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CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES os (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE «!}] ed itoracontexto f)r�o ��:�!lo� 0 •I<-/ �Ll c . I� Copyright© 1989 Carlos Walter Porto Gonçalves Todos os direitos desta edição reservados à Editora Contexto (Editora Pinsky Ltda.) Capa Francis Rodrigues Revisão _../-:-;: :-........._ Maria Silvia Gonçalves e Luiz Roberto Malta /, .,.. ·· ,..;_ �' ' Com•nosição •/ , ,, ·,' \ r .• Veredas Editorial j _ .... , .!l'f�-�· \ 1 • • ·: �- :-,;_-.. l �---··-···· Dados Iq:ternacionais de Catalogação na P ublicação (CIP) · _/(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ' . \ -� Gon�lves,·,.. arlos Walter Porto. "•,..._ . _ J)s.(dés)cammhos do meiO ambiente I Carlos Walter Porto Gonçalves, 14. ed.- São Paulo: Contexto, 2006. (Temas aruais). Bibliografia. ISBN 85-85134-40-2 L Ecologia humana. 2. Homem - Influência ambientaL 3. Homem - Influência na natureza L Título 89-0131 CDD-304.2 Índices para catálogo sistemático: L Ecologia humana 304.2 2. Ecologia social 304.2 3. Homem e natureza: Ecologia 304.2 4. Meio ambiente: Influência do homem: Ecologia 304.2 5. Natureza e homem: Ecologia 304.2 EDITORA CONTEXTO Diretor editorial: Jaime Pinsky Rua Acopiara, 199 - Alto da Lapa 05083-110 - São Paulo- SP PABX: (11) 3832 5838 contexto@editoracontexto.com.br www.editoracontexto.com.br 2006 Proibida a reprodução total ou parciaL Os infratores serão processados na forma da lei. SUMÁR IO I. Introdução ............ ,. . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . 7 II. O Contexto Histórico-Çultural de onde emerge o Movimento Ecológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 ill. Lutas Sociais, Lutas Ecológicas . . . . . . . . . . • . . . . . . . 18 IV. O Conceito de Natureza não é Natural . . . . . . . . . . . . 23 V. A Natureza no Dia-a-Dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25 VI. Os (Des)Caminhos do Conceito de Nature� no Ocidente . . . . . . . . . . . . . . . . ·. . . . . . . . . . . . . . . 28 VII. A Ciência diante da Natureza . . . . . . . . . . . . . . • . . . 37 Vill. A Harmonia Natural. Harmonia? . . . . . . . . . . . . . . . . . 61 IX. O Homem na Natureza e a Natureza no Homem . . . . . 75 X. Sociedade Natural. Natural? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94 XI._ Sociedade Moderna e Natureza ................. 100 XTI. Tempo e Trabalho: Produtividade . . . . . . . . . . . . . . . 103 Xll. A Técnica, a Sociedade e a Natureza .. . . . . . . . . .. . . 1 1 8 XIV. Natureza e Relações Sociais . . . . . . . . . . .. . . ... . . 125 V. Ecologia, Liberdade e Igualdade: Autonomia . . . . . . . 136 XVI. Notas Bibliográficas . . . . . ... . . . .. ... . ... . . . . . 145 A Chico Mendes que me ensinou que a defesa da natureza começa pela terra; sem terra não há planta; sem terra não se planta. Plante a Reforma Agrária! I NTRODU ÇÃO Como qualquer texto, este ensaio elege seus interlocutores: os que militam nos movimentos ecológicos e os que se identificam com eles sabem o porquê do emprego desse plural. Tento aqui estabele cer um diálogo com esses companheiros, com vistas a trazer algu ma contribuição para o desenvolvimento de nossas lutas. Em suma, trata-se de um esforço no sentido de apontar a complexidade e a diversidade daquilo que constitui os movimentos ecológicos. De fato, parece não haver campo do agir humano com o qual os ecologistas não· se envolvam: preocupam-nos questões que vão desde a extinção de espécies como as baleias e os micos-leões, a explosão demográfica, a corrida armamentista, a urbanização de senfreada, a contaminação dos alimentos, a devastação das flores tas, o efeito estufa, as técnicas centralizadoras até as injunções do poder político que nos oprime e explora. Procurei refletir sobre o porquê de invadirmos tantos campos diferentes, empregando deli beradamente um estilo que transita entre o rigor científico-filosófi co e o manifesto pülítico. Para tanto me vi obrigado a fazer uma viagem por territórios que me eram pouco familiares e o fiz com o cuidado que essas situações exigem: pisar devagar, sentir a con sistência do chão, sabendo que o próximo passo da caminhada não seria necessariamente em solo tão firme quanto o que já havia pi sado e dominado. Estou, por outro lado, convencido de que os pla- 8 CARLOS WALTER P. GONÇALVES nos de viagem, as diversas filosofias que aprendemos ao longo de nossas vidas estão comprometidos com os fundamentos histórico culturais que instituíram nosso mundo. Assim, esses planos . são marcados não só pelo pensamento herdado, �as também pelas prá ticas sociais instituídas, sendo, portanto, parte do que queremos ver superado. A viagem é longa e para isso conto com a paciência do leitor. Sei que a paciência não é uma virtude na sociedade em que vivemos, marcada pelo pragmatismo, pelo imediatismo, pela preo cupação com a produtividade ·e com a eficácia. Quase sempre a exigência é de respostas imediatas, pois, afinal, os problemas são urgentes e parece que o apocalipse está próximo. Devo observar que esta postura, todavia, é, ela própria, prisioneira deste mesmo mundo que se pretende questionar. Assim, só me resta fazer o con vite para essa viagem pelas entranhas do pensamento-ação herda do, onde possamos localizar outras formas de pensar, sentir e agir bastante próximas de nós e que quedaram sufocadas e silenciadas como é o caso das formulações dos chamados filósofos pré-socráti cos. Por que ficaram sem nos ser apresentados, eles que falavam de uma physis, de uma natureza muito próxima daquela que nós eco logistas intuúnos e que os físicos, biólogos e filósofos contemporâ neos redescobrem? Que motivos levaram a que ficassem silencia dos? Seriam os mesmos motivos pelos quais tentam nos silenciar, nos desqualificar como interlocutores? Essa é uma das questões que tentarei elucidar neste ensaio. Poderemos descobrir que mui tos, antes de nós, levantaram essas questões e que muito temos que aprender com suas proposições e com suas derrotas. Afmal, a razão nem sempre está com quem venceu, embora os vencedores sempre apresentem as suas vitórias como sendo vitórias da Razão. Os ven cidos são assim desqualificados e, não sejamos ingênuos, a des qualificação dos derrotados de ontem é uma das estratégias para a produção de novas vitórias-derrotas aqui e agora. Resgatar essas · trajetórias nos pennite superar a arrogância muito comum naqueles que se deixam levar pelos modismos e, devemos ser sinceros, o movimento ecológico está na moda. Estou consciente dos limites que um breve ensaio coloca a tal empreitada, mas não poderia me furtar à oportunidade de defla- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 9 grar uma reflexão sobre questões que me parecem decisivas na orientação das práticas ecológicas. Minha proposta é realizar uma breve contextualização das condições histórico-culturais das quais emerge o movimento ecoló gico no mundo e no Brasil. Logo a seguir, estabeleço um diálogo com outros diversos movimentos sociais, procurando localizar o que temos em comum e o que nos diferencia, temática que é reto mada ao fmal do trabalho. Analiso adiante o modo como a socie dade ocidental construiu o seu conceito de natureza, caracterizado por uma espécie de deslocamento do homem, no processo de de senvolvinlento e declínio da Antiguidade.greco-romana. Procuro, em seguida, tomando por base as novas descobertas de físicos, so ciólogos e antropólogos, fundamentar uma concepção em que Ho mem e Natureza são concebidos como parte de um mesmo processo de constituição de diferenças. O homem é a natureza que toma consciência de si própria e esta é uma descoberta verdadeiramente revolucionária numa sociedade que disso se esqueceu ao se colocar o projeto de dominação da natureza. No capítulo subseqüente, busco as raízes mais recentes que nos pennitem compreender melhor a progressiva devastação das nossas condições de vida. Aí me deparo com a sociedade indus trial, ignorante dasimplicações metafísicas de seus próprios fun damentos. Finalmente, procurei fundamentar o movimento ecológico como um movimento de caráter político-cultural, demonstrando que cada povo/cultura constrói o seu conceito de natureza ao mesmo tempo em que institui as suas relações sociais. Trata-se, portanto, de um ensaio sobre o conceito de natu reza subjacente às nossas relações sociais. O CONTEXTO HISTÓR ICO-CULTURAL DE ONDE EMERGE O MOVIMENTO ECOLÓGICO A década de 1960 marca a emergência, no plano político, de uma série de movimentos sociais, dentre os quais o ecológico. Até en tão, o questionamento da ordem sócio-política e cultural estava por conta dos movimentos. que- de diferentes maneiras- se reivindi cavam socialistas (os social-democratas, os comunistas e mesmo os anarquistas). O movimento operário constituía o eixo em torno do qual se fazia a crítica teórica e prática da ordem instituída e o ca pitalismo aparecia como a causa de todos os males com que os ho mens se defrontavam. Toda uma cultura, cujas matrizes estão loca lizadas no século XIX, havia se desenvolvido no interior do movi mento operário. No século XX, em alguns países do mundo, ocor rem revoluções que se proclamam socialistas e que vão tentar pôr em prática outros princípios de organização social. Ao mesmo tem po, no interior dos países capitalistas mais desenvolvidos, os tra balhadores conquistam uma série de direitos cujo atendimento, acreditava-se, seria impossível nos marcos daquela sociedade: jor nada de trabalho de oito horas, semana de cinco dias, férias remu neradas de trinta dias, salário-desemprego, aposentadoria, assistên cia médica gratuita e educação pública, entre outros. O movimento Ôperário começa, de certa forma, a se institucionalizar porque cou be ao Estado gerir e administrar essas conquistas no interior dos países capitalistas, enquanto que nos. Estados que se reivindicam como socialistas