo se faz presente também com o clima noturno, uma vez que muitos quadrinhos são desenhos de branco sobre o fundo preto. Impressionante a ponto de levantar o sentimento de piedade no leitor para com Gregor Samsa. Este é o tipo de obra que deveria ser usada como didática no ensino médio e no superior. Na qual se abre um leque de questionamentos e reflexões do ser humano para com seu próximo, para com as minorias e para com seu parentesco. Tanto o livro quanto esta adaptação pra quadrinhos é de rápido leitura. Contudo, a imensidão da abordagem é gigantesca por tocar o íntimo de cada um de nós (adoro essas frases ambíguas). Conrad Editora do Brasil, São Paulo, Tradução de: Cris Siqueira, Letras de: Lilian Mitsunaga, 85 páginas, 2004. Fon- te: <http://marioorestes.blogspot.com.br/2010/12/metamorfose.html>. Acesso em: 04 maio 2018. 17 1. Do ponto de vista estrutural, assinale a al- ternativa correta sobre como é dividida a obra “A metamorfose” de Franz Kafka. a) Dividida em 23 capítulos curtos. b) A obra possui 5 longos capítulos. c) A metamorfose segue fluxo continuou até a morte do narrador, quando assim começa a segunda parte da obra. d) Três são as partes da obra: transformação, cotidiano e abalo. e) Duas grande partes: transformação e morte. 2. ”Quando vamos para a cama em um local des- conhecido, é comum termos um momento de pasmo ao acordar, uma repentina sensação de irrealidade, e essa experiência deve ocorrer muitas e muitas vezes na vida de um caixei- ro-viajante, um modo de vida que torna im- possível qualquer senso de continuidade.” Paul L. Landsberg. In: The Kafka Problem. Ed. Angel Flores, 1946. Assinale a alternativa que se aproxima da intenção do texto. a) A obra constrói um universo mágico onde a transformação literal é comum nos meios urbanos. b) A transformação do personagem Gregor Samsa é uma metáfora de seus constrangi- mentos existenciais, relações humanas isola- das e principalmente na questão profissional. c) Um apelo aos que reivindicam melhores con- dições na proteção dos animais, Gregor seria uma bandeira desta luta. d) A ideia de que dormir fora de casa seria uma espécie de deslocamento da existência rumo ao desconhecido e ao pesadelo do chamado “ninho vazio”. 3. Assinale a alternativa correta sobre Grete Samsa. a) Era a irmã de Gregor que no ínterim da nar- rativa também se transforma em um inseto. b) No papel de mãe do protagonista, desmaia sempre que o vê. c) Em visitas recorrente ao primo Gregor, Grete revela seu amor pueril. d) Grete é irmã de Gregor e por mais que cui- dasse de seu irmão, sua morte a alivia. e) Grete representa o interesse financeiro e a preocupação única e exclusiva com o empre- go do marido metamorfoseado. 4. Em A metamorfose, podemos afirmar que Franz Kafka considera a existência: a) ingênua. b) fantasiosa. c) absurda. d) fantasmagórica. e) antropomórfica. 5. “Gregório desviou então a vista para a ja- nela e deu com o céu nublado – ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melan- cólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? – cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se.” Assinale a alternativa que explica a situação descrita. a) O reumatismo oriundo do clima frio e das intensas chuvas faziam o sujeito metamor- foseado estático. b) A melancolia é uma espécie de fator de es- tagnação do sujeito, aspecto psicológico am- plamente trabalhado por Kafka. c) A presente situação de estagnação refere-se ao recém sujeito transformado em um inseto. d) A situação aparentemente normal revela um sujeito imerso em experiência extraterrenas, o que marca o forte subjetivismo de Kafka. Gabarito 1. D 2. B 3. D 4. C 5. C aproFunde seus conhecimentos Destino: POESIA Seja marginalseja HERÓI 0 2 Destino: poesia Ítalo Moriconi L C ENTRE ASPAS 21 Ítalo Moriconi Foto: Renato Velasco No Brasil contemporâneo, Ítalo Moriconi é um dos grandes estudiosos de literatura e poesia. Mesmo publi- cando pouco, é um grande movimentador das artes em nosso país, como ele mesmo diz. Afirma que, provavelmen- te, foi da última geração que teve uma boemia artística e política, misturada também com a vida acadêmica. Ele reúne poemas dos grandes nomes da poesia brasileira da segunda metade do século XX, como Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Torquato Neto em sua obra Destino: poesia, lançada pela José Olympio em 2016. Esse livro vem também com um prefácio que inicia os leitores nas obras e das características dos poemas destes artistas. Destino: poesia Escrita nos anos 1970, no Brasil, a antologia reúne os cinco maiores nomes da poesia marginal. Italo Mori- coni escolheu textos representativos da obra de cada um dos poetas para compor essa edição, dando a dimensão criativa e estética de uma época única e original em nossa literatura. Uma coletânea de poemas irreverentes, me- lódicos e contestadores, que já entraram para a história da poesia brasileira. Contexto Nos tristes e repressivos anos 1970, a poesia rompeu o compromisso com a realidade, com o intelectualis- mo e com o hermetismo modernista e partiu para ser marginal, diluidora, anticultural, pós-modernista. Sem constituir um movimento unificado, poetas jovens se declararam marginais e surgiram de norte a sul no país, espalhando que a poesia perdera a pompa e a solenidade e decretando o fim da modernidade – e o início da pós-modernidade, nome empregado inicialmente para denominar uma literatura cuja marca traz a resistência à ditadura militar como emblema. 22 Observe e leia este poema elaborado por um desses poetas ditos marginais. Eu assino, de Paulo Leminski “Negros verdes anos 70” O título acima é um verso do poeta Cacaso e se refere a uma década iniciada à sombra do terrível Ato Institucional nº 5 (AI-5, editado a 13 de dezem- bro de 1968), anunciador de um tempo nebuloso, que abalaria a história política brasileira. Aqueles que viveram o grande sonho dos anos 1960 agora estavam exilados, silenciados, desencantados. Poeta Cacaso A poesia desenvolvida sob a mira da polícia e da política nos anos 1970 foi uma manifestação de denúncia e de protesto, uma exploração de literatu- ra geradora de poemas espontâneos, aparentemente mal-acabados, irônicos, coloquiais, que falam do mun- do imediato do próprio poeta, zombam da cultura, es- carnecem da própria literatura. A profusão de grupos e movimentos poéticos, jogando para o ar padrões estéticos, estabelecidos, mostra um poeta cujo perfilpode ser mais ou menos assim delineado: ele é jovem, seu campo é a banali- dade cotidiana, aparentemente não tem nem gran- des paixões nem grandes imagens e faz questão de ser marginal. Primeira página do Jornal do Brasil, de 14 de dezembro de 1968, informando sobre a promulgação do AI-5 no dia anterior, que inaugurou um triste tempo de mordaças. Corpo a corpo com a censura A censura atingiu a grande imprensa, provocan- do alguns protestos em jornais e revistas de grande circulação, que passaram a utilizar estratagemas para denunciar as “tesouradas”. A revista Veja, por exem- plo, preenchia os espaços censurados das edições com logotipos da Editora Abril; o jornal O Estado de S.Paulo, com trechos de Os lusíadas. 