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Televisão: das origens ao multimédia e à interactividade Francisco Rui Cádima (in O Fenómeno Televisivo, Lisboa: Círculo de Leitores, 1995) A televisão é o objecto mais democrático das sociedades democráticas. Jean-Louis Missika e Dominique Wolton O final dos anos 80 veio demonstrar com total evidência uma teoria que alguns sociólogos têm vindo a defender ultimamente: a de que não há fronteiras que se possam opôr ao fenómeno televisivo, isto é, que em virtude da influência dos meios de comunicação de massa, entre os quais se destaca obviamente a televisão, o mundo tende a transformar-se progressivamente numa "aldeia global", onde as populações se orientam por modelos de vida muito idênticos e onde o conhecimento e a informação se propagam de uma forma quase instantânea. Os acontecimentos históricos no Leste europeu no final dos anos 80 são disso uma prova. Para o público em geral, qualquer que seja o continente que imaginemos, a história da televisão tem, no entanto, um significado aparentemente mais simples: é sobretudo um meio de entretenimento, onde, habitualmente, são os programas recreativos e o espectáculo que contam, na maior parte das vezes, com a preferência do grande público. Em casos excepcionais poder-se-á privilegiar a informação e a cultura, o que não impede, de qualquer modo, que a televisão seja, por excelência, o meio preferido pelos cidadãos de todas as partes do Mundo para ocuparem, diariamente grande parte do seu tempo livre com os programas mais do seu agrado. A pré-história da televisão não é tão recente como à primeira vista possa parecer. Na realidade, ela remonta aos tempos loucos da grande revolução das imagens, concretamente à segunda metade do século passado, período em que começam por ser realizadas as primeiras fotografias com Daguerre, e em que é inventado todo o complexo processo que originará o cinemascópio. É também nessa altura que três diferentes descobertas científicas vêm tornar possível esse então "mistério" da propagação das imagens eléctricas à distância. Tratava-se, nem mais nem menos, da foto-electricidade, isto é, a transformação da luz em energia eléctrica, uma descoberta de um jovem telegrafista irlandês chamado Christian May, em 1873; da decomposição da imagem em pontos claros e escuros e da sua recomposição, onde são fundamentais o engenho e a arte do alemão Paul Nipkow com o seu famoso disco perfurado em espiral (1884), que ao rodar realizava linha a linha a análise completa de uma imagem; e, enfim, das ondas hertzianas, do nome do seu inventor, Heinrich Hertz, que em 1887 produziu as primeiras ondas capazes de transmitir, sem fio, os sinais correspondentes a cada um dos pontos de uma dada imagem. É com base nestas três inovações da ciência que um pouco mais tarde, em 1894, Marconi realizava os ensaios decisivos para as primeiras emissões hertzianas. O caminho estava assim aberto para que o nome do escocês John Baird ficasse para sempre ligado ao aparecimento da televisão, em 1925, com a primeira transmissão à distância de imagens em movimento com um sistema próprio. Não menos importante é o russo Zworykin que em 1923, nos Estados Unidos, desenvolve um dispositivo de TV inteiramente electrónico, aperfeiçoando progressivamente o tubo catódico e o iconoscópio por forma a obter, em 1936, uma definição de imagem de 450 linhas. Os passos decisivos para concretizar em emissões televisivas experimentais, não regulares, todo um complexo conjunto de avanços tecnológicos, são dados logo após a I Guerra Mundial, sendo os seus principais autores as grandes companhias norte- americanas Bell Telephone e RCA, e, em Inglaterra, John Baird. Este, cria em 1926 o televisor, um aparelho que funcionava com um sistema de 30 linhas e a 12,5 imagens por segundo, tendo evoluído progressivamente, para responder às normas exigidas pela BBC, mas não superando as 240 linhas (1936), então já amplamente ultrapassada por outros, nomeadamente pela EMI, que será a responsável pelo sistema com o qual a BBC inaugura em Alexander Palace as suas emissões regulares para o grande público, exactamente a 2 de Novembro de 1936. Baird, no entanto, emitia desde 10 de Setembro de 1929 as suas imagens pioneiras, tendo mesmo o seu sistema mecânico alternado com o sistema electrónico da EMI durante os primeiros meses de emissões. O seu nome representa, sem dúvida, um marco de referência nesta década prodigiosa que viu nascer a televisão. A 7 de Fevereiro de 1937 o seu projecto foi definitivamente abandonado pela BBC. As primeiras emissões de programas a surgir com regularidade, horário pré- estabelecido, anúncio na imprensa, etc., tiveram origem na Alemanha e não na Inglaterra, como erradamente se julga. De facto, as primeiras emissões televisivas regulares destinadas ao público tiveram origem precisamente a 23 de Março de 1935, em