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UNIJUÍ - UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL PAULA TAIS BOLFE O DIREITO PENAL DO INIMIGO NA POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA: REPRESSIVISMO E PUNITIVISMO COMO ESTRATÉGIAS DE CONTENÇÃO DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE Ijui (RS) 2014 PAULA TAIS BOLFE O DIREITO PENAL DO INIMIGO NA POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA REPRESSIVISMO E PUNITIVISMO COMO ESTRATÉGIAS DE CONTENÇÃO DA VIOLÊNCIA E DA CRIMINALIDADE Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Direito objetivando a aprovação no componente curricular Trabalho de Curso - TC. UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul. DECJS - Departamento de Ciências Jurídicas e Sociais Orientadora: MSc. Ester Eliana Hauser Ijui (RS) 2014 Dedico este trabalho a toda minha família, pelo incentivo, apoio e confiança em mim depositados durante esta longa jornada, especialmente a você Douglas, que sempre teve paciência e esteve ao meu lado nas horas mais difíceis. 3 AGRADECIMENTOS Aos meus pais, pelo amor, incentivo е amparo incondicional. À minha orientadora Ester Eliana Hauser, pelo entusiasmo com que me recebeu e pelo empenho e dedicação na elaboração deste trabalho, compartilhando os seus conhecimentos e enriquecendo meu aprendizado. Aos meus colegas de trabalho do Corpo de Bombeiros Misto de Três de Maio por todo apoio e estimulo prestados durante toda esta caminhada, sempre com a máxima boa vontade e generosidade. A todos aqueles que se fizeram presente, perto ou longe, sempre estimulando meus estudos e torcendo pelo meu sucesso. “É melhor lançar-se em busca de conquistas grandiosas, mesmo expondo-se ao fracasso, do que alinhar-se com os pobres de espírito, que nem gozam muito nem sofrem muito, porque vivem numa penumbra cinzenta, onde não conhecem nem vitória, nem derrota.” (Theodore Roosevelt) RESUMO O presente trabalho de conclusão de curso faz uma análise dos modelos políticos criminais contemporâneos (repressivistas e punitivistas) e seus reflexos na função punitiva do Estado frente à Constituição Federal de 1988, abordando os princípios penais e processuais limitadores da intervenção penal com enfoque no princípio da dignidade da pessoa humana. Estuda também o Direito Penal do Inimigo e suas manifestações na política criminal brasileira, abordando aspectos como conceituação, delimitação entre cidadão e inimigo, e a repercussão deste Direito através da mídia e das redes sociais. Por fim, ainda estuda as manifestações do Direito Penal do Inimigo no sistema penal brasileiro e faz considerações críticas acerca da função punitiva do Estado e de seu caráter punitivista e repressivista. Palavras-Chave: Política criminal. Função punitiva. Direito Penal do Inimigo. Mídia. Redes sociais. ABSTRACT This completion of course work provides an analysis of contemporary criminal political models (repressivistas and punitivistas) and its effects on punitive function of the state to the Federal Constitution of 1988, approaching the limiting criminal and criminal procedural principles of intervention focusing on the principle of dignity of the human person. Also studies the Criminal Law of the Enemy and its manifestations in the Brazilian criminal policy, addressing issues such as conceptualization, delineation between citizen and enemy, and the impact of this law through the media and social networks. Finally, still studying the manifestations of the Criminal Law of the Enemy in the criminal justice system and makes critical remarks about the punitive function of the state and its character and punitivista repressivista. Keywords: criminal policy. Punitive function. Criminal Law of the Enemy. Media. Social networks. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 09 1 A POLÍTICA CRIMINAL E CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ............................ 11 1.1 Política criminal: elementos conceituais .......................................................................... 11 1.2 Modelos políticos criminais contemporâneos .................................................................. 14 1.3 O modelo político criminal na Constituição Federal de 1988 ......................................... 16 1.3.1 O princípio da dignidade humana e os limites à intervenção punitiva do Estado .......... 18 1.3.2 Princípios penais e processuais limitadores da intervenção penal ................................. 20 1.4 A função punitiva nos Estados Democráticos de Direito ................................................ 24 2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E SUAS MANIFESTAÇÕES NA POLÍTICA CRIMINAL BRASILEIRA ................................................................................................... 27 2.1 Direito Penal do Inimigo: conceituação e caracterização ............................................... 27 2.2 Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão ..................................................... 29 2.3 A imagem do inimigo e sua repercussão nos discursos midiáticos e nas redes sociais ... 31 2.4 As manifestações do Direito Penal do Inimigo no sistema penal brasileiro ................... 35 2.5 Repressivismo e punitivismo e a função punitiva no Estado Democrático de Direito: considerações críticas ............................................................................................................. 39 CONCLUSÃO ........................................................................................................................ 42 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 44 9 INTRODUÇÃO A presente pesquisa estuda a aplicação e a manifestação do Direito Penal do Inimigo na política criminal do nosso Estado Democrático de Direito bem como aborda os principais modelos políticos criminais contemporâneos (repressivo e não repressivo), confrontando-os com os princípios penais e processuais que limitam a função punitiva do Estado, fazendo uma análise crítica da imagem do inimigo atual e da função punitiva frente aos modelos repressivistas e punitivistas utilizados como forma de contenção da violência e da criminalidade. Os problemas a serem discutidos no presente trabalho se relacionam com o papel do Direito Penal do Inimigo no Estado Democrático de Direito, qual a sua repercussão, sua influência e sua real aplicabilidade, pois se deve avaliar se em uma Constituição cidadã como a nossa existe espaço para mecanismos de combate a criminalidade puramente repressivistas e punitivistas, baseados na lógica do inimigo, sem que se prejudiquem os direitos mínimos dos cidadãos e afronte a garantia da dignidade humana, que é também fundamento do Estado brasileiro. O objetivo do trabalho é estudar a política criminal no Estado Democrático de Direito, conceituando-a, limitando-a e esclarecendo os modelos repressivistas e punitivistas e suas estratégias para contenção da violência e da criminalidade, delimitando o Direito Penal do Inimigo na esfera política criminal brasileira, confrontando-o com o Direito Penal do cidadão e demonstrando sua repercussão frente aos discursos midiáticos e as redes sociais, sendo que a escolha dessa temática foi realizada com a intenção de fazer uma reflexão sobre osrumos que a nossa sociedade esta tomando. A busca pela repressão punitiva cada vez maior e o aumento da criminalidade demonstram que é necessário compreender tal problema sob um viés social 10 e, a partir disso, buscar mecanismos adequados para enfrentá-los visto que o endurecimento das penas não vai resolver o nosso problema. A principal justificativa para o tema proposto são as mudanças que a sociedade vem enfrentando com o aumento da criminalidade e a busca de soluções para combater esse problema. Temos uma Constituição que prevê a aplicação de uma política criminal não intervencionista, porém, atualmente, as correntes intervencionistas vêm ganhando força, principalmente através dos discursos midiáticos e apelativos que a mídia impõe, influenciando fortemente a ideia de que o Direito Penal ideal é aquele puramente repressivista e punitivista, baseado na lógica do inimigo, onde há um endurecimento das penas, deixando, dessa maneira, de se observar os princípios básicos que preservam a vida humana. O primeiro capítulo apresenta os elementos conceituais da política criminal, explicando a atuação dos movimentos repressivistas e punitivistas na contemporaneidade e a sua importância e o reflexo que estes apresentam frente ao sistema penal brasileiro. Também será realizada uma análise do modelo político criminal vigente e os princípios que regem e limitam a atuação estatal, destacando o princípio da dignidade da pessoa humana frente a função punitiva no Estado Democrático de Direito. No segundo capítulo será realizada uma análise do Direito Penal do Inimigo, conceituando-o e caracterizando-o, realizando um comparativo entre o Direito Penal do Inimigo frente ao Direito Penal do Cidadão para tentar entender como essas diferentes posturas atingem os cidadãos brasileiros, principalmente aqueles que estão sujeitos a um processo penal. Ainda falaremos da imagem do atual inimigo e sua repercussão midiática e nas redes sociais, e como essas manifestações influenciam o nosso Direito Penal e Processual Penal, realizando, por fim, algumas considerações críticas a função punitiva estatal, bem como as políticas repressivistas e punitivistas. 