23 A censura foi também implacável com a cha- mada “imprensa alternativa”, objeto de permanente perseguição. Jornais como O Pasquim e Opinião trata- vam verdadeiramente corpo a corpo com os censores e tiveram várias de suas edições retiradas das bancas; seus editores, jornalistas e colaboradores foram vítimas constantes de prisões. O tabloide O Pasquim abrigou um jornalismo irreverente, que se tornou símbolo da resistência à ditadura. Características da poesia marginal Cumpre ressaltar, de início, que o adjetivo “mar- ginal” refere-se exclusivamente à opção dos poetas de não se integrarem ao sistema estabelecido. É, portanto, uma exclusão voluntária. Explorando todas as possibilidades do papel – folhetos, jornais, zines etc. –, foi às praças, aliou-se à música, organizou exposições. Poesia mutante A poesia que floresceu nos anos 1970 é inquie- ta, anárquica: não se filia a nenhuma estética literária em particular, embora se possam encontrar nela traços de algumas vanguardas que a precederam, tais como o Concretismo dos anos 1950 a 1960 ou o poema- -processo. Os poetas jovens foram, principalmente, contra. Contra as portas fechadas da ditadura, contra o discur- so organizado, contra o discurso culto, contra a poesia tradicional e/ou universal. A poesia saiu da página impressa do livro e ga- nhou as ruas. Ela podia ser lida nos muros, nos banhei- ros públicos, nas margens de outros textos em forma de uma carona literária. Ela estava em folhetos mime- ografados, distribuídos de mão em mão, nos bares, nas praias, nas feiras, em qualquer parte. Recuperaram-se alguns laços com a produção do primeiro Modernismo (1922) – poemas-minuto, poema-piada; experimentaram-se técnicas, como a colagem e a desmontagem dadaísta; praticaram-se formas consagradas, como o soneto ou o haicai (poe- ma de origem japonesa em três versos, com 17 sílabas ao todo): tudo foi possível dentro do território livre da poesia marginal, até mesmo escrevê-los em outro idio- ma, como bem atestam os poemas de Paulo Leminski à moda de um grafite: en la lucha de clases todas las armas son buenas piedras noches poemas Proximidade com as artes visuais A proximidade com as artes visuais e plásti- cas provoca um diálogo entre os poetas concretos e os poetas marginais. Técnicas próprias de outras artes passam a ser usadas para compor o poema – colagens, desenhos, grafismos, fotografias – provocando uma linguagem visual fragmentária, de que é exemplo este poema, de Nei Leandro de Castro: [1822. Poema/processo de Nei Leandro de Castro]. A colagem feita em cima da data da independência do Brasil aproxima o poema de uma composição-código ou poema-processo. Quer mostrar a profunda de- pendência do País, invadido pelo capital estrangeiro [Ford, Telefunken, Nestlé etc.]. 24 Uma poesia de domínio público A opção por ser marginal, isto é, por estar fora dos circuitos comerciais do livro, circular de mão em mão, estar pichada nos muros, impressa em folhetos jogados do alto de edifícios, faz dessa poesia um tra- balho coloquial e lúdico, que se volta para a realidade mais imediata. A descontração é a sua marca registrada. Com ela, há certa alegria, uma forma de enfrentar a dureza dos dias em que “falar de flores é quase um crime”, como diz Bertold Brecht. Anos 1970: a poesia marginal Os poetas marginais não se preocupavam com formalismos, sendo diretos em seus versos, repletos de coloquialismos, despojo e ideologia. Indicavam locali- zações políticas e comportamentais. Temas Repressão militar Censura Tortura Exílio 25 Liberdade sexual / Feminismo Ficou conhecida como poesia marginal a pro- duzida no começo dos anos 1970, durante a ditadura militar brasileira. O nome que define esta geração de poetas se aplica a autores que se colocavam à mar- gem do sistema editorial ou tinham dificuldade para publicar suas obras em editoras de grande porte. Por esse mesmo motivo, também ficaram conhecidos pela expressão geração do mimeógrafo, uma vez que se va- liam de tal máquina para levar ao público consumidor, de forma ágil e barata, livros de pequena tiragem, fi- nanciados e distribuídos por conta própria. Influências § Primeira fase modernista (Oswald de An- drade) – do Modernismo vanguardista de 1922, a poesia marginal herda o gosto pelo prosaico, o caráter anti-intelectual, a paródia, o humor, a irreverência/poema-piada, a oralidade da linguagem, a concisão/poema-pílula. Como a poesia marginal se desenvolveu nos anos de chumbo, rir foi a saída para contestar o regime de opressão. § Geração beat estadunidense (Allen Gins- berg, William S. Burroughs, Jack Kerouac) – a beat generation foi um movimento literário originado em meados dos anos 1950 por um grupo de jovens intelectuais cansados do mo- delo quadradinho de ordem estabelecido nos EUA, após a Segunda Guerra Mundial. Com o objetivo de se expressarem livremente e conta- rem sua visão do mundo e suas histórias, esses escritores começaram a produzir desenfreada- mente, muitas vezes movidos a drogas, álcool, sexo livre e jazz – o gênero musical que mais inspirou os beats. As principais características do movimento são: intensidade em tudo, escrita compulsiva, fluxo de pensamento desordenado, por vezes caótico, linguagem informal, cheia de gírias e palavrões, apoio à igualdade étnica, ao multiculturalismo. Autores Ana Cristina César Ana Cristina Cesar ou Ana C., como era conhe- cida, nasceu em 1952, no Rio de Janeiro. Após 1968, 26 passou um ano em Londres, fez algumas viagens pelos arredores e, na volta ao Brasil, com livros de Emily Di- ckinson e Katherine Mansfield nas malas, dedicou-se a escrever e a traduzir, entrando para a Faculdade de Letras da PUC-RJ, aos 19 anos. Deu aulas, traduziu, fez letras, escreveu para revistas e jornais alternativos, fez mestrado em comunicação, lançou seus primeiros livros em edições independentes. Depois voltou à In- glaterra, graduou-se em tradução literária, escreveu muitas cartas. Trabalhou em jornalismo e televisão. Suicidou-se no dia 29 de outubro de 1983. A teus pés Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barga- nhando uma informação difícil. Agora silêncio; silêncio eletrônico, produzido no sintetizador que antes cons- truiu a ameaça das asas batendo freneticamente. Apuro técnico. Os canais que só existem no mapa. O aspecto moral da experiência. Primeiro ato da imaginação. Suborno no bordel. Eu tenho uma ideia. Eu não tenho a menor ideia. Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício. Memórias de Copacabana. Santa Clara às 3 da tarde. Autobiografia. Não, biografia. Mulher. Papai Noel e os marcianos. Billy the Kid versus Drácula. Drácula versus Billy the Kid. Muito sentimental. Agora pouco sentimental. Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu amor de ontem. Gertrude: estas são ideias bem comuns. Apresenta a jazz-band. Não, toca blues com ela. Esta é a minha vida. Atravessa a ponte. É sempre um pouco tarde. Não presta atenção em mim. Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio. Estamos em cima da hora. Daydream. Quem caça mais o olho um do outro? Sou eu que admito vitória. Ela que moraconosco então nem se fala. Caça, caça. E faz passos pesados subindo a escada correndo. Outra cena da minha vida. Um amigo velho vive em táxis. Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora. Não esqueço mais. E a última, eu já te contei? É assim. Estamos parados. Você lê sem parar, eu ouço uma canção. Agora estamos em movimento. Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três barcos colados imóveis no meio. Você anda um pouco na frente. Penso que sou mais nova do que sou. Bem nova. Estamos deitados. Você acorda correndo. Sonhei outra vez com a mesma coisa. Estamos pensando. Na mesma ordem de coisas. Não, não na mesma ordem de coisas. É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde). Quando a memória está útil. Usa. Agora é a sua vez. Do you believe in love...? Então está. Não insisto mais. Inverno europeu Daqui é mais difícil: país estrangeiro, onde o creme de leite é desconjunturado e a subjetividade se parece com um roubo inicial. Recomendo cautela. Não sou personagem do seu livro e nem que você queira não me recorta no horizonte teórico da década passada. Os militantes sensuais passam a bola: depressão legítima ou charme diante das mulheres inquietas que só elas? Manifesto: segura a bola; eu de conviva não digo nada e indiscretíssima descalço as luvas (no máximo), à di- reita de quem entra. 27 Noite carioca Diálogo de surdos, não: amistoso no frio. Atravanco na contra-mão. Suspiros no contrafluxo. Te apresento a mulher mais discreta do mundo: essa que não tem nenhum segredo. Conversa de senhoras Não preciso nem casar Tiro dele tudo que preciso Não saio mais daqui Duvido muito Esse assunto de mulher já terminou O gato comeu e regalou-se Ele dança que nem um realejo Escritor não existe mais Mas também não precisa virar deus Tem alguém na casa Você acha que ele aguenta? Sr. ternura está batendo Eu não estava nem aí Conchavando: eu faço a tréplica Armadilha: louca pra saber Ela é esquisita Também você mente demais Ele está me patrulhando Para quem você vendeu seu tempo? Não sei dizer: fiquei com o gauche Não tem a menor lógica Mas e o trampo? Ele está bonzinho Acho que é mentira Não começa Olho muito tempo o corpo de um poema olho muito tempo o corpo de um poema até perder de vista o que não seja corpo e sentir separado dentre os dentes um filete de sangue nas gengivas Jornal íntimo à Clara 30 de junho Acho uma citação que me preocupa: “Não basta pro- duzir contradições, é preciso explicá-las”. De leve re- cito o poema até sabê-lo de cor. Célia aparece e me encara com um muxoxo inexplicável. 29 de junho Voltei a fazer anos. Leio para os convidados trechos do antigo diário. Trocam olhares. Que bela alegriazinha adolescente, exclama o diplomata. Me deitei no chão sem calças. Ouvi a palavra dissipação nos gordos den- tes de Célia. 27 de junho Célia sonhou que eu a espancava até quebrar seus dentes. Passei a tarde toda obnublada. Datilografei até sentir câimbras. Seriam culpas suaves. Binder diz que o diário é um artifício, que não sou sincera porque desejo secretamente que o leiam. Tomo banho de lua. 27 de junho Nossa primeira relação sexual. Estávamos sóbrios. O obscurecimento me perseguiu outra vez. Não consegui fazer as reclamações devidas. Me sinto em Marienbad junto dele. Perdi meu pente. Recitei a propósito fanta- sias capilares, descabelos, pelos subindo pelo pescoço. Quando Binder perguntou do banheiro o que eu dizia respondi “Nada” funebremente. 26 de junho Célia também deu de criticar meu estilo nas reuniões. Ambíguo e sobrecarregado. Os excessos seriam gra- tuitos. Binder prefere a hipótese da sedução. Os dois discutem como gatos enquanto rumbas me sacolejam. 25 de junho Quando acabei O jardim de caminhos que se bifurcam uma urticária me atacou o corpo. Comemos pato no almoço. Binder me afaga sempre no lugar errado. 27 de junho O prurido só passou com a datilografia. Copiei trinta páginas de Escola de mulheres no original sem errar. Célia irrompeu pela sala batendo com a língua nos dentes. Célia é uma obsessiva. 28 de junho Cantei e dancei na chuva. Tivemos uma briga. Binder se recusava a alimentar os corvos. Voltou a mexericar o diário. Escreveu algumas palavras. Recurso mofado e bolorento! Me chama de vadia para baixo. Me levanto com dignidade, subo na pia, faço um escândalo, entu- po o ralo com fatias de goiabada. 28 30 de junho Célia desceu as escadas de quatro. Insisti no despropó- sito do ato. Comemos outra vez aquela ave no almoço. Fungo e suspiro antes de deitar. Voltei ao Houve um poema que guiava a própria ambulância e dizia: não lembro de nenhum céu que me console, nenhum, e saía, sirenes baixas, recolhendo os restos das conversas, das senhoras, “para que nada se perca ou se esqueça”, proverbial, mesmo se ferido, houve um poema ambulante, cruz vermelha sonâmbula que escapou-se e foi-se inesquecível, irremediável, ralo abaixo. Cacaso O poeta, compositor e ensaísta Antonio Car- los de Brito (1944-1988) assinou seus poemas e suas músicas com o pseudônimo Cacaso. Professor da Uni- versidade Federal do Rio de Janeiro, fez sua estreia li- terária em 1967, com o volume de poemas A palavra cerzida, em que ainda se notam influências de Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Cecília Meireles, entre outros poetas da modernidade. Com Grupo escolar, publicado em 1970, mu- dam-se os eixos de sua poesia, agora mais marcada pela presença de Manuel Bandeira e, principalmente, Oswald de Andrade. Cacaso caminhou para uma grande indepen- dência literária como Beijo na boca e Segunda classe (este em coautoria com Luís Olavo Fontes), ambos de 1975, integrantes da coleção Vida de Artista. Agudo crítico literário, foi dos primeiros ensa- ístas a analisar a poesia marginal em Tudo da minha terra – Bate-papo sobre poesia marginal, de 1975, en- saio com que participou de um debate promovido pelo Museu de Arte Moderna no Rio de Janeiro. Postal Há uma gota de sangue no cartão postal eu sou manhoso eu sou brasileiro finjo que vou mas não vou minha janela é a moldura do luar do sertão a verde mata nos olhos verdes da mulata sou brasileiro e manhoso por isso dentro da noite e de meu quarto fico cismando [na beira de um rio na imensa solidão de latidos e araras lívido de medo e de amor Antonio Carlos de Brito (Cacaso). Beijo na boca. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 12. O fazendeiro do mar Mar de mineiro é garoa Mar de mineiro é baião Mar de mineiro é lagoa Mar de mineiro é balão Mar de mineiro é não Mar de mineiro é viagem Mar de mineiro é arte Mar de mineiro é margem Mar de mineiro é parte Mar de mineiro é Marte Mineiro tem mar de menos Mineiro tem mar demais Mineiro tem mar de Vênus 29 Mineiro tem cais Mineiro tem mar de paz Mar de mineiro é tudo Mar de mineiro é fase Mar de mineiro é mudo Mar de mineiro é quase Mar de mineiro é frase Mineiro tem mar de cio Mineiro tem mar de fonte Mineiro tem mar de rio Mineiro tem mar de monte Mar de mineiro é horizonte Mar de mineiro é Gerais Mar de mineiro é Campinas Mar de mineiro é Goiás Mar de mineiro é Colinas Mar de mineiro é Minas Paulo Leminski O curitibano Paulo Leminski (1944-1989) foi professor de história e redação em cursos pré-vestibu- lares, diretor de criação e redator de publicidade. Seus primeiros textos foram publicados em revistas alterna- tivas, antologias do tempo marginal: Qorpo estranho, Muda, Código. Segundo ele mesmo, foram “publicações que consagraram grande parte da produção dos anos 1970, pequenas revistas, atípicas, prototípi- cas, não típicas, coletivas, antológicas, represen- tando um grupo ou tendências (formalistas, pornô, marginais) no qual predominou a faixa etária dos 20 aos 30 anos”. Leminski incluiu-se entre os poetas que pratica- ram a autoedição (samizdat): “todo mundo juntando grana para comprar a droga da poesia”, declarou. Precocemente falecido, viveu em Curitiba com a poetisaAlice Ruiz, que vem organizando toda a obra dele. Entre outros livros de poesia, todos editados nos anos 1980, há: Caprichos e relaxos. La vie em close. Não fosse isso e era menos/ Não fosse tanto e era quase. Das coisas das coisas que eu fiz a metro todos saberão quantos quilômetros são aquelas em centímetros sentimentos mínimos ímpetos infinitos não? o inseto no papel de som a som de som a som ensino o silêncio a ser sibilino de sino a sino o silêncio ao som ensino Aviso aos náufragos Esta página, por exemplo, não nasceu para ser lida. Nasceu para ser pálida, um mero plágio da Ilíada, alguma coisa que cala, folha que volta pro galho, muito depois de caída. Nasceu para ser praia, quem sabe Andrômeda, Antártida Himalaia, sílaba sentida, nasceu para ser última a que não nasceu ainda. Palavras trazidas de longe pelas águas do Nilo, um dia, esta pagina, papiro, 30 vai ter que ser traduzida, para o símbolo, para o sânscrito, para todos os dialetos da Índia, vai ter que dizer bom-dia ao que só se diz ao pé do ouvido, vai ter que ser a brusca pedra onde alguém deixou cair o vidro. Não e assim que é a vida? Torquato Neto A maioria dos estudiosos da produção margi- nal dos anos 1970 aponta para o nome de Torquato Pereira de Araújo Neto (1944-1972) como um dos que melhor representam as múltiplas tendências da- quele tempo: verdadeiro pai fundador do que seria essa vanguarda. Torquato Neto foi poeta e letrista de música po- pular, além de jornalista. Dono de um tom polêmico e iconoclasta, seu livro Últimos dias de paupéria é uma publicação póstuma, organizada por Waly Salomão. Cogito eu sou como eu sou pronome pessoal intransferível do homem que iniciei na medida do impossível eu sou eu sou agora sem grandes segredos dantes sem novos segredos dentes nesta hora eu sou como eu sou presente desferrolhado indecente feito um pedaço de mim eu sou como eu sou vidente e vivo tranquilamente todas as horas do fim.. Waly Salomão Waly Salomão (1944-2003) é baiano de Je- quié e esteve ligado aos tropicalistas Caetano Veloso, Torquato Neto, Gilberto Gil e Gal Costa, mas não se considerava do grupo. Além de poeta, Waly Salomão também era letrista e produtor cultural. Como letrista, colaborou com muitos artistas, como Caetano Veloso (Talismã) e Lulu Santos (Assaltaram a Gramática) su- cesso com os Paralamas do Sucesso. Olho de lince quem fala que sou esquisito hermético é porque não dou sopa estou sempre elétrico nada que se aproxima nada me é estranho fulano sicrano beltrano seja pedra seja planta seja bicho seja humano quando quero saber o que ocorre à minha volta ligo a tomada abro a janela escancaro a porta experimento invento tudo nunca jamais me iludo quero crer no que vem por aí beco escuro me iludo passado presente futuro urro arre i urro viro balanço reviro na palma da mão o dado futuro presente passado tudo sentir total é chave de ouro do meu jogo 31 é fósforo que acende o fogo de minha mais alta razão e na sequência de diferentes naipes quem fala de mim tem paixão Análise Ser marginal, como muito bem definiu Leminski, “é quem escreve à margem, deixando branca a página para que a paisagem passe e deixe tudo claro à sua passagem”. É exatamente essa poesia marginal que Destino: Poesia faz um retrato. Na obra, encontramos textos de cinco autores prestigiados do período: Ana Cristina Cesar, Cacaso, Paulo Leminski, Torquato Neto e Waly Salomão. Essa multiplicidade dá uma ideia bem clara da perspectiva de poesia que eles defendiam e que tanto encantavam – e encantam – os seus leitores. Para compreender bem a poesia dos já men- cionados autores, é preciso conhecer um pouco mais das características do movimento marginal. Para tal, a obra conta com um excelente prefácio que faz todas as considerações necessárias, falando sobre os autores, os principais aspectos da poética e também sobre o relacionamento que este movimento literário tem com a música brasileira. Diferente das outras escolas literárias – roman- tismo, realismo, simbolistas e outras – que tiveram uma relação interessante com cânones literários ante- riores, a poesia marginal se relaciona muito mais com a música. Nesse estilo, a poesia tem uma musicalidade toda especial, sendo muitas delas realmente gravadas por cantores famosos. Isso faz com que os textos sejam muito mais próximos do leitor médio do que uma poe- sia parnasiana, por exemplo. Outro fator que é possível perceber na obra e também na escola literária é a quebra dos valores lite- rários já canonizados. Desta forma, você não encontrará nas poesias a métrica perfeita, obrigação de rimas ricas e palavras pouco conhecidas. A poesia, mesmo quan- do intimista, é muito mais direta, muito mais