Berlim, mas talvez por o equipamento utilizado (então com 180 linhas, a 25 imagens por segundo) ter sido destruído por um incêndio ainda no decorrer desse mesmo ano, e de, portanto, terem sido interrompidas as transmissões, não se lhe deu a importância histórica devida. Tudo voltou entretanto à normalidade, ainda a tempo de cobrir os Jogos Olímpicos de Berlim de 1936, transmitidos em directo para as várias cidades alemãs e atingindo uma audiência de cerca de 150 mil pessoas. A inauguração de serviços regulares de televisão prosseguiu então, em Inglaterra, a 2 de Novembro de 1936; em França, em Maio do ano seguinte; na União Soviética na Primavera de 1938, e, em Abril de 1939, nos Estados Unidos da América. Estava assim também definitivamente consolidada a vitória da tecnologia electrónica sobre a mecânica. A indústria, por seu lado, passou rapidamente a produzir uma larga gama de televisores e num curto prazo, em Londres, por exemplo, milhares e milhares de pessoas passam a ter televisão. Dizia-se então que um televisor custava o dobro do salário mensal de uma secretária... O dia 1 de Setembro de 1939 ficava entretanto tristemente assinalado: durante a manhã o centro de emissão de Alexander Palace recebe uma ordem de suspensão imediata da programação. O rato Mickey, que nesse momento preenchia os cerca de 25 mil écrans da região de Londres não teve tempo sequer de se despedir... Progressivamente os écrans dos principais países europeus foram-se todos apagando, e assim ficaram por um período de sete anos: começava a II Guerra Mundial... Os alemães foram os únicos a não interromper as emissões, servindo-se da televisão para a sua estratégia propagandística, e só após a destruição pelos Aliados do emissor de Witzleben, em finais de 1943, é que as emissões foram finalmente interrompidas. Nos Estados Unidos o desenvolvimento da televisão só se recente após o ataque japonês a Pearl Harbour, em Dezembro de 1941, o que motiva a entrada doa americanos na Guerra e consequentemente a mobilização de todos os seus recursos económicos e da sua capacidade tecnológica. Se antes da guerra a programação era já, de algum modo, diversificada, com emissões variadas, canções, rábulas teatrais, desenhos animados, actualidades, reportagens do exterior, etc., atingindo as 24 horas semanais em Londres, as 15 horas em Paris, 35 horas na Alemanha, não era portanto difícil de prever que após a II Guerra Mundial, embora partindo do zero, a televisão rapidamente retomaria a dinâmica abandonada sete anos atrás. O dia 1 de Setembro de 1947 marcará precisamente o reinício das emissões de Alexander Palace, em Londres, sete anos exactos após e interrupção. E é o mesmo Mickey Mouse que tinha saído em sobressalto que reentra agora para acabar a história que havia deixado a meio... Avanços tecnológicos importantes foram então registados, nomeadamente a adopção do VHF e do UHF, com a multiplicação dos canais disponíveis a definição de imagem e os standards detelevisão, com os Estados Unidos a normalizarem as emissões nas 525 linhas e a Europa, de uma forma geral, nas 625 linhas. Os Estados Unidos, através da Federal Communications Commission (FCC), órgão regulador da radiodifusão, reenquadram a televisão em normas legais perfeitamente claras logo no pós-guerra. A partir sensivelmente de 1948 dá-se a grande "explosão" popular da TV: em Janeiro de 1950 existem já 97 estações de televisão em 36 cidades, sendo o parque de televisores de aproximadamente 4 milhões! É ainda nos Estados Unidos que se registam avanços notáveis: a côr surge em 1953, quando o número de estações se aproxima das 200 e o número de televisores é superior a 15 milhões! Em 1955 a quase totalidade do território estava coberta. Em 1956 aparece o "video-tape". Nada de semelhante se passava então na Europa... É ainda nos Estados Unidos que mais rapidamente cresce o mercado publicitário de televisão (de 9,8 milhões de dólares em 1948 para 1,5 biliões em 1960), não podendo exceder, nos anos 50, 20% do tempo do horário nobre; e é lá também, em sistema concorrencial, que desde cedo as sondagens e os índices de audiência decidem quais os programas a emitir... Os programas preferidos pelos americanos são já nessa altura os concursos, as séries, os shows de variedades, as soap operas, não esquecendo a informação, as campanhas eleitorais e o desporto - o directo, sobretudo. Um nome ficou célebre nesta década na América: O jornalista Ed Murrow, que em directo desmascarou as intenções inquisitoriais de senador McCarthy, apostado em acusar meia-América de "comunista"... Na Grã-Bretanha tudo decorreu mais lentamente: em 1954, quando, finalmente, após uma autêntica "guerra santa" dos trabalhistas contra os conservadores, é autorizada a segunda rede, comercial, financiada exclusivamente pela publicidade, o parque de televisores é superior a 3 milhões. Se a BBC, na sua