11 1 A POLÍTICA CRIMINAL E A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 “O que se percebe, em última análise, é que onde não houver respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder, enfim, onde a liberdade e a autonomia, a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa), por sua vez, poderá não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças”. (Ingo Wolfgang Sarlet) 1.1 Política criminal: elementos conceituais A política pode ser conceituada como a maneira de conduzir o conjunto de negócios do Estado, sendo conhecida como a ciência do governo dos povos. A política criminal é parte integrante deste conceito e tem, como pretensão, discutir quais as estratégias que devem ser utilizadas no combate a criminalidade através do estudo e de uma análise crítica do Direito Penal. Pode-se dizer que possui uma dupla função de guia e de crítica, isto porque guia as decisões tomadas pelo poder político ou então proporciona argumentos para criticar estas decisões (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011). Isso significa que da mesma maneira que entende-se ser a legislação penal parte integrante da legislação em geral, a política criminal também surge inserida na política em geral, devendo ser interpretada sempre dentro deste mesmo contexto. Há de se frisar que inicialmente esse conceito não era tão amplo, sendo que a política criminal englobava apenas a aplicação dos procedimentos punitivos. Carvalho (2007, p. 95) nos traz uma definição antiga afirmando que “a política criminal era definida como um conjunto de princípios e recomendações para reagir contra o fenômeno delitivo através do sistema penal”. O mesmo autor ainda ensina que hoje existem duas funções primordiais na política criminal quais sejam: criticar a legislação penal vigente à luz dos fins do Direito Penal e propor sua reforma, adequando, dessa maneira, a lei à realidade. Conforme Nilo Batista (2004, p. 35) “o campo da política criminal tem hoje uma amplitude enorme. Não cabe mais reduzi-la ao papel de conselheira da sanção penal, que se limitaria a indicar ao legislador onde e como criminalizar condutas”. 12 Visto isso se percebe que a política criminal, modernamente, atua tanto de forma preventiva como de forma repressiva, formando um aglomerado de mecanismos hábeis para combater efetivamente a criminalidade. Isso não significa que se deve adotar somente a forma repressiva como procedimento penal, visto que há outras formas de atuação que não ensejam tamanha agressividade, como por exemplo, o instituto da mediação que vem ganhando espaço no mundo atual. Acrescenta Nucci (2011, p. 68) que a política criminal “se dá tanto antes da criação da norma penal como também por ocasião de sua aplicação” e, por isso se entende que a política criminal assume uma postura crítica frente ao sistema penal, aplicando-se tanto às normas em abstrato quanto aos casos concretos, implicando, dessa maneira, na postura que o Estado pode e, inclusive, deve assumir frente à criminalidade, apontando respostas que mostrem qual a melhor maneira de reagir contra os indivíduos delituosos, mantendo preservados os seus direitos fundamentais e também os preceitos elencados em nossa Constituição Federal. Nesse contexto importante distinção a ser feita é entre Direito Penal, criminologia e política criminal. Direto Penal pode ser conceituado como um conjunto de normas jurídicas voltadas à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo, dessa maneira, as infrações penais bem como suas sanções e regras atinentes a sua aplicação enquanto que a criminologia (...) é a ciência que se volta ao estudo do crime, como fenômeno social, bem como do criminoso, como agente do ato ilícito, em visão ampla e aberta, não se cingindo a analise da norma penal e seus efeitos, mas, sobretudo, as causas que levam a delinquência, possibilitando, pois, o aperfeiçoamento dogmático do sistema penal (NUCCI, 2011, p. 68). Com se vê o conceito de Direito Penal é amplo e deve ser entendido não somente como um conjunto de normas jurídicas que formam a legislação penal, e sim como um sistema dotado de princípios e regras que norteiam a aplicação dessa legislação, designando a forma como todo o sistema deve ser interpretado. É também papel do Direito Penal definir quais as condutas que serão puníveis, bem como definir sua gravidade estipulando uma sanção adequada. A colocação de Gomes (2006, p. 14) se enquadra perfeitamente a esta ideia quando o autor afirma que: 13 Tradicionalmente o Direito Penal foi pensado para impor castigos [...] ele não existe para punir todas as condutas desviadas (condutas que não seguem os padrões de conduta vigentes), e sim somente as mais nocivas, as que mais perturbam o convívio social (princípio da intervenção mínima). O Estado adotou a pena como principal forma de punição das condutas delituosas, nesse sentido a pena, segundo a teoria sistêmica 1 , cumpriria uma função de prevenção integradora visto que, se o delito lesa os sentimentos coletivos da comunidade, a pena então simboliza uma necessária reação social, esclarecendo a vigência dos valores que foram então violados pelo indivíduo criminoso, impedindo que se diluam e percam sua eficácia, reforçando a segurança coletiva em torno desses valores ou ainda, conduzindo os mecanismos de integração e de solidariedade social frente ao indivíduo transgressor, devolvendo, dessa forma, ao cidadãohonesto sua confiança no sistema (GOMES, 2006). Já a política criminal pode ser entendida como a ciência que estuda e sistematiza as estratégias adequadas para um combate efetivo da criminalidade. Segundo Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 122, grifo dos autores) “é a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos”. Dessa maneira pode-se afirmar que o conceito moderno de política criminal encontra-se ligado tanto a repressão como a prevenção de delitos, determinando quais as melhores formas de atuação política frente a violência e a criminalidade crescente em nosso país. Esses três institutos, quando se integram em suas funções, constituem a chamada ciência penal que tem, como meta maior, a busca por uma justiça igualitária, mediante um rígido controle de compatibilidade vertical entre a norma incriminadora e os princípios constitucionais (CAPEZ, 2011). Desse modo não se deve confundir as funções exercidas pela política criminal e pelo Direto Penal, visto que o controle penal é apenas uma das formas utilizadas pela política criminal no enfrentamento ao crime. 1 A teoria sistêmica é uma tese defendida pelo jurista alemão Günter Jakobs que parte do princípio de que a sociedade é o núcleo do sistema, sendo o homem consequência do meio. A missão do Direito Penal resta então destinada à proteção da norma, sendo a sociedade o objeto da proteção do Estado. Disto infere-se que o funcionalismo sistêmico não contempla a proteção de um bem jurídico, mas, sim, das regras de conduta que devem nortear o convívio social. Dessa maneira, uma vez violada a norma, cabe ao Estado punir o indivíduo, fazendo valer sua autoridade, preservando o sistema. 14 1.2 Modelos políticos criminais contemporâneos Cada vez mais se percebe uma tendência do uso do Direito Penal como única estratégia a ser utilizada pela política criminal. Essa reação às condutas delituosas é defendida por movimentos políticos criminais antagônicos que se dividem em dois grandes grupos sendo os punitivistas/repressivistas e os não punitivistas ou não intervencionistas. Os movimentos punitivistas/repressivistas defendem uma forma de intervenção máxima pelo Estado através, por exemplo, da criminalização de novas condutas e de penalidades mais rigorosas, o que leva a um endurecimento punitivo, desviando a real função do Direito Penal 2 , promovendo uma seleção entre os indivíduos, marginalizando e excluindo uma parcela da sociedade. Segundo Hauser (2010, p. 14) os movimentos chamados intervencionistas são todos aqueles que “defendem a criminalização de novas condutas, a penalização mais rigorosa para a maioria dos crimes, a ampliação do uso da prisão como pena, bem como a institucionalização dos desviados”. No que se refere a essa temática disserta Ney Moura Teles (2006, p. 6): Nos dias de hoje, com enorme e preocupante aumento da criminalidade violenta e organizada, assiste-se à tentativa de transformar o Direito Penal no salvador da pátria, como se ele fosse capaz de eliminar o crime e transformar os homens. O legislador brasileiro, ultimamente, tem acenado com a exasperação de penas, criação de novas figuras de crime, com a restrição de direitos e garantias processuais, como se isso resolvesse alguma coisa. Esse movimento não respeita os mínimos parâmetros constitucionais ou processuais visto que tem suas raízes ligadas ao período inquisitorial onde a intervenção estatal era entendida como a única forma possível de solucionar conflitos o que, em nosso ordenamento jurídico atual acaba por desrespeitar as garantias que deveriam ser asseguradas a qualquer indivíduo, além disso, também dificulta a fiscalização sobre as ações do Estado. 