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Sumário Prefácio 7 1. Cosmologia: a origem do universo 9 Teogonia 10 Cosmogonia 11 Cosmologia 14 A origem da Filosofia grega. 19 Tomás de Aquino: conceito filosófico e conceito teológico da criação 22 Explicação metafísica da criação: Deus como causa 25 O Iluminismo e a impossibilidade metafísica 27 Diálogo entre ciência e religião 29 2. Angeologia no primeiro testamento 35 Angeologia no primeiro testamento 36 Os anjos na Torá 37 Angeologia no livro do Êxodo 39 Angeologia na literatura sapiencial 43 Angeologia nos profetas de Israel 45 Angeologia no segundo testamento 47 Angeologia nos evangelhos 48 Angeologia no apocalipse 52 Anjo, querubim, serafim e arcanjo 53 Apropriação do misticismo e das superstições da angeologia 57 3. Antropologia teológica: estudos da origem, queda e redenção humanas 63 O sentido da vida e o fenômeno humano 64 A criatura como imagem e semelhança do criador 71 Fundamentos bíblicos 72 O homem compreendido pelo mistério da revelação 75 Os fundamentos bíblicos da revelação 75 O desligamento do criador: o pecado 79 O pecado nas escrituras sagradas 80 A Redenção em Jesus Cristo: Re-Ligare 84 A Promessa do Emanuel e o servo de Yahweh 84 A encarnação como kenosis 84 A encarnação nos evangelhos 85 Kerigma: Jesus Cristo une Deus e a humanidade 88 4. Cristologia: estudos sobre a pessoa de Jesus Cristo 91 A natureza humana e Divina de Jesus: 100% Deus e 100% homem 92 Introdução 92 Jesus de Nazaré verdadeiro homem 95 O testemunho das escrituras sobre a humanidade de Jesus 97 A humanidade de Jesus Cristo no primeiro testamento 97 A humanidade de Jesus em Paulo 98 A humanidade de Jesus Cristo nos evangelhos sinóticos 99 As Heresias Cristológicas 103 A relação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo 107 Fundamentos bíblicos da fé trinitária 108 A revelação da trindade no segundo testamento 108 A trindade na teologia sistemática de Agostinho e Boff 109 A heresia do Arianismo e a resposta dos Concílios de Niceia e de Constantinopla: Credo Niceno-Constantinopolitano 113 5. Soteriologia: estudos sobre doutrinas da salvação 119 A soberania de Deus 120 A soberania divina no anúncio de Jesus de Nazaré 122 A conversão e a salvação em Jesus 125 A igreja como canal da graça e da vida eterna 127 Eclesiologia ecumênica 127 O que é ecumenismo? 128 A origem do movimento ecumênico 130 Eclesiologia ecumênica 132 Hermenêutica da koinonia 135 Justificação, regeneração, santificação, glorificação 138 Justificação e regeneração 138 Santificação e glorificação 140 7 Prefácio Prezados(as) alunos(as), Neste componente curricular você estudará temas fundamentais de teologia sistemática tais como criação e evolução, angeologia, antropologia teológica, cris- tologia e soteriologia. Na primeira unidade você verá que a teologia contemporânea faz uma interfa- ce com os demais saberes, sobretudo com a filosofia e com as ciências na busca das causas materiais da origem do universo. É uma atitude de diálogo na diversidade de concepções, cada uma respeitando a autonomia da outra. É uma postura de complementariedade e não de confronto. Esta nova postura da teologia segue na linha da interdisciplinaridade, da trans- disciplinaridade, da pruridisciplinaridade e da metadisciplinaridade, ou seja, o verdadeiro conhecimento é uma construção coletiva. Na unidade dois, a reflexão teológica é sobre um tema fascinante, os anjos. Você conhecerá a perspectiva bíblica sobre esses seres angelicais. Segundo a Sagrada Escritura eles são muitos e estão a serviço de Deus na defesa da vida humana e da criação. Verá como os Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael são mensageiros de grandes notícias e protetores de grandes causas humanitárias. Igualmente estudará a apropriação negativa desta espiritualidade pelo misticismo e pela superstição. Na terceira unidade o estudo é sobre a pessoa humana: antropologia teológica. Você analisará o ser humano como criado a Imagem e Semelhança da Trindade. É na verdade uma antropologia cristológica, a pessoa humana redimido por Jesus Cristo agora é um alter Christi, outro Cristo. Não é o Homo hominis lúpus ou o inferno como afirma a antropologia filosófica de John Lock e de Jean Paul Sartre. Mas batizada e convertida é Imagem e Semelhança do redentor. A unidade quatro é sobre o mistério cristológico. A cristologia e a Trindade são os estudos mais fascinantes da teologia. Você estudará dois paradigmas cristológi- cos: cristologia para cima ou ascendente e cristologia para baixo ou descendente. Verá que o kerigma colocou esses dois paradigmas de abordagem, compreensão e proclamação da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Jesus Cristo é verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, o salvador. Por fim, na unidade cinco será abordado o tema da salvação, soteriologia. Você voltará na unidade porque a salvação na perspectiva da teologia cristã inicia com a criação e passará por todas as outras unidades verificando o papel dos anjos na história da salvação, a pessoa humana como protagonista da ação redentora de Deus em Jesus Cristo, unidades três e quatro. E verá também a missão das igrejas como habitat da experiência salvíficas na celebração do mistério pascal, na procla- mação da Boa Nova, na comunhão e partilha do pão. Daí a necessidade de uma eclesiologia ecumênica. Bons estudos! Cosmologia: a origem do universo 1 capítulo 1 • 10 Cosmologia: a origem do universo No estudo de Teologia sistemática II você aprofundará seus conhecimentos sobre uma temática fascinante: a origem do universo. Tema este que a historiogra- fia testemunha, vem ocupando a preocupação intelectual da humanidade de longa data. Juntamente como questões: quem sou eu? De onde vim? O que vim fazer aqui e agora? E para onde vou? Estas questões foram respondidas pelas religiões, pela fé, como veremos a resposta religiosa sempre foi a fé na criação, Deus criou o universo do ‘nada’. Segundo o livro do Gênesis “no princípio Deus criou o céu e a terra. Ora a terra estava vazia e vaga, as trevas cobriam o abismo, um vento de Deus pairava sobre as águas” (Gn 1,1-2). Igualmente a mitologia abordou esta questão também usando sua metodo- logia própria: a imaginação, daí, embora sejam importantes, mas o seu caráter fantástica, subjetivo e sem base “empírica” ou verificável na experiência. Por outro lado, na passagem do século sexto para o século quinto antes de Cristo, nas colônias orientais da Grécia clássica, uma nova metodologia de abor- dagem destas questões será “inventada” pelos filósofos pré-socráticos: a aborda- gem racional ou abordagem filosófica. E esta abordagem pelo seu caráter inovador receberá o nome de cosmologia. Porém, antes de analisarmos como é esta nova forma de compreender e explicar o mundo, o universo, o cosmo vamos fazer uma distinção entre teogonia, cosmogonia e cosmologia. OBJETIVOS • Estudar a origem do universo; • Analisar as relações mito, filosofia, religião, teologia e ciências; • Compreender o sentido da metafísica. Teogonia A teogonia busca a compreensão das origens do universo a partir de uma concepção politeísta. Hesíodo que viveu por volta do século VIII antes de Cristo é considerado o grande representante desta abordagem. Numa obra intitulada Teogonia de forma capítulo 1 • 11 ‘fantástica’, imaginativa, o poeta fala do nascimento dos deuses e da origem do universo, já que este surgiu das mãos dos deuses. “É uma explicação mítica-poé- tica-fantástica da origem do universo, dos fenômenos cósmicos, a partir do caos originário, que foi o primeiro a se gerar”. A narrativa teogônica é uma abordagem imaginativa que concebe a gênesis de tudo através de relações sexuais entre os deuses, então surge o cosmo, isto é, a origem dos deuses, titãs, heróis, homens e o mundo natural. ‘É uma narrativa em forma de genealogia que mostra o nascimento, o lugar do nascimento, as descen- dências, reunião de todos os seres criados, ligados por laços de parentescos’. CONEXÃO Você poderáaprofundar este tema estudando a Obra de Hesíodo Teogonia. A origem dos deuses, traduzida por Jaa Torrano. Disponível em: <http://sanderlei.com.br/PDF/Hesio- do/Hesiodo-Teogonia.pdf>. Acesso em: 03 maio 2018. Cosmogonia Homero é um gênio da literatura épica, segundo a historiografia seu período é o século IX antes de Cristo. Dele temos duas obras magníficas, Illíada e Odisseia. São clássicos da literatura ocidental. Na primeira ele relata a longa guerra de Tróia, vencida pelos gregos depois de dez anos de batalha. Segundo Homero, a causa foi o rapto da princesa Helena esposa de Menelau, feito por Paris, filho do rei Priano de Tróia. Mas sabemos que o interesse maior dos gregos era o estreito do mediter- râneo dominado por Tróia onde todos os navios deveriam pagar uma espécie de pedágio para navegarem, medida com a qual os gregos não concordavam. A hipótese mais provável é que Tróia fez um acordo com os gregos de nave- garem gratuitamente por lá, então Priano manda seus dois filhos Heitor e Paris à Grécia para celebrar o acordo, no retorno a Tróia, Páris leva consigo a princesa Helena, então esposa de Menelau. Então “pela honra de Menelau” o exército grego atacou a fortaleza de Troia e somente pela esperteza de Ulisses, com o famoso ca- valo de troia, os gregos conseguiram a vitória. Veja que Helena é apenas o estopim da guerra, mas não a causa. capítulo 1 • 12 CONEXÃO Para conhecer um pouco melhor esta questão você poderá ler O Elogia a Helena no texto de Górgias (485-375). Disponível em: <http://www.consciencia.org/gorgiashumberto. shtml>. Acesso em: 03 maio 2018. Outra obra monumental de Homero é a Odisseia, na qual o autor narra o retorno de Odisseu ou Ulisses o herói grego da guerra, que perambulou por mais dez anos pelo mediterrâneo depois de ter destruído a cidade sagrada de Tróia. No seu retorno à terra natal, Ítaca, teve que travar outra guerra para recuperar sua casa e sua família que foram assedias