proverbial independência, geria uma programação extremamente sóbria, da informação aos dramáticos baseados em grandes obras da literatura europeia, passando pelo desporto e as grandes reportagens reais, com as famosas coroações de George VI ou, mais tarde, da Rainha Elizabeth, a Independent Television Authority (ITA) adoptou, ao contrário, a fórmula popular da televisão americana: jogos, concursos, variedades para o grande público, séries populares e uma informação muito viva e com uma forte componente regional. Assim nascia a primeira televisão privada europeia, com a concessão a 14 sociedades regionais privadas da produção de programas. Quatro meses após o seu lançamento, em Fevereiro de 1956, quatro telespectadores londrinos em cada cinco preferia as redes comerciais. O contra-ataque da BBC chamar-se-ia BBC 2 e seria lançado apenas em 1962. Mesmo assim as preferências do público continuariam repartidas entre a televisão pública e a privada. Os anos 50 são também a década em que por toda a Europa, quer no Ocidente quer no Leste, surgiram os canais nacionais de televisão (na URSS ainda antes, em 1948, na região de Moscovo); em 1951 na Holanda; em 1952 na RDA; em 1953 na Bélgica, Dinamarca, Polónia e Checoslováquia; em 1954 na Itália; em 1955 na Áustria, Luxemburgo e Mónaco; em 1956, na Suécia e em Espanha; em 1957, em Portugal. Países como o Japão, o Brasil e o Canadá têm os seus canais logo no início da década enquanto a China e a India só o conseguem já nos finais dos anos 50. Facto também de grande relevância é a criação em 1954 da Eurovisão, instância criada entre organismos de televisão membros da UER, e que tinha por objectivo centralizar a troca de programas de televisão entre os seus membros. Os anos 60 são, por assim dizer, o período em que se constitui pela primeira vez, com alguma evidência, directamente, uma ideia de comunidade planetária, presente em simultaneidade perante um e um só acontecimento. Esse primeiro acontecimento teve obviamente um nome, um local, e uma razão: tratou-se da concretização da chamada "mundovisão", uma ligação em directo entre os Estados Unidos e a Europa, no dia 10 de Julho de 1962, através do satélite Telstar, o primeiro satélite de distribuição ponto a ponto a ser colocado em órbita. Em 1965, novo e importante passo era dado nesta matéria com o lançamento do primeiro satélite de telecomunicações geostacionário, o Early Bird. Finalmente, a 21 de Julho de 1969, o quase inacreditável: os primeiros passos do homem na Lua em directo! Uma retransmissão - e um "passo" científico, ainda hoje com os seus descrentes -, feita na altura para 43 países, entre os quais Portugal. Tratou-se, sem dúvida, da "emissão televisiva do século" e com certeza só muito dificilmente perderá este epíteto. Outra imagens, porventura jamais serão esquecidas: a transmissão em directo do assassinato do Presidente norte-americano John Kennedy, em 1963. Outras dificilmente serão vistas: por exemplo, a televisão francesa hesitou e acabou por ignorar o começo do Maio de 68 francês. Mas essa não foi a mais grave acção censória produzida no interior de um canal de televisão. Por essa altura já três satélites geostacionários faziam a cobertura da totalidade do planeta. Mas os anos 60 não foram apenas o início da "era dos satélites": é um período em que a pouco e pouco se vai tomando consciência das potencialidades económicas, mas também culturais, sociais e políticas, de um meio agora transformado num fenómeno verdadeiramente universal. Era a altura em que intelectuais como Marcuse viam na televisão "o símbolo da sociedade de massa". Enquanto factor económico, a televisão começa por ser, nos Estados Unidos, objecto de consideráveis investimentos. Daí, ser a partir dessa altura que, nomeadamente no mercado americano, o número de canais vai crescer progressivamente, sobretudo no domínio da televisão por cabo. Embora remontem ainda aos anos 40 as primeiras experiências de TV por cabo, sobretudo com o objectivo de chegar a zonas de difícil penetração das ondas hertzianas, é nos anos 60 que esse mercado cresce, mas agora deixando as zonas de absoluta interioridade para partir à conquista das grandes cidades. O parque de televisores cresce também de uma forma absolutamente incrível: cerca de 1000 por cento ao longo da década nos países mais desenvolvidos, designadamente nos Estados Unidos, no Japão e nos principais países europeus. Mas se os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e o Japão conheciam já canais alternativos, entre públicos e privados, desde os anos 50, tendo, portanto, os telespectadores a possibilidade de optar pelo canal da sua preferência, todos os outros países, nomeadamente na Europa, e também no resto do mundo, com algumas excepções, estavam submetidos a uma ou duas estações dirigidas pelo próprio Estado. A década de 70 é assim uma época de reenquadramento dos diferentes sistemas audiovisuais, com vista à sua adequação aos avanços tecnológicos. Com efeito, se ainda nos anos 60 havia um pouco a ideia de que o fenómeno televisivo era, por assim dizer, um "milagre", rapidamente esse mistério se perde: os anos 70 transformaram em definitivo a televisão em "electrodoméstico", em objecto de grande consumo. Veja-se, por exemplo, que no grande mercado americano a década termina com um parque de televisores na ordem dos 124 milhões, o que dá uma média de 1,6 por habitação. 