os próprios trabalhadores vão perdendo, pouco a OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 1 1 pouco, o controle das instituições criadas no período revolucioná rio, em virtude da crescente centralização e burocratização. É nesse contexto, na década de 1960, que começam a emergir com feições autônomas uma série de movimentos, tais como os movimentos das mulheres, dos negros, os movimentos ecológicos, etc. É possível encontrar manifestações desses diferentes segmentos sociais em pe ríodos anteriores, mas é indiscutível· que eles não só não consti tuíam os mais significativos movimentos de questionamento da or dem instituída, como também tinham as suas especificidades su bordinadas aos interesses da causa maior da emancipação do pro letariado. A partir dos anos 60, contudo, observa-se a crescente participação desses movimentos na cena política ... Uma verdadeira revolução nos costumes já começa a des pontar nos anos 50, a partir da descoberta dos anticoncepcionais e das manifestações de rebeldia dos jovens, expressas em grande parte em torno do rock-and-roll. Não se tratava mais, pelo menos no caso dos países capitalistas desenvolvidos, de acabar com a mi séria e a exploração que caracterizaram o desenvolvimento capita lista no século XIX e primeira metade do século XX, até porque as condições de vida haviam se modificado sensivelmente em virtude das próprias lutas operárias. O italiano Antonio Gramsci, intelec tual-militante comunista, havia feito uma observação interessante acerca dessa situação já na década de 1920. Dizia ele· que as pró prias conquistas operárias, na medida em que eram institucionali zadas pelo Estado capitalista, significavam também uma consolida ção deste regime sócio-polític<K:ultural. E chamava a atenção para o fato de que as revoluções anticapitalistas haviam ocorrido exata mente nos países onde as classes dominantes, seja por característi cas histórico-culturais· próprias, seja devido à fragilidade do movi mento operário local, opunham maior resistência às demandas dos "de baixo". A década de 1960 assistirá, portanto, ao crescimento de movimentos que não criticam exclusivamente o modo de produção, mas, fundamentalmente, o modo de vida. E o cotidiano emerge aí como categoria central nesse questionamento. É claro que cotidia no e História não se excluem; todavia, há um desÍocamento de ên fa.Se: enquanto o movimento operário em sua vertente marxista do 12 CARLOS WALTER P. GONÇALVES minante (social-democt.:ata e Ieninista) insistia na "missão histórica do proletariado" que, uma vez vitorioso sobre a burguesia capita lista, resolveria então todos os problemas cotidianos, os movimen tos que emergem na década de 1960 partem <41 situação concreta de vida dos jovens, das mulheres, das "minorias" étnicas, etc. para exigir a mudança dessas condições. É como se observássemos um deslocamento do plano temporal (História, futuro) para o espacial (o quadro de vida, o aqui e o agora). Os exemplos dos beatnik e dos hippies são bem a expres são dessa postura. Neste sentido, muito contribuiu a visão da ver dadeira chacina que era cometida no Vietnã primeiro pela França, depois pelos EUA, ao mesmo tempo em que ocorria a difusão dos meios de comunicação de massa. Agora, a guerra podia ser vista todo dia na hora do jantar, via satélite, enquanto crescia, em con trapartida, o movimento pacifista nos EUA e na Europa. Também nesta direção e completando esse quadro, registre-se a crise no in terior do chamado "bloco socialista" entre a URSS e a China. O socialismo de vertente stalinista que se autoproclamava uma via única passa a ser questionado. Aímal, foram profundos os proble mas criados pelas tentativas de industrialização da China, um país essencialmente camponês, segundo o modelo soviético. Uma ex pressão que parecia ter caído em desuso com a chegada da esquer da ao poder em alguns países voltou à baila: Revolução Cultural. • O movimento ecológico tem essas raízes histórico-cultu rais. Talvez nenhum outro movimento social tenha levado tão a fundo essa idéia, na verdade essa prática, de questionamento das condições presentes de vida. Sob a chancela do movimento ecoló gico, veremos o desenvolvimento de lutas em torno de questões as mais diversas: extinção de espécies, desmatamento, uso de agrotó xicos, urbanização desenfreada, explosão demográfica, poluição do da água, contaminação de alimentos, erosão dos solos, dimi uu o das terras agricultáveis pela construção de grandes barra- n , un a a nuclear, guerra bacteriológica, corrida armamentista, I uolu 111 ue afinnam a concentração do poder, entre outras. N o h , pr 1ticamente, setor do agir humano onde ocorram lutas e 1 v mi • 1 · que o movimento ecológico não seja capaz de in- nrpurn , OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 13 No entanto, nem sempre as pessoas que se mobilizam em tomo dessas questões o fazem enquanto movimento ecológico. Por · exemplo, quando os pescadores e camponeses de Ponta Grossa dos Fidalgos, distrito do município de Campos, no norte do estado do Rio de Janeiro, mobilizaram-se contra o assoreamento da Lagoa Feia, estavam se batendo por um modo próprio de uso das condi ções naturais de produção - a terra e a água -, procurando garantir o seu tradicional modo de viver e de produzir e não se mobilizando · enquanto movimento ecológico. Por outro lado, isso não impediu que jovens, sobretudo universitários, a eles se juntassem em nome do movimento ecológico, dando apoio concreto à luta dos campo neses e pescadores contra o tipo de uso que os usineiros e fazen deiros queriam fazer dos mesmos recursos naturais. Quer dizer, a ecologia tem interessado aos mais diferentes segmentos da socie dade, apesar de nem todos partirem da mesma motivação política e ideológica. Essa situação, verifica-se, não está livre de ambigüida des e contradições. No Brasil, o movimento ecológico emerge na década de 1970 em um contexto muito específico. Vivia-se sob uma ditadura que se abateu de maneira cruel sobre diversos movimentoscomo o sindical e o estudantil. A nossa esquerda de então acreditava que o subdesenvolvimento do país se devia fundamentalmente à ação do imperialismo, que tinha como aliado interno a oligarquia latifundiá ria. Essa era a razão do atraso e da miséria em que vivia o povo brasileiro e, em decorrência, deveríamos nos bater por uma revolu ção antiimperialista; de caráter popular, e com o apoio de setores da burguesia nacional. Assim, acreditava-se, estaria aberto o cami nho para a modernização da sociedade brasileira, etapa necessária para consolidar uma classe operária que pudesse empunhar a ban deira do socialismo. E isso parecia particularmente possível quando se tomava por referência o exemplo de Cuba que havia conseguido se libertar do grupo imperialista, ou seja, Davi vencera Golias. To davia, aqui a burguesia nacional não optou por essa via e se aliou à burguesia internacional. A FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo foi a grande articuladora dessa aliança desde a década de 50. Acusando a esquerda de "nacionalismo demagógi eo:-populista", a FIESP vai rotular de "verdadeiio nacionalismo" J'fo aquele que propõe o desenvolvimento da nação abrindo, assim, as portas do país à penetração do capital estrangeiro para que venha a contribuir para o seu desenvolvimento. Verifica-se, portanto, um deslocamento da consideração da questão nacional do plano das condições sociais - como era colocado pela esquerda - para um plano técnico-econômico desenvolvimentista. A burguesia conse gue atrair não só os investimentos estrangeiros como também o apoio da tecnoburocracia civil e, sobretudo, militar. A partir da Junta Militar de 1969 e do governo Médici, assiste-se à consolida ção desse regime autoritário e desenvolvimentista que vai mostrar, contrariando a crença da esquerda até então, que ao imperialismo não interessava a não industrialização do país. Será justamente sob a égide do capital internacional que o Brasil alcançará o maior de senvolvimento industrial de sua História. Esse desenvolvimento se fazia ainda. num país onde. as elites dominantes não tinham por tra dição respeito seja pela natureza, seja pelos que trabalham. A he rança escravocrata da elite brasileira se manifestava numa visão extremamente preconceituosa em relação ao povo,. que seria "des preparado". Quanto ao latifúndio, bastava o desmatamento e a am pliação da área cultivada para se obter o aumento da produção e isto nos levou a umá tradição de pouco respeito pela conservação dos recursos naturais, a não ser nas letras dos hinos e nos súnbolos da nacionalidade. A distância entre o discurso e a prática· é gritan te: o próprio nome do país, Brasil, é o de uma madeira que não se encontra mais, a não ser em museus e jardins botânicos e a nossa bandeira cada vez corresponde menos ao ve�e de nossas matas ou ao amarelo do nosso ouro. O azul de nosso céu é cada vez menos nítido, seja pelas queimadas que impedem até que aviões levantem vôo dos aeroportos, seja pela poluição de nossos centros indus triais. E o branco, bem ... a cor da paz só se compreende como pia da diante de uma realidade de conflitos entre a UDR e os campo neses ou da presença dos militares no poder quando chegaram no ponto de prender líderes sindicais, em nome da "segurança nacio nal", porque estes faziam manifestações contra as empresas multi nacionais aqui instaladas para gerar o nosso desenvolyimento. Eis o contexto histórico-cultural do qual emerge a preocu pação' ecológica no Brasil na década de 1970 .. . Tecnocratas brasi- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 15 leiros, participantes de seminários e colóquios internacionais, de claram que a "pior poluição é a da miséria" e tentam atrair os ca pitais estrangeiros para o país. A pressão da preocupação ambien talista que cresce a nível internacional obriga as instituições finan ceiras públicas e privadas a colocarem exigências