por pretendentes de seu patrimônio e sobretudo de sua fiel esposa Penépole. Porém, vamos conhecer um pouco a outra obra prima de Homero, a cosmo- gonia, ela é uma evolução na compreensão da origem do universo em relação à teogonia de Hesíodo. ‘Ela narra a geração da ordem do universo pela ação e pelas relações sexuais entre forças vitais que são entidades concretas e divinas’. Segundo Giovanni Reali e Dario Antiseri Homero tem grande senso de harmonia, da proporção, do limite e da medida. Não se limita a narrar uma série de fatos, mas também pesquisa suas causas e razões (ainda que em nível mítico-fantástico). Procura apresentar a realidade em sua inteireza, ainda que de forma mítica (deuses e homens, céu e terra, guerra e paz, bem e mal, alegria e dor, tota- lidade dos valores que regem a vida do homem) (REALI e ANTISERI, Vol. 1, p. 7, 2003). CONEXÃO Veja o estilo literário deste gênio chamado Homero: “Ninguém, com toda certeza, é capaz de assumir a liderança em todos os campos, pois para um homem os deuses concederam as proezas da guerra, a outro, a dança, para um outro, a música e o canto, e, num outro, o todo poderoso Zeus colocou uma boa cabeça.” Homero. Disponível em: <https://kdfrases.com/autor/homero>. Acesso em: 3 maio 2018. capítulo 1 • 13 Depois que assim falou, o ilustre Heitor estendeu os braços ao filho. Logo a criança se voltou aos gritos, para o seio da ama de bela cintura, assustado com o aspecto do seu amado pai, com medo do bronze e do penacho de crinas de cavalo, que via tremer, assustador, no alto do capacete. Desatou a rir o pai querido e a mãe venerável. Logo o ilustre Heitor retirou o capacete da cabeça e pousou no solo, todo resplandecente. Depois que beijou o caro filho, e o embalou nos braços, dirigiu esta prece a Zeus e aos outros deuses: “Zeus e demais deuses, concedei me que este meu filho venha a ser como eu, se distinga entre os Troianos, seja assim forte e governe Ílion com o seu poder”. E que alguém diga: “É bem mais valente que o pai. Quando regressar do combate, que traga os despojos sangrentos do inimigo que aba- teu, para gáudio de sua mãe”. Dito isto, pôs nos braços da esposa o filhinho; ela rece- beu o no seio perfumado, entre risos e lágrimas; condoeu se o marido ao vê la, acari- ciou a, e dirigiu lhe estas palavras, chamando a pelo nome: “Louca, não te aflijas assim no teu coração. Ninguém me lançará no Hades contra as ordens do Destino. Garanto te que nunca homem algum, bom ou mau, escapou ao seu Destino, desde que nasceu. Vai para casa tratar dos teus trabalhos, o tear e a roca, e dá ordem às tuas aias de fazer o seu serviço; a guerra diz respeito aos homens, a quantos nasceram em Ílion, e a mim mais que a nenhum.” Disponível em: <http://www.scielo.mec.pt/pdf/rphl/n24/ n24a02.pdf>. Acesso em: 03 maio 2018. Como afirma a historiografia, Homero e Hesíodo estão ligados às camadas populares de seu tempo, sobretudo à religião pública, representam o patrimônio cultural da sabedoria de vida do povo grego. Portanto recolhem pensamento po- pular e com uma imaginação fértil elaboram uma explicação cosmogânica para os acontecimentos históricos. Segundo Juan Antonio Estrada, no livro Deus nas tradições filosóficas. Volume1. Aporias e problemas da teologia natural, estes dois gênios da literatura grega, Hesíodo e Homero não só representam a sabedoria popular grega, mas são tribu- tários da literatura oriental: As diversas influências das mitologias orientais no mundo helenistas se fazem sentir na cultura grega. Hesíodo, juntamente com Homero, é grande receptor e transmissor dos mitos, com claros antecedentes e influências das tradições orientais já analisadas. Na Teogonia de Hesíodo nos encontramos com paralelismos e repetições dos elementos das mitologias anteriores: a cosmogonia se insere dentro da geração dos deuses e tem como ponto de partida o caos. capítulo 1 • 14 O estágio originário de desordem e violência deixa lugar a um de ordem e justiça como consequência de ascensão e consolidação posterior de Zeus como máxima autoridade divina, que instaura a ordem cósmica, social e divina. O próprio poema Os trabalhos e os dias estão também caracterizados por esta preocupação de Hesíodo pela ordem, estabelecendo sempre a correspondência entre homens e deuses. Os paralelismos com a mitologia babilônica são indiscutíveis e a pergunta pelas origens mantém sem- pre sua conexão com a do significado do cosmo (o da ordem e o caos). (ESTRADA, 2003, p. 37-38). Cosmologia Dando um salto histórico, passamos agora para o chamado período de ouro do povo grego, alguns chegaram a chamá-lo de ‘milagre grego’. A verdade é que na passagem do século sexto para o século quinto antes de Jesus Cristo a Grécia passa por uma profunda transformação social, econômica, política, ecológica e cultural, sobretudo nas colônias da Jônia, especialmente Mileto e depois nas colônias oci- dentais da Itália meridional. O florescimento comercial possibilitou o surgimento de um novo grupo social, um novo protagonista, os artesãos, que com sua força econômica se oporão ao poder político da velha nobreza fundiária, transformarão as velhas formas aristocráticas de governo em novas formas republicanas, desper- tando o amor pela liberdade, ou melhor, pela autonomia (autarquia). Juntamente com este fato novo, acontece uma série de inovações: invenção da moeda, da escrita, do calendário e, sobretudo da democracia. Sobre este momento de esplendor do povo grego vejamos o que diz um dos principais lideres deste período, Péricles, na famosa oração fúnebre: A maioria dos que, até este momento, pronunciaram discursos neste lugar fez o elogio deste costume antigo de honrar, ante o povo, aqueles soldados que morreram na guer- ra, mas a mim parece-me que as solenes exéquias que publicamente celebramos hoje são o maior elogio daqueles que, pelo seu heroísmo, as mereceram... ...Esta região, habitada sem interrupção por gente da mesma raça, passou de mão em mão até hoje, guardando sempre a sua liberdade, graçasao seu esforço. E se aque- les antepassados merecem o nosso elogio, muito mais o merecem os nossos pais. À herança que receberam juntaram, ao preço do seu trabalho e dos seus desvelos, o poder que possuímos, que nos legaram. Nós o aumentamos. E no vigor da idade ainda alargamos esse domínio, abastecendo a cidade de todas as coisas necessárias, tanto na paz como na guerra. capítulo 1 • 15 Nada direi das proezas e façanhas guerreiras que nos permitiram alcançar a situação presente, nem da valentia que nós e os nossos antepassados demonstramos defen- dendo-nos dos ataques dos bárbaros ou dos gregos. Todos as conheceis e por isso não vos vou falar delas. Mas a prudência e arte que nos possibilitaram chegar a esse resultado, a natureza das instituições políticas e os costumes que nos trouxeram este prestígio, é necessário que sejam ressalvados antes de tudo. Depois, continuarei com o elogio aos nossos mortos... ... A nossa constituição política não segue as leis de outras cidades, antes lhes serve de exemplo. O nosso governo chama-se democracia, porque a administração serve aos interesses da maioria e não de uma minoria. Veja que o ‘discurso fúnebre’ expressa uma auto autoestima, uma auto valori- zação e sobretudo uma auto confiança na organização política reconhecidamen- te ainda hoje como um paradigma daquele período. Mas não para por aí, leia mais um trecho diagnóstico deste esplendor helênico agora sobre a legislação e a República: De acordo com as nossas leis, somos todos iguais no que se refere aos negócios privados. Quanto à participação na sua vida pública, porém, cada qual obtém a conside- ração de acordo com os seus méritos e mais importante é o valor pessoal que a classe a que se pertence; isto quer dizer que ninguém sente o obstáculo da sua pobreza ou da condição social inferior, quando o seu valor o capacite a prestar serviços à cidade. No que corresponde à República, pois, governamos livremente e, ainda, nas relações que mantemos diariamente com os nossos aliados e vizinhos, não nos irritamos porque ajam à sua maneira, nem consideramos como uma humilhação os seus prazeres e alegrias que, apesar de não nos produzir danos materiais, nos causam pesar e tristeza, ainda que sempre tratemos de dissimulá-los. Ao mesmo tempo em que não temos receio nas nossas relações particulares, domina- -nos o temor de infringir as leis da República; obedecemos aos magistrados e às re- gras que defendem os oprimidos e mesmo que não estejam editadas, a todas aquelas que atraem sobre quem as viola o desprezo de todos. Para amenizar o trabalho, procuramos muitos recreios para a alma; instituímos jogos e festas que se sucedem a cada ano; e diversões que diariamente nos proporcionam deleite e diminuem a tristeza. A grandeza e a importância da nossa cidade atraem os tesouros de outras terras, de modo que não só desfrutamos dos nossos produtos como daqueles do universo inteiro. No que se refere à guerra, somos muito diferentes dos nossos inimigos porque per- mitimos que a nossa cidade esteja aberta a todas as gentes e nações, sem vedar nem proibir a qualquer pessoa que adquira informes e conhecimentos, ainda que a sua revelação possa ser proveitosa aos nossos adversários; pois confiamos tanto em preparativos e estratégias como no nosso ânimo e vigor na ação. capítulo 1 • 16 A organização militar segundo Péricles é imperial, ou seja, a maior potência do mediterrâneo que impunha medo a todos os inimigos pelas armas e estratégias: Outros, no que se refere à educação, acostumam, mediante um treino fatigante desde criança, a sua potência viril; nós, apesar da nossa forma de viver, não somos menos ousados e valentes para afrontar o perigo quando a necessidade o exige. Boa prova disso é que os lacedemónios [espartanos] jamais se atreveram a entrar na nossa terra sem que estejam acompanhados de todos os aliados; enquanto nós, sem ajuda nenhu- ma, fizemos incursões no território dos nossos vizinhos