2 Fernando Capez (2011, p. 19) disserta sobre a função do Direito Penal, explicando que a missão do Direito Penal é proteger os valores fundamentais para a subsistência do corpo social, tais como a vida, a saúde, a liberdade, a propriedade, etc., denominados bens jurídicos. Essa proteção é exercida não apenas pela intimidação coletiva, mais conhecida como prevenção geral e exercida mediante a difusão do temor aos possíveis infratores do risco da sanção penal, mas, sobretudo pela celebração de compromissos éticos entre o Estado e o indivíduo, pelos quais se consiga o respeito às normas, menos por receio de punição e mais pela convicção de sua necessidade e justiça. 15 Confrontando os ideais repressivistas temos uma segunda corrente não intervencionista que defende a aplicação do Direito Penal apenas como ultima ratio, ou seja, como última estratégia a ser utilizada para enfrentar atos delituosos, onde se tem um Estado que intervém minimamente na resolução dos conflitos ou ainda de forma abolicionista, que defende a extinção do Direito Penal. Demonstra Hauser (2010, p. 14) que “são não intervencionistas os movimentos que propõem a descriminalização, despenalização, desprisionização cautelar, desinstitucionalização e a diversificação das respostas aos conflitos sociais”. Assim defendem a adoção de um Direito Penal garantista, que protege os direitos dos indivíduos frente à atuação repressiva do Estado. Como exposto a corrente não repressivista se subdivide entre as tendências minimalistas e abolicionistas. A primeira defende que haja uma intervenção mínima por parte do Estado, ou seja, o Direito Penal deve ser o último recurso utilizado para punir as condutas delituosas, primando pela aplicação de outros instrumentos antes de punir penalmente tais condutas. Já a tendência abolicionista crê que a melhor solução para a resolução dos conflitos seria a extinção do Direito Penal visto que sua aplicação seria mais danosa do que sua inexistência, além de que o direito punitivo não tem alcançado o seu objetivo final: a ressocialização do apenado. Nesse viés, complementa Ferrajoli (1995, p. 332 apud Hauser, 2010, p. 84) explicando que a certeza perseguida pelo Direito Penal mínimo é garantida pela aplicação do princípio in dúbio pro reo 3 , enquanto que a certeza do Direito Penal máximo se encontrada embasada no princípio in dúbio contra reum 4 , sendo que Há, sem embargo, outro tipo de fim ao que cabe ajustar o princípio da pena mínima, e é a prevenção, não de delitos, mas de outro tipo de mal antitético ao delito que é esquecido tanto pelas doutrinas justificacionistas como pelas abolicionistas. Este outro mal é a maior reação – informal, selvagem, espontânea, arbitrária, punitiva porém não penal – que a falta de penas poderia provir da parte ofendida ou de forças sociais ou institucionais 3 Também conhecido como princípio do favor rei, o princípio do in dubio pro reo implica em que na dúvida interpreta-se em favor do acusado. Isso porque a garantia da liberdade deve prevalecer sobre a pretensão punitiva do Estado. 4 Nesse sentido a decisão não é, então, a favor da sociedade e sim contra o acusado, o que caracteriza o princípio do in dubio contra reo. 16 solidárias com ela. Impedir este mal, de que seria vítima o réu ou inclusive pessoas ligadas a ele, o que representa, me parece, o segundo e fundamental fim justificador do direito penal. Ainda, ao discorrer sobre as tendências políticas criminais contemporâneas adotadas pelo nosso Estado Democrático de Direito, Zaffaroni e Pierangeli (2011, p. 314-315) defendem as tendências não repressivistas como sendo “uma saudável reação realista frente à confiança ilimitada no tratamento e na solução punitiva dos conflitos” explicando ainda que esta tendência mescla argumentos abolicionistas e experiências negativas de intervenção do poderestatal que acabaram agravando os conflitos em vez de resolvê-los. 1.3 O modelo político criminal na Constituição Federal de 1988 A globalização 5 trouxe consigo uma nova era onde a tecnologia é amplamente difundida e acessível, isso fez com que se quebrassem algumas barreiras antes não existentes e facilitaram a prática de alguns delitos, principalmente dos crimes organizados, visto que, com o avanço tecnológico os criminosos não encontram mais barreiras entre uma cidade e outra ou até mesmo um país e outro, como ensina Hauser (2010, p. 23): Este novo Direito Penal é fruto de tendências político criminais punitivistas/repressivistas que se mostram muito fortes no atual contexto e que têm se apresentado em âmbito mundial. Se tradicionalmente cada país possuía suas próprias diretrizes político-criminais, na atualidade vive-se um processo de internacionalização das reações penais, que nascem a partir de propostas de uniformização da ação dos Estados Nacionais em relação a diversas formas de criminalidade (lavagem de capitais, tortura, responsabilidade fiscal, violência contra a mulher, crimes relacionados a entorpecentes, entre outros, são exemplos de temas que tiveram a legislação alterada tendo em vista recomendações de organismos internacionais – especialmente ONU e OEA). Essas notáveis mudanças em nossa sociedade exigem também um novo posicionamento do Direito Penal. Este, tradicionalmente, foi criado para coibir a vingança privada e os excessos do Estado, hoje o mesmo Direito Penal assume outra face, pois é fortemente influenciado por movimentos políticos criminais de cunho repressivista/punitivista, que deixam de observar os princípios penais e constitucionais, como 5 Globalização é um conjunto de transformações na ordem política e econômica mundial visível desde o final do século XX. Trata-se de um fenômeno que criou pontos em comum na vertente econômica, social, cultural e política, e que consequentemente tornou o mundo interligado. 17 a intervenção mínima e a proporcionalidade das penas em prol de uma solução rápida que traga a sensação de que a justiça foi feita e de que a sociedade está novamente segura. Diante disso percebe - se que esse modelo político criminal afronta o ideal adotado pela nossa Constituição Federal, qual seja um modelo democrático, que tem seus pilares fixados no princípio da dignidade da pessoa humana, devendo assegurar que o indivíduo delituoso possua o máximo de garantias frente ao poder repressivo estatal. Meliá (2007, apud Hauser, 2010) ainda explica que a política criminal contemporânea se caracteriza a partir de uma expansão do Direito Penal que se desenvolve sob duas faces: o Direito Penal simbólico e o ressurgir do punitivismo. O Direito Penal simbólico é um direito que surge em meio ao clamor público por segurança e que tem a função de impressionar esse mesmo expectador. É um Direito Penal endurecido e rigoroso que traz a mera sensação de paz social e de um legislador que se preocupa em solucionar os problemas criminais efetivamente, porém, na maioria dos casos, é um direito que não sai do papel, visto que sua aplicação é mínima servindo apenas como uma figura tranquilizadora. Assim, portanto, haverá de ser entendida a expressão "direito penal simbólico", como sendo o conjunto de normas penais elaboradas no clamor da opinião pública, suscitadas geralmente na ocorrência de crimes violentos ou não, envolvendo pessoas famosas no Brasil, com grande repercussão na mídia, dada a atenção para casos determinados, específicos e escolhidos sob o critério exclusivo dos operadores da comunicação, objetivando escamotear as causas históricas, sociais e políticas da criminalidade, apresentando como única resposta para a segurança da sociedade a criação de novos e mais rigorosos comandos normativos penais. (ROXIN, 2000 apud GOMES DUARTE NETO, 2009, grifo do autor). Simultaneamente ao simbolismo essa nova face da política criminal brasileira apresenta uma forte característica punitivista qual, segundo Hauser (2010) foi amplamente acolhida tanto pela esquerda como pela direita política, pois ambas perceberam que, do ponto de vista eleitoral, o aumento de reações públicas de cunho repressivista, como a criação de novas leis e o aumento, mesmo que exacerbado, das penas já existentes são bem acolhidas pela sociedade em geral que coloca a segurança a frente de outros fundamentos 18 constitucionais e utiliza a pena como primeiro, e até como único instrumento de proteção social. De todo o exposto pode - se afirmar que, atualmente, nosso país vive sob a égide de uma política criminal populista de cunho meramente simbólico ou punitivista, inspirada em ideais de lei e ordem ou em concepções autoritárias, como a de consolidação de um Direito Penal rigoroso, intervencionista e não respeitador de princípios fundamentais, [que] choca-se, frontalmente, com o modelo político criminal consagrado na Constituição Brasileira de 1988 que, em que pese ter autorizado o uso do Direito Penal como instrumento de enfrentamento dos problemas sociais mais graves (crimes hediondos, ambientais, econômicos), optou por modelo punitivo baseado no respeito à pessoa humana e na lógica da mínima intervenção penal. (HAUSER, 2010, p. 32). Nesse sentido é necessário buscar uma política criminal de cunho não intervencionista que contemple, ao mesmo tempo, os princípios básicos que regem nosso ordenamento e utilize a força repressiva, o braço forte do Estado, apenas como última opção na resolução de conflitos e punibilidade de indivíduos delituosos. Dentre estes princípios consagrados pela Constituição Federal de 1988, pela legislação Penal e Processual Penal há de se destacar o princípio da dignidade humana, que serve de fundamento para os demais. 