para a realização de investimentos aqui: há que se ter preocupação com o meio am biente. Assim, antes que se houvesse enraizado no país um movi mento ,�ológico, o Estado criou diversas instituições para gerir o meio ambiente, a fim de que os ansiados investimentos pudessem aqui aportar. Diga-se de passagem que estas instituiç�s incluem, nos seus quadros, técnicos que se preocupam efetivamente com as condições de vida, porém a lógica destas instituições é determinada pela política global de atração de investimentos e não pelo valor intrínseco da questão ambiental. Por outro lado, são vários os exemplos de concessão de empréstimos internacionais, sobretudo do Banco Mundial e do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID -, para que se fizesse a demarcação das terras indígenas, das terras de posseiros e relatórios de impacto ambiental, cujos recur� sos não foram utilizados para os fins aos quais se destinavam. Uma outra questão importantíssima que é. preciso observar é · a que se refere à descentralização dos empreendimentos, fre qüentemente reivindicada pelo movimento ambientalista. É preciso ter em conta que as grandes empresas multinacionais têm possibili dades efetivas de descentralizar seus estabelecimentos, mantendo, todavia, o controle empresarial, o poder centralizado. Já uma em presa de pequeno porte não tem como o fazer. Deste modo, há que se distinguir entre descentralização técnica, isto é, quando uma mesma grande empresa descentraliza geograficamente seus estabe lecimentos que, no entanto, continuam sob um controle centraliza do da matriz e descentralização sócio-política, que diz respeito ao direito efetivo de cada unidade de produção autodetenninar seus destinos. Como se vê, só na aparência a descentralização multina cional se concilia com a descentralização proposta pelo movimento ambientalista. Também em fmais da década de setenta, com a anistia, re tomaram ao Brasil diversos exilados políticos que vivenciaram os movimentos ambientalistas europeus e que vão trazer um enonne 16 CARLOS WALTER P. GONÇALVES enriquecimento ao movimento ecológico brasileiro. Juntar-se-ão a outros que aqui já vinham defendendo teses ecologistas, como é o caso de José Lutzemberger. É interessante observar que o movi mento ecologista é socialmente mais enraizado no Rio Grande do Súl, onde a AGAPAM (Associação Gaúcha de Preservação Am biental) reuniu ecologistas a partir da luta contra a Borregaarde, empresa multinacional que poluía as águas do Rio Guruba, na Grande Porto Alegre e onde José Lutzemberger, ex-agrônomo de uma grande empresa multinacional de agrotóxicos, rompe com a perspectiva da agroquímica e assume profundamente a causa eco lógica e social. A maior parte dos exilados políticos que abraçam a causa ecológica se concentra no Rio de Janeiro, estado onde já se desenvolviam algumas lutas ambientalistas, sobretudo no norte fluminense (Campos e Macaé, por exemplo) e em Cabo Frio (luta pela preservação das dunas). São essas, portanto, as três fontes mais importantes de preocupação ecológica no Brasil: o Estado, interessado nos inves timentos estrangeiros que só chegam caso se adotem medidas de caráter preservacionista; o movimento social gaúcho e fluminense, se bem que essas lu� ocorressem em todo o Brasil - vide a luta nacional da Federação das Associações dos Engenheiros Agrôno mos do Brasil- FAEAB, liderada por Walter Lazarini, contra os agrotóxicos usados indiscriminadamente e a elaboraçãó · de seu "Receituário Agronômico"; e, finalmente, a contribuição dos exi lados políticos que aqui chegaram em finais da década de 70. Assim, de diferentes lugares soci�s emergem discursos ecológicos e práticas contraditórias entre si. Do ponto de vista das elites empresariais e tecnoburocráticas, a maior parte dos ecolo gistas são românticos e contra o progresso e o desenvolvimento. Em nenhum momento admitem que os ecologistas são contra a sua concepção de progresso e de desenvolvimento. Se, por exemplo, o movimento ecológico brasileiro não pode ficar indiferenteà miséria em que vive a maior parte da nossa população- e esse é um desa fio que dá uma certa especificidade ao movimento ecológico entre nós - isso não significa que se deva fazer vista gro�sa ante a de senfreada utilização da agroquímica com o objetivo de propiciar o aumento da produção agrícola. Ao contrário, deve-se propugnar OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 17 por wna·refonna agrária que incorpore outros princípios tecnológi cos e que não coloque, inclusive, os camponeses e demais agricul tores na extrema dependência dos bancos e das indústrias de agro tóxicos. Sabe-se que não é mera casualidade o fato de que um dos diretores do Banco do Brasil, instituição responsável por mais de 80% do crédito agrícola no país; seja executivo de uma das maio res fábricas de produtos agroquímicos aqui instaladas. Considere se tam'õém que a indústria bélica, a que mais cresceu na década de 1970, não é a única fonna de gerar emprego para os trabalhadores brasileiros. Do mesmo modo, a defesa da Amazônia não ocorre porque é considerada um santuário intocável, mas sim pelo reco nhecimento de que há mais de dez mil anos ali vivem povos indí genas e, há pelo menos um século, posseiros e seringueiros que fa zem uso da flo�sta sem a destruir. Esses povos da floresta reivin dicam hoje a constituição de "reservas extrativistas" na Amazônia, proposta que tem recebido o apoio de diversos técnicos que nela vêelh a possibilidade de valorização econômica da floresta, sem a costumeira destruição. Enfim, ser contra a instalação de grandes hidrelétricas não significa estar contra a energia. O que se deseja é a abertura de l:un debate livre e democrático sobre as diversas al ternativas energéticas para o país. Fica evidente, portanto, que o movimento ecológico está inserido nwna sociedade contraditória e, por isso, são diversas as propostas acerca da apropriação dos recutsos naturais. Saber dis tinguir dentre esses diferentes usos - o que implica estar atento a quem os propõe - é wna das nossas tarefas políticas, pois se todos · falam em defesa do meio ambiente por que as práticas vigentes são tão contraditórias.e, pior, devastadoras? LUTAS SOCIAIS, LUTAS ECOLÓGICAS De onde emerge o movimento ecológico? Talvez seja interessante observar os diversos movimentos sociais e verificar o que o ecoló gico tem em comum com eles e em que se diferencia. Vários são os movimentos sociais que se apresentam: são os operários, os cam poneses, os indígenas, as mulheres, os negros, os homossexuais, os jovens, etc. que se organizam e lutam ... Há um traço comum a es ses movimentos: todos eles- emergem a partir de determinadas con dições sociais de existência que lhes dão substância. Há uma determinada condição operária que foi instituída através de acirradas lutas e que configura a vida de importantes segmentos da sociedade. São homens e mulheres que não têm meios de produzir a sua própria exi,stência; que foram expulsos da terra ou nasceram filhos de famílias que foram·expropriadas· da ter ra e que se vêem obrigados a vender a sua força de trabalho, nem sempre fazendo aquilo de que gostam ou que melhor saberiam fa zer. Em virtude dessa condição, lutam contra os baixos salários, contra a insalubridade do meio ambiente da fábrica, contra os rit mos das esteiras e das linhas de montagem, enfim, contra uma de terminada forma de viver, por uma outra forma de viver ... A condi ção operária pode ser observada com razoável grau de nitidez não só no fluxo diário do "rush" das nossas cidades ou através dos caminhões de bóias-frias, como também através de seus movimen tos reivindicativos como greves, "operações-tartaruga", passeatas, etc ... OS (DES)CAMINHOSDOMEIO AMBIENTE 19 Os camponeses, ao contrário, dispõem geralmente de wn pequeno pedaço de terra e de seus instrumentos de trabalho; tra balham com seus familiares e visam garantir a reprodução das suas famílias praticando wna agricultura de subsistência e vendendo uma pequena parcela excedente dessa produção. No interior de uma SQ9iedade ·capitalista, como a nossa, com freqüência se vêem ameaçados por "grileiros" que possuem títulos falsos de proprie dade; pela chegada de uma estrada que "valoriza" as su,as terras - e atrás das estradas vêm os "grileiros", fazendeiros e especulado res; pela astúcia. das grandes empresas e dos bancos que prometem pagar muito . bem se eles produzirem o tabaco, o tomate, a ervilha ou o algodão ... mas depois que se "especializam" vêem-se obriga dos a comprar o que não mais produzem, estabelecendo-se uma troca desigual, onde, ao final e ao cabo, quase sempre perdem a sua terra e vagam pelo território, indo para as frentes pioneiras, pa ra as amazônias da vida, onde se tomam posseiros e, como tal, re começam a sua vida camponesa, até que por lá cheguem, outra vez, a estrada, o "grileiro'!