e muitas vezes, sem grandes dificuldades, derrotamos em país estrangeiro adversários que defendiam os seus pró- prios lares. Nenhum dos nossos inimigos se atreveu a atacar-nos quando reunimos todas as nos- sas forças, tanto por causa da nossa experiência nas coisas do mar, como pelos muitos destacamentos que temos em diversos lugares do nosso território. Se por acaso os nossos inimigos derrotam alguma vez um destacamento dos nossos, se jactam de nos haver vencido a todos e se, pelo contrário, os derrota uma parte das nossas tropas, dizem que foram atacados por todo o nosso exército. E efetivamente preferimos o repouso e o sossego quando não estamos obrigados, por necessidade, ao exercício de trabalhos penosos e, também, ao exercício dos bons cos- tumes, a viver sempre com o temor das leis; de forma que não nos expomos ao perigo quando podemos viver tranquilos e seguros, preferindo a força da lei ao ardor da valentia. Temos a vantagem de não nos preocupar com as contrariedades futuras. Quando che- gam estas, enfrentamo-las com boa têmpera, como os que sempre estiveram acostu- mados com elas. Segundo Péricles a cidade Estado Grega articula preocupação e cuidado com a coisa pública e ao mesmo tempo com as necessidades particulares de cada cidadão: Por estas razões e muitas mais ainda, a nossa cidade é digna de admiração. Ao mes- mo tempo em que amamos simplesmente a beleza, temos uma forte predileção pelo estudo. Usamos a riqueza para a ação, mais que como motivo de orgulho, e não nos importa confessar a pobreza, somente considerando vergonhoso não tratar de evitá-la. Por outro lado, todos nos preocupamos de igual modo com os assuntos privados e públicos da pátria, que se referem ao bem comum ou privado, e gentes de diferentes ofícios se preocupam também com as coisas públicas. Nós consideramos o cidadão que se mostra estranho ou indiferente à política como um inútil à sociedade e à República. Decidimos por nós mesmos todos os assuntos sobre os quais fazemos, antes, um estu- do exato: não acreditamos que o discurso entrave a ação; o que nos parece prejudicial é que as questões não se esclareçam, antecipadamente, pela discussão. capítulo 1 • 17 Por isto nos distinguimos, porque sabemos empreender as coisas juntando a audácia à reflexão, mais que qualquer outro povo. Os demais, algumas vezes por ignorância, são mais ousados do que o que requer a razão, e alguns, por querer fundamentar tudo em raciocínios, são lentos na execução. Seria justo ter por valorosos aqueles que, ainda conhecendo exatamente as dificulda- des e vantagens da vida, não recusam o perigo. A paideia grega é igualmente exaltada como aquela que é capaz de formar o ser humano altruísta, além das habilidades para a guerra, para o trabalho, ou seja, a formação humana integral: No que se refere à generosidade, também somos diferentes dos demais, porque pro- curamos fazer amigos, dispensando-lhes benefícios ao invés de recebê-los, pois o que faz um favor a outro está em melhor condição do que quem o recebe para conservar a sua amizade e benevolência, enquanto o favorecido sabe que há de devolver o favor, não como se fizesse um benefício mas como se pagasse uma dívida. Também somos os únicos em usar a magnificência e liberalidade com os nossos amigos e não tanto por cálculo da conveniência como pela confiança que a liberdade dá. Numa palavra, afirmo que a nossa cidade é, em conjunto, a escola da Grécia, e creio que os cidadãos são capazes de conseguir uma completa personalidade para adminis- trar e dirigir perfeitamente outras gentes, em qualquer aspecto. E tudo isto não é um exagero retórico, ditado pelas circunstâncias, mas a verdade mes- ma; o poderio que conquistamos com estas qualidades o demonstra. Atenas possui mais fama que as demais. É a única cidade que não dá motivos de ran- cor aos seus inimigos pelos danos que lhes inflige, nem desprezo aos seus súbditos pela indignidade dos seus governantes. Esta grandeza é demonstrada por importantes testemunhos é de uma maneira definitivapara nós e para os nossos descendentes. Eles terão uma grande admiração por nós sem que tenhamos necessidade dos elogios de um Homero, nem de qualquer outro, para adornar os nossos feitos com elogios poéticos, capazes de seduzir, mas cuja ficção contradiz a realidade das coisas. É sabido que, graças ao nosso esforço e ousadia, conseguimos que a terra e o mar por inteiro fossem acessíveis à nossa audácia, deixando em toda a parte monumentos eternos das derrotas infligidas aos nossos inimigos e das nossas vitórias. Esta é a cidade, pois, que com razão estes homens não quiseram deixar que fosse manchada e pela qual morreram valorosamente no combate; os nossos descendentes estão dispostos a sofrer tudo para assegurar a sua defesa. Este período, chamado de período de ouro, gera um verdadeiro narcisismo helênico. A juventude preparada fisicamente para as competições (Olimpíadas), o capítulo 1 • 18 culto ao corpo, para as guerras. Também é formada para o heroísmo: viver, lutar e morrer por Atenas. Verdadeiros ‘mártires’ da pátria: Por estas razões me estendi a falar da nossa cidade já que queria demonstrar-lhes que não lutamos pelo mesmo que os outros, mas por algo tão grande que nada o iguala, e também para que o elogio dos homens objeto do nosso discurso fosse claro e veraz. Terminei, já, com a parte principal. A glória da República deve-se ao valor desses solda- dos e de outros homens semelhantes. Os seus atos estão à altura da sua reputação e existem poucos gregos dos quais se possa dizer o mesmo. No meu entender, nada demonstra melhor o valor de um homem que este final, que entre os jovens é um indício e uma confirmação entre os velhos. Com efeito, aqueles que não podem prestar outro serviço à República é justo que se mostrem valorosos na guerra, pois apagaram o mal com o bem e os seus serviços públicos compensaram de sobra os equívocos da sua vida privada. Nenhum deles se deixou seduzir pelas riquezas ao ponto de preferir os defeitos ao seu dever, nem tão- -pouco nenhum deixou de se expor ao perigo com a esperança de escapar da pobreza e fazer-se rico, convencidos de que era preciso o castigo do inimigo ao gozo destes bens, e visando este risco como o mais admirável, quiseram afrontá-lo para castigar o inimigo e fazer-se dignos destas honras. Tiveram confiança neles mesmos no momento da batalha e ao encontrar-se ante o perigo, sustentados pela esperança ante a incerteza do êxito. Preferiram buscar a sua salvação na destruição do inimigo, e antes na morte que no covarde abandono; assim escaparam à desonra e perderam a vida. No azar de um instante nos deixaram, alcançando o mais alto cume da glória e não a baixa recordação do seu medo. Dessa forma é que se mostraram filhos dignos da cidade. Os sobreviventes devem fa- zer todo o possível para conseguir uma melhor sorte, mas devem-se mostrar ao mesmo tempo intrépidos contra os seus inimigos, considerando que não se podem limitar às palavras de um discurso toda a utilidade e proveito. Também seria ocioso enumerar diante de gente tão perfeitamente informada, como o sois vós, todos os esforços dirigidos à defesa do país. Quanto maior lhes pareça o poder da cidade, mais deveis pensar que existiram homens valorosos, que souberam praticar a audácia como sentimento de um dever e se conduzir com honra durante toda a vida. E se bem que o sucesso nem sempre tenha correspondido aos seus esforços, não quiseram privar Atenas do seu valor e sacrificaram a sua virtude como o mais nobre tributo, fazendo o sacrifício da sua vida e adquirindo, cada um por sua parte, uma glória imortal que lhes deu a sepultura com honra. E esta terra onde agora descansam não é tanto como a recordação imortal sempre renovada e enfocada em discursos e comemorações. Os homens eminentes têm por túmulo a terra inteira. capítulo 1 • 19 O que atrai a atenção para eles não são somente as inscrições funerárias gravadas na pedra; quer na sua pátria, quer nos países mais longínquos, a sua memória persiste, apesar dos epitáfios, conservada no pensamento e não nos monumentos. Invejai, pois, a sua sorte, dizei que a liberdade se confunde com a felicidade e o valor com a liberdade e não olheis com desprezo os perigos da guerra. Não penseis que os maus e os covardes, que não têm esperança de melhor sorte, são mais razoáveis em guardar a sua vida que aqueles cuja existência está exposta ao perigo e que se aven- turara? a passar da boa à má fortuna e que, se fracassam, verão a sua sorte completa- mente transformada. Pois para um homem sábio e prudente é mais doloroso a covardia que uma morte enfrentada com valor e animada pela esperança comum. Assim, não me compadeço pela sorte dos pais que estão presentes, limitar-me-ei a consolá-los. Eles sabem, eles que cresceram entre as vicissitudes da vida, que a ventu- ra só é para os que obtêm, como seus filhos, o fim, o mais glorioso ou, como eles, o luto, o mais honroso e para os quais o termo da vida é a medida da felicidade. Agora, cumpre que cada um se retire, uma vez que chorou na hora dos desapareci- dos. Disponível em: <http://arqnet.pt/portal/discursos/abril10.html>. Acesso em: 03 maio 2018. Embora longa, esta citação, ela nos remonta ao contexto de evolução social, econômica, tecnológica, política, ecológica e cultural que é elaborado a filosofia grega. Mesmo sendo pronunciada por um político e sendo palavras proferidas num velório de guerreiros que morreram pela pátria, portanto em forma de ora- ção, expressa a autoestima, a autovalorização e sobretudo a autoconfiança dos gre- gos, que realmente estão vivendo um grande desenvolvimento. A origem da Filosofia grega. Veja que a palavra philo do grego significa amigo (amor) e sophia significa sa- bedoria, então filosofia significa amigo da sabedoria ou amor à sabedoria, segundo Pitágoras criador da palavra. Essa busca pela sabedoria inicia diferenciando-se do mito e da religião no con- teúdo, no método e no objetivo. No