1.3.1 O princípio da dignidade humana e os limites à intervenção punitiva do Estado A Constituição Federal é soberana, isso significa que qualquer norma elaborada em desarmonia aos seus princípios é inválida, ou seja, mesmo que tenha ingressado no ordenamento jurídico não deverá ser utilizada. É na Constituição Federal que estão estabelecidos os primados sobre os quais tudo o mais existe (TELES, 2006) e o Direito Penal também deve se moldar a essa soberania, ainda mais que, tem como uma de suas funções precípuas a proteção dos valores fundamentais que dão sustento aos bens jurídicos tutelados representando, assim, a forma mais rígida existente de intervenção estatal. O princípio da dignidade humana é conhecido como princípio primeiro justamente por atuar como norteador dos demais sendo também, um dos fundamentos constitucionais previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal de 1988: 19 Art. 1º: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III – a dignidade da pessoa humana; (BRASIL, 1988). Assim cabe destacar ensinamento de Gomes (2006, p. 121) quando afirma que “nem a lei e muito menos a pena pode ser ofensiva à dignidade humana, sob pena de inconstitucionalidade patente”. Ainda, conforme lições de Nucci (2011) o referido princípio se divide sob dois prismas, sendo, primeiramente, um caráter objetivo que garante que o Estado forneça ao indivíduo o mínimo existencial que assegure suas necessidades básicas e, concomitantemente um segundo aspecto, o subjetivo que exige do Estado um tratamento digno e respeitoso aos indivíduos como sujeito de direitos. Analisando essa afirmação pode-se dizer que a dignidade é uma condição inerente ao ser humano desde seu nascimento, condição que não lhe pode ser vetada em nenhuma circunstância. Segundo leciona Alexandre de Morais (2004, p. 52) o direito à vida, à intimidade,à honra, entre outros, são uma consequência imediata da consagração do princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado Democrático de Direito, sendo que este concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas [...] é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. Especificamente no campo penal o princípio da dignidade da pessoa humana tem o dever de assegurar que o indivíduo delituoso também tenha seus direitos assegurados, tanto na fase processual como no cumprimento de pena o que, consequentemente, limita a atuação estatal. Segundo Fernando Capez (2011, p. 25) “a dignidade humana, assim, orienta o legislador no momento de criar um novo delito e o operador no instante em que vai realizar a atividade de adequação típica”. Dessa forma entendemos que o legislador não pode penalizar qualquer tipo de conduta como sendo delituosa, mas sim eleger entre os comportamentos 20 humanos aqueles que causem alguma lesividade social e afetem os valores fundamentais que são inerentes aos seres humanos. Hodiernamente vê - se que existe uma relevância na aplicação deste princípio devido, principalmente, ao clamor público que incentiva a criminalização de diversas ações sem nenhum estudo prévio, baseados apenas em medo e busca por soluções momentâneas. Estas decisões, baseadas na pressão política, midiática e social acarretam muitos prejuízos à sociedade em geral, pois desrespeitam os direitos já adquiridos pelos indivíduos e afrontam os fundamentos da Carta Magna inserindo em nosso ordenamento regras inconstitucionais. 1.3.2 Princípios penais e processuais limitadores da intervenção penal Como vimos o princípio da dignidade da pessoa humana é considerado a base do Estado Democrático de Direito e, portanto orientador das normas de Direito Penal. É dele também que partem os demais princípios contemplados em nossa Constituição, quais “propiciam um controle de qualidade do tipo penal, isto é, sobre o seu conteúdo, em inúmeras situações específicas da vida concreta” (CAPEZ, 2011, p. 27). Dentre esses princípios podemos destacar como mais importantes no âmbito penal os princípios da legalidade, da jurisdicionalidade, da intervenção mínima, da proporcionalidade e da humanidade. O princípio da legalidade, em sentido constitucional amplo, está previsto no artigo 5º, inciso II da Constituição Federal estabelecendo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. Em sentido estrito significa que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal, conforme consoante texto dos artigos 5º, XXXIX da Carta Magna e artigo 1º do Código Penal. Especificamente nas ciências criminais, pode ser entendido frente a quatro dimensões: (a) princípio da legalidade criminal: “não há crime sem lei anterior que o defina (CP, art. 1º) - nullum crimen sine lege; (b) princípio da legalidade penal: “não há pena sem prévia cominação legal” (CP, art. 1º) – nulla poena sine lege; (c) princípio da legalidade jurisdicional ou processual: não há processo sem lei, leia-se, ninguém pode ser privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (nulla coatio sine lege – CF, art. 5º, inc. LIV) ou nemo damnetur nisi per legale iudicium; 21 (d) princípio da legalidade execucional: “a jurisdição penal dos juízes ou tribunais de justiça ordinária, em todo o território nacional, será exercida, no processo de execução, na conformidade desta Lei e do Código de Processo Penal” (LEP, art. 2º) – nulla executio sine lege. (GOMES, 2006, p. 133, grifos do autor). É evidente que este princípio tem como função precípua limitar a atuação do legislador que, como já visto, não pode simplesmente criminalizar qualquer conduta sem que esta seja realmente prejudicial à sociedade. Do mesmo modo protege a liberdade individual dos cidadãos frente à coerção estatal quando determina que não haja crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Ainda há de se observar que o princípio da legalidade traz em seu corpo dois princípios que lhe são intrínsecos: o princípio da reserva legal e o da anterioridade penal. Aquele demonstra que uma conduta só pode ser criminalizada por vontade daquele que detém a competência para legislar, ou seja, o Poder Legislativo, enquanto que o princípio da anterioridade exige que a lei já esteja em vigor à data em que o fato delituoso foi cometido, conceito este que está intimamente ligado à irretroatividade das leis penais, qual prevê que nenhuma norma pode retroagir para prejudicar o réu. Já o princípio da jurisdicionalidade mescla em seu corpo os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório sendo visto como uma garantia processual que protege o cidadão frente o poderio estatal, prevendo que, em um sistema garantista como o nosso, o seguimento do devido processo legal é indispensável para legitimidade penal, não podendo o Estado imputar culpa a um indivíduo sem o garantir-lhe bem como a ampla defesa e o contraditório, de forma a presunção de inocência do réu seja preservada. É manifesto que a função punitiva nos Estados Democráticos de Direito é de titularidade exclusiva do Estado, o que significa que só ele detém o poder de punir o indivíduo que transgrediu uma norma e, para que isso ocorra, é requisito obrigatório a observância do devido processo legal. Além disso, o princípio da jurisdicionalidade deve ser entendido também por meio de um caráter restrito, pois o fato delituoso deve, além de estar expressamente previsto em lei, ter sido claramente narrado pela acusação, garantindo que a defesa possua o contraditório e a ampla defesa (COLLI, 2007). Com efeito, destaca Nucci (2011, p. 84) afirmando que 22 o devido processo legal guarda suas raízes no princípio da legalidade, garantindo ao individuo que somente seja processado e punido se houver lei penal anterior definindo determinada conduta como crime, cominando-lhe pena. Alem disso, modernamente, representa a união de todos os princípios penais e processuais penais, indicativo da regularidade impar do processo criminal. Outro princípio de suma importância é o princípio da intervenção mínima que tem respaldo no artigo 8º da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 prevendo que “a lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão por força de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada”. Segundo ensinamentos de Nucci (2011, p. 86, grifo do autor): Significa que o Direto Penal não deve interferir em demasia na vida do indivíduo. Afinal a lei penal não deve ser vista como a primeira opção (prima ratio) do legislador para compor conflitos existentes em sociedade, os quais, pelo atual estágio de desenvolvimento moral e ético da humanidade, sempre estarão presentes. Segundo o exposto é correto afirmar que, primeiramente, devem-se esgotar os outros ramos do direito, como o Direito Administrativo antes de se utilizar da punibilidade penal para resolver certas demandas, ou seja, o Estado deve procurar outras soluções não utilizando as sanções penais como primeira opção na resolução de conflitos. Como lecionam Capez (2011) e Nucci (2011) o Direito Penal deve ser utilizado de maneira subsidiária aos outros campos do direito,sendo aplicado apenas quando houver falha na proteção dos bens jurídicos por parte destes outros ramos ou, em último caso, quando for estritamente necessária a imposição de