51 por cento dos lares têm, no entanto, 2 ou mais aparelhos de televisão. Em média, os americanos vêm entre 5 a 7 horas de programas de TV diariamente - a única "ocupação" que lhes toma mais tempo é, claro, o sono durante a noite... Aos 40 anos o americano médio viu já cerca de 1 milhão de spots publicitários e as crianças, também em média, antes de irem para a escola passaram já cerca de 5 mil horas à frente do televisor... É neste período que se confirma a superioridade norte-americana no mercado mundial de programas. São de facto as grandes produtorasamericanas, bem como as suas networks, as grandes redes nacionais ABC, CBS e NBC, que abastecem os canais de televisão de todo o mundo com vendas que ultrapassam, na maior parte dos casos, 50 por cento da programação de cada um desses canais, chagando a médias superiores a 80 por cento nalguns países europeus, em plenos anos 90. Se alguns programas já tinham feito história - quem não se lembra de séries como Bonanza ou Casei com uma Feiticeira, O Homem Invisível, Mr. ED, etc., muitos outros passam a fazer parte do imaginário europeu. Recorde-se, por exemplo, que a tão discutida série Dallas, amada por uns, odiada por outros, quando no início dos anos 80 foi abandonada pela RAI ao 13º episódio, foi recuperada pelo seu concorrente directo, Silvio Berlusconi, na altura a iniciar a constituição de um grande império televisivo, o que lhe permitiu rapidamente alcançar em audiência a televisão do Estado... Importa, no entanto, não cair em maniqueísmos e reconhecer que da América também vêm grandes programas - recorde-se a extraordinária série Cosmos, de Carl Sagan, ou Hill Street Blues, por exemplo. Mas o grande sucesso de vendas e de audiência da indústria americana ainda nos anos 80 é a série Os Anjos de Charlie. É de lá, ao fim e ao cabo, que continuam a vir os programas de maior êxito da televisão europeia. A década ficará marcada pelo fim da Guerra do Vietnam, para o qual a televisão muito contribuiu, com as reportagens desse monstro sagrado do jornalismo televisivo norte-americano, Walter Cronkite de seu nome. Em 1974 Nixon abdica. Mais tarde, o acidente nuclear de Three Mile Island faz travar a estratégia nuclear no mundo. Charlie Chaplin morre em 1977. É, também, a década do fim do último império colonial - o de Portugal - e também do fim das últimas ditaduras da Europa ocidental. E a televisão não foi certamente estranha a estes acontecimentos históricos. Uma imagem sempre vale mil palavras, segundo o provérbio chinês... Em 1980 uma dúvida assalta, entretanto, milhões e milhões de pessoas no mundo inteiro: "Quem matou J.R.?"... De repente todos os cidadãos do mundo queriam participar dessa dúvida legítima de todos os telespectadores... Como se a televisão, um pouco despudoradamente, quisesse, tal como o poeta diz do sonho, comandar a vida. E o paradoxo é que até certo ponto consegue-o: os rostos eleitos (por ela, e através dela) da década, acabam por ser Reagan e Gorbatchev. E também ela não é estranha à aproximação entre ambos: esteve, obviamente, presente em todos os seus encontros: era ela, afinal, a sua (deles) convidada especial... Aliás, tudo isso estava previsto de início: a década de 80 é claramente a década em que as imagens da solidariedade e da liberdade fazem mover montanhas... Recorde-se o Live Aid, em auxílio da Etiópia, recorde-se a resposta pronta da informação e da ficção televisiva ao flagelo do SIDA, recorde-se a cada vez maior preocupação (embora ainda insuficiente) na defesa ecológica da Terra. No que se refere à gestão dos sistemas audiovisuais, o fenómeno que então se verifica é o do progressivo abandono de uma situação de "canal único" mercê da proliferação das novas tecnologias (que resulta numa proliferação de canais) - e aqui, mais uma vez, é necessário realçar a importância dos satélites e da televisão por cabo, que em conjunto tornam difícil vislumbrar limites técnicos ao desenvolvimento de futuros canais da televisão. É assim que ao longo da década diversos são os países europeus que modificam a sua legislação tendo em vista, designadamente, o alargamento legal do seu espectro hertziano a novos canais nacionais e locais de televisão. É, por assim dizer, um fenómeno que rapidamente alastra a toda a Europa: a Itália começa por dar o exemplo, ainda à revelia de um enquadramento legal. Seguem- se-lhe