conteúdo a diferença está na explicação da to- talidade sem exclusão de partes ou momentos. Quando Tales de Mileto pergunta qual é o princípio de todas as coisas? mostra que a filosofia quer saber ‘a totalidade da realidade e do ser’ e ela vai descobrindo a natureza do primeiro “princípio”, o “porquê” das coisas ou a essência do ser é na investigação, na pesquisa do e no mundo natural. capítulo 1 • 20 A metodologia filosófica é uma explicação puramente racional da totalidade. É o logos investigando, pesquisando, indagando à natureza e dela extraindo as respostas da causa ou das causas. É este método que lhe confere a cientificidade e ao mesmo tempo a difere das ciências que buscam causas particulares enquanto a razão filosófica busca a causa na globalidade. E o seu objetivo, segundo Aristóteles (384-322 a.C.), é o puro desejo de co- nhecer e contemplar o ser das coisas. É pelo espanto ou pela admiração diante da realidade. Ou como afirma a filósofa brasileira Marilena Chaui (1994), é pela desbanalização que inicia o filosofar, ou seja, diante do banal, do trivial é que o filósofo inicia a sua reflexão, sua pesquisa. Diferentemente do mito (mithos) o logos grego, se sente interpelado pelo mundo natural (physis), sem fantasia a razão penetra o mundo real e dele extrai suas conclusões da arké, da origem. Os pré-socráticos são, portanto, naturalistas, razão pela qual Aristóteles os chamou de Físicos. Tales de Mileto, iniciador desta aventura racional buscará na água o princípio, a fonte, a origem, o termo, o sustentáculo, a arké. Segundo Reali e Antiseri: Tales chegou a esta conclusão da constatação de que a nutrição de todas as coisas é úmida, que as sementes e os germes de todas as coisas “tem natureza úmida”, e de que, portanto, a secura total é a morte. Assim como a vida está ligada à umidade e esta pressupõe a água, então a água é a fonte última da vida e de todas as coisas. Tudo vem da água, tudo sustenta sua vida com a água e tudo termina na água. Tales, portanto, fundamenta suasasserções sobre o raciocínio puro, sobre o logos; apresenta uma forma de conhecimento motivado com argumentações racionais precisas. (REALE e ANTISERI, 2003, P. 19). Através da História da filosofia, percebemos que o espírito democrático e a in- tensa investigação geraram diferentes teses sobre a arké. Anaximandro, discípulo de Tales, no seu tratado sobre a natureza, afirma que a água é derivada e que a arké é o infinito e indefinido ou ápeiron. Esse princípio abarca e circunda, governa e sustenta tudo, todas as coisas geram-se a partir dele, nele consistem e nele existem. Anaxímenes que foi aluno de Anaximandro também pesquisando a natureza concorda com seu mestre que a arké deva ser infinita, mas que é o ar substância aérea ilimitada. Como a alma (ou seja, o princípio que dá a vida), que é ar, se sus- tenta e se governa, assim também o sopro e o ar abarcam o cosmo inteiro. Já a escola filosófica de Éfeso, com Heráclito (535-475 a. C.), afirmara que a arke é o fogo, panta rhei, a transformação. capítulo 1 • 21 “Tudo se move, nada permanece imóvel e fixo, tudo muda e se transmuta sem exce- ção. Não se pode descer duas vezes no mesmo rio e não se pode tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado, pois por causa da impetuosidade e da ve- locidade da mudança, ele se dispersa e se reúne, vai e vem,(...) Nós descemos e não descemos pelo mesmo rio, nós próprios somos e não somos.” (Heráclito,apud REALE e ANTISERI, 2003, p.23). Parmênides (530-460 a.C.), representando a filosofia eleática e contrário às teses da escola filosófica de Éfeso, afirmará a estabilidade do ser. Segundo ele levado à deusa (verdade) puxado por velozes cavalos e em companhia das filhas do sol chega à verdade absoluta da arké: “o ser é e não pode não ser; o não-ser não é e não pode ser de modo nenhum. O ser é positivo puro e o não-ser é o negativo puro. O ser é eterno, incorruptível. O caminho da verdade é o caminho da razão, enquanto o caminho dos sentidos é o caminho do erro, da ilusão da mudança. Os opostos devem ser pensados na unidade superior do ser: “ambos os opostos são “ser’. (Parmênedides apud REALE E ANTISERI, 2003, P.24). Para Pitágoras, o número um é a arké. Para Demócrito o princípio é o átomo. E por fim para os físicos pluralistas como Empédocles é princípio são os quatro elementos primordiais: água, ar, terra e fogo que são governados por duas forças cósmicas, o amor e o ódio; uma une e outro separa. “Quando prevalece o amor temos a perfeita harmonia; quando permanece o ódio temos a completa desagre- gação, o caos, nas fases de relativo predomínio do ódio, gera-se o cosmo.” (REALE E ANTISERI, P. 25). Segundo Marilena Chaui, a cosmologia é a explicação da ordem do mundo, do universo, pela determinação de um princípio originário e racional que é origem e causa das coisas e de sua ordenação. A ordem – cosmos – deixe de ser o efeito de re- lações sexuais entre entidades e forças vitais, deixa de ser genealogia para tornar-se o desdobramento racional e inteligível de um princípio originário. Logia é da mesma família de logos (certamente uma das palavras mais importantes de toda a história da filosofia e do pensamento ocidental), que possui múltiplos sentidos e só pode ser traduzida para o português com o uso de muitas palavras: razão, pensamento, lin- guagem, explicação, fundamento racional, argumento causal. Palavra e pensamento, valor e causa, norma e regra, ser e realidade, logos concentra numa única palavra vários significados simultâneos que os gregos não separavam como nós separamos. A filosofia, ao nascer como cosmologia, procura ser a palavra racional, a explicação racional, a fundamentação pelo discurso e pelo pensamento da origem e ordem do mundo, isto é, do todo da realidade, do ser. (Chaui. 1997, p. 37). capítulo 1 • 22 Este tema é fantástico, portanto recomendo que você retome-o e aprofunde-o, pois será importantíssimo para uma compreensão mais profunda do tema da criação que é uma questão estruturante na reflexão teológica. Tomás de Aquino: conceito filosófico e conceito teológico da criação Tomás de Aquino (1225-12740), é um dos gênios do pensamento filosófico e teológico. Viveu num período de grande evolução das ideias. É o início das univer- sidades europeias, Padova, na Itália e Paris na França. Ele foi professor e escritor. Entre seus escritos é importante que você conheça, leia e estude: Questões discutidas sobre a verdade (Questiones disputatae de Veritatae: 1259); Suma contra os Gentios (Summa contra Gentiles:1269-1273); e Summa Teológica (Summa theologiae). Seu pensamento filosófico-teológico é dialógico, faz interface com os diversos saberes sistemáticos de seu tempo e de outros tempos. É um paradigma de como os opostos se completam. Se a Igreja católica tivesse ouvido o aquinante não teria condenado Galileu Galilei, pois ele sempre defendeu a autonomia em diálogo entre os saberes, tese também defendida por Galileu que tentando alertar a igreja argu- mentava: “a teologia ensina como vai para o céu, a ciência ensina como vai o céus.” Veja como Tomás elabora sua argumentação, no livro um da Suma Teológica, no Artigo primeiro, cujo tema é a providência convém a Deus? Quanto ao Primeiro Artigo, Assim se procede: parece que a providência não convém a Deus. 1. Com efeito, segundo Túlio, a providência é parte da prudência. Ora, como a pru- dência, segundo o filósofo, no livro VI da Ética ajuda a bem deliberar, não pode convir a Deus, em quem dúvidas não existem, e por isso, nem necessidade de deliberar. Logo, a providência não convém a Deus. 2. Além disso, tudo que se encontra em Deus é eterno. Ora, a providência, não é algo eterno, pois seu objeto, diz Damasceno, são os seres existentes que não são eternos. Logo, não existe providência em Deus. 3. Ademais, em Deus não existe nenhuma composição. Ora, a providência parece ser algo composto, pois inclui vontade e intelecto. Logo, não existe providência em Deus. Em sentido contrário, lemos no livro da Sabedoria: “És tu, pai, que tudo go- vernas por tua providência”. Respondo. É necessário afirmar a providência em Deus. Tudo o que é bom nas coisas foi criado por Deus, como se demonstrou anteriormente. Nas coisas capítulo 1 • 23 encontra-se o bem, não só com respeito à substância delas, mas também com respeito à ordenação para o fim, e sobretudo ao fim último, que é, como já se es- tabeleceu, a bondade divina. O bem da ordem, que se encontra nas coisas criadas, foi criado por Deus. Como Deus é causa das coisas por seu intelecto, a razão de seus efeitos tem de preexistir nele, como ficou esclarecido; assim é necessário que a razão segundo a qual as coisas são ordenadas ao fim preexista na mente divina. Ora, a razão do que tem de ser ordenado a um fim é precisamente a providência... (AQUINO. Suma Teológica, vol. 1, p.438-439). Como você percebeu Tomás de Aquino analisa os prós e contras no rigor da lógica aristotélica, ele dialoga, valoriza o pensamento contrário, mas se posiciona na defesa da fé criacional. A sua perspicácia teológica penetra a essência de Deus, os seus atributos essenciais. Mas no diálogo de Tomás de Aquino com Anselmo d’Aosta na famosa prova ontológica ou Proslogium é que o aquinante mostra sua sutileza teológica. Afirma ele que a existência de Deus pode ser afirmada, raciocinando, isto é, ‘através da reflexão sobre os fenômenos deste mundo e da investigação de sua causa suprema, última, e não através da intuição da sua essência’. Segundo Battista Mondin a prova ontológica tomista é de um feito totalmente diferente da prova ontológica an- selmiana, e isso por duas razões: 1) porque não se baseia na essência, mas no ser; 2) porque não procede a priori, mas a posteriori: procede da asseidade contingente dos entes para concluir pela substância do ser. ..ela pressupõe uma determinada ideia do ser – entendido como perfeição absoluta – mas depois procede a posteriori, partindo do exame da relação dos entes com o