··· Há, portanto, também, uma condição camponesa que pode ser razoavelmente localizada, embora sua maior ou menor nitidez, tal como na condição operária, dependa das lutas sociais em curso. Os povos indígenas com sua cultura e seus territórios ten tam resistir à extinção não só física, mas também cultural... Até· porque a vida é mais que biológica: é wn detenninado modo de ser, pensar, sentir e agir. Cada vez mais, os povos indígenas afirmam a sua singularidade, a sua diferença, enfim, a sua cultura. Há, por tanto, uma existência que poderíamos chamar de objetiva, inspi rando o movimento dos indígenas e essa objetividade, sabemos, de riva exatamente da sua afirmação como sujeitos de sua própria História, da sua singularidade. As mulheres também vêm afumando a sua singularidade. Recolhidas ao lar, consideradas como incapazes de agir senão pela emoção, vistas como objeto sexual� as mulheres, sobretudo a partir da década de 60, têm ocupado cada vez mais espaços na sociedade. Cada vez se toma mais difícil que o tribunal absolva o homem que matou sua mulher valendo-se da alegação de "defesa legítima da 20 CARLOS WALTER P. GONÇALVES honra". Há aqui, mais uma vez, uma condição-mulher razoavel mente delineada, da qual emerge o movimento feminista. Os �egros, tidos como inferiores e por isso escravizados, lutaram pela liberdade desde o primeiro dia em que, a contragosto, puseram seus pés no Brasil. Em 1888 viram o reconhecimento for mal da sua liberdade, muito embora a favela em nada seja melhor que um quilombo. Além dos diversos preconceitos a que ainda �e acham submetidos, ou até mesmo por isso, os negros são a grande parcela da população carcerária. Essa condição social de opressão e exploração sob a qual se acham vem também sendo a base objeti va de onde provém a consciência da negritude, através dos seus movimentos. Os homossexuais, em virtude dos preconceitos da socieda de, se vêem compelidos a viver em guetos, escondidos, onde são · obrigados a conviver com outros excluídos. Lentamente, vão con seguindo o seu direito de romper barreiras formadas pelos muros invisíveis do preconceito ... Cada vez se mostram mais lúcidos, na medida em que não afirmam a sua opção sexual como sendo a cor reta ou a verdadeira, conforme a ideologia sexista dominante. Cada vez mais reivindicam o direito à diferença; o direito de não serem discriminados pela sua opção sexual que, diga-se de passagem, é da inteira responsabilidade de cada um. Também aqui existe uma condição social objetiva de onde emerge um movimento. O mesmo pode ser dito do jovem que se vê obrigado, à medida que se aproxima da idade adulta, a aceitar regras de cuja elaboração não participou. Eis a verdadeira raiz do chamado con flito de gerações. Toda aquela energia que durante a infância e adolescência se desenvolveu através de folguedos e brinquedos lú dicos tem de sér reprimida para que se imponha o mundo "sério" dos adultos, onde se trabalha sem prazer, onde a aceitação de tudo se toma sinônimo de maturidade. Muito embora a condição de jovem seja sempre passageira, ela expressa com vigor problemasque a sociedade apresenta, mas que a ideologia dominante desqualiftca como "coisas da idade". Sem perder de vista que a condição-jovem é extremamente diferen ciada nas diversas classes sociais e que em determinadas classes, como a operária por exemplo, os conceitos de criança, adolescente OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE· 21 e jovem são quase sempre destituídos do mesmo significado que têm para as outras classes, é preciso destacar a existência de uma condição social jovem de onde se originam movimentos sociais que, via de regra, questionam os valores culturais dominantes. E o movimento ecológico? Existe uma condição social ecológica? Aqui. talvez se imponha uma maior precisão no que es tou chamando de condição social. Ela diz respeito, entre ·outras coisas, ao modo como a sociedade, ao. instituir suas relações, con forma o cmpo dos indivíduos. Há um corpo operário, camponês, indígena, mulher, negro, homossexual e jovem, por exemplo. Não há um corpo ecológico enquanto condição social. Não há, para o movimento ecológico, essa base objetiva, produzida e instituída socialmente através de lutas. Essa é uma diferença extremamente significativa: o movimento ecológico é mais difuso, não apreensí vel do mesmo modo que os demais corpos que se movimentam so- cial'e politicamente. . Esse caráter difuso não desqualifica o movimento ecológi co. Ao contrário, é a fonte da sua riqueza e dos.seus problemas en quanto movimento polítioo e cultural. Ao propugnar uma outra re lação dos homens (sociedade). com a natureza, aqueles que consti tuem o movimento ecológico estão, na verdade, propondo um outro modo de vida, uma outra cultura. Chocam-se com valores já consa grados pela tradição e que, ao mesmo tempo, perpetuam os pro blemas que queremos ver superados. É por esse caráter difuso de um movimento que, no fundo, aponta para uma outra cultura, que os ecologistas se encontram envolvidos com questões tão diferentes como a luta contra o desmatamento, contra os agrotóxicos, os ali mentos contaminados, o crescimento da população, a urbanização descontrolada, o gigantismo tecnológico e o nuclear, a poluição, a erosão dos solos, a extinção de animais, etc. Na trajetória desse movimento, muitos têm sido os con frontos com outros movimentos que também procuram afirmar as suas singularidades. Quando os ecologistas europeus se colocam contra o complexo industrial militar, contra o militarismo, se de frontam não só com os empresários do setor, mas também com os operários que nele trabalham e temem perder seus empregos. Quando, no Brasil, denunciamos a contaminação de rios por mer cúrio usado por garimpeiros, pequenos produtores, nos vimos "apoiados" pela grande imprensa, inclusive por uma grande central de televisão que tem interesse no setor. Neste caso, a grande em- 22 CARLOS WALTER P. GONÇALVES presa se mostra mais competente para evitar a contaminação dos. rios em virtude das técnicas mais sofisticadas de que dispõe. Os pequenos produtores de ouro se vêem pressionados pela opinião pública mobilizada pela )llÍdia em nome de causas ecológicas e, / / proibidos de continuar sua atividade, migram para outros lugares, indo disputar terras com posseiros ou . comunidades indígenas ou indo engrossar o exército dos despossuídos urbanos. Os ecologistas podem se considerar vitoriosos nesse caso? De fato, aquele rio provavelmente ficou sem contaminação; no en tanto, a produção de ouro ficou concentrada em grandes empresas, os conflitos pela posse da terra se intensificaram e a concentração urbana aumentou. Mais ainda, o movimento ecológico se vê, com freqüência, alvo de suspeita de cumplicidade com os poderosos. Estes, por sua vez, não raro acusam os ecologistas de romantismo, sempre que estes se colocam contra o gigantismo das cidades, o gi gantismo das ·indústrias, o complexo industrial militar, o nuclear, etc. Costumam afmnar que os ecologistas querem voltar à Idade da Pedra e outras coisas do gênero. Por tudo quanto é lado, pela frente e pelos fundos, pela direita e esquerda, de cima e de baixo, o movimento ecológico se vê cooptado ou rechaçado, ao sabor das conveniências de interesses outros. Há ecologistas que identificam nisso a afmnação da "verdade ecológica", o que não deixa de ser uma posição estranha, uma vez que esse movimento se constrói em ·meio a desconfianças generalizadas. O estabelecimento 'de uma outra relação, mais hannônica, dos homens com a natureza - tema de que tratarei mais adiante - vincula-se, ou não, ao estabeleci mento da hannonia nas relações dos homens çntre si? -Em caso ne gativo, constata-se, no mínimo, uma incoerência, pois sendo o ho mem também natureza, do reino animal, por que não estaríamos submetidos às leis da hannonia entre nós? Um leão não é mais rico que o seu companheiro leão; um gato não é mais poderoso que seu vizinho gato; uma andorinha não é mais do que sua irmã andorinha ... Como se vê, a problemática ecológica implica outras questões extremamente complexas. Implica outros valores, o que por si só coloca questões de ordem cultural, filosófica e política. Implica um outro conceito de natureza e, conseqüentemente, outras fonnas de relacionamento entre os seres vivos; com o mundo inor gânico; enfim, dos homens entre si. O CONCEITO DE NATUREZA NÃO É NATURAL É comum entre aqueles que se envolvem com a problemática eco lógica citar outras sociedades como modelos de relação entre os homens e a natureza. As comunidades indígenas e as sociedades orientais são, via de regra, evocadas como modelos de uma relação hannônica com a natureza. Se em diferentes religiões o paraíso é projetado no reino dos céus, para diversos ecologistas este se loca liza em outras sociedades. Há uma virtude nesse procedimento: ele oferece um consolo, enquanto idéia, para o mundo em que vivemos -que concretamente não tem consolo. Isto não deixa de ser, à sua moda, uma crítica à sociedade que não é tal e qual os modelos ci-' tados, daí as utopias. Nesse sentido, as utopias têm um lugar con .creto num mundo onde não existem concretamente, sendo por isso sonhadas e projetadas enquanto utopias. Por outro lado, esse pro cedimento não deixa de ser também uma fuga dos problemas con cretos, muitts vezes derivada de uma incompreensão das razões pelas quais em nossa sociedade e cultura as coisas são do jeito que são. Toda sociedade, toda cultura cria, inventa, institui uma determinada idéia do que seja a natureza. Nesse sentido, o conceito de natureza não é natural, sendo na verdade criado e instituído pe los homens. Constitui um dos pilares através do qual os homens erguem as suas relações sociais, sua produção material e espiritual, enfim, a sua cultura. 