a França, a Espanha, a Grécia, a Holanda, e, finalmente, chega a liberalização da lei portuguesa da televisão com o aparecimento dos primeiros operadores privados em 1992 e 1993, respectivamente a SIC e a TVI. Muito embora existam algumas estimativas pessimistas quanto à capacidade do pequeno mercado publicitário nacional para poder manter quatro canais generalistas de televisão, o certo é que até agora, nenhum dos operadores licenciados lastimou a sua sorte. E já se fala em canais regionais privados para o norte do país e em TV por cabo para Lisboa e Porto. Sinal de que a paisagem audiovisual portuguesa está melhor do que se imaginaria, e recomenda-se... Façamos um rápido "flash-back". A 6 de Outubro de 1992 e a 20 de Fevereiro de 1993, respectivamente, começavam em Portugal as emissões regulares dos dois canais privados de televisão portugueses - a SIC (Sociedade Independente de Comunicação), projecto liderado pelo ex-primeiro ministro Francisco Pinto Balsemão, e a TVI/Quatro (Televisão Independente), dirigida pelo ex-ministro da Educação, Roberto Carneiro, e participada maioritariamente, de início, por organismos da Igreja Católica portuguesa. Com o arranque dos dois canais privados, terminava um longo ciclo de predomínio do monopólio do Estado, assegurado desde 1957 pela Radiotelevisão Portuguesa (RTP). Com efeito, nesse ano, a 7 de Março, dava-se início em Portugal às emissões regulares de televisão através da RTP, designada como concessionária do serviço público de televisão, então uma sociedade anónima gerida por um administrador nomeado pelo Governo. O Estado português, no entanto, apenas detinha um terço do capital da sociedade, pertencendo os outros dois terços aos emissores particulares de radiodifusão e ainda a subscritores privados. Primeiro com Salazar e mais tarde com Marcello Caetano, a RTP foi sempre, designadamente através dos seus boletins noticiosos regulares, o principal porta-voz da política do Estado Novo. Nessa medida, enquanto modelo protocolar e instrumento de propaganda, a RTP foi, necessariamente, a par do sistema repressivo policial e do sistema censório, um dos elos fundamentais do campo comunicacional do sistema monopartidário, campo esse também historicamente responsável pela manutenção de um regime político cujo fim se anuncia a 25 de Abril de 1974, ao fim de 48 anos de ditadura. Emitindo a nível nacional apenas a partir de meados dos anos 60, só em finais de 1968 (25 de Dezembro) a RTP vê nascer o seu segundo canal - a RTP-2. Datas importantes nesse longo percurso histórico, são as relativas ao início das emissões regulares do Centro Regional da RTP-Madeira, a 6 de Agosto de 1972, e da RTP- Açores a 10 de Agosto de 1975. Após a "Revolução dos Cravos", a 25 de Abril, verifica-se a nacionalização da RTP, e sua transformação em empresa pública - RTP, EP. Datas importantes destas quase duas décadas da II República, são o lançamento das emissões a cores em 7 de Março de 1980 e o arranque da RTP Internacional, a 10 de Junho de 1992. E a 6 de Outubro de 1992, como referimos, o arranque das emissões do primeiro operador privado de TV - a SIC. Importante é ainda a assinatura, em Março de 1993, do contrato de concessão do serviço público de televisão, entre a RTP e o Governo do primeiro-ministro Cavaco Silva. Através deste documento, a RTP fica obrigada a cumprir as atribuições específicas do serviço público de televisão, aliás já previstas na Lei da Televisão, datada de Setembro de 1990, nomeadamente no que diz respeito ao pagamento de indemnizações compensatórias retiradas do Orçamento do Estado português, e atribuídas à RTP pela sua actividade específica enquanto concessionária do serviço público de TV. Entre essas competências, o Governo apontava os custos da difusão por satélite da programação do Canal 1 e da TV2 para as regiões autónomas dos Açores e da Madeira; os custos de exploração dos respectivos centros regionais; os custos da RTP Internacional; a cooperação com os PALOP (Países africanos de língua oficial portuguesa);a manutenção e conservação dos arquivos audiovisuais; e, finalmente, as despesas com os tempos de antena dos partidos políticos. No conjunto, para 1993, estão apontados cerca de 7,5 milhões de contos a conceder à RTP a título de "indemnização compensatória". Refira-se que, depois de extinta a taxa da TV pelo governo de Cavaco Silva em 1991, taxa que foi durante muitos anos a principal fonte de receita da RTP, a televisão pública portuguesa depende agora quase exclusivamente das receitas da publicidade e, claro, dos apoios estatais. Os operadores privados de televisão - SIC e TVI – tomavam, entretanto, uma posição clara face a estes apoios à televisão pública. Francisco Pinto Balsemão, líder do projecto SIC, numa conferência pública em Lisboa, em Junho passado, criticava o poder excessivo do Estado na sociedade portuguesa, dando como