dinâmica, tudo sem perder o encanto. Muitas vezes, a linguagem toca o coloquial, com gírias, com a cara do Brasil. Além disso, a ousadia faz parte da escrita dos po- etas. Em muitos momentos, a poesia ganha aspectos de imagem; em outros, aproxima-se da prosa. Em outros, o texto é todo composto em apenas três versos. Porém, também pode ser bem extensa, atingindo mais de uma página. A brincadeira com as palavras também é mar- cante; então se pode esperar muitos trocadilhos, metá- foras e demais figuras de linguagem. Todos os textos são muito ricos, mesmo quando transparecem simplicidade. Além dos excelentes textos, o livro ainda conta com uma ótima parte física. A capa é belíssima e en- canta o leitor. A brincadeira com as letras, já na capa, indica o que esperar da poesia contida no livro. A re- visão do texto está impecável e a seleção das poesias foi excelente, compondo uma obra bem interessante. Em suma, Destino: poesia é uma obra perfeita para apresentar a poesia marginal. Não é um livro que se aprofunda na escrita de nenhum dos autores, mas que deixa um gostinho de quero mais. Para quem está começando a ler a poesia mais moderna, esse livro é uma excelente porta de entrada. Para quem já conhece o estilo, é uma leitura boa e revigorante. Vejamos alguns trechos: Vacilo da vocação (Ana Cristina Cesar, p. 30) Precisaria trabalhar – afundar – – como você – saudades loucas – nesta arte – ininterrupta – de pintar – A poesia não – telegráfica – ocasional – me deixa sola – solta – à mercê do impossível – – do real. Lar doce lar (Cacaso, p. 60) Minha pátria é minha infância: Por isso vivo no exílio Reflexo condicionado (Cacaso, p. 70) pense rápido: Produto Interno Bruto ou brutal produto interno? Jogos florais (Cacaso, p. 71) Ficou moderno o Brasil ficou moderno o milagre a água já não vira vinho vira direto vinagre 32 poema sem título (Poema Leminski, p. 87) morreu o periquito a gaiola vazia esconde um grito Literato Cantabile (Torquato Neto, p. 100) a guerra acabou quem perdeu agradeça a quem ganhou. não se fala. Não é permitido mudar de ideia. É proibido. Confeitaria Marseillaise - doces e rocamboles (Waly Salomão, p. 116) O aéreo esmaga folhas de eucalipto de encontro ao nariz enquanto de noite sonhei com um batalhão poli- cial me exigindo identificação/ revistaram a maloca do fundo do meu bolso/ mostrei babilaques/ me entreguei descontento pero calmamente/ nada foi encontrado que incriminasse o detido no boletim de averiguações depois de batido telex para todas as delegacias. Vadiagem. Na mídia Para quem gosta de acompanhar o olhar da mídia para as obras estudadas, segue uma crítica que saiu na seção Ilustrada da Folha de S.Paulo, em 2010, que acha que a antologia é “artificial” em relação à poesia marginal da década de 1970. Artificialismo marca antologia de poesia Noemi Jaffe colaboração para a Folha No ar, antes de mergulhar, é o tempo comum em que respira a poesia de Ana Cristina César, de Cacaso, de Paulo Leminski, de Torquato Neto e de Waly Salomão, agora reunidos na antologia Destino: poesia, selecionada e prefaciada por Italo Moriconi. Fora com o passado, refúgio sagrado da poesia de todosos tempos, e mesmo com o futuro, outro gan- cho escapista. O não lugar dessa poesia é o agora – e nem mesmo o agora do presente, mas algum outro ainda mais inagarrável: o agora-já, a véspera do salto do tra- pezista, quando o risco e o prazer estão tão juntos que é impossível identificá-los. O manifesto de Ana Cristina resume-se a um se- gura a bola. O coração de Cacaso segue cego e feliz como uma carta extraviada, na alegria insegura da de- sorientação. Em vez dos percalços, terreno difícil, mas de certa forma confortável, Leminski prefere os espasmos. Na mesma tocada, Torquato Neto pede a quem perdeu a guerra, que agradeça aos vitoriosos. Perder, para quem habita esse tempo nodal, é certamente me- lhor do que ganhar, pois o tempo da vitória é calcado no futuro, em planejamentos e em progressões lineares. E Waly Salomão não dá sopa, orgulha-se de ser preso por vadiagem, ama a algazarra – essa amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro e odeia a saudade, uma palavra a ser banida do uso cor- rente. Realmente, há um repertório comum na poesia entregue destes cinco poetas. Embora os cinco tenham mesmo vivido poeti- camente, no sentido de dedicarem-se de forma vital à poesia e também porque viveram do lado de fora do esquema utilitarista e mercantil da vida “normal“, e embora todos eles tenham morrido precocemente, há algum artificialismo nesta reunião. A utopia de suas vidas e de sua poesia e seu destino poético não são suficientes para agregar lingua- gens tão diferenciadas. Como comparar Ana Cristina, tão possuída pelo que vive e escreve, e Waly Salomão, tão lúcido do teatro de ser o outro de si? E o poema breve de Leminski, precioso e nipônico, ao poema breve de Cacaso, brincadeira à la Oswald de Andrade? Da mesma forma, os poemas selecionados, além de chamarem atenção para o que é a poesia destes cinco poetas, acabam também por gritar pelo que ficou de fora. A palavra antologia, na verdade, tem uma derivação do ramo da botânica e referia-se, origi- nalmente, ao gesto de colher flores. E até hoje, quando já não se refere mais às flores, fica a pergunta: como não escolher só as mais bonitas ou aquelas que servem ao arranjo desejado? Destino: poesia caminha nesse fio de navalha. Fonte: <www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/ fq1302201010.htm>. Acesso em: 26 mar. 2018. 33 Leia o texto a seguir para responder às ques- tões 1 a 3. POSTAL Há uma gota de sangue no cartão postal eu sou manhoso eu sou brasileiro finjo que vou mas não vou minha janela é a moldura do luar do sertão a verde mata nos olhos verdes da mulata sou brasileiro e manhoso por isso dentro da noite e de meu quarto fico cismando [na beira de um rio na imensa solidão de latidos e araras lívido de medo e de amor Antonio Carlos de Brito (Cacaso). Beijo na boca. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000, p. 12. 1. Este poema de Cacaso (1944-1987) dialoga com várias vozes que falaram sobre a paisa- gem e o homem brasileiros. Justifique a re- ferência ao “cartão postal” do título, através de expressões usadas na primeira estrofe. 2. O poema se constrói sobre uma imagem su- posta de brasileiro. Qual é essa imagem? 3. Quais as expressões poéticas que desmentem a felicidade obrigatória do eu do poema? 