24 CARLOS WALTER P. GONÇALVES Dessa forma, é fundamental que reflitamos e analisemos como foi e como é concebida a natureza na nossa sociedade, o que tem servido como um dos suportes para o modo como produzimos e vivemos, que tantos problemas nos tem causado e contra o qual constituúnos o movimento ecológico. A NATUREZA NO DIA-A-DIA Sem que nos apercebamos, usamos em nosso dia-a-dia uma série de expressões que trazem em seu bojo a concepção de natureza que predomina em nossa sociedade. Chama-se de burro ao aluno ou a pessoa que não entende o que se fala ou ensina; de cachorro ao mau-caráter; de cavalo ao indivíduo mal-educado; de vaca, pira nha e veado àquele ou àquela que não fez a opção sexual que se considera correta, etc ... Juntemos os termos: burro, cachorro, ca valo, vaca, piranha e veado são todos nomes de animais, de seres da natureza tomados - em todos os casos - em sentido negativo-r em oposição a comportamentos considerados cultos, civilizados, e bons. O antropólogo Lévi-Strauss nos ensina que os romanos cha mavam de bárbaros aos outros povos tidos por eles como não civi lizados e que a palavra "bárbaro" originalmente significava canto desarticulado das (llles. Portanto, bárbaro era o que é da natureza ave - poroposição ao que é da cultura- romano. Chama-se de sel vagem àquele que se encontra no pólo oposto da cultura. E, notem bem, selvagem quer dizer da selva, mais uma vez, do plano da na- tureza. A natureza se define, em nossa sociedade, por aquilo que se opõe à cultura. A cultura é tomada como algo superior e que conseguiu controlar e dominar a natureza. Daí se tomar a revolução ,neolítica, a agriCULTURA, um marco da História, posto que com ela o homem passou da coleta daquilo que a natureza "naturalmente" dá 26 CARLOS WALTER P. GONÇALVES para a coleta daquilo que se planta, que se cultiva. Com a agricul tura nos tomamos sedentários e não mais nômades. Primitivos são aqueles que vivem da caça, da pesca e da coleta ou de uma agri cultura itinerante, posto que não conseguem manter a fertilidade do solo, necessitando migrar periodicamente em busca do alimento. Com a agricultura irrigada alguns povos se estabelecem sobre um determinado território de maneira mais permanente, mais estável. A vida se toma menos inconstante, domestica-se a natureza e, assim, formam-se os berços das civilizações na Mesopotâmia, no Egito, na China, etc. Dominar a natureza é dominar a inconstância, o impre visível; é dominar o instinto, as pulsões, as paixões. Tem-se como necessário o artifício das leis para evitar que retomemos ao reino animal, tido como lugar dos instintos. O Esta- do, a lei e a ordem são tomados como necessários para evitar o primado da natureza, onde reina o caos ou, no máximo, a "lei da selva", onde todos lutam contra todos. Basta um rápido olhar sobre os diversos Estados constituídos com suas leis e ordens para no tarmos o quadro de fome, de guerras, de opressões e violências de todos os tipos que eles mesmos instituíram em nome da civilização para constatarmos a inconsistência deste tipo de abordagem. Na verdade, encontramo-nos diante de um conceito de natureza que justifica a existência do Estado. Este é condição de "civilização" e "primitivos" são os povos que não têm Estado. Esta é uma das ra zões para que se chame de ingênuo ao ecologista que cita o indíge na como modelo de relação entre o homem e a natureza. Além disso, a expressão dominar a natureza só tem sentido a partir da premissa de que o homem é não-natureza . . . Mas se o homem é também natureza, como falar em dominar a natureza? Te ríamos que falar em dominar o homem também . . . E aqui a contra- . dição fica evidente. Afinal, quem dominaria o homem? Outro ho mem? Isso só seria concebível se aceitássemos a idéia de um ho mem superior, de uma raça superior, pura - e a História já de monstrou à farta as conseqüências destas concepções. A natureza é, em nossa sociedade, um objeto a ser domi nado por um sujeito, o homem, muito embora saibamos que nem todos os homens são proprietários da natureza. Assim, são alguns poucos homens que dela verdadeiramente se apropriam. A graride OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 27 maioria dos outros homens não passa, ela também, de objeto que pode até ser descartado. A visão tradicional da natureza-objeto versus homem-sujeito parece ignorar que a palavra sujeito com porta mais de um significado: ser sujeito quase sempre é ser ativo, ser dono do seu destino. Mas o termo indica também que podemos ser ou estar sujeitos - submetidos - a determinadas circunstâncias e, nesta acepção, a wavra tem conotação negativa . . . Eis aí o para doxo do humanismo moderno: sua imperiosa necessidade de afrr mar uma visão de mundo antropocêntrica, onde o homem é o rei de tudo, o faz esquecer o outro significado do termo "sujeito" - o sujeito pode ser o que age ou o que se submete. A ação tem a sua contrapartida na submissão. Já vimos como em tomo do conceito de natureza se tecem no dia-a-dia as relações sociais. Talvez seja agora interessante lo calizar de onde brota essa visão de natureza entre nós. OS (DES)CAMINHOS DO CONCE ITO DE NATUREZA NO OCIDENTE Podemos dizer que a separação homem-natureza (cultura-natureza, história-natureza) é uma característica marcante do pensamento que tem dominado o chamado mundo ocidental, cuja matriz filosófica se encontra na Grécia e Roma clássicas. Quando afirmamos que é o pensamento dominante no Ocidente, queremos deixar claro que a afirmação desse pensamento - que opõe homem e natureza - cons titui-se contra outras formas de pensar. Não devemos ter a ingenui dade de acreditar que ele se afmnou perante outras concepções porque era superior ou mais racional e, assim, desbaricou-as. Não, a afmnação desta oposição homem-natureza se deu, no corpo da complexa História do Ocidente, em luta com outras formas de pen samento e práticas sociais. Ter isso em conta é importante não só para compreender o processo histórico passado, mas, sobretudo, pa ra compreender o momento presente. Isso porque o movimento ecológico coloca hoje em questão o conceito de natureza que tem vigorado e, como ele perpassa o sentir, o pensar e o agir de nossa sociedade, no fundo coloca em questão o modo de ser, de produzir e de viver dessa sociedade. No Ocidente, já houve época em que o modo de pensar a natureza foi radicalmente diferente do que tem dominado nas épo cas modema e contemporânea, muito embora possamos encontrar na Idade Média e entre filósofos do período clássico grego essa mesma visão dicotomizada, parcelada, oposta, entre homem e natu- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 29 reza. As coisas eram diferentes, por exemplo, na chamada época pré-socrática 1 quando os filósofos Tales, Anaximandro, Anaxíme nes (todos de Mileto);- Xenófanes (de Cólofon); Heráclito (de Éfe so); Pitágoras (de Samos); Parmênides e Zenão (de Eléia); Melisso (de Lamos); Empédocles (de Agrigento); Filolau (de Cróton); Ar quitas (de Torento); Anaxágoras (de ClazÓmena); Diógenes (de Apolônia) e Le:ucipo e Demócrito (de Abdera) desenvolveram um conceito de natureza bastimte diferente daquele que vai coinéçar a se impor principalmente após Sócrates, Platão e Aristóteles. E o filósofo Gerd Bornheim quem nos diz: Em nossos dias, a natureza se contrapõe ao psíquico, ao anímico, ao espiritual, qualquer que seja o sentido que se empreste a estas palavras. Mas para os gregos, mesmo de pois do período pré-socrático, o psíquico também pertence à physis. Esta importante dimensão da physis pode ser melhor compreendida a partir de sua gênese mitológica ( . . . ) Os deuses gregos não são entidades sobrenaturais, pois são compreendidos como parte integrante da natureza ( . . . ) Esta presença (dos deuses) transparece ainda na frase que é atribuída a Tales: "Tudo está cheio de deuses!" ( . . . ) Segundo Jaeg�r, Tales_ emprega a palavra deus "em um sentido um tanto distinto daquele em que a empregariam a maioria dos homens". Os deuses de Tales não vivem em uma região longínqua, separada, . pois tudo, todo o mundo que x:odeia o homem e que se oferece ao seu pensamento está cheio de deuses e dos efeitos de seu poder. "Tudo está cheio de misteriosas forças vivas; a distinção entre a natureza animada e inanimada não tem fundamento algum; tudo tem uma alma". Esta idéia da alma, de forças miste riosas que habitam a physis, transforma-a em algo inteli gente, empresta-lhe certa espiritualidade, afastando-a do sem-sentido anárquico e caótico. Veja-se, como exemplo, o fragmento 67, de Heráclito. "Deus é dia e noite, inver no e verão, guerra e paz, abundância e fome. Mas toma formas variadas, assim como o fogo, quando misturado com essências, toma o nome segundo o perfume de cada uma delas." Ou ainda o fragmento 64: "O relâmpago (que é a arma de Zeus) governa o universo''. Esta idéia de que deus pertence em algum sentido à physis é característica de todo o pensamento pré-socrático e continua viva mesmo em Demócrito ( . . . ) À physis pertence, portanto, um princí- 30 CARLOS WALTER P. GONÇALVES pio inteligente, que é reconhecido através de suas mani festações e ao qual se emprestam os mais variados nomes: espírito,pensamento, inteligência, logos, etc. A palavra physis indica aquilo que por si brota, se abre, emerge, o desabrochar que surge de si próprio e se mani festa neste desdobramento, pondo-se no manifesto. Trata se, pois, de um conceito que nada tem de estático, que se caracteriza por uma dinamicidade profunda, genética. "Di zer que o oceano é a gênese de todas as coisas é virtual mente o mesmo que dizer que é a physis de todas as coi sas", aímna Wemer Jaeger referindo-se a Homero. Neste sentido, a physis encontra em si mesma a sua gênesf(; ela é arké, princípio de tudo aquilo que vem a ser. O "pôr-se no manifesto" encontra na physis a força que leva a ser manifesto. Por isto pôde Heidegger dizer "a physis é o próprio ser, graças ao qual o ente se toma e permanece ob servável". Há ainda um terceiro aspecto que caracteriza a physis para os gregos: A physis é a totalidade de tudo o que é. Ela pode ser apre endida em tudo o que acontece: na aurora, no crescimento das plantas, no nascimento de animais e homens. E aqui convém chamar a atenção para um desvio em que facil mente incorre o homem contemporâneo. Posto que a nossa compreensão do conceito de natureza é muito mais estreita e pobre que a grega; o perigo consiste em julgar a physis como se os pré-socráticos a compreendessem a partir da quilo que nós hoje entendemos por natureza; neste sentido, se comprometeria o primeiro pensamento grego com uma espécie de naturalismo. Em verdade, a physis não designa principalmente aquilo que nós, hoje, compreendemos por natureza, estendendo-se, secundariamente ao extranatural. Para os pré-socráticos, já de saída, o conceito de physis é o mais amplo e radical possível, compreendendo em si tudo o que existe. Não se compreende o psíquico, por exemplo, a partir do modo de ser da natureza em seu sentido atual, como não se entendem os deuses a partir do nosso conceito mais parco de natureza. À physis pertencem o céu e a ter ra, a pedra, a planta, o animal e o homem, o