ser, que é umarelação de finitude, de participa- ção e de gradualidade. Assim, a finitude, a participação e a gradualidade configuram-se com três modalidades da prova tomista (MODIN, 1997, p.217-2018). Mais conhecidas são as cinco vias do conhecimento de Deus ou provas cos- mológicas, que não são criação do aquinante, a primeira e a segunda: movimento e causalidade subordinada são da filosofia de Aristóteles; a terceira, o possível e o necessário, foi retirada do pensamento de Avicena; e as duas últimas, gruas de perfeição deste mundo levam a Deus e a teleologia extraídas da filosofia platônica. Tomás de Aquino ainda escreveu outras quatro vias na Summa contra gentiles. No entanto, segundo Battista Mondin, a inovação tomista está na sua perspec- tiva metafísica. O fundamento último do real que não é mais a de Platão (428\7- 348-7 a. C), nem a de Aristóteles, nem a de Plotino, nem a de Agostinho ou de capítulo 1 • 24 Avicena, tirando o ser daquele profundo esquecimento em Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho e Avicena o haviam deixado cair, Tomás de Aquino coloca-o no centro do seu poderoso edifício metafísico: seu “discurso essencial” é todo ele um discurso centrado no ser... o ser é lógica e necessariamente “a mais perfeita de todas as coisas” (esse est inter omnia perfectissimum); é o sol que com sua luz torna luminoso o ente e tudo o que lhe pertence. O ser concebido como raiz de tudo, é o que põe em ato tudo aquilo que existe. Consequentemente, o ser não é uma perfeição mínima nem uma perfeição particular, e sim a perfeição absoluta. Essa propriedade lhe pertence porque o ser é o ato supremo, a forma de todas as formas: ”Aquilo que é maximamente formal em relação a todas as coisas é o ser.” (MONDIN, 1997, p. 220). Ao finalizarmos este tema é importante você saber que Tomás de Aquino de- fende a tese clássica judaico-cristã da: “criatio ex nihilo”, ou seja, Deus criou o universo a parir do nada. Para ele este tema deve ser estudado pela metafísica (filosofia), sem uma referência à temporalidade e pela teologia que aborda a partir do kairós, do tempo e tempo de Deus e não do cronos, tempo do mundo, tempo humano. Mesmo a criação sendo um tema de fé, o aquinante defende a tese que somente a razão pode levar a pessoa humana ao conhecimento de Deus como criador. No entanto, para esta questão a sua tese central é que o conhecimento perfeito de Deus como criador se dá na interface da fé com a razão, na relação dialética fé-razão. Nesta perspectiva podemos afirmar que Tomás de Aquino é um paradigma de uma teologia em diálogo, até mesmo da transversalidade do conhecimento ou como afirmamos hoje, da práxis epistémica da interdisciplinaridade, multidisci- plinaridade, transdisciplinaridade e metadisciplaridade. Embora defenda aberta- mente ser o tema da criação um tema específico da metafísica e da teologia, seu sistema teológico-filosófico dinâmico hoje estaria dialogando com a biologia, com a física, com a química e, sobretudo com a astronomia que tem conseguido avan- ços importantíssimos para o conhecimento do universo, de sua origem, de suas leis e de sua evolução. Em síntese, podemos afirmar que a tese de Santo Tomás de Aquino sobre a origem do universo é a tese bíblica, Deus é criador providente, ou seja, o Deus criador, é também providente. Como causa de todas as coisas Ele também ‘gover- na’ tudo conduzindo a criação para um fim, um telos, ou melhor, para a escatolo- gia, para a consumação final (Ap 21-22). capítulo 1 • 25 Explicação metafísica da criação: Deus como causa Para iniciarmos este tema é importante que você domine filosoficamente o conceito de metafísica. Para tal, vamos retroceder novamente e buscar uma com- preensão etimológica e histórica. O dicionário de filosofia dos professores Hilton Japiassú e Danilo Marcondes (2006, p 185-186) faz quatro conceituações do termo metafísica. O primeiro fala que Andronico de Rodes ao organizar a obra de Aristóteles, por volta do ano 50 a.C, deu este nome aos livros que foram colocados depois dos livros da física: ta metá tá physiká, significando literalmente “após a física”, e passando a significar depois, devido a sua temática, “aquilo que está além da física, que a transcende. O segundo afirma que “na tradição clássica e escolástica, a metafísica é a parte mais central da filosofia, a ontologia geral, o tratado do ser enquanto ser. A metafísica de- fine-se assim como a filosofia primeira, como ponto de partida do sistema filosófico, tratando daquilo que é pressuposto por todas as outras partes do sistema, na medida em que examina os princípios e causas primeiras, e que se constitui como doutrina do ser em geral, e não de suas determinações particulares; inclui ainda a doutrina do Ser Divino ou do Ser supremo”. O terceiro diz que na tradição escolástica há uma distinção entre metafísica geral, a ontologia propriamente dita, que examina o conceito geral de ser e a realidade em seu sentido transcendente; e a metafísica especial, que trata de domínios específicos do real e que se subdivide, por sua vez, em cosmologia, ou filosofia natural – tratado do mundo e da essência da realidade material... E por fim, o quarto significado afirma que no pensamento moderno, a metafísica perde, em grande parte, seu lugar central no sistema filosófico, uma vez que as questões so- bre o conhecimento passam a ser tratadas como logicamente anteriores à questão do ser, ao problema ontológico. A problemática da consciência e da subjetividade torna-se assim mais fundamental. (JAPIASSÚ e MARCONDES, 2006, p. 185-186) Agora você vai conhecer brevemente a origem (arké) da metafísica. Bom, após recorrermos ao dicionário de filosofia, exercício este que você deverá fazer sempre no nível superior, você deve buscar nos dicionários específicos o significado dos termos técnicos para compreender mais profundamente o sentido do texto. Penso que você já deverá ter levantado a suspeita que nos pré-socráticos a metafísica é implícita até o famoso debate entre Parmênides e Heráclito sobre o movimento e a estabilidade. Mas ela se tornará explícita no pensamento filosófico de Platão, ele descobrirá uma realidade superior ao mundo sensível, uma dimensão que transcende a física capítulo 1 • 26 ou metafísica. Segundo Platão a primeira navegação do logos grego foi empurrada pelos ventos da natureza, pelos elementos físicos: água, ar, terra, fogo, ou seja, pe- los elementos primordiais. Mas a segunda navegação do logos foi empurrada pelos remos do intelecto, da razão ou filosofia. É nesta perspectiva que Platão falará de mundo sensível e mundo inteligível o primeiro é sendo uma cópia do segundo. O primeiro é captado pelos sentidos e o segundo é captado pelo intelecto. Veja como Platão explicita bem esta ideia na famosa alegoria da caverna ou mito da caverna. Aristóteles que foi aluno de Platão aprofundou esta questão ao criticar o mes- tre por sua aderência ao orfismo e ao pitagorismo, embora, isto apareça em seus escritos exotéricos, porém ausente nos escritos esotéricos onde encontramos os escritos de metafísica. Aristóteles além de dividir seus escritos em exotéricos, para todos, e esotéricos para os iniciados no filosofar; dividiu também as ciências em três áreas: ciências teoréticas, que buscam o saber pelo saber: a metafísica, a física, a psicologia e a matemática. As ciências práticas, que buscam o saber com uma finalidade da per- feição moral: a ética e a política. E as ciências poiéticas que buscam a produção de determinadas coisas. Para Aristóteles, a metafísica é a principal das ciências teoréticas. Ela busca as causas, os princípios supremos, então pode ser chamada também de etiologia. Ela indaga o ser enquanto ser, ontologia. Ela indaga também sobre a substância, ousia. Por fim, ela indaga sobre Deus e a substância supra-sensível, teologia. Na cosmologia grega e medieval não haverão muitos problemas para uma explicação metafísica da criação e da “ideia” de Deus como criador. Lembre-se quea cosmovisão dos gregos é geocêntrica. Os pré-socráticos por razões estratégicas epistemológicas tiveram que “fugir” da ideia de Deus para encontrar a arké, o princípio originário material. A sofística deu ênfase na retórica e na oratória com objetivos políticos. Será com Sócrates (469-399 a,C.), que esta questão virá à tona, mas sobre- tudo com Platão por conta da sua relação com o pitagorismo e com o orfismo, então aparecerá um Demiurgo articulador do mundo. O arquétipo do mundo das ideias, o gestor da ordem cósmica e artesão dos viventes mortais e imortais. Sua cosmovisão dualista articula cosmologia e cosmogonia, subordinando a matéria ao demiurgo que cria o cosmo contra o caos. Aristóteles, embora crítico às teses de Platão, elabora uma teologia filosófica “que articula epistemológico e ontológico na compreensão do ser. O seu Primeiro Motor imóvel e separado da criação, porém a movimenta com a potência de um capítulo 1 • 27 motor TSI, “ato puro, pensamento dos pensamentos que pensa a si mesmo, não está afetado pelo mutável, finito e contingente, se despreocupa do mundo.” Assim a filosofia grega inicia o deísmo, um deus arquiteto que comanda a ordem do universo. Epicuro falará de um deus indiferente, impassível e de costas para o uni- verso e chama o homem e a mulher a se comportar do mesmo modo em relação a este deus descomprometido com o universo. Nas patrísticas grega e latina e na escolástica temos a continuidade da cos- movisão geocêntrica, o apoio político e econômico, então não foi difícil uma ex- plicação metafísica do Deus Trindade numa cosmovisão pré-copérnicana e pré- -Galileliana (Copérnico e Galileu Galilei). Merecem destaque e vale apena você aprofundar, pois apenas mencionamos, os argumentos de Santo Anselmo d´Aosta, o Proslogium, e as cinco vias do conhecimento racional de Deus de Santo Tomás de Aquino. São obras primas da metafísica medieval. Porém foram elaborados numa cosmovisão que não existe mais. Portanto, precisam