sanções de natureza penal. O princípio da proporcionalidade também deriva da proteção da dignidade da pessoa humana ao assegurar que o indivíduo seja punido proporcionalmente ao delito que cometeu, ou seja, o poder estatal não pode ser extremista, punindo uma conduta com exagero. Nesse contexto Fernando Capez (2011, p. 39) afirma que o legislador, sendo criador das normas penais, e a sociedade, como detentora de direitos e deveres, devem manter uma relação de custo-benefício, pois: quando a criação do tipo não se revelar proveitosa para a sociedade, estará ferido o princípio da proporcionalidade, devendo a descrição legal ser expurgada do ordenamento jurídico por vício de inconstitucionalidade. Além 23 disso, a pena, isto é, a resposta punitiva estatal ao crime, deve guardar proporção com o mal infligido ao corpo social. Deve ser proporcional à extensão do dano, não se admitindo penas idênticas para crimes de lesividades distintas, ou para infrações dolosas e culposas. Em outras palavras pode-se dizer que as normas penais não podem trazer mais prejuízos do que benefícios à sociedade visto que assim a pena perderia seu caráter restaurativo atuando apenas de forma intimidativa. Em síntese Nucci (2011, p. 89) afirma que “não teria sentido punir um furto simples com elevada pena privativa de liberdade, como também não seria admissível punir um homicídio qualificado com pena de multa”. Em último lugar, e nem por isso menos importante, temos o princípio da humanidade que pode ser demonstrado a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948 que em seu artigo V assegura que “ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante” corroborando com o disposto no artigo 5º da Constituição Federal que assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (inciso XLIX) bem como prevê a vedação de penas de morte, de caráter perpétuo; de trabalhos forçados; de banimento e cruéis (inciso XLVII). Por este princípio se entende que são inconstitucionais quaisquer penas que venham a ferir o ser humano corporal e mentalmente. Além disso, infere que todo o ser humano deve ser tratado como tal e jamais excluído da sociedade como se fosse um animal ou uma coisa, pelo fato de ter cometido uma infração penal (NUCCI, 2011). Importante relembrar, por fim, a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello (1994, p. 451 apud Capez, 2011, p. 26) sobre a importância da observação e aplicabilidade dos princípios quando afirma que “violar um princípio é muito mais grave do que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos”. Por outras palavras demonstra-se que a violação de um princípio é a forma mais grave de violação dos valores fundamentais humanos visto que torna ilegal e inconstitucional todo o nosso sistema normativo. 24 1.4 A função punitiva nos Estados Democráticos de Direito A Constituição Federal de 1988 em seu artigo 1º estabeleceu que a nossa República Federativa se constitui em um Estado Democrático de Direito que deve ser entendido como muito mais do que somente um Estado de Direito visto que, este apenas assegura a igualdade de um modo formal entre os homens, ou seja, sem uma atuação efetiva e interventiva do Estado sobre questões de cunho social (CAPEZ, 2011). Nessa perspectiva temos um Estado Democrático de Direito com leis que devem ser observadas de forma idêntica por todos. Isso, porém não significa que temos um Estado justo até porque “no plano concreto e social não existe intervenção efetiva do Poder Público, pois este já fez a sua parte ao assegurar a todos as mesmas chances, do ponto de vista do aparato legal. De resto, é cada um por si”. (CAPEZ, 2011, p. 23). Dessa maneira só teremos um verdadeiro Estado Democrático de Direito quando tivermos assegurados não apenas a igualdade de maneira formal e sim de maneira substancial, ou seja, dotada de conteúdo e adequação social. As normas penais tem de se adequar aos preceitos constitucionais sob pena de se tornarem inválidas em nosso ordenamento. Nessa ótica tais normas devem obrigatoriamente ser dotadas de conteúdo social, o que significa que o Estado, detentor do poder punitivo, não pode criminalizar quaisquer condutas sem que estas tragam relevante lesão à sociedade. Perfeita é a reflexão de Fernando Capez (2011, p. 25) sobre o assunto: Sendo o Brasil um Estado Democrático de Direito, por reflexo, seu direito penal há de ser legítimo, democrático e obediente aos princípios constitucionais que o informam, passando o tipo penal a ser uma categoria aberta, cujo conteúdo deve ser preenchido em consonância com os princípios derivados deste perfil político-constitucional. Não se admitem mais critérios absolutos na definição dos crimes, os quais passam a ter exigências de ordem formal (somente a lei pode descrevê-los e cominar-lhes uma pena correspondente) e material (o seu conteúdo deve ser questionado à luz dos princípios constitucionais derivados do Estado Democrático de Direito). 25 O Direito Penal dentro deste conceito de Estado Democrático de Direito surge como forma de controle social 6 , limitando a atuação do Estado no seu direito de punir frente aos cidadãos a fim de assegurar que o poder público não extrapole os limites da violência utilizada contra outra violência, a que foi cometida pelo indivíduo transgressor. Não obstante, por diversas vezes o Estado tem ultrapassado estes limites, desobedecendo aos princípios que regem nossa Constituição, cedendo à pressão da mídia que divulga cada vez mais a violência e impõe uma figura de medo social, dando a casos específicos mais valor do que deveria. Com isso a sociedade adota um discurso repressivo/punitivo e exige do legislador uma atuação rígida, utilizando as penas como prima ratio, objetivando, muitas vezes, não apenas a redução da violência e da criminalidade, mas agindo com o intuito de castigar os indivíduos criminosos, de lhe tirar seu status de cidadão e até mesmo o seu direito à vida, o que é inconcebível em nosso ordenamento jurídico. Nesse contexto leciona Hauser (2010, p. 19): Deve-se ressaltar também a grande influência que tem a opinião pública nos processos de criminalização e ou descriminalização do sistema penal. Esta, no entanto, não se constrói livremente e está profundamente influenciada pelos meios de comunicação de massa. A imprensa tem grande responsabilidade na configuração ou desfiguração da realidade. O Direito Penal é utilizado cada vez mais, quando não apenas, de forma simbólica, ou seja, é empregado apenas para acalmar a ira da população (GOMES, 2006). Sabe-se que o aumento das penas ou criminalização de novas condutas não tem resolvido os problemas da violência e da criminalidade em nosso país, e mesmo assim o legislador insiste em utilizar-se deste instrumento, acatando o clamor público e, dessa forma, desrespeitando os direitos e garantias que são inerentes a todos os seres humanos. Nesse sentido disserta Luis Flávio Gomes (2009, grifo do autor): Em inúmeros casos o legislador, levado pela "urgência" e pelo ineditismo das novas situações, não encontra outra resposta (na verdade, nem sequer busca outra resposta) que não seja a conjuntural ("reação emocional legislativa"), que tende a ser de natureza "penal", dependendo dos benefícios eleitorais que possa alcançar. Invoca-se o Direito penal como instrumento 6 Controle social, segundo o site Wikipédia (2014), é o controle exercido pela sociedade sobre o governo. É por meio do controle social que asociedade é envolvida no exercício da reflexão e discussão para politização de problemáticas que afetam a vida coletiva. 26 para soluções de problemas, mas se sabe que seu uso recorrente não soluciona coisa alguma. Nisso reside o simbolismo penal. Diante deste quadro surge o Garantismo Penal, discurso que é defendido pelo já citado autor italiano Luigi Ferrajoli, que tem a intenção de minimizar a atuação exacerbada do Estado, defendo os direitos individuais e sociais em detrimento do poder punitivo, assegurando que a intervenção estatal traga o menor prejuízo possível ao determinar a punição de uma conduta delitiva. O referido autor em sua doutrina intitulada Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal tem por objetivo discutir qual o modelo de Direito Penal é compatível com um Estado Democrático de Direito como o nosso (HAUSER, 2010). Exposto isso, é correto afirmar que o poder punitivo nos Estados Democráticos de Direito vem sendo utilizados pelo poder legislativo de forma desvirtuada, seguindo as raízes dos movimentos punitivistas/repressivistas e deixando de observar os princípios basilares concernentes aos seres humanos em busca de respostas rápidas que atendam aos apelos populares e midiáticos. A legitimação da função punitiva está diretamente ligada ao respeito dos valores fundamentais constitucionais sendo que o Estado necessita de limites ao exercício da função punitiva sob pena de ferir os direitos mínimos dos cidadãos e tornar inconstitucional suas normas. Para finalizar perfeita é a colocação de Wermuth; Engelmann e Callegari (2012, p. 362-363): A eleição dos valores que orientarão a estrutura política criminal requer serenidade e seriedade na deliberação. Por isso, incompatível com atropelos e impulsos irracionais promovidos pela sociedade. Muitas vezes, especialmente no Brasil recente, tem-se observado esse tipo de decisão precipitada, no calor da emoção, colocando em risco o trinômio: igualdade, liberdade e autoridade. Sem se fazer uma ordem prioritária, não se deve esquecer de que os três valores são fundamentais para a manutenção do Estado Democrático de Direito e precária análise de um deles compromete a força de sustentação dos demais. Diante desse quadro conclui-se que nosso Estado Democrático de Direito esta sendo dominado por manifestações cada vez mais fortes de uma política criminal repressivista/punitivista e, um exemplo destes movimentos contemporâneos que tem ganhado grande destaque no universo jurídico e atraído diversos adeptos é o chamado Direito Penal do Inimigo, como será demonstrado no capítulo seguinte. 