acontecer hu mano como obra do homem e dos deuses e, sobretudo, pertencem à physis os próprios deuses. Devido a esta am- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 3 1 plidão e radicalidade, a palavra physis designa outra coisa que o nosso conceito de· natureza. V ale dizer que na base do conceito de physis não está nossa experiência da natu reza, pois a physis possibilita ao homem uma experiência totalmente outra que não a que temos face à natureza. As sim, a physis compreende a totalidade daquilo que é; além dela nada há que possa merecer a investigação humana. Por isto, pensar o todo do real a partir da physis não impli ca �·naturalizar" todos os entes ou restringir-se a este ou aquele ente natural. Pen�ar o todo do real a partir da physis é pensar a partir daquilo que determina a realidade e a to talidade do ente. Pensando a physis, o filósofo pré-socrático pensa o ser e a partir da physis pode então chegar a uma compreensão da totalida de do real: do cosmos, dos deuses e das coisas particulares, do ho mem e da verdade, do movimento e da mudança, do animado e do inanimado, do comportamento humano e da sabedoria, da política e da justiça. É com Platão e Aristóteles que se começa a assistir a um certo desprezo "pelas pedras e pelas plantas" e a um privilegia menta do homem e da idéia. Não nos devemos esquecer de que os consagrados fundadores da Filosofia, acima citados, viveram du rante o chamado apogeu da democracia grega2• Imediatamente, os acontecimentos que desembocaram na guerra do Pelopon'eso colo caram em crise o regime social e político de Atenas. É exatamente no interior dessa crise que desponta a chamada filosofia grega. Três questões então aqui se colocam. A p�eira diz respeito à paulatina desqualificação dos pensadores anteriores como expres sando um J)ensamento mítico e não filosófico. Assim, o filósofo se ria um pensador superior em relação aos que o antecederam. A re tórica, arte da argumentação, e o sofista, que tanto a cultivava, passam a ser termos pejorativos. Ninguém quer ser retórico ou so fista. Em segundo lugar, observamos que com esse processo se ini cia uma mudança no conceito de physis, de natureza que, se num primeiro momento não aparece senão debilmente, pouco a pouco se afmnará até atingir contemporaneamente essa concepção de natu reza desumanizada e desta natureza não-humana. Relembramos que esse processo se afmna com a crise da democracia grega. Final mente: hoje, como no passado, a reflexão se impõe exaú,Unente nos 32 CARLOS WALTER P. GONÇALVES momentos de crise, quando setores da sociedade se colocam a tare fa de repensar seus fundamentos, seus valores, seu modo de ser. O movimento ecológico está bem no centro destas complexas ques tões. Não é por acaso que, modernamente, a problemática ecológi ca transita entre a Ciência, a Filosofia. e a Política, recolocando in clusive em novas bases a relação entre esses três planos. Mas foi sobretudo com a influência judaico-cristã que a oposição lwmem-natureza e espírito-matéria adquiriu maior di mensão. Os cristãos vão afmnar decididamente que "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança". Note bem: o homem foi cria do à imagem e semelhança de Deus (Deus aqui aparece com letra maiúscula e não como para os pré-socráticos). O homen{' é, assim, dotado de um privilégio. Com o cristianismo no Ocidente, Deus sobe aos céus e, de fora, passa a agir sobre o mundo imperfeitÓ do dia-a-dia dos mortais. Localizado num lugar privilegiado, estraté gico, do alto, Deus a tudo vê e controla. A assimilação aristotélico platônica que o cristianismo fará em toda a Idade Média levará à cristalização da separação entre espírito e matéria. Se Platão falava que só a idéia era perfeita, em oposição à realidade mundana, o cristianismo operará sua própria leitura, opondo a perfeição de Deus à imperfeição do mundo material. Essa leitura de Aristóteles e Platão efetuada pela lgrejá na Idade Média se fez evitando-se outras leituras através da censura, como muito bem o demonstrou Umberto Eco em O Nome da Rosa. Enfim, com o cristianismo, os deuses já não habitam mais esse mundo, como na concepção dos pré-socráticos. E, apesar da acusação de obscurantismo que mais tarde os pensadores modernos lançarão. aos tempos medievais, a dívida que a Ciência e a Filosofia modernas têm para com a Idade Média é maior do que se admite. Foi na Idade Média, por exemplo, que teve início a prática de dissecação de cadáveres no Ocidente europeu. Esse fato é de uma importância muito grande e se consti tuiu numa decorrência lógica de uma Filosofia q� separa corpo e alma. Se a alma não habita mais o corpo depois de morto, este, como objeto, pode ser dissecado anatomicamente. Afinal, aquilo que o anima (do grego ânima, alma) não está mais presente. O corpo, matéria, objeto pode então ser dissecado; esquartejado, di vidido. O sujeito, o que faz viver, foi para os céus ou para os in- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 33 infernos e o corpo pode, então, virar objeto . . . O método experi mental já estava em prática nos monastérios e universidades católi cas muito antes de Galileu. É com Descartes, todavia, que essa oposição homem-natu reza, espírito-matéria, sujeito-objeto se tomará mais completa, constituindo-se no centro do pensamento moderno e contemporâ neo. Em seu Discurso sobre o Método René Descartes afirma que "é possível chegar a conhecimentos que sejam muito úteis à vida" e que em vez dessa filosofia especulativa que se ensina nas es colas, pode-se encontrar numa outra prática pela qual co nhecendo a força e a ação do fogo, da água, do ar, dos as tros, dos céus e de todos os outros corpos que nos cercam tão distintamente como conhecemos os diversos misteres de nossos ofícios poderíamos empregá-los da mesma ma neira em todos os usos para os quais são próprios e assim nos tomar como que senhores e possuidores da natureza (os grifos são meus). Dois aspectos da filosofia cartesiana aqui expressosvão marcar a modernidade: 12) o caráter pragmático que o conheci mento adquire - "conhecimentos que sejam muito úteis à vida em vez dessa fllosofia especulativa que se ensina nas escolas". Dessa forma, o conhecimento cartesiano vê a natureza como um recurso, ou seja, como nos ensina o Dicionário do Aurélio, um meio para se atingir um fim, e 22) o antropocentrismo, isto é, o homem passa a ser visto como o centro do mundo; o sujeito em oposição ao objeto, à natureza. O homem, instrumentalizado pelo método científico, pode penetrar os mistérios da natureza e, assim, toma-se "senhor e possuidor da natureza". À imagem e semelhança de Deus, tudo pode, isto é, é todo-poderoso. Lewis Munford percebeu com pro fundidade a herança medieval de Descartes ao afmnar que "des graçadamente persistiu o hábito medieval de separar a alma do ho mem da vida do mundo material, ainda que houvesse sido debilita da a teologia que o apoiava". O desprezo pelas coisas materiais da Idade Média começa a ganhar, a partir dos séculos XVI, XVII e XVIII, um outro sentido, positivo, na medida em que "se pode en- entrar uma outra prática onde poderíamos empregá-los da mesma 34 CARLOS WALTER P. GONÇALVES maneira em todos os usos para os quais são próprios' ' , como dizia Descartes. O antropocentrismo e o sentido pragmático-utilitarista do pensamento cartesiano não podem ser vistos desvinculados do mercantilismo que se afirmava e já se tornava, com o colonialismo, senhor e possuidor de todo o mundo. Afmal, na Idade Média, a ri queza dos senhores feudais e da Igreja advinha da propriedade da terra e, na verdade, da exploração dos servos que para a utilizarem pagavam um . tributo ou renda. Com o desenvolvimento mercantil e, com ele, da burguesia a riqueza passa cada vez mais a depender da técnica (ver a esse respeito o capítulo sobre produtividade). A pragmática filosofia cartesiana encontra um terreno fértil para ger minar. O antropocentrismo consagrará a capacidade humana de dominar a natureza. Esta, dessacralizada já que não mais povoada por deuses, pode ser tornada objeto e, já que não tem alma, pode ser dividida, tal como o corpo já o tinha sido na Idade Média. É uma natureza-morta, por isso pode ser esquartejada . . . · Com a instituição do capitalismo essa tendência será leva da às últimas conseqüências. O lluminismo, no século XVIII, como que antecipando esse desfecho se encarregará de limpar a filosofia renascentista de seus traços religiosos medievalistas. A crítica da metafísica - de meta além e physis, natureza, ou seja, daquilo que está além da natureza, na concepção iluminista, será feita em nome da física, isto é, em nome da natureza tomada aqui no sentido do concreto, do tangível, do palpável. Para compreender o mundo é necessário partir do próprio mundo e não de dogmas religiosos ou que estão além do mundo, quer dizer, metafísicas. A Revolução Industrial evidencia a força dessas idéias ou, como preferem alguns, a Revolução Industrial é a base dessas idéias. O século XIX será o do triunfo desse mundo pragmático, com a ciência e a técnica adquirindo, como nunca, um significado central na vida dos homens. A natureza, cada vez mais um objeto a ser possuído e dominado, é agora subdividida em física, quúnica, biologia. O homem em economia, sociologia, antropologia, histó ria, psicologia, etc. Qualquer tentativa de pensar o homem e a na tureza de uma forma orgânica e integrada torna-se agora mais difí cil, até porque a divisão não se dá somente enquanto pensamento. OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 35 A realidade objetiva construída pelos homens - o que inclui, ob viamente, a subjetividade, sem o que o homem se transforma num ser exclusivamente biológico - está toda dividida: a indústria têxtil está separada da agricultura. Se, por exemplo, no início, cada in dustriài têxtil construía suas próprias máquinas, encomendando pe ças aos artesãos, com o aumento do número de indústrias têxteis