ser reelaboradas na perspectiva heliocêntrica, como veremos na última parte deste capítulo, manten- do o diálogo com a filosofia e ampliando o diálogo com as ciências. O Iluminismo e a impossibilidade metafísica A partir da Reforma luterana, o renascimento, e, sobretudo com o Iluminismo, a questão muda radicalmente. Primeiro porque a Igreja Católica perde a hegemo- nia, segundo porque a secularização como um tornado começa a varrer o sagrado do universo. E terceiro porque a modernidade, especialmente no século XIX ques- tionou radicalmente a questão religiosa com os mestres da suspeita: Sigmundo Freud, (1856-1939), Friedrich Nietzche (1844-1900), Ludwig Feurbach (1808- 1872) e Charles Darwim (1809-1882). O Iluminismo foi um amplo movimento cultural que buscou libertar a huma- nidade ocidental “do sono dogmático”. Foi um movimento como a filosofia grega de plena confiança na razão humana. “sapere áudio” dizia Kant (1724-1804), ‘ouse a pensar com a sua própria cabeça’. Movimento de libertação da racionalidade, ‘de saída da zona de conforto espiritual’ criada pelas teses de uma cosmovisão que bem ou mal explicou um mundo estranho na sua época, no seu tempo. Porém, os tempos mudaram e mudaram radicalmente, uma nova cosmovisão se fazia necessária, com a ascensão da burguesia o ‘mundo foi virado do aves- so’, todas as autoridades foram desautorizadas, inclusive as autoridades filosófi- cas e teológicas. A revolução científica, especialmente com a nova metodologia capítulo 1 • 28 experimental, laboratorial, microscópio e sobretudo telescópio, descobriu ‘um outro mundo possível’. A filosofia também não ficará fora deste criticismo global, até porque ela deve ser a crítica da crítica, então ela entrou no debate. Foram muitos os filósofos que criticaram a pretensão humana do conhecimento racional de Deus. Já o pré-so- crático Xenófanes (570-475 a.C.), é um crítico do antropomorfismo da religião pública de Hesíodo e Homero. Porém, escolhi dois filósofos iluministas, um empirista e outro racionalista moderado: David Hume (1711-1776) e Immanuel Kant, que nos alertarão para os limites do conhecimento racional de Deus, para os limites da metafísica. Hume é completamente cético quanto às possibilidades da metafísica. Ele abordou a questão religiosa em duas obras: Diálogos sobre a religião natural e História natural da religião, ‘em ambas ele questiona a validade de todas as de- monstrações da existência de Deus e critica o próprio valor objetivo da ideia de Deus.’ Deus e a religião, segundo Hume, são coisas do sentimento e da imagina- ção, são expressões irracionais e arbitrárias da consciência humana, portanto são desprovidas de racionalidade. Ao examinar os argumentos das provas da existência de Deus, nos diálogos sobre religião natural, começando pela prova ontológica, afirma que ela não é válida porque ‘tudo aquilo que concebemos como existente igualmente pode ser concebido também como não-existente, pois a existência de algo só pode ser de- monstrada mediante a constatação de fato. A crítica também à prova cosmológica não é menos radical, a pretensão racio- nal de chegar a Deus partindo dos laços causais da natureza para chegar de causa em causa até a causa primeira (princípio de causalidade), além de subjetivo leva ao ‘processo ad infinitum.’ Ainda nos diálogos o filósofo escocês ataca a prova teleológica, além de an- tropomorfismo ela não leva a um artífice supremo infinitamente perfeito porque a ordem do mundo, de onde se parte, é finita e imperfeita. Segundo Hume, a relação causa-efeito precisa ser constatada várias vezes. E a ordem do mundo é um único caso que em nenhuma hipótese pode nos levar ao sumo artífice que jamais vimos em ação. Claro, como você pode perceber as teses empiristas são levadas ao limite pelo pensador escocês, porém desperta a metafísica do sono dogmático, da ilusão, da fantasia, da quimera e chama a teologia para um outro olhar sobre as ‘condições de capítulo 1 • 29 possibilidades’ de um discurso religioso-teológico com base experiencial do Deus verdadeiro criador do cosmo e redentor em Jesus Cristo. Outro crítico da aventura metafísica é Immanuel Kant, este é cristão pietista. A sua antropologia é bastante negativa, pois concebe a pessoa humana no estado de natureza como um ‘estado de incessante hostilidade contra o bom princípio, contra a moralidade, a natureza humana é desregrada, desequilibrada. E a supera- ção deste estado precário é obra de Deus e não dos homens. Portanto, a igreja deve ser um povo moral, uma comunidade ética. Segundo Battista Mondin Para Kant todas as provas da existência de Deus (ontológica, cosmológica e teleoló- gica são erradas, por dois motivos fundamentais: primeiro porque de deus nos faltam os elementos empíricos que fundamentariam uma argumentação a posteriori: nós não conhecemos nenhum caso em que a essência de uma coisa inclua a sua existência; segundo, o princípio de causalidade funciona apenas no mundo dos fenômenos e, portanto, não podemos fazer nenhum uso transcendente desse princípio. Assim, Kant desloca o problema de Deus da esfera especulativa para a esfera prática. E na segun- da crítica demonstra que a existência de Deus deve ser incluída entre os três grandes postulados da moral (junto com a liberdade e a imortalidade da alma). De fato, na vida presente é impossível fazer com que coincidam moralidade e felicidade, embora se trate de uma coincidência exigida pela razão humana: “essa conexão é postulada como necessária”. Mas ela só pode se realizar por obra de um Deus remunerador, sumamen- te bom e sumamente justo. “Portanto, postular a possibilidade do sumo bem (isto é, da felicidade) significa postular também a realidade de um sumo bem originário, ou seja, Deus (MONDIN, 2005, p. 90). Assim chegamos ao final deste tópico despertados do ‘sono dogmático’ que segundo Kant foi despertado ao ler David Hume para a questão gnosológica ou teoria do conhecimento filosófico, portanto convido você a conhecermelhor o pensamento filosófico de Kant, assim como David Hume que serão excelentes ins- trumentos para um teologizar pertinente e relevante no século XXI. Um teologizar crítico e ao mesmo tempo ortodoxo à fé bíblica. Diálogo entre ciência e religião Como você percebeu, neste pequeno percurso a tarefa da teologia é gigante para que ciência e religião dialoguem no respeito das autonomias como propôs Tomás de Aquino no diálogo entre fé e razão no século XIII. Hoje, no século XXI, capítulo 1 • 30 com as especializações dos saberes temos também uma fragmentação do conhe- cimento, e o labor teológico deve ser no paradigma tomista da síntese dialógica. Além de dar continuidade no diálogo com as teses iluministas que ainda não foram assimiladas bem pela teologia cristã, quem profeticamente tem chamado a atenção para este aspecto é o teólogo espanhol Andrés Torres Queiruga, especial- mente nos livros Do terror de Isaac ao Abba de Jesus, repensar a Revelação, Repensar a Cristologia. Segundo Queiruga as teologias cristãs na sua maioria ainda não entenderam o projeto iluminista. John Hick, também por volta dos anos 60 e 70 do século XX, no livro a Metáfora do Deus Encarnado, chamou a atenção da comunidade teológica para os riscos de uma leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, especialmente para a leitura literal do mistério da Encarnação. Os teólogos da libertação na África, na Ásia e na América Latina desde a década de sessenta do século passado, século XX, insistiram na importância da prática interdisciplinar, pluridisciplinar, multidisciplinar, transdisciplinar e me- tadisciplinar, ou seja, um labor teológico em diálogo com os diversos saberes na busca do conhecimento da vontade de Deus para um melhor serviço às igrejas e ao povo de Deus. O diálogo hoje precisa responder também às interpelações dos mestres da suspeita como chamou Paul Ricouer, (1913-2005), Karl Marx, (1818-1883), Nietzsche, Sigmund Freud, Augusto Comte (1798-1857), Feuerbach. Com o primeiro o diálogo foi iniciado pelo teológico Rubem Alves (1933-2014), que assimilando aspectos positivos da crítica marxiana à religião como ópio do povo, mostrou que Marx analisou apenas o aspecto externo da religião. Igualmente, o grande filósofo da libertação latino americana, argentino radicado no México, Enrique Dussel, após a autocrítica fez a crítica da crítica marxiana. Na tese dos estádios da evolução humana, Augusto Comte, defende que tanto a etapa religiosa quanto a etapa filosófica são coisas do passado, ‘agora’ é o primado da ciência, embora o tempo se encarregou de mostrar que ainda há uma enorme procura religiosa pelo sentido da vida, mas a teologia precisa dialogar com esta tese. Com a psicanálise Sigmund Freud, concluiu que a religiosidade é uma neuro- se infantil e também apostou na terapêutica com o advento da ciência. Feurbach, na área da antropologia afirma que a religião faz uma inversão de valores. O ser humano ávido por onisciência, onipotência, onipresença não conse- guindo, cria o ser superior e projeto nele estes atributos. Ou seja, a religião inverte os polos que leva um curto circuito epistemológico. capítulo 1 • 31 Nietzsche fala da morte de Deus, colocando um louco no velório que grita desesperado anunciando o mal cheiro do cadáver divino. Charles Darwin, com a tese da evolução colocou em xeque a tese da criação perfeita, a espécie humana como todas as espécies evolui de uma célula primeira. O ser humano não nasce perfeito, mas com possibilidades, aberto, em processo, ou seja, evolui. Aristóteles já havia percebido isto, como biólogo percebeu que o homem é um animal racional. O racional é um adjetivo que qualifica o substanti- vo animal, ou seja, o homem pode se tornar racional por um processo de ‘ilustra- ção, educação. Dentro da tese aristotélica de ato e potência o ser homem em ato é animal com potencialidade racional. Simone de Beavoir (1908-1986), em meados do século passado afirmava que “ninguém nasce