exemplo, justamente, os apoios à televisão pública. Por seu lado, a TVI, acusava o governo de agravar a "concorrência desleal" que o operador público habitualmente promovia, e ameaçava avançar com uma queixa em Bruxelas. Outros sectores, entretanto, reconheciam que o contrato de concessão do serviço público não respeitava um dos vectores essenciais de um serviço público de televisão - a sua programação, não constituindo uma alternativa real à oferta dos operadores privados, mas, antes, adoptando estratégias de programação em tudo idênticas. Uma das áreas mais críticas é a da produção de ficção portuguesa. De facto, as atribuições e competências da televisão pública relativamente ao apoio e promoção da produção de ficção portuguesa, do cinema e demais formas de expressão e produção audiovisual, estavam já contempladas na Lei 21/92, mas continuam na verdade, ainda hoje, a não ter uma concretização através de formas reais de apoio, como por exemplo um caderno de encargos com financiamento e quotas de programação específicas, e reais, para a produção independente. Dir-se-ia, na globalidade, que o sistema audiovisual em Portugal alimenta uma lógica algo ambígua, comum aliás aos Estados-membros em geral, que radica na manutenção de um sector público de Rádio e Televisão demasiado pesado, cuja situação económica é, na maioria dos casos, muito deficitária. E como se tem vindo a verificar um pouco por toda a Europa, por razões estratégicas, que têm a ver designadamente com estratégias comerciais e com a conquista das audiências, as televisões públicas europeias introduzem nas suas grelhas uma oferta de programas cada vez mais concorrencial, apenas cumprindo as atribuições e competências de um serviço público "mínimo", através de módulos, segmentos e programas marginais às grelhas clássicas, como acontece, no caso português, com a obrigatoriedade de garantir os direitos de antena dos partidos políticos e a cedência de tempo às confissões religiosas. Nada, absolutamente nada, no que se refere a incentivos à produção de ficção. Pouco, ou muito pouco, no que se refere à programação cultural, à defesa das minorias, da língua, da produção nacional, etc. Apenas os mínimos previstos na Directiva comunitária "Televisão Sem Fronteiras". Daí a transparência do financiamento e a moralização do serviço público de televisão europeu ser hoje uma das questões decisivas na luta pela melhoria da qualidade da oferta televisiva em geral. Embora por outras razões, essa é também a luta da ACT, a associação europeia dos operadores privados de televisão, que têm vindo a insistir nas críticas ao que consideram ser a "concorrência desleal" - o duplo e por vezes triplo financiamento (taxas + publicidade + subvenções estatais) das empresas públicas de televisão, suas directas concorrentes. E isso está também a verificar-se em Portugal. Tanto a SIC como a TVI já apresentaram aliás queixas nesse sentido, quer junto da Comunidade Europeia, quer, a nível nacional, na Direcção Geral da Concorrência e Preços e no Supremo Tribunal Administrativo. O facto de não existirem em Portugal, durante muito tempo, outros canais para além dos estatais, não inviabilizou o surgimento algo intempestivo de inúmeros canais estrangeiros recebidos por satélite. Em Portugal, por exemplo, este movimento remonta já à primeira metade da década de 80, e, pouco tempo depois era já possível receber através das antenas parabólicas mais de uma dezena de canais estrangeiros, desde os europeus aos americanos, quer generalistas, como a RAI, por exemplo, quer temáticos, como o Sky Movies. Lá fora, no entanto, nomeadamente no centro da Europa, esta "videomania" ganhava dimensões incalculáveis: uma cidade como Milão, por exemplo, que se situa na confluência de várias footprints de satélites europeus, com acesso a redes por cabo e privadas, para além dos canais nacionais italianos, podia receber mais de três dezenas de estações de TV. O caso belga, por exemplo, também é emblemático: trata-se desde logo do país com a maior taxa de penetração das redes por cabo no início da década - 73 por cento, seguindo-se o Canadá com 55 por cento, a Holanda com 45, os Estados Unidos com 27 por cento, a Grã-Bretanha com 14 e a França com 4 por cento. Mas hoje, na Bélgica, essa taxa de penetração é da ordem dos 95 por cento, o que quer dizer que 95 por cento dos lares com televisão recebem mais de vinte canais de televisão naquele país. Mas os anos 80 ficam também caracterizados pela procura de um consenso europeu em torno da necessidade de, nomeadamente, desenvolver a indústria europeia de programas de televisão face à penetração dos "enlatados" americanos. A criação de uma norma comunitária de televisão de alta definição com vista à aprovação de uma norma standard a nível mundial surge em paralelo com o apoio ao audiovisual europeu nessa luta sem quartel contra americanos e