se criou um mercado para indústrias de ,máquinas; as 'indústrias de máquinas se; especializam, etc. A divisão social e técnica do traba lho faz parte do mundo concreto dos homens e não pensar de modo fragmentado, dividido, dicotomizado, passa a ser cada vez mais ca racterístico daqueles que parecem ter perdido o sentido de realida de ... São "os que querem voltar ao passado", que "não vêem o progresso da História que está sob seus olhos", "são românticos", "idealistas", dizem. São "irracionalistas" e, assim, "se refugiam em seitas religiosas que os abrigam". Se o real é o racional abso luto que a civilização capitalista industrial cria, de fato, tem senti do chamar de irracionalistas e sonhadores os que não se identifi cam com essa razão, o que não quer dizer que não possa haver uma razão crítica alternativa à razão que oprime e devasta. A idéia de uma natureza objetiva e exterior ao homem, o que pressupõe uma idéia de homem não-natural e fora da natureza, cristaliza-se com a civilização industrial inaugurada pelo capitalis mo. As ciências da natureza se separam das ciências do homem; cria-se um abismo colossal entre uma e outra e, como veremos mais adiante, tudo isso não é só uma questão de concepção do mundo. A ecologia enquanto saber e, sobretudo, o movimento ecológico ten tam denunciar as conseqüências dessas concepções, embora o fa çam, muitas vezes, permeados pelos princípios e valores dos seus detratores . . . NOTAS 1. Diga-se de passagem que chamar os pensadores que viveram antes do sé culo V a.C., na Grécia, de pré-socráticos já revela um preconceito, na medida em que se os nomeia pela referência não aos atributos que lhes são próprios, mas pela evocação daquilo (ou de quem) não são e que lhes sucede - Sócrates -, o que na verdade significa recusar-lhes identidade e 36 CARLOS WALTER P. GONÇALVES cidadania. Esses homens que nos legaram teses das quais, infelizmente, só nos chegaram fragmentos num estilo de linguagem para nós pouco fami liar, têm sido alvo de muitas atenções sobretudo nos últimos anos. 2. Esse marco, apogeu, só tem sentido para nós, porque para os gregos do século V a.C. aquela época não implicava necessariamente o ápice de um processo, muito embora fizessem referência aos perigos que rondavam a democracia grega e que criavam a possibilidade do seu declínio. A CIÊNCIA DIANTE DA NATUREZA Temos insistido em que toda sociedade, toda cultura, cria um de tenninado conceito de natureza, ao mesmo tempo em que cria e institui suas relações sociais. No interior destas relações sociais está embutida, portanto; uma detenninada concepção de natureza. Ora, a ciência moderna é também instituída por uma sociedade, por uma cultura, num processo que começa a se configurar com o Re nascimento no século XVI e se con�olida nos séculos XVill e XIX. Em conseqüência, a ciência instituída por esta sociedade traz nela, subjacentes, os pressupostos do real-imaginário desta cultura que a instituiu como relação social. Estamos, portanto, longe da crença que vê a evolução das idéias - no caso, da ciência, - como algo que paira acima dos mortais. Ao contrário, consideramos que o saber científico, instituído socialmente, como todas as instifui- ões, não é definitivo ou imortal. Ainda que com os riscos de fazermos uma caracterização umária dos pressupostos que incorpora da sociedade que a criou, podemos �r que a ciência moderna se configura em torno de três ixos: 1) A oposição homem e natureza. 2) A oposição sujeito e objeto. 3) O paradigma atomístico-individualista. 38 CARLOS WALTER P. GONÇALVES A OPOSIÇÃO HOMEM VERSUS NATUREZA Já discorremos nos capítulos anteriores a respeito desta oposição, tão marcante no pensamento ocidental, entre o homem, a cultura, a história, de um lado, e a natureza, de outro. Nossas uni versidades estão ,estruturadas com base nesta oposição: de um lado, as ciências da natureza e, de outro, as ciências humanas. As ciên cias humanas vivem radicalmente separadasdas ciências da nature za e, assim, descobertas realizadas em um ou outro desses campos ficam nele isoladas, como se houvesse uma alfândega proibindo que saíssem das fronteiras de cada grande área do conhecimento. Assim, por exemplo, se a descoberta do código genético abriu a biologia para trocas com a quúnica, pois o gene está inscrito no ácido desoxirribonucléico, o ADN, o mesmo não ocorre entre a biologia e as teorias de comunicação, a informática e a cibernética, muito embora a biologia trabalhe com as noções de código, pro grama e memória . . . Em síntese, é necessário romper as barreiras da biologia não só para a <1J:ÚIDÍCa como também para as ciências so ciais, a teoria da comunicação, por exemplo. E tudo isso sem a preocupação de reduzir o biológico ao social ou vice-versa, evitan do equívocos do darwinismo social que de modo unilateral reduziu o social ao natural, ao biológico. Mesmo a geografia que, em princípio, não caberia dentro dessa oposição, reproduz no seu interior essa dicotomia através da separação entre a geografia física e a geografia humana. Os geó grafos talvez tenham a chance de pensar em nova� ahordagcns desta relação entre o físico e o humano. Todavia enquanto se mantiverem dentro dos parâmetros do pensamen.o herdado, poucas chances terão de superar o problema. Se refletirmos bem, observa remos que a ecologia vem ocupando esse espaço teórico e político que os geógrafos não têm sabido ocupar. Na verdade, é de um ou tro conceito de natureza e, conseqüentemente, de homem que a ciência, a sociedade e a cultura contempvrânea carecem. A busca de algo que comprove que o homem não é nature za se constitui numa verdadeira obsessão do pensamento herdado no Ocidente. O homem é um ser social, dizem-nos. Para o de monstrar, lança-se mão de exemplos de crianças que foram encon- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 39 tradas completamente isoladas de uma sociedade-cultura. As difi culdades de articulação da linguagem, os gestos incompreensíveis e até a postura corporal diferente são citados como evidências de que o homem só é homem se vivendo socialmente, no ambiente de uma cultura. Ora, essa tese só teria substância se observássemos em vá rias comunidades animais como se dá o comportamento de cada in divíduo de cada espécie e depois observando o caso de um indiví duo em cada comunidade que também fosse encontrado completa mente isolado e verificássemos que o comportamento dos indiví duos isolados não apresentava diferenças fundamentais em relação ao da sua mesma espécie, o que nos permitiria acreditar que o comportamento dos animais diferentes do homem deriva exclusi vamente de características genéticas e não da convivência deles em grupo. Mesmo que se pudesse dizer que um grupo de indivíduos da mesma espécie apresenta determinadas características (enquanto grupo) que advêm de sua estrutura genética, ainda assim caberia explicar por que um indivíduo isolado não apresenta as mesmas ca racterísticas quando está sozinho e quando está vivendo em grupo. Parece evidente que a diferença detectada se deve à sociabilidade derivada da vida em grupo que teria, no mínimo, a capacidade de selecionar certos atributos e potencialidades genéticas. Neste caso, percebe-se a dimensão do pensamento de Spinosa quando afirmava que todo ser é potência e que a potencialidade de cada ser se de senvolve na relação. O desenvolvimento recente da etologia, ciência que estuda o comportamento dos animais na sua vida em grupo e, também, da sociobiologia indica, no mínimo, que o viver em sociedade é uma característica do reino dos seres vivos, sobretudo dos animais. Mais adiante veremos com mais detalhes que tal problema, em su ma, só se coloca em virtude do pressuposto atomístico-individua lista que tem dominado o pensamento ocidental e, por conseqüên cia, a ciência modema. Dizer, portanto, que o homem é um ser social como se isso o distinguisse dos demais seres da natureza pode ser uma afirmação altissonante mas que pouco faz avançar qualquer esforço de dife renciação entre o homem e a natureza, na medida em que os seres vivos, sobretudo os animais, já vivem socialmente. Isso não quer i i 40 CARLOS WALTER P. GONÇALVES dizer que o homem não seja um animal social, mas que é social porque é animal e os animais vivem socialmente. Por outro lado, essa constatação não autoriza uma interpretação ingênua que redu ziria o homem ao reino animal sem maiores reflexões. Assim como entre os animais há diferenças significativas, e homem tem também as suas especificidades. Outros auto�s, como Uvi-Strauss, vão tentar distingqir o homem da natureza pelo fato de os homens estabelecerem interdi ções ou proibições para o acasalamento. Ou seja, o relacionamento sexual entre os hwnanos está sujeito a regras arbitrárias, artificiais, culturais, onde uma série de possibilidades estão int�rditadas. Por exemplo: irmãos consangüíneos, pai e filha, mãe e filho não podem casar entre si. Assim, cada cultura teria suas próprias interdições, seus próprios tabus, e nisso os homens se distinguiriam dos ani mais, da natureza, onde reinaria a promiscuidade ou, se se preferir, nenhuma lei existiria regulando os acasalamentos. Essa tese, que quase levou a que se confundisse o objeto da antropologia com o estudo das relações de parentesco, trouxe-nos uma série de conhe cimentos importantes a respeito das relações entre os homens. To davia, o próprio Uvi-Strauss em prefácio recente a sua antiga obra Estruturas Elementares do Parentesco reconhece que se houver separação entre natureza e cultura a linha divisória é extremamente tênue. E assÍlJ.l afirma em virtude de ter tido acesso a inúmeros tra balhos rigorosos e científicos que admitem a existência de relações de parentesco e de interdições entre alguns primatas superiores. Ironicamente, se a antropologia, com Uvi-Strauss, muito contri buiu para a compreensão do homem isso se deu apesar e até por causa da ilusão de ter pensado encontrar o divisor