mulher torna-se”, “ninguém nasce homem torna-se”. Ou seja, a teologia precisa interagir significativamente no diálogo entre conhecimento reli- gioso e conhecimento científico. Portanto, a questão da evolução não pode im- pactar negativamente na fé, é fato, e uma leitura atenta do primeiro capítulo do livro do Gênesis, você perceberá que o autor narra a criação de forma evolutiva, a última espécie a ser criada é a humana. Sem concordismos, mas a teologia pode e deve facilitar o diálogo. Juan Luis, segundo na obra Que homem? Que mundo? Que Deus? Em diálogo com a química, a física e a biologia, e sobretudo com cientista da grandeza de Jacques Monod afirma: O universo parece, então, aos olhos do cientista, uma mescla desses dois elementos, que também compõem o título da obra do Monod: o Acaso e a Necessidade. O acaso tem a enorme vantagem positivista de não exigir – e mais ainda, a de rejeitar – a per- gunta por uma causalidade. O que surge do acaso não tem outra razão, mas suficiente do que o próprio acaso. Daí que se fosse possível reduzir ao acaso toda a “a neces- sidade” que cresce com a evolução, esta seria despojada de seu perigo metafísico. O próprio mundo necessário seria fruto do acaso. E não haveria mais o que perguntar. Toda a aventura humana não passaria de uma estranha e improbabilíssima mudança de uma molécula, que começou a se reproduzir e a introduzir a teleonomia e a neces- sidade de um mundo, que continua jogando com o acaso às portas da não existência, à qual voltará, mais cedo ou mais tarde (assim, o cientista desprende-se do animismo e desperta, depois de um sono milenar, para um mundo que o aguarda, surdo à sua música..) (SEGUNDO, 1995, p. 15-16). capítulo 1 • 32 Porém, continua Segundo: Hoje não se pode mais fazer teologia com o que um pensador tão grande como Tomás de Aquino sabia do universo criado, ou com a simples e grandiosa mitologia do javista. (SEGUNDO, 1995, p.27). Neste trecho do teólogo Juan Luis Segundo com o biólogo Jaques Monod dá para você perceber a missão da teologia na interface religião-ciência. Uma interação de diplomacia, de conciliação, de articulação, de diálogo, pois ambas têm suas auto- nomias preservadas, são complementares e as vezes em rota de colisão. A ciência fala a partir da pesquisa empírica, do laboratório, da perícia dos fenômenos concretos (célula, átomo, partícula etc.). A religião narra a partir da fé, do amor e da esperança. É uma fala inspirada, é uma narrativa da revelação, experiencial, porém, subjetiva, frágil. Daí que a experiência de Deus na fé não a experiência do empirismo inglês e de David Hume. Daí a necessária interação da teologia sistemática nos molde do paradigma tomista dá síntese, uma teologia dialética em dialógica. Por fim, vejamos outro gigante que partindo da física e da astronomia coloca questões pertinentes e relevantes para o labor teológico no século XXI. O astrofísico Marcelo Gleiser, físico e astrônomo, carioca de nascimento, radicado nos Estados Unidos da América do Norte, no livro cujo o título já provoca, Criação Imperfeita. Cosmo, vida e o código oculto da natureza. Assim ele narra o mito científico da criação: Ninguém testemunhou o que estava para acontecer. O “tempo” não existia; A realidade existia fora do tempo, pura permanência. O espaço não existia. A distância entre dois pontos era imensurável. Os pontos podiam estar aqui ou ali, suspensos, saltitantes. Entrelaçado em si próprio, o espaço aprisionava o infinito. De repente, um tremor; uma vibração, uma ordem que nascia. O espaço pulsava, ondulando sobre o nada. O que era perto se afastou. O agora virou passado. O espaço nasceu com o tempo. Ao falarmos em espaço pensamos em conteúdo. Ao falarmos em tempo, pensamos em transformação. E assim foi. O espaço borbulhou; o tempo incerto, iniciou sua marcha. Da agitação conjunta do espaço e do tempo surgiu a matéria expelida de seus poros. capítulo 1 • 33 Mas atenção! Essa não era uma matéria ordinária feito a nossa. Ela fezo espaço crescer, inflar como um balão. Esse balão é o nosso universo. Esse é o mito de criação da nossa geração. GLEISER, 2010. A santíssima Trindade aqui é o Espaço, o Tempo e a Matéria. Não existe um criador; nenhuma mão divina guia a transição do Ser ao Devir, a emergência do cosmo a partir de uma existência atemporal. O Universo surgiu por si mesmo uma bolha de espaço vinda do vazio: criatio ex nihilo, a criação a partir do nada. Essa possibilidade nos parece implausível já que tudo o que ocorre à nossa volta resulta de alguma causa. Será que o universo é diferente? Será que tudo pode mesmo surgir do nada? Sem uma causa? A causa que deu início a tudo, o primeiro elo da longa corrente causal que leva da criação do cosmo ao presente, é tradicionalmente conhecida como a Primeira Causa. Para iniciar o processo de criação nada pode precedê-la: a Primeira Causa não pode ter uma causa; ela tem que ocorrer por si só. O desafio é como implementar essa mis- teriosa primeira Causa, como dar sentido a algo que parece violar o bom-senso. Será que a ciência tem uma resposta? As religiões usam os deuses para resolver o dilema. A estratégia funciona bem, já que as leis físicas e o bom senso não são aplicáveis aos deuses. Sendo imortais, são indiferentes aos processos da causa e efeito: os deu- ses existem, sobrenaturalmente, além do tempo e de suas inconvenientes limitações (GLEISER, 2010, p.21-22). Como você pode perceber pela afirmação de Marcelo Gleiser, o diálogo se faz necessário, pois a pesquisa avança velozmente, seja na biologia, seja na química, seja na medicina, seja na astronomia. A teologia não pode desconhecer este ‘uni- verso’ do conhecimento científico. Ela também não pode aceitar tudo passivamen- te, acriticamente. Mas precisa respeitar as autonomias das ciências que se liberta- ram do mito, da religião na antiguidade, da teologia no renascimento e da filosofia na modernidade. Veja que a psicologia, a antropologia, a sociologia e até mesmo a ciências da religião se libertaram da filosofia a partir do século XIX. É importante você perceber que não podemos ter preconceito contra nenhu- ma forma de conhecimento, mas também não podemos afirmar que apenas uma forma de conhecimento detenha toda a verdade, principalmente de algo tão gran- de e misterioso como o universo. Estranhamente misterioso até mesmo para as ciências que avançam a passos largos trombando em mistérios. Para a teologia o mistério faz parte do seu vocabulário, agora as ciências precisam dar um nome empírico para estes nós do universo e com toda certeza mais cedo ou mais tarde descobrirão o que são esses buracos negros do conhecimento científico. capítulo 1 • 34 ATIVIDADES 01. Assista ao vídeo: como funciona o universo – (HD) – Estrelas. Disponível em: <https:// www.youtube.com/watch?v=agrJHUe9aHA>. Acesso em: 10 maio 2018. 02. Leia o texto Enuma Elish. O mito babilônico da criação. Disponível em: <http://docplayer. com.br/34209242-O-mito-babilonico-da-criacao.html>. Acesso em: 10 maio 2018. 03. Leia os capítulos 1 e 2 do livro do Gênesis. Depois elabore um texto reflexivo comparando as diferenças e semelhas das três abor- dagens sobre a origem do universo. Seu texto deve ter entre duas e cinco laudas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AQUINO, Tomas de. Suma Teológica. Teologia – Deus – Trindade. Vol.1. São Paulo – SP, Ed. Loyola, 2003. Chaui, Marilene. Introdução à História da Filosofia. Dos pré-Socráticos a Aristóteles. Vol.1, São Paulo – SP, Companhia das Letras, 1994. ESTRADA, Juan Antonio. Deus nas Tradições Filosóficas. Vol.1:Aporias e problemas da teologia natural. São Paulo, Ed. Paulus,2003. GLEISER, Marcelo. Criação Imperfeita, Cosmo, vida eo código oculto da Natureza. Rio de Janeiro, Ed. Record, 2010. GÓRGIAS. O Elogia a Helena. Disponível em: <http://www.consciencia.org/gorgiashumberto.shtml>. Acesso em: 03 maio 2018. HESIODO. Teogonia. A origem dos deuses, traduzida por Jaa Torrano. Disponível em: <http:// sanderlei.com.br/PDF/Hesiodo/Hesiodo-Teogonia.pdf>. Acesso em: 03 maio 2018. HOMERO. Disponível em: <https://kdfrases.com/autor/homero>. Acesso em: 3 maio 2018. JAPIASSÚ, Hilton e MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2006. MONDIN, Batista. Quem é Deus? Elementos de teologia filosófica. São Paulo, Paulus, 1997. REALE, Giovanni- Antiseri, Dario. História da filosofia. Filosofia pagã antiga.Vol.1, São Paulo, Paulus, 2003. SEGUNDO, Juan Luis. Que Mundo¿ Que Homem¿ Que Deus¿ Aproximações entre ciência, filosofia e teologia, São Paulo, Ed. Paulinas, 1995. Angeologia no primeiro testamento 2 capítulo 2 • 36 Angeologia no primeiro testamento O imaginário da humanidade sempre foi povoado pela figura dos anjos. Mesmo depois do Iluminismo, do racionalismo moderno e da secularização em que as religiões tomaram um caminho mais em diálogo com as ciências e a filo- sofia (racional) e menos contemplativo, é possível verificar este fascínio pelo tema dos anjos na arte, seja nas esculturas, pinturas, literatura, no cinema e nas redes sociais. O ícone consagrado: seres luminosos com asas e roupas brancas com a mais pura força do bem enfrentando as brutais forças do mal na defesa da criação e, sobretudo da pessoa humana (Tb 5,1-8; 8,1-21; Dn 3,1-33; Ap 12,1-17). Segundo o dicionário de teologia bíblica Marietti, os anjos são espíritos des- tinados a servir, enviados em missão para o bem daqueles que trabalham para a salvação do mundo. Não são percebidos no dia-a-dia, mas em momentos impor- tantes e misteriosos (MARIETTI, 1968). Como veremos a seguir, são seres supraterrestres ou transcendentais que es- tão a serviço de Deus. Mas também segundo santo Agostinho eles podem servir também ao mal (Jó 1,1-12), haja vista a história de Lúcifer e a entrada do mal na criação. OBJETIVOS • Conhecer o pensamento bíblico sobre anjos, arcanjos, serafins e querubins; • Estudar a angeologia numa perspectiva teológica-bíblica; • Compreender a dinâmica da revelação divina