japoneses, designadamente através do programa Media. Olhando para trás torna-se hoje evidente que os desenvolvimentos futuros da televisão farão parte de uma complexa estratégia integrada, de programas e serviços, onde a informática, os satélites e a televisão de alta definição, bem como as redes de cabo, ou as auto-estradas da informação, actuarão como um todo e de uma forma interactiva, isto é, permitindo aos utilizadores e operadores comunicarem entre si, pedindo programas de televisão, enviando telecópias, recebendo videoconferências, por exemplo. A peça central deste complexo sistema será obviamente o computador pessoal. Esta será necessariamente uma estratégia a prazo, que deverá consolidar-se provavelmente no princípio do século XXI, mas que terá de ser estudada e projectada ao longo da década que agora entra - a última década do século XX. Uma antecipação de como poderá ser, muito provavelmente, uma habitação no final do século, em termos das actuais possibilidades tecnológicas, levar-nos-ia a descrever um cenário que de alguma forma o cinema já tem ficcionado: edifícios inteligentes em que os electrodomésticos podem ser comandados à distância, mais de cem canais de TV à disposição, em alta definição e projecção gigante, redes interactivas de televisão por cabo, computador ligado a superbancos de dados, telefone com vídeo, e, claro, uma "conta calada" no fim do mês... Ambiciosa, realista ou utópica, o certo é que a estratégia integrada, multimédia, é já universal e pretende servir não só os utilizadores colectivos - como as empresas e instituições -, de uma forma geral, mas também as habitações, tendo como um dos objectivos finais exactamente a construção de uma rede multi-serviços, utilizando as fibras ópticas na transmissão e distribuição, ainda que numa primeira fase se possa prever um desenvolvimento do tipo da teledistribuição clássica a evoluir para a implementação de uma interactividade máxima, tendo por objectivo final um sistema de rede nacional multi-integrada. Estes complexos sistemas multimédia levam ainda a pensar no poder de que poderá desfrutar quemeventualmente os vier a deter... Alguém disse que a potência ou potências que vierem a dominar as novas tecnologias dominarão a produção, a indústria, terão o poder militar e criarão uma nova era política planetária. Uma premonição que se está já a cumprir. Mas é óbvio também que os custos de um tal sistema são de uma ordem de grandeza que nem todos os países poderão acompanhar. Por outro lado, é ainda um dado assente que muitos têm sido os fracassos e os impasses no domínio das novas tecnologias. Poder-se-iam citar os fracassos das redes comunitárias na Europa, as dificuldades de arranque de algumas televisões privadas, os prejuízos das redes por satélite, nomeadamente dos canais ingleses de Murdoch nos anos 80, os custos da fibra óptica, etc., mas de uma coisa parecem não restar dúvidas: os satélites, complementados pelas redes de fibra óptica, serão num futuro não muito distante os canais por excelência da comunicação interpessoal, interinstitucional e interempresarial. Parece assim estar aqui fora de causa uma má premonição de um alto responsável europeu em matéria de novas tecnologias da comunicação quando receava que a Europa estivesse a criar "meios de comunicação sem utilizadores nem utilidade"... Não é disso que aqui se trata, em definitivo. Mas o futuro, melhor que nós, o dirá. Hoje, finalmente, poder-se-ia dizer do audiovisual, de certa maneira, o mesmo que Foucault dizia do homem: «Não se trata de descobrir o que ele é, mas de recusar o que ele tem sido». Recusar, no fundo, a "grande narrativa" generalista, o fluxo abstracto da máquina televisiva. Essa é uma incompatibilidade de fundo, parece-nos, entre o optimismo da vontade da comunicação de massa, as utopias adjacentes, e o pessimismo da inteligência dos universos da cultura e da crítica. Estaríamos assim a considerar sobretudo o lado "grande público" do audiovisual, ou seja, o campo monopolizado essencialmente pelas tecnodiscursividades tradicionais da paleo-televisão (do tempo dos monopólios de Estado) que hoje tomam corpo, de novo, na fragmentação dos sistemas televisivos, naquilo a que Francesco Caseti chamava a "neo-televisão". Essa é, obviamente, uma questão a reter, mas o facto é que o audiovisual, hoje, já não apenas é isso. Hoje, pensar as linguagens e técnicas do audiovisual requer pensar num conjunto de práticas, estratégias e tecnologias, que, para além das pouco discretas sinergias criadas entre detentores do poder mediático, constituem - com a cumplicidade e permissividade do legislador e do político, e, logo, também, do mercado -, uma "aldeia global" repartida entre grandes famílias mediáticas, concentrando meios, uniformizando fluxos, instituindo novas legitimidades que dissimulam, em síntese, o desaparecimento da virtude civil, os abismos