de águas que se para a natureZa da cultura, isto é, as relações de parentesco ... E poderíamos alongar a lista de tentativas que se fizeram no Ocidente para afirmar essa separação entre natureza e cultura, evocando os exemplos em que a linguagem, a técnica e o trabalho aparecem como a chave da separação. Tais considerações nos levam a pensar na aparentemente contraditória dificuldade que nós ocidentais temos para conviver com a diferença. Se natureza e homem são diferentes e na chamada .natureza os seres são diferentes entre si, por que não aceitar com OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 41 tranqüilidade esse fato? Não se pode localizar aí a tendência sem pre presente no pensamento ocidental em sua vertente dominante e hegemônica de querer justificar a dominação do homem sobre a natureza e de alguns homens sobre outros homens argumentando com as diferenças de natureza? Enfim, não seria a tendência a transformar a diferença em hierarquia, em superior e inferior, o que explicaria essa discriminação do diferente na nossa sociedade-cul tura? Retomaremos essas questões mais adiante. Por ora, avance mos um pouco mais na análise das dificuldades advindas para a ciência modema em conseqüência da concepção de mundo .que tem predominado em nossa sociedade. A OPOSIÇÃO SUJEITO VERSUS OBJETO No mundo moderno, com Descartes, o método ganha maior destaque. O sujeito - o homem -, dispondo do domínio de método científico poderá ter acesso aos mistérios da natureza e, assim, tor nar-se senhor e possuidor desta, utilizando-a para os fms que de sejar. Hoje, vemos jovens universitários desejando a todo custo dominar o método científico que lhes dará a chave de acesso à rea lidade das coisas. Afinal, temos de ser pragmáticos, pois se conti nuarmos nessas discussões metafísicas, filosóficas e especulativas, nunca chegaremos a nada - dizem-nos · não apenas os jovens, mas tan�bém professores e pes_quisadores que estão certos de que dis põemdo segredo do acesso aos mistérios do mundo. Não se aper cebem de que eles mesmos foram instituídos por esta sociedade e cultura. Para os gregos, a palavra método significava caminho a ser seguido. Ora, a ciência tenta, exatamente, conhecer o que é desco nhecido. Em outras palavras, o cientista constrói um determinado objeto que · considera significativo e que- aeredita ser indevida ou insuficientemente conhecido. Daí a prática comum entre os cien tistas de passar em revista as diferentes abordagens de um determi nado fenômeno e, depois, propor uma outra interpretação, um outro ·aminho. Nesse sentido, a ciência caminha do conhecimento pre umido para o desconhecido, tenta de-cifrar o que está cifrado. 42 CARLOS WALTER P. GONÇALVES Ora, se a ciência caminha em direção ao desconhecido, qual é o caminho - o método - que leva até lá? Estranho paradoxo esse o de pretender dominar um método que nos permita desvendar o misté rio da natureza das coisas antes de entrar numa relação efetiva com elas. Na verdade, como nos ensina o físico e filósofo Gaston Ba chelard, nenhum método pode ser construído a não ser na relação com o objeto. Ou, como dizia Ernesto "Che" Guevara, "EI camiíio se hace ai caminar" ... Estas observações, sabemos, poderão ser classificadas de "espontaneístas" ou românticas e seremos, talvez, censurados por essa associação pouco usual de Bachelard e Gueva ra, quando eles se envolviam com preocupações tão diferentes. To davia, talvez o que autoriza exatamente essa aproximação seja a abertura e a flexibilidade de espírito que esses dois homens conse guiam ter diante de questões tão sérias como a ciência e a políti ca . . . Seriedade e rigor científico não devem ser, portanto, confun didos com dogmatismo. Sujeito e objeto pressupõem uma relação, um diálogo per manente, pois é nessa tensão que se produz o conhecimento. O su jeito, o cientista, não é o lado ativo que se opõe ao objeto, o lado passivo. Não se pode fazer qualquer pergunta ao objeto que nos dispomos a investigar ... A separação entre espírito e matéria, tão cara à filosofia medieval, assume feições modernas na separação en�e sujeito e objeto. O homem - o sujeito - debruça-se sobre a natureza-objeto, tomada coisa. Não há problema, portanto, se dividimos a natureza em tantos objetos científicos quanto possível, pois se trata de uma "natureza-morta". Estranho seria se nos dias de hoje a natureza e os homens não estivessem devastados e massacrados em função desses pressupostos. A revolução industrial, muito mais que uma profunda revolução técnica, foi o coroamento de um processo civi Iizatório que almejava dominar a natureza e para tanto submeteu e sufocou os que a ele se opunham. O absurdo é que tal projeto teve - de antemão - de colocar o homem como não-natureza, pois se o homem não fosse assim pensado a questão da dominação da natu reza sequer se colocaria. Ironicamente, a falácia dessas teses que opõem peremptoriamente o homem à natureza fica' evidenciada na constatação de que historicamente a dominação da natureza tem si- OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 43 do, via de regra, a história da dominação do homem pelo homem e isso, evidentemente, não tem nenhuma justificativa na natureza . . . Pensar a natureza, portanto, significa trazer à tona profun das implicações filosóficas e nós que assumimos plenamente a ecologia temos de ir o mais fundo possível nessa reflexão para não resvalarmos nas simplificações que tantos danos nos têm causado. Em nome da ciência, do seu rigor teórico e metodológico, tem-se justificado toda uma prática de dominação dos homens e da natureza. Já vimos muitos afmnarem que a culpa por este desdo bramento não é da ciência. A ciência não é um saber que paira acima dos homens, mas fruto de uma relação social instituída. Afi nal, foi em nome de um saber objetivo, capaz de promover a felici dade humana, que a ciência se afmnou frente à filosofia e à reli gião, com os iluministas do século XVIII . . . Os dogmas religiosos que tantos obstáculos colocavam à compreensão do mundo deve riam ser abolidos para dar passagem à vida . . . Aqueles que hoje vê em a ciência servir para a destruição de hiroshimas e nagasakis, pa ra a corrida armamentista, para o genocídio e para o aniquilamento das condições naturais da vida, devem-se interrogar sobre o con texto sócio-histórico que instituiu essa ciência . . . Muitos já o estão fazendo e, sobretudo entre os jovens, vemos uma frontal recusa a esse projeto civilizatório. Não é por acaso que a ecologia encontra entre eles grande simpatia. Muitas vezes se tem tentado desqualifi car esse movimento exatamente por esse seu perfil de jovialidade. E como os jovens, pela própria (de)formação que a sociedade lhes impõe, não são iniciados nos argumentos "sérios", "científicos" e "racionais", sentem-se deslocados, indo muitos buscar em seitas religiosas e práticas místicas abrig�para as suas angústias e espe ranças. É comum entre eles se criticar a razão, pois o que consta tam é que em nome dela se explora, oprime e devasta. Recordemos Herbert Marcuse que alertava os jovens para o fato de que chamar de racional a General Motors era fazer-lhe um elogio que ela não merecia . . . É preciso enfatizarmos que a visão de mundo que tem sido hegemônica em nossa sociedade, com seus conceitos de natureza e d homem, não se afmnou porque era melhor ou superior. Aceitar ssa tese só teria sentido se ignorássemos que muitas das questões 44 CARLOS WALTER P. GONÇALVES que hoje levantamos já o haviam sido no passado por outros que foram sufocados, silenciados e oprimidos. É esse "silêncio dos vencidos" que tentamos resgatar, vendo na história o lugar de ten são não sô entre teorias mas, sobretudo, entre práticas; percebendo que aquelas que porventura são instituídas . fazem questão de se apresentarem como naturais e, com isso, procuram ofuscar que, ao se instituírem, o fizeram sufocando outras possíveis práticas que te- riam dado origem a uma outra história. · É por isso que devemos buscar na história, des-cobrir aquilo que o discurso oficial encobre e, com isso, superar aquela arrogância típica dos ignorantes que, muitas vezes, pensam que estão sendo inovadores ou criativos . . . As instituições que se impuseram em nossa sociedade pre tendem aparecer a cada um de nós como habituais, rotineiras, eter nas, em suma, naturais. Não deve nos escapar esse sentido de na tureza que está embutido na afirmação que acabamos de fazer. Nela o natural quer dizer o imutável. . . Com freqüência ouvimos di zer que sempre houve ricos e pobres ou opressores e oprimidos e que, portanto, isso é natural - logo, imutável. Isso não passa de uma boa maneira de se deixar tudo como está. Pretende-se congelar a história, a sociedade e a cultura, enfim, manter o status quo. A natureza é evocada como a imagem do "é assim" desde os primór dios, do sempre igual, do mesmo. Portanto, devemos ter muito cui dado quando nos tentam convencer de que isso ou aquilo é natur� pois, quase sempre, o que se está querendo exatamente escamotear é aquilo que é da natureza da história, da sociedade e da cultura, isto é, a tensão e o conflito de onde o novo, o diferente, podem brotar. A ci_ência, ela própria, também é instituída e, dessa forma, como expressão de uma relação social não pode ser encarada como estando acima ou abaixo dos homens que a instituíram. O PARADIGMA ATOMÍSTICO-INDIVIDUALISTA DA CIÊNCIA MODERNA Uma outra característica que tem marcado a ciência mo dema, e com ela a abordagem do que seja natureza e homem, é a OS (DES)CAMINHOS DO MEIO AMBIENTE 45 concepção atonústico-individualista nela predominante. Como nos diz Serge Moscovici: Tudo agora é moldado segundo esse padrão: átomo perma nente, indivisível, ou mônada s�m portas nem janelas, or ganismo lutando pela sobrevivência - o mais forte há de vencer! - animal agregado a uma horda; compmdor ou vendedor no mercado; sábio
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