na perspectiva dos anjos. Angeologia no primeiro testamento No Primeiro Testamento encontramos muitos relatos dos mensageiros de Deus interagindo com os humanos de diversas formas, em diversos momentos da História da Salvação do povo de Deus. Por uma questão didática vamos abordar a questão dos anjos na Bíblia Hebraica a partir de três gêneros literários diferentes. Na Torá, sobretudo nos livros do Gênesis e Êxodo, destacando a presença angelical como orientadora da formação do povo de Deus, e no processo de libertação da escravidão egípcia. Nos profetas de Israel a ênfase será na mensagem, ou seja, os capítulo 2 • 37 anjos como mensageiros de Deus que fala ao seu povo através dos profetas. Esta análise será feita tanto diretamente nos escritos dos profetas quanto nas narrativas sobre os profetas nos livros históricos, assim chamados pelos cristãos católicos. E por fim, analisaremos a presença destes seres celestiais na terra comunicando mensagem divina, protegendo as pessoas, iluminando o caminho e guardando contra todo tipo de perigo, na literatura sapiencial. Os anjos na Torá A Torá está povoada destes seres celestiais, são vários acontecimentos envol- vendo a presença dos mensageiros de Deus, portanto, fica o convite para uma lei- tura dos cinco primeiros livros da Sagrada Escritura nesta perspectiva. No entanto, por uma questão didático-pedagógica analisaremos a partir de cinco acontecimen- tos importantes para a formação do povo de Deus: Abraão e Sara, e a questão do ‘herdeiro’. Aqui precisa ser teologicamente analisada a questão de Agar e Ismael. A destruição de Sodoma e Gomorra, o sacrifício de Isaac, o sonho de Jacó e a Sarça Ardente. Em Gn 16,1-16 encontramos uma situação que vai se repetir em todos os relatos do livro do Gênesis, a não compreensão humana da vontade de Deus e a presença angelical para iluminar a massa cinzenta humana. Ao voltarmos em Gn 15,1-6 a crise de Abraão e Sara é o herdeiro e continuador da históriada salvação. E indo para Gn 16,1-3 o entendimento humano é equivocado. Continuando ainda no capítulo dezesseis agora nos versículos sete a nove te- mos outro equívoco humano ‘consertado’ pelos anjos de Deus. Já em Gn17, 1-27 os mensageiros de Deus informam algo impossível segundo o entendimento humano, a esterilidade se transformando em fecundidade. No capítulo dezoito no versículo um inicia falando que é o próprio Deus que se revela à Abraão, mas nos versículos sete a nove já são os anjos que entram em cena eliminando os ruídos da comunicação entre o humano e o divino, sobretudo anunciando uma ‘boa nova’. Na sequência em Gn 19 os mensageiros de Deus aparecem no versículo um para anunciar a destruição de Sodoma, protegendo os escolhidos de Deus e fazen- do recomendações que deverão ser seguidas à risca caso contrário a punição será severa (v.15-26). Mas o episódio mais emblemático é o de Gn 22,1-19 que se tornou um clássico da História da Salvação, mal-entendido, por quase dois mil anos até mesmo pelos capítulo 2 • 38 estudiosos da Sagrada Escritura e pelas autoridades religiosas. O famoso sacrifício de Isaac como oferta agradável a Deus. Somente com o advento da exegese bíblica é que fomos esclarecidos que a história é outra. Sobretudo quando comparamos Gn 22,1- 19 com Ex 20,1-17, especialmente com o versículo treze do Êxodo percebemos que há uma contradição que não combina com a coerência do Deus bíblico que é o Deus da vida. Como, se Ele é o Deus da vida (Jo 10,10) vai exigir o filicídio, ou seja, que o pai mate o próprio filho. Então veja nos versículos onze a 19 de Gn 22 que o mensageiro de Deus aparece iluminando o entendimento humano. Com Jacó temos dois episódios importantes envolvendo os mensageiros de Deus. O primeiro é de Gn 28,10-22 onde eles aparecem nos sonhos iluminando o árduo caminho que Jacó terá de percorrer para encontrar a sua amada. No entanto, o acontecimento mais conhecido é o da luta de Jacó com o mensageiro de Deus. E o motivo desta luta é pela benção angelical. O mensageiro divino aparece nos escritos sagrados hebraicos com poder de benção. E Jacó quer ser abençoado porque terá um reencontro com seu credor, o irmão Isau, ou seja, um acerto de contas. E a exegeta Lília Dias Mariano chega afirmar que foi uma luta quase como UFC, ou melhor, um vale tudo, teve até golpe baixo: Embora o texto do profeta Oseias se refira à noção de que Jacó lutou com um anjo e prevaleceu (Os 12.4) a narrativa do Gênesis não nos dá tanta segurança para afirmar que Jacó lutou verdadeiramente com um anjo, pois o que se diz é que ele lutou com um homem, um ish (Gn 32.24). Ou seja, um ser humano do sexo masculino. O relato na primeira pessoa diz: “vi Deus face a face e minha vida foi salva.” Nem fala que ele lutou com um adam, ou um filho de Adão – be ne-adam. Mas fala de ter visto o próprio Deus. Isto é bastante significativo quando se considera que toda a tensão da luta que faz este personagem tocar no nervo da coxa de Jacó, pode ser também uma alusão aos órgãos sexuais. Em outras palavras, Jacó teria saído da luta depois de um “golpe baixo” da parte do homem com quem ele lutava. Não é uma possibilidade de todo descartável (CARNEIRO; GOMES, 2017, P. 30-31). Até aqui foi suficiente para percebermos que uma angeologia com fundamen- tos bíblicos desmistifica, desmitologiza uma compreensão ingênua sobre os men- sageiros de Deus. Uma compreensão acrítica sobre os seres celestiais como apenas seres ‘bonzinhos’. Além de anunciarem catástrofes, destruição ‘lutam’ contra os humanos chegando inclusive a dar golpe baixo, sobretudo pela dureza de coração, ou melhor, de entendimento dos processos éticos. Haja vista a postura de Jacó na aquisição da primogenitura (Gn 25,29-34), o recebimento da benção (Gn 27,1- 45), e o seu enriquecimento ilícito (Gn 29,1-14). capítulo 2 • 39 Angeologia no livro do Êxodo No livro do Êxodo escolhemos cinco momentos fundantes do processo de libertação do povo de Deus da escravidão egípcia para a abordagem da questão dos mensageiros de Deus. Porque este é um dos acontecimentos importantes na história da salvação juntamente com a criação, a formação do povo de Deus e a conquista da terra prometida. Estes são acontecimentos kairológicos e não ape- nas cronológicos. O livro do Êxodo é um paradigma do processo de emancipação, ou melhor, de libertação de qualquer forma de opressão, de escravidão. Ele narra no capítulo três no episódio da sarça ardente a presença do anjo do Senhor em diálogo com Moisés que está trabalhando e buscando interiormente uma ‘estratégia’ para libertar o seu povo da escravidão (Ex 1,8-22 e 3,1-20). Veja como o texto sagrado narra o acontecimento: Moisés pastoreava o rebanho de seu sogro, Jetro, que era sacerdote de Midiã. Um dia levou o rebanho para o outro lado do deserto e chegou a Horebe, o monte de Deus. 2 Ali o Anjo do Senhor lhe apareceu numa chama de fogo que saía do meio de uma sar- ça. Moisés viu que, embora a sarça estivesse em chamas, não era consumida pelo fogo. 3 "Que impressionante!", pensou. "Por que a sarça não se queima? Vou ver isso de per- to." 4 O Senhor viu que ele se aproximava para observar. E então, do meio da sarça Deus o chamou: "Moisés, Moisés!" "Eis-me aqui", respondeu ele. 5 Então disse Deus: "Não se aproxime. Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra santa". 6 Disse ainda: "Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó". Então Moisés cobriu o rosto, pois teve medo de olhar para Deus. 7 Disse o Senhor: "De fato tenho visto a opressão sobre o meu povo no Egito, tenho escutado o seu clamor, por causa dos seus feitores, e sei quanto eles estão sofrendo. 8Por isso desci para livrá-los das mãos dos egípcios e tirá-los daqui para uma terra boa e vasta, onde há leite e mel com fartura: a terra dos cananeus, dos hititas, dos amorreus, dos ferezeus, dos heveus e dos jebuseus. 9 Pois agora o clamor dos israelitas chegou a mim, e tenho visto como os egípcios os oprimem. 10 Vá, pois, agora; eu o envio ao faraó para tirar do Egito o meu povo, os israelitas". Bíblia Sagrada online. Disponível em: <https://www.bibliaon.com/exodo_3/>. Acesso em: 10 jun. 2018. capítulo 2 • 40 Aqui pelo contexto o mensageiro de Deus auxilia a compreensão de Moisés que não entendia o fenômeno, a revelação divina, a sarça ardente, e ao mesmo tempo comunica o conteúdo da mensagem divina e envia Moisés como líder deste processo paradigmático. Temos ainda Ex 11,23 na última praga, a morte dos primogênitos, a figura angelical nos é revelada como o ‘executor’ desta ação. Igualmente em Ex 14,15-31 no famoso episódio da ‘abertura’ do Mar Vermelho a presença do anjo do Senhor como protetor dos ex-escravos agora em processo de libertação e como extermina- dor dos opressores, os egípcios. Veja no relato bíblico como o anjo aparece protagonizando um processo para- doxal: vida e liberdade de um lado e morte de outro lado: 15 Disse então o Senhor a Moisés: "Por que você está clamando a mim? Diga aos is- raelitas que sigam avante. 16 Erga a sua vara e estenda a mão sobre o mar, e as águas se dividirão para que os israelitas atravessem o mar em terra seca. 17 Eu, porém, endurecerei o coração dos egípcios, e eles os perseguirão. E serei glo- rificado com a derrota do faraó e de todo o seu exército, com seus carros de guerra e seus cavaleiros. 18 Os egípcios saberão que eu sou o Senhor quando eu for glorificado com a derrota do faraó, com seus carros de guerra e seus cavaleiros". 19 A seguir o anjo de Deus que ia à frente dos exércitos de Israel retirou-se, colocando- -se atrás deles. A coluna de nuvem também saiu da frente deles e se pôs atrás, 20 entre os egípcios e os israelitas. A nuvem trouxe trevas para um e luz para o outro, de modo que os egípcios não puderam aproximar-se dos israelitas durante toda a noite. 21 Então Moisés estendeu a mão sobre o mar, e o Senhor afastou o mar e o tornou em terra seca, com um forte vento oriental
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