4. Acerca da poesia marginal dos anos 1970, é incorreto afirmar que: a) ela se desenvolveu em pleno regime militar, porém não ousou contestar quaisquer valo- res impostos pela ditadura. b) nasceu do interesse de jovens escritores pela poesia justamente após o AI-5 que, dentre outros procedimentos, impôs uma censura se- vera aos textos escritos, falados ou cantados. c) Ana Cristina César, Chacal, Antônio Carlos Brito, Paulo Leminski são alguns de seus re- presentantes. d) foi considerada “marginal“, dentre outros motivos, pela forma como os textos eram distribuídos, ou seja, à margem da política editorial vigente. e) alguns textos eram mimeografados, outros xerocopiados ou impressos em antigas tipo- grafias suburbanas. 5. LOGIA E MITOLOGIA Meu coração de mil e novecentos e setenta e dois já não palpita fagueiro sabe que há morcegos de pesadas olheiras que há cabras malignas que há cardumes de hienas infiltradas no vão da unha na alma um porco belicoso de radar e que sangra e ri e que sangra e ri a vida anoitece provisória centuriões sentinelas do Oiapoque ao Chuí. Cacaso. Lero-lero. Rio de Janeiro: 7 Letras; São Paulo: Cosac & Naify, 2002. O título do poema explora a expressivida- de de termos que representam o conflito do momento histórico vivido pelo poeta na década de 1970. Nesse contexto, é correto afirmar que: a) o poeta utiliza uma série de metáforas zoo- lógicas com significado impreciso. b) “morcegos”, “cabras” e “hienas” metafori- zam as vítimas do regime militar vigente. c) o “porco”, animal difícil de domesticar, re- presenta os movimentos de resistência. d) o poeta caracteriza o momento de opressão através de alegorias de forte poder de impacto. e) “centuriões” e “sentinelas” simbolizam os agentes que garantem a paz social experi- mentada. 6. Sobre a poesia marginal, é incorreto afirmar: a) Poesia marginal foi uma designação dada à poesia produzida pela chamada “geração mi- meógrafo”, incluindo poetas desconhecidos cuja produção literária estava fora do eixo Rio-São Paulo. b) A poesia marginal ficou conhecida por esse nome porque seus poetas abandonaram os meios tradicionais de circulação das obras, comercializando seus livros (que eram mi- meografados) a baixo custo e vendendo-os de mão e mão, dispensando assim o trabalho das grandes editoras. c) Entre suas principais temáticas estava a preocupação com a forma e com a pesqui- sa poética. Nota-se um cuidado extremo em atender aos princípios da norma-padrão da língua, produzindo assim uma literatura ca- nonicamente aceita pela Academia. d) A tradição marginal estendeu-se pelos anos de 1980, quando outros recursos foram adotados, tais como a fotocópia e a produ- ção de fanzines. e) Nos Estados Unidos, o termo “poesia margi- nal” é usado para designar a poesia produ- zida pelos poetas chamados de beats, como Jack Kerouac e Allen Ginsberg. 7. AS APARÊNCIAS REVELAM Afirma uma Firma que o Brasil confirma: “Vamos substituir o aprofunDe seus conheciMentos 34 Café pelo Aço”. Vai ser duríssimo descondicionar o paladar Não há na violência que a linguagem imita algo da violência propriamente dita? Cacaso. As aparências revelam. In: WEINTRAUB, Fabio (Org.). Poesia marginal. São Paulo: Ática, 2004, p. 61. Para gostar de ler 39. Com base na leitura do poema, assinale a(s) proposição(ões) correta(s) acerca da poesia marginal. I. Entre as temáticas das quais se ocupou a poesia marginal da década de 1970, havia espaço para painéis sociais, para a memória afetiva e a pesquisa poética e para o registro literário da intimidade. Sem grandes exageros, a única regra era atender aos princípios da norma padrão da língua. II. Os versos “Vai ser duríssimo descondi- cionar/ o paladar” podem ser entendi- dos metaforicamente como uma referên- cia a sacrifícios impostos à população, obrigada a acomodar-se a uma nova or- dem econômica. III. Nos poemas reunidos em Poesia margi- nal, os autores enfocam a denúncia e a crítica social de uma maneira sisuda, sem apelar para o humor, pois visam conferir credibilidade ao que é dito. IV. A frase “Vamos substituir o Café pelo Aço” pode ser interpretada como uma referência à abertura do país para a exportação de minérios, defendida por empresários e pelo governo à época da ditadura militar. V. No primeiro e segundo versos, no jogo de palavras “Afirma”, “Firma” e “confirma”, repete-se o segmento firma; isso pode ser interpretado como uma referência à in- fluência das grandes empresas nas políti- cas estatais. VI. Na estrofe final, observa-se como Cacaso procura desvincular a linguagem das prá- ticas sociais, ao propor que não há vio- lência nas palavras em si, mas apenas na realidadea que elas se referem. a) II, IV e V. b) I, III e V. c) II, V e VI. d) I, II e IV. e) Apenas VI. 8. “Os anos de 70 exigiriam um discurso à par- te sobre a poesia mais nova que vem sendo escrita. De um modo geral as chamadas van- guardas mais pragmáticas de 1950-60 vivem a sua estação outonal de recolha das antigas riquezas [...] Outras parecem ser as tendên- cias que ora prevalecem e sensibilizam os poetas. Limito-me a mencionar três delas: § Ressurge o discurso poético e, com ele, o verso, livre ou metrificado; § Dá-se nova e grande margem à fala au- tobiográfica, com toda a sua ênfase na livre, se não anárquica, expressão do de- sejo e da memória; § Repropõe-se com ardor o caráter público e político da fala poética [...] Dois poetas que, desaparecidos em plena ju- ventude, se converteram em emblemas dessa geração: Ana Cristina Cesar e Cacaso, pseudô- nimo de Antônio Carlos Brito. Em ambos, o lirismo do cotidiano e a garra crítica, a con- fissão e a metalinguagem se cruzavam em zo- nas de convívio em que a dissonância vinha a ser um efeito inerente ao gesto da escrita”. (Alfredo Bosi) Analise as proposições e marque a alterna- tiva correta: I. A poesia de Ana Cristina Cesar traduz o pensamento de renovação da escrita li- terária, em seu tempo, porque se propõe a condensar várias características desta nova vertente de pensamento, pois a au- tobiografia, o cotidiano, o verso prosaico e outros expedientes poéticos são incor- porados à linguagem de suas obras, espe- cificamente de A teus pés. II. A poesia de Ana Cristina Cesar traduz o pensamento de renovação da escrita lite- rária, em seu tempo, porque se propõe a condensar características desta nova ver- tente de pensamento, pois a autobiogra- fia, o cotidiano, o verso prosaico e outros expedientes poéticos não são incorpora- dos à linguagem de suas obras, especifi- camente de A teus pés. III. A poesia de Ana Cristina Cesar traduz o pensamento de renovação da escrita lite- rária, em seu tempo, porque se propõe a condensar características desta nova ver- tente de pensamento, pois a autobiogra- fia, o cotidiano, o verso prosaico e outros expedientes poéticos são incorporados à linguagem de suas obras como acidente político, ou seja, o momento em que vive exige da poeta uma certa resistência no âmbito da linguagem; logo, a sua poesia só é assim caracterizada porque locali- zada, porque restrita a apenas atitudes políticas momentâneas, especificamente em A teus pés. a) Todas as proposições estão corretas. b) Somente a proposição II está correta. c) Somente a proposição III está correta. d) Somente a proposição I está correta. e) Nenhuma proposição está correta. 