do sistema participativo e, em acréscimo, a crise de autonomia do sujeito. Tal como reconhecia Régis Debray, quanto mais se globaliza o nosso espaço económico, mais se balcaniza o nosso espaço político, o mesmo é dizer, quanto mais se globaliza o espaço mediático mais se restringe a diversidade cultural. Ou, como prefere enunciar Touraine, na sua última obra em torno das crises da modernidade, o grande problema não é hoje a ameaça da agressividade, mas antes a evidência da passividade perante a globalização e modelização do campo social, perante, justamente, a "retribalização" de que falava McLuhan. Trata-se, portanto, de uma reflexão de grande complexidade, que, por exemplo, no plano europeu, nos poderia levar para questões tão específicas (talvez não tanto decisivas) como a velha cláusula de "excepção cultural" defendida para o audiovisual comunitário no plano da discussão do GATT, ou para a necessidade de resistir aos "mundialismos", ao paradigma publicitário e aos impérios macroculturais, de modo a preservar os particularismos, as redes de singularidades, enfim, as identidades, as culturas e as tradições locais. O campo audiovisual, designadamente o que está ligado aos grandes fluxos de difusão de programas de TV, vídeos e filmes, é, assim, no plano estratégico, e no plano das discursividades e dos contextos histórico-culturais, um dos eixos preferenciais, necessariamente incontornáveis, para a reflexão neste final de século. Daí pretendermos desenvolver nesta obra uma reflexão mais aprofundada sobre a máquina televisiva, o seu dispositivo, as suas tecnodiscursividades, as estratégias e lógicas de programação, os contextos de emergência das regularidades enunciativas, das suas práticas e formações discursivas, no plano dos programas, da informação, e do grande fluxo abstracto de enunciação dessa máquina discursiva. Não será esquecida a problemática do campo de recepção, das audiências e dos métodos electrónicos de medição, e bem assim a questão dos modelos televisivos, a questão do serviço público, e dos sofismas políticos e estratégicos do sistema, designadamente no âmbito do audiovisual europeu. Uma outra análise do dispositivo televisivo, da linguagem e da escrita televisiva, refere-se ao campo do vídeo, do multimédia e das linguagens interactivas, num universo integrado que gostaríamos de reflectir em termos dos discursos da vídeocultura. Neste âmbito, a nossa proposta pretenderá dar visibilidade exactamente a uma reflexão sobre os modelos e a lógica do mundo da televisão, que é, de alguma maneira, a visão que muitos de nós têm do próprio mundo. Trata-se, assim, de um novo campo de mediação. O que significa que o dispositivo comunicacional de fim de século está fortemente marcado por um novo campo 'hipermediático', que veio introduzir uma nova complexidade nos estudos sobre os media, a informação, a técnica e o simbólico. Com efeito, a progressiva integração das tecnologias digitais e interactivas no campo dos media, na informação, nos serviços, etc., veio estabelecer um novo modelo de acesso aos fluxos de informação. No limite, um novo espaço, de complexas relações públicas e privadas - um novo campo de mediação. Trata-se agora, cada vez mais, em função desse novo processo, de analisar o dispositivo comunicacional em evolução de um modelo clássico, em "pirâmide", para um modelo interactivo, através do qual se joga uma autonomia crescente do sujeito - um modelo matricial. É a era dos "self-media", dos media que se destinam aos utilizadores individuais - pc´s, fax, telemóvel, bip, pager, etc. -, e que interactuam através de redes celulares e de redes interactivas (RDIS, Internet, "auto-estradas da informação", por exemplo). É também a era de convergência entre o audiovisual, as telecomunicações e a informática - um complexo integrador que conduzirá ao reforço do paradigma comunicacional e certamente à recomposição da esfera pública e política. Mais concretamente, a interactividade remete para nova lógica comunicacional - para um mundo de possíveis que se configura no facto de deixar de existir "o mesmo programa", para passar a existir um mundo de "programas" e de "navegações", tantos quantos os respectivos utilizadores. Esse é o conceito. Problematizar portanto o conceito, descrever as modalidades e os contextos da emergência da interactividade, as novas discursividades daí resultantes , a sua relação com o campo da recepção, a reconfiguração de dispositivos e paradigmas, o plano da inovação tecnológica, as virtualidades no campo científico e no acesso à informação, as dramaturgias do 'contentware', os jogos interactivos, os direitos e liberdades perante as 'mega-máquinas' de gestão da informação, etc., é o objectivo desta proposta de abordagem, que retomaremos no final desta obra. View publication statsView publication stats https://www.researchgate.net/publication/328335060