27 2 O DIREITO PENAL DO INIMIGO E SUAS MANIFESTAÇÕES NA POLITICA CRIMINAL BRASILEIRA O Direito Penal do Inimigo atua como um movimento político criminal de cunho repressivista, que tem por pretensão prevenir a periculosidade dos agentes considerados delituosos utilizando-se de critérios que não respeitam o nosso Estado Democrático de Direito. Esses critérios não levam em consideração os princípios basilares da Carta Constitucional Brasileira, desrespeitando os direitos humanos dos cidadãos e diferenciando os homens considerados perigosos, definidos como inimigos, dos não perigosos, considerados cidadãos. 2.1 Direito Penal do Inimigo: conceituação e caracterização O Direito Penal do Inimigo é um movimento político criminal baseado em uma formulação teórica defendida pelo penalista alemão Günther Jakobs (2007) onde este sugere que ocorra uma bipartição no modelo de intervenção punitiva, qual seja: “Direito Penal do Cidadão” versus “Direito Penal do Inimigo”. Explica Nucci (2011) que o denominado Direito Penal do Inimigo trata-se de um modelo penal cuja finalidade é detectar e separar, entre os cidadãos, aqueles que devem ser considerados inimigos, como por exemplo, terroristas, autores de crimes sexuais violentos, criminosos organizados, entre outros e que, para o teórico Jakobs esta é a única solução encontrada para combater esse tipo de criminoso visto que, quem não participa do Estado de uma forma legal não deve ser tratado como pessoa, e sim como inimigo, sendo excluído da comunidade, retirando-se seu status de pessoa. Jakobs (2007) entende que a pena é pura coação, não tendo um significado isolado, pois também produz algo físico que não se dirige contra a pessoa em Direito e sim contra o indivíduo perigoso sendo que a relação existente entre estes “inimigos” não se da pelo Direito e sim pela coação. O autor ainda baseia seus estudos à época em que a sociedade era regida pelos contratos sociais defendidos pelos jusfilósofos como Rosseau, Fichte, Hobbes e Kant, como exposto: São especialmente aqueles autores que fundamentam o Estado de modo estrito, mediante um contrato, entendem que o delito no sentido de que o delinquente infringe o contrato, de maneira que já não participa dos benefícios deste: a partir desse momento, já não vive com os demais dentro de uma relação jurídica. (JAKOBS, 2007, p. 25) 28 Para esses pensadores o status de cidadão é algo que pode e, até deve, ser retirado dos indivíduos, visto que quem não participa de forma legal do Estado deve ser tratado como inimigo. Em outras palavras, o inimigo não aceitou o Estado, desrespeitando-o e por isso, esse ente não precisa mais respeitá-lo como um cidadão. Aqui ocorre visivelmente uma divisão da sociedade onde, de um lado ficam os indivíduos “do bem” e, do outro, os indivíduos “do mal”. (CANTERJI, 2008) Para que aconteçam delitos deve haver uma comunidade ordenada, sendo os delitos considerados apenas como um deslize que pode ser reparado por quem o praticou, visto que o Estado vê no autor destes atos um cidadão com chances de reparar o mal que ocasionou a sociedade. Porém os inimigos não se encaixam nesse perfil, pois são aquelas pessoas que já se afastaram, até de maneira definitiva, do Direito e do Estado sendo que seu comportamento “não proporciona a garantia cognitiva mínima necessária a um tratamento como pessoa” (JAKOBS, 2007, p. 35) devendo, por tudo isso, ser considerado um inimigo da sociedade e combatido em sua periculosidade. Manuel Cancio Meliá (2007) explica que o Direito Penal do Inimigo defendido por Jakobs se caracteriza por três elementos principais, quais sejam: o adiantamento da punibilidade, em razão de que se tem como ponto de referência um fato futuro e não um fato já cometido; penas desproporcionalmente altas, principalmente aquelas que antecipam a punição e, por fim, a relativização e até supressão de certas garantias processuais. Percebe-se que o Direito Penal do Inimigo utiliza a intervenção penal sem exigir que o delito tenha acontecido, pois tem como característica a punição de acordo com as características pessoais do agente delituoso, não levando em consideração somente os atos praticados e sim a mera intenção ou, melhor dizendo, a mera suspeita de que um dia esse agente irá lesar um bem jurídico já é suficiente para puni-lo. Canterji (2008) explica que com isso cria-se uma imagem de pessoas altamente perigosas que irão reagir contra toda a sociedade, sendo que o mínimo desvio destes deve ser entendido como um indício de perigo, se confundindo a culpabilidade de um ato com a culpabilidade de um agente. Desta forma, além do caráter punitivo exacerbado, esses pensadores ainda se utilizam do Direito Penal como um símbolo de atuação estatal na busca de segurança social. Tem – se a ilusão [...] que o mundo pode ser dividido entre os civilizados e os incivilizados ou, no mesmo sentido, entre homens 29 canalhas e os honestos, até porque não há alguém totalmente honesto nem totalmente canalha. (CANTERJI, 2008, p. 56) Moraes (2006, p. 200) ainda explica que, atualmente, o Direito Penal do Inimigo é reconhecido como a terceira velocidade do Direito Penal, pois representa “um Direito Penal da pena de prisão concorrendo comuma ampla relativização de garantias político-criminais, regras de imputação e critérios processuais” e que se instaurou a partir da flexibilização de garantias penais e processuais que, ilegitimamente e, aos poucos, se infiltraram em nosso ordenamento. 2.2 Direito Penal do Inimigo e Direito Penal do Cidadão Dessa maneira Jakobs propõe uma distinção entre pessoas onde é considerado cidadão somente aquele indivíduo que pratica atos delituosos esporadicamente, que não traz uma ameaça constante a sociedade, podendo se redimir e assim oferecer garantias de que obedecerá as regras dali por diante. Já os considerados inimigos são vistos como pessoas perigosas e que estão em guerra constante contra o Estado (NUCCI, 2011) e, por isso, além de excluídas do sistema, devem ser punidas antes mesmo de praticar o ato delituoso, em outras palavras, essas pessoas devem responder pelo perigo que podem vir a causar. Isso não significa que o “inimigo” seja desprovido de direitos, porém o direito aplicado tem outro sentido quando comparado aos dos cidadãos, pois o Direito Penal do Cidadão mantém a vigência da norma, enquanto que o Direito Penal do Inimigo combate perigos (JAKOBS, 2007). O Direito Penal então se vê dividido em dois polos tratando de forma diferenciada o inimigo do cidadão, pois, como já dito anteriormente só pode ser considerado cidadão aquele que oferece mínimas garantias de bom comportamento, como explica Jakobs (2007, p. 37): Por um lado, o tratamento com o cidadão, esperando-se até que exteriorize sua conduta para reagir, com o fim de confirmar a estrutura normativa da sociedade, e por outro, o tratamento com o inimigo, que é interceptado já no estado prévio, a quem se combate por sua periculosidade. Ensina-nos HAUSER (2010) que, na perspectiva proposta por Jakobs, o Direito Penal de garantias, fundado nos princípios que regem o Estado Democrático de Direito tem aplicabilidade apenas aos cidadãos, ou seja, aqueles indivíduos que se envolvem apenas de 30 forma esporádica com a prática delitiva, sendo então resguardados todos os seus direitos e garantias, sendo que tal procedimento defendido por Jakobs propõe a cisão entre “pessoas” e “não pessoas”, formando, assim, modelos distintos de intervenção punitiva. Feita essa diferenciação entre inimigo e cidadão “a pena passa de um meio para a manutenção da vigência da norma para ser um meio de criação de vigência da norma” (JAKOBS, 2007, p. 46). Posto isso é nítida a intenção do Direito Penal do Inimigo em “manter segregados, pelo tempo que for necessário, aqueles cujo propósito é desestabilizar o Estado e ferir, de maneira inconsequente, pessoas inocentes” (NUCCI, 2011, p. 396). Frente a esse panorama Maiquel Wermuth (2010, p. 52, grifo nosso) faz uma crítica a essa dicotomia defendida por Günther Jakobs: E aqui reside o problema: segundo o discurso do Direito Penal do inimigo, os seus destinatários são encontrados dentre aqueles que abandonaram de forma definitiva o Direito, o que se infere a partir da habitualidade delitiva e da reincidência que lhe são peculiares. No entanto, este Direito que deve ser infringido para que possa aparecer a figura do inimigo é o Direito Penal do cidadão. E um Direito só pode ser infringido por quem seja efetivamente destinatário de suas normas, logo, pelo cidadão. E mais: para comprovar efetivamente a existência do crime, o infrator deve ser submetido a um processo que também deve seguir as normas do Direito Penal do cidadão, com todas as garantias que lhe são inerentes, inclusive a conservação do estado de inocência. Uma vez comprovada a prática delitiva, a imposição e cumprimento da pena cominada à infração também devem observar as regras do Direito Penal do cidadão, pois foi este o direito infringido e, como ressalta Jakobs, quem é julgado pelo Direito Penal do cidadão não perde sua condição de pessoa, mesmo quando condenado. Na realidade, a luz do sistema penal brasileiro, essa postura é manifestamente inconstitucional (NUCCI, 2011), além de que, quando se aplica a tese de Jakobs em nosso ordenamento ocorre um verdadeiro retrocesso constitucional, pois abre-se mão de garantias conquistadas com muita luta a longo de muitos anos. Separar a sociedade em pessoas e não pessoas é simplesmente uma postura inadmissível, pois todos nós temos direito ao status de cidadão e do acesso as mínimas garantias constitucionais de forma igualitária. Rogério Greco (2014) enfatiza que o máximo de insensatez que o Direito Penal brasileiro pode chegar é utilizar o argumento de que o delinquente habitual ou os criminosos organizados são “irrecuperáveis”, porquanto esse argumento jamais bastara para que o Estado o trate como um estranho à comunidade. 