35 9. SAMBA-CANÇÃO Tantos poemas que perdi. Tantos que ouvi, de graça, pelo telefone – taí, eu fiz tudo pra você gostar, fui mulher vulgar, meia-bruxa, meia-fera, risinho modernista arranhado na garganta, malandra, bicha, bem via- da, vândala, talvez maquiavélica, e um dia emburrei-me, vali-me de mesuras (era uma estratégia), fiz comércio, avara, embora um pouco burra, porque inteligente me punha logo rubra, ou ao contrário, cara pálida que desconhece o próprio cor-de-rosa, e tantas fiz, talvez querendo a glória, a outra cena à luz de spots, talvez apenas teu carinho, mas tantas, tantas fiz... Se a poesia de Ana Cristina Cesar está inserida na chamada literatura marginal, talvez por- que a linguagem de que se apropria para fa- lar da natureza do sujeito humano tenha sido não convencional, no poema SAMBA-CANÇÃO, de A teus pés, a imagem do ser marginal pode ser vista como duplamente inscrita: a) porque a imagem a que o poema faz refe- rência é de uma mulher “vulgar/meia-bruxa, meia-fera/risinho modernista/ arranhado na garganta/malandra, bicha/bem viada, vândala” e a forma do texto se distancia ti- pologicamente da linguagem poética aproxi- mando-se mais da prosa coloquial. b) porque o texto remete o leitor a um diálogo com uma escrita não-autorizada, à escrita “chula” ou do palavrão, e esta linguagem é típica de pessoas de índole má, como a que é aludida no poema: uma bruxa. c) porque os termos vulgar, bicha, viada situ- am na sociedade certos sujeitos marginais e a fala enunciada pela “personagem” do texto denuncia a sua condição quando ela mesma marginaliza a sua condição de mulher em um texto cujo título remete o leitor a inter- pretá-la a partir de um espaço físico também marginalizado: aquele onde “nasceu” o sam- ba canção. d) porque a “personagem” do poema, através de uma linguagem não-autorizada, a linguagem poética, ri da sua condição de “inferior”: por ser mulher e por ser vulgar, concentrando em si aspectos negativos. e) porque a “personagem” do poema, em uma linguagem moderna e típica de jovens ades- trados socialmente, canta o seu caso de amor não completado, instrumentalizando-se de estratégias discursivas capazes de enganar o outro e chamar a atenção para si e para o poema - duas instâncias marginais Gabarito 1. O cartão postal fornece, normalmente, uma visão positiva da realidade retratada, muitas vezes, reforça visões tradicionais e estereó- tipos dessa realidade. Cacaso, por um com- plexo jogo de intertextualidades, retoma, na primeira estrofe, imagens consagradas sobre tudo pela música e pela literatura (“luar do sertão“, “a verde mata“, “olhos verdes da mulata“). 2. Trata-se da imagem do homem cheio de ma- nhas, “malandro“ (“finjo que vou mas não vou“), sonhador e avesso ao trabalho (“fico cismando na beira de um rio“) e que, no ge- ral, acredita-se feliz. 3. Expressões como “lívido“ (pálido) e “medo“ opõem-se à imagem de um "eu" feliz, pois sugerem ao leitor momentos de dor e angús- tia. Pode-se também interpretar que a antí- tese entre os versos “(...) cismando na beira de um rio“ (que sugere algo prazeroso) e “na imensa solidão de latidos e araras“ (que su- gere um momento que contradiz o anterior) remete para este desmentido. 4. A 5. D 6. C 7. A 8. D 9. A 0 3 Felicidade clandestina Clarice Lispector L C ENTRE ASPAS 39 ClariCe lispeCtor O mundo intimista e o apelo social de Clarice Lispector “Os sonhos são a expressão de um desejo” (Freud) Clarice Lispector nasceu em Tchetchelnik, Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Chegou ao Brasil em março de 1922, passou a infância na cidade do Recife e em 1937 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde se formou em Direito. Estreou na literatura ainda muito jovem com o romance Perto do coração selvagem (1943), que teve calorosa acolhida da crítica e recebeu o Prêmio Graça Aranha. Em 1944, recém-casada com um diplomata, viajou para Nápoles, onde serviu num hospital durante os últimos meses da Segunda Guerra. Depois de uma longa estada na Suíça e Estados Unidos, voltou a morar no Rio de Janeiro. Clarice Lispector começou a colaborar na imprensa em 1942 e, ao longo de toda a vida, nunca se desvincu- lou totalmente do jornalismo. Trabalhou na Agência Nacional e nos jornais A Noite e Diário da Noite. Foi colunista 40 do Correio da Manhã e realizou diversas entrevistas para a revista Manchete. Foi cronista do Jornal do Bra- sil, e os textos, produzidos entre 1967 e 1973, estão reunidos no volume A descoberta do mundo. Entre suas obras mais importantes estão a reu- nião de contos em A legião estrangeira (1964) e Laços de família (1972) e os romances A paixão segundo G.H. (1964) e A hora da estrela (1977). Clarice foi internada logo depois do lançamen- to da obra A hora da estrela, por causa de câncer no ovário. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de completar 57 anos e menos de dois meses depois de lançar um dos seus livros mais famosos. Contexto A partir do ano de 1930, o Modernismo ga- nhou uma nova nomenclatura, passou a ser chamado de Neorrealismo, uma vez que retomava alguns as- pectos do Realismo-Naturalismo, porém com algumas peculiaridades, como a questão do Nordeste brasileiro e suas mazelas, bem como a questão do mergulho no intimismopsicológico do sujeito. A implementação do Estado Novo do governo Vargas e da Primeira Guerra Mundial influenciaram violentamente sobre a produ- ção literária em questão. A realidade brasileira foi descrita e observada com os olhos atentos e críticos dos escritores brasilei- ros, em que as relações entre o homem e a sociedade foram atreladas ao lado emocional das personagens, sobretudo os aspectos psicológicos. A década de 1930 trouxe três situações diferen- tes: a fase regionalista; a fase urbana; e a fase intimista. Três fases internas ao momento histórico, ligadas pela lógica modernista de consolidação e aproximação do sujeito e da literatura. Das três fases, podemos enqua- drar o conto “Amor”, de Clarice Lispector, no momento intimista no qual os autores buscaram as reverbera- ções psicológicas do sujeito, no sentido em que elas reverberam a real situação do homem de seu tempo. Logo, a fase intimista tem por consequência a influência das teorias psicanalíticas de Freud, bem como de outras correntes da Psicologia, ou seja, a in- fluência do escritor se dá em função do mundo interior, também chamado de