31 2.3 A imagem do inimigo e sua repercussão nos discursos midiáticos e nas redes sociais Na atualidade o Direito Penal do Inimigo, apesar de inconstitucional por ferir os princípios basilares da Carta Magna, se expressa reiteradamente através dos discursos midiáticos 7 . Cria-se uma ideia de que vive-se em uma sociedade de risco, mesmo sem entender o que seja este risco ou se ele é mesmo real e tudo isso ocorre porque a mídia da ênfase a notícias que versam sobre a criminalidade em sua forma mais violenta, repassando a ideia única de que nunca estamos seguros, de que tem-se que ter medo dessas pessoas - os inimigos – e, por isso, são condenados sem que tenham ligação alguma com os crimes ou com as pessoas destacadas, sem problematizar a situação nós simplesmente tentamos excluí-los da sociedade como se isso fosse uma coisa natural. Essa figura imaginaria do medo, fomentada pelo sensacionalismo dos veículos de comunicação faz com que a sociedade busque cada vez mais um recrudescimento penal, como bem explica o jurista Eugenio Raúl Zaffaroni (2011, p. 307): A criminologia midiática cria a realidade de um mundo de pessoas decentes frente a uma massa de criminosos, identificada através de estereótipos que configuram um eles separado do resto da sociedade, por ser um conjunto de diferentes e maus. O eles da criminologia midiática incomodam, impedem de dormir com as portas e janelas abertas, perturbam as férias, ameaçam as crianças, sujam por todos os lados e por isso devem ser separados da sociedade, para deixar-nos viver tranquilos, sem medos, para resolver todos os nossos problemas. Para tanto, é necessário que a polícia nos proteja de suas ciladas perversas, sem qualquer obstáculo nem limite, porque nós somos limpos, puros e imaculados. Além da postura sensacionalista adotada pela maioria dos veículos de comunicação, a própria sociedade tem difundido esse binômio “eu” versus “eles”, defendido pelo autor supracitado, através de um caminho fácil e rápido: as redes sociais. Essa predominância tem, por óbvio, grande influência da mídia, que clama por um endurecimento penal, sem observar a legalidade de seus pedidos e muito menos a aplicação dos princípios constitucionais vigentes. 7 Midiático é um acontecimento espontâneo ou planejado, que atrai a atenção de organizações de meios de comunicação, particularmente jornais, telejornais e jornais na internet, como por exemplo, acontecimentos com repercussão nacional, crimes, catástrofes, entre outros. 32 Muitas vezes não há um filtro crítico por parte dos cidadãos que utilizam as redes sociais, mas apenas discursos vazios, onde há uma mera reprodução dos fatos. Isso ocorre também em diversos programas de televisão que utilizam esse tipo de abordagem midiática, para atrair audiência, como o telejornal “Brasil Urgente”, pertencente à emissora Bandeirantes, que no comando do jornalista e apresentador José Luiz Datena 8 adota uma postura totalmente sensacionalista mesclando seu apoio à polícia armada e a exterminação dos bandidos colocando, por fim, toda a culpada “crescente violência e criminalidade” em nosso sistema penal falho. Como bem explica Jaime Carlos Patias (2005, p. 131) “o telespectador quer confirmar a verdade e a única coisa que dota o caráter de verdade é a mídia: se o telejornal não mostrou, não é verdade”. O programa Brasil Urgente é um telejornal focado em apresentar notícias trágicas e violentas, trazendo imagens ao vivo e mencionando um único ponto crítico exaustivamente. Seu apresentador faz com que o público identifique e torne um único fato o mais importante a ser avaliado, desviando outros diversos fatores que deveriam ser levados em consideração em busca da verdade real. Adotando uma forma polêmica de noticiar os fatos cotidianos Datena utiliza reiteradas frases de efeito, como “polícia com arma da mão”, “é um covarde, canalha e monstro” e até mesmo “bandido bom é bandido morto” propagando uma política criminal repressivista e punitivista aos moldes do Direito Penal do Inimigo, que separa os cidadãos de bem dos bandidos e, dessa forma, incita a vingança privada. Nesse sentido esclarece PATIAS (2005, p. 61): Não podemos esquecer de que uma transmissão jornalística, mesmo que ao vivo, é uma reprodução, sujeita a escolhas e interferências, por critérios pessoais e subjetivos, e que nada tem de pura. Tanto a transmissão direta como as reportagens em plano-sequência, imagens feitas com o cinegrafista em movimento, expressam uma noção de urgência que compromete a reflexão, anula nossa capacidade de ver as coisas com clareza, porque somos tomados pela emoção. Callegari e Wermuth (2013, p. 106) afirmam que uma forte característica da sociedade globalizada é “a influência cada vez maior dos meios de comunicação de massa nos processos 8 José Luiz Datena tem uma longa carreira nos meios de comunicação e é considerado um dos mais importantes e influentes apresentadores do Brasil. Atualmente apresenta na Band o programa jornalístico Brasil Urgente e o game show Quem Fica em Pé. Sempre com um estilo polêmico, sem papas na língua, o apresentador também é conhecido pelos bordões que cria entre eles os clássicos “Essa é a grande realidade!” "Me dá imagens" e “Me ajuda aí, ô!”. 33 de formação da opinião sobre os mais diversos assuntos” e ainda destacam que, dessa forma, o medo de se tornar uma vítima acaba se transformando em uma mercadoria da indústria cultural, que faz recortes na realidade e destaca apenas aquilo que lhe traz audiência. Sabendo que a mídia exerce uma grande influência sobre a sociedade e que suas informações são tidas como reais e totalmente verdadeiras pela maioria do público receptor surgem às manifestações do Direito Penal do Inimigo. Na busca da sensação de segurança e punibilidade a população segue iludida por tais informações e por diversas vezes as dúvidas sobre algum acontecimento criminoso, principalmente no que se refere a sua autoria acaba sendo interpretada como uma certeza pelos meios de comunicação, especialmente pela forma agressiva e sensacionalista com que as notícias são difundidas, ocorrendo uma classificação entre os cidadãos e a posterior exclusão daqueles considerados “inimigos” (LEMES, 2013). Um dos meios de comunicação em massa que tem tido destaque em nossa sociedade contemporânea é a rede social chamada “Facebook”. Segundo o site de pesquisa Wikipédia (2014) estima-se que a referida rede social possui mais de um bilhão de usuários que compartilham as mais diversas notícias entre si todos os dias e, entre estas, diversas são de cunho penal. Nota-se que o que ocorre, por muitas vezes, é a vinculação de notícias sem qualquer fundamento jurídico e de cunho estritamente repressista. Grégore Moreira de Moura (2013) em um artigo intitulado “Direito Penal das Mídias Sociais” explica que: Com efeito, no mais das vezes, os usuários do Facebook, talvez por falta de conhecimento técnico e premidos pela emoção de determinados fatos sociais, fomentam e pulverizam o movimento de lei e ordem, isto é, pregam a busca incessante de um Direito Penal baseado na punição excessiva, na ausência de direitos dos acusados e, principalmente, no tratamento do criminoso ou do suposto criminoso como réu condenado, em afronta total aos mais comezinhos direitos constitucionais. Exemplo dessa realidade se vê estampada no caso do assassinato do menino Bernardo Uglione Boldrini, ocorrido em Maio de 2014, na cidade gaúcha de Frederico Westphalen e que teve ampla divulgação, sendo inclusive criada uma página no site Facebook com o nome do menino Bernardo, que possui mais de 100.000 (cem mil) “curtidas” e que gerou grandes manifestações de ódio por parte da população que se utilizaram desse meio de comunicação em massa para condenar antecipadamente os suspeitos do crime, violando diversos princípios constitucionais e penais, como a ampla defesa, o devido processo legal e, principalmente, o 34 princípio que assegura o estado de inocência dos acusados, previsto no artigo 5º, LVIII da Constituição Federal. Nesse contexto Aury Lopes Jr (2014) afirma que, com toda certeza o princípio que deve imperar no processo penal é o da proteção dos inocentes, e isso significa que ele deve ser aplicado a todos, visto que só se perde o status de inocente depois da sentença transitada em julgado. Alvino Augusto de Sá (2012) explica que temos que estabelecer uma distinção entre solidariedade e identificação com as vítimas de crimes, pois quando há solidariedade com o outro não tomamos o problema para si mesmo, apenas nos esforçamos para prestar a ajuda necessária ao outro, enquanto que, na identificação com o crime acabamos centralizando o problema como se nosso fosse e sentimos as mesmas dores, nos preocupando com o agressor e estabelecendo uma relação de ódio e vingança. Assim, na busca de uma pretensa paz social, a sociedade, ao defender os direitos do indivíduo, direitos aos seus bens e à plena liberdade (...) identifica-se com a vítima do crime e transforma o inimigo da vítima (inimicus) em inimigo coletivo (hostis), cuja violência deve ser combatida a todo custo e rigor. É a guerra contra a guerra, a violência contra a violência. O Estado usa instrumentos aparentemente legais para punir o inimicus, o criminoso de uma só vítima. Na verdade, porém, seus instrumentos se tornam viciados e contaminados pelo clamor público na guerra contra a guerra. Em decorrência deste vício e contaminação, o inimigo individual se torna um inimigo coletivo, com todas as consequências daí decorrentes em termos de tratamento penal e penitenciário. (SÁ, 2012, p. 218, grifos do autor). A facilidade de acesso a qualquer fato ocorrido em qualquer parte do mundo e no exato momento em que ocorreu tornou as redes sociais um mecanismo hábil de divulgação de movimentos políticos criminais como o Direito Penal do Inimigo, que prezam pelo repressivismo deixando de observar os mínimos limites legais. A sensação de insegurança faz com que se busque no sistema penal respostas para um problema que é, na verdade, social, confundindo a função da pena e exigindo que o poder estatal utilize de represálias cada vez maiores para com aqueles que consideramos perigosos. Diante dessa realidade muitos legisladores se utilizam dessa influência para ganhar apoio eleitoral e adotam uma forma arbitrária de legislar, como bem explica Lemes (2013, p. 268): Há que se salientar também a forma inadequada com que se legisla em nosso país, permitindo uma infiltração do direito penal do inimigo no ordenamento jurídico-criminal, de forma a flexibilizar garantias, in thesi, sedimentadas, posto que o poder político vem legislando de maneira “populista”, pois cria 35 leis conforme o clamor público, exemplo disto foi a alteração realizada da Lei dos Crimes Hediondos, sancionada após a assassinato da atriz Daniela Perez a e pressãopública que foi gerada em torno do caso, podemos citar também as cenas de tortura praticadas por policiais em Diadema, na favela Naval, que após serem transmitidas pela mídia, culminou na criminalização da tortura sobrevinda pela Lei 9.455/97. Todos esses fatores fazem com que a população procure, cada vez mais, apenas no sistema penal as respostas para a criminalidade. A sensação de insegurança e da existência dos inimigos imposta pela mídia faz parecer que não existe outra solução que não seja a punibilidade severa, com medidas de cunho emergencial e repressivistas que não observam os limites mínimos impostos pela nossa Constituição Federal. É nesse sentido que surge a maior preocupação com a implantação do Direito Penal do Inimigo no atual sistema penal, tornando-se um circulo vicioso onde a disseminação da violência como forma crescente faz com que a população exija a aplicação de uma justiça de tribunal de exceção (LEMES, 2013). 2.4 As manifestações do Direito Penal do Inimigo no sistema penal brasileiro Como já dito o Direito Penal do Inimigo se manifesta pela característica de punibilidade antecipada, suprimindo direitos e princípios, penais e processuais. Em nosso ordenamento jurídico pode-se citar como exemplos claros da manifestação desse “direito” a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990) e o Regime Disciplinar Diferenciado (Lei 10.972/2003). O renomado autor Aury Lopes Jr. (2014) chega a falar na existência de um “processo penal do inimigo”, o qual segue a mesma linha antigarantista do Direito Penal do Inimigo, negando ao réu seus direitos e garantias constitucionais ao deixar de lado a presunção de inocência que lhes é devida, alertando ainda que há uma imensa pressão midiática construída em torno de casos mais rumorosos, onde se estabelecem verdadeiras campanhas demonizadoras, “lutas contra o diabo” (ou inimigo, é o mesmo), [que] conduz a um clima propício para práticas inquisitórias. Sem falar, ainda, na mitológica “verdade real” [...] que fortaleceu a cultura inquisitiva e implantou a ideia da necessidade de perseguição como meta principal do processo penal. (LOPES JR., 2014, p. 394, grifo do autor). 36 A Lei nº 8.072/1990 institui um rol de crimes considerados hediondos 9 e que, por esse motivo, tiveram suas penas aumentadas e garantias processuais suprimidas, conforme disposto no artigo 2º: Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I - anistia, graça e indulto; II – fiança. §2 o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. §3 o Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. § 4 o A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei n o 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. (BRASIL, 1990) Claramente pode-se perceber que a lei institui um rigor excessivo para esses crimes com o objetivo de acalmar os anseios da sociedade por justiça e encontrar uma forma de conter a violência. Aury Lopes Jr. (2014) afirma que o nosso país já esta totalmente contaminado por esse modelo repressivista e que a Lei dos Crimes Hediondos é um exemplo de que a supressão de garantias e o endurecimento das penas não diminuíram os números da criminalidade, apenas trouxeram a ilusão de que o sistema penal pode resgatar a sensação de paz que a população tanto busca. De igual modo o Regime Disciplinar Diferenciado – RDD foi instituído em nosso ordenamento através da Lei 10.972/2003 e alterou a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) estipulando sanções que refletem aspectos da teoria defendida por Günther Jakobs. O mesmo assim dispõe: Art.52: A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; 9 Hediondo pode ser entendido como aquilo transmite repulsa e horror, que é repugnante e que provoca intensa indignação moral. 37 III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1 o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. § 2 o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (BRASIL, 2003). O RDD orienta sanções disciplinares aplicadas no cumprimento da pena privativa de liberdade, que são atribuídas tanto aos presos provisórios como aos que já foram devidamente condenados e prevê sanções rígidas para determinadas condutas considerada perigosas. Este regime foi criado em detrimento do clamor público que exigia medidas severas para contenção de presos considerados de alta periculosidade. Percebe-se que, em contrário aos preceitos constitucionais, criou-se uma regra com cunho não garantista, cuja intenção é proteger delitos futuros e que atinge o indivíduo por si só e não o crime cometido. Alvino Augusto de Sá (2012, p. 219, grifos do autor) explica que “a justiça criminal e a execução penal se deixam contaminar por esse espírito de luta, de guerra pacificadora contra a guerra do inimigo coletivo [...] e acabam se transformando em instrumentos a serviço dessa guerra insólita”. O autor supracitado ainda complementa sua tese afirmando que o grande desafio da execução penal é conseguir enxergar no preso, antes de qualquer coisa, a imagem de uma pessoa que não é inimiga no seu todo, e sim uma pessoa que tem qualidades e, principalmente, que pode amar e ser amada. Com o exposto pode-se ressaltar que existe uma verdadeira incompatibilidade da nova sistemática em diversos e centrais aspectos, como a falta de garantia para a sanidade do encarcerado e duração excessiva, implicando violação à proibição do estabelecimento de penas, medidas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, prevista nos instrumentos citados. Ademais, a falta de tipificação clara das condutas e a ausência de correspondência entre a suposta falta disciplinar praticada e a punição decorrente, revelam que o RDD não possui natureza jurídica de sanção administrativa, sendo, antes, uma tentativa de segregar presos do restante da população carcerária, em condições não permitidas pela legislação. (MOREIRA, 2005) Importante ressaltar que a Carta Magna em seu artigo 5º, LIII prevê que ninguém pode ser processado e sentenciado senão pela autoridade competente, um direito que não vem 38 sendo inteiramente observado pelo Estado, mídia e sociedade, visto que as manifestações midiáticas atuais influenciam o público de tal forma que estes acabam formando um pré - julgamento dos suspeitos, tornando o que deveria ser apenas suspeita em certeza, e como consequências pressionam o Estado para que tome decisões mais severas. Tudo isso ocorre com base nas notícias divulgadas pela mídia que tem o objeto de atrair o público não
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