sondagem psicológica. Escola literária Terceira fase modernista: ficção experimental As experimentações que acrescentaram dire- ções novas ao cursor literário no Brasil ganharam cor- po com a publicação, em 1943, do romance Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. Nessa obra, a escritora esmiúça o interior do ser humano, dando à luz a grandeza da vida e do significado das experiên- cias dos seres. Três anos mais tarde, em 1946, Guimarães Rosa publicou o livro de contos Sagarana, no qual as regi- ões brasileiras dos sertões indefinidos transcendiam o âmbito da realidade histórica e transformavam-se em espaços de seres míticos. Clarice Lispector aproximou da palavra escrita o ato de pensar e de narrar com grande criatividade, enquanto Guimarães Rosa realizou uma verdadeira alquimia verbal ao fundir na palavra sua experiência pessoal à experiência coletiva. Os escritos de Clarice revelaram uma ficcionista de aguda sensibilidade, o que levaria a crítica literária ao espanto diante de sua obra. Perplexos também ficaram os críticos diante de Guimarães Rosa, cujas ousadias mórficas estabelece- ram uma completa transformação linguística na litera- tura ao recriar o mundo sertanejo. Características de ficção do terceiro tempo modernista § Narrativas interiorizadas: fluxo da cons- ciência: uma das marcas mais flagrantes da ficção experimental é a interiorização do narrar – o chamado fluxo da consciência. Geralmen- te, as narrativas são centradas em momentos de vivência interior dos personagens. Aconteci- mentos exteriores provocaram a interiorização. É assim em A hora da estrela, onde o narrador- -personagem Rodrigo S. M. conduz a narrativa entremeando os fatos narrados com o instante da sua própria história, sobretudo seus pensa- mentos e dramas psicológicos de ordem exis- tencial, social e afetiva. 41 § Da consciência para o inconsciente: a consciência de um ou mais personagens é fla- grada e relatada numa época qualquer em lugar qualquer. Assim se dá também nos romances e contos de Clarice Lispector: um acontecimento pode liberar ideais que vão até o inconsciente do personagem. § Narrativas em primeira pessoa: a narração em primeira pessoa não é um mero acaso na fic- ção desse tempo. A narração em primeira pessoa proporciona ao relato um intimismo inigualável, assim como lhe outorga verossimilhança. O nar- rador funciona como uma pessoa que confessa e o leitor ou ouvinte, como confidente. Revelando- -se uma “sentidora”, uma “intuitiva, ressaltou em alguns depoimentos que seus livros, mais do que histórias, continham “impressões”, pois “não se preocupam com os fatos em si, porque o impor- tante é a repercussão do fato no indivíduo”. FeliCidade Clandestina Felicidade clandestina nasceu de um convite feito a Clarice Lispector, em 1967, para escrever sema- nalmente no Jornal do Brasil. Seriam crônicas, porém ela mesma declarou – “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gêneros. Gêneros não me interessam mais.”. Gênero A obra é considerada como livro de contos, nes- te que poderia ser considerado um dos livros de cunho mais autobiográfico da autora, como é o caso das re- cordações da infância – a filha do livreiro de Felicidade clandestina existiu; o professor de Desastres de Sofia percebeu o tesouro da futura escritora. Foco narrativo Como foco narrativo em primeira pessoa, as narrativas resgatam em caráter memorialista uma mu- lher adulta, porém ingenuidade em seus pensamentos e sentimentos. Esse material, buscado a uma época tenra de sua história pessoal, é utilizado para suas re- flexões sobre a vida, a atividade literária e o exercício de um feminismo místico que se torna a marca de seu estilo. Remontando a época que era moradora da cida- de do Recife, por cujas ruas perambulava, aos saltos, enchendo-as da memória da sua passagem. Estrutura Esta obra reúne 25 contos que tematizam a adolescência, a infância e a família, sem deixar, em momento algum, de se referir às angústias da alma, tal como é próprio da autora. Psicologia, epifania e metafísica Os textos não diferem da orientação geral da ficção de Clarice Lispector, em que ela faz um mergu- lho na geografia íntima das personagens, refletindo o momento interior delas, a ponto de a própria sub- jetividade entrar em crise ou momento epifânico por excelência. O percurso sempre tende ao encaminha- mento da autoanálise, apesar de não se tratar apenas de sondagens psicológicas sentimentais egocêntricas, mas de uma inquietação íntima das personagens, que se concentra na busca da própria identificação num cotidiano vazio, igual e, por que não, monótono. As mais aprofundadas camadas da consciência humana são removidas pela autora, em busca do significado da existência. Há, portanto, o encontro da psicologia com a metafísica: conhecer-se para ser. Clarice Lispector emprega o processo narrativo do fluxo da consciência, que é o rompimento dos limi- tes de espaço e de tempo. O pensamento fica solto. Pequenos fatos exteriores provocam uma longa via- gem abstrata das ideias, sem se basear numa estrutura sequencial da narração. Ela faz as personagens viverem revelações, o que configura o processo de “epifania”. O que signifi- ca dizer que diante de pequenas situações, singelezas do cotidiano, a personagem se descobre e vê revelada uma realidade mais profunda, em que, por vezes, o próprio personagem não consegue perceber com cons- ciência qual realidade é essa, no entanto sua vida, bem como sua visão se transforma. 42 Pensando propriamente na obra, podemos buscar exemplos dessas situações epifânicas: a me- nina que se torna “amante” do livro; os dois amigos que se separam para avivarem a amizade sincera; o menino míope que descobre a paixão no amor; a menina que se sente valorizada quando o folião lhe entorna confete na cabeça; a mulher que percebe sua real situação pisando num rato morto; a meni- na ruiva que sente o peso da solidão quando o ca- chorro se vai; a contemplação de um ovo que faz a narrador refletir sobre o mistério profundo da vida; a menina formal que se vê criança diante de um pin- tinho e reage matando-o; a mulher que, olhando o dente quebrado, confirma a falta de sentido da vida; a visão do inseto esperança que leva a mulher a se questionar sobre o nada; a macaquinha que induz o filho a perceber seu amor pela mãe; a menina que faz o professor sorrir e, assim, descobre sua falta de importância; a criada que é oportunidade de a patroa entender um ser humano; os adolescentes que diante da casa velha concluem não serem pes- soas especiais; o menino que se descobre homem ao “beijar” a estátua da mulher-chafariz. A característica metafísica
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