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573-Texto do artigo-1016-1-10-20190606

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Revista das Faculdades de Educação, Ciências e Letras e Psicologia Padre Anchieta 39
ARGUMENTO - Ano V - No 10 - Outubro/2003
O QUE É BIOTECNOLOGIA?
José Félix Manfredi*
RESUMO
A Biotecnologia é a próxima fronteira do Homem. Os conhecimentos adquiridos nos últimos 30
anos, notadamente em Biologia e Química, permitem prever uma fase de desenvolvimento acelerado
para as tecnologias baseadas em procedimentos enzimáticos e microbiológicos, aplicados à Medicina
e Engenharia. Como campo de desenvolvimento profissional, a atração sobre jovens egressos do
meio acadêmico já é observada, podendo-se prever um novo ciclo longo, em substituição ao da
Informática, ora em seu apogeu.
PALAVRAS-CHAVE: Biotecnologia, DNA, enzima, genoma, clone.
ABSTRACT
Biotechnology is the new frontier for mankind. The knowledge developed during last 30
years, mainly on Biology and Chemistry, let us forecast a strong development era for enzimatic and
microbiological technologies, applied to Medicine and Engineering. This professional field atracts
bright young graduates and let us anticipate a new long cycle of public attention, after prevailint
Informatics.
KEY-WORDS: Biotechnology, DNA, enzyme, genome, clone.
HISTÓRICO
O emprego de meios biológicos de produção teve início no Neolítico, quando
o homem deixou de viver exclusivamente do extrativismo e começou a plantar e
criar animais. Ainda na Antiguidade, processos fermentativos permitiram produzir
alimentos, como pão e vinho, e o emprego de gorduras animais e vegetais
possibilitou a produção de sabão, dando origem à indústria química. Ervas
silvestres e cultivadas constituíram a farmacopéia a que nossos ancestrais
primeiramente tiveram acesso. A alimentação do grupo enriqueceu com o leite e
a carne de animais criados, que não dependiam da incerteza e sazonalidade da
caça. O emprego de fibras vegetais e animais inaugurou a tecelagem artesanal
e introduziu uma razão extra para o plantio e a criação, não mais destinados
exclusivamente à alimentação do grupo tribal. A construção de estruturas
beneficiou-se da madeira, cordas de fibras e folhas, enquanto ossos constituíram-
se em clavas primevas e utensílios. Luz e calor foram obtidos da queima da
madeira, e o domínio do fogo deu acesso a formas de tratamento e obtenção de
* José Félix Manfredi é Professor de Química do Curso de Graduação em Ciências Biológicas e
Coordenador do Curso de Pós Graduação em Biotecnologia das Faculdades Padre Anchieta.
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material produzido biologicamente. Com o tempo, corantes vegetais e animais
foram incorporados ao arsenal químico para tingimento de tecidos (pau-brasil),
uso cosmético e alimentício (urucum) ou em tinta gráfica (nanquim). Resinas
vegetais foram empregadas em revestimento e impermeabilização (lacas), óleos
vegetais e animais foram utilizados na alimentação e iluminação e secreções
glandulares mostraram-se úteis na confecção de perfumes (almíscar).
O homem aprendeu a explorar os recursos da Natureza em favor de sua
sobrevivência muito antes de proclamar-se civilizado. O extrativismo foi substituído
pelo cultivo sistemático, a caça pela criação, as florestas e campos de coleta,
mantidos pela Natureza, deram lugar aos terrenos agrícolas, criados e preservados
pelo trabalho humano. A posse comum e impessoal dos recursos sucumbiu à
propriedade restrita daqueles que neles trabalhavam, mantendo com eles uma
relação mais próxima que o vago interesse coletivo. Era o início da Civilização,
antes mesmo do início da História.
Um novo passo à frente, comparável ao advento da agricultura, esboça-se
nos dias atuais, com a substituição dos recursos biológicos naturais por outros,
mais adequados ao uso, gerados a partir da intervenção humana nos processos
naturais. É a Era da Biotecnologia, quando os conhecimentos acumulados ao
longo dessa mesma História, nas Ciências Naturais, são potencializados como
recursos e viabilizados em benefício do Homem. O uso corrente de
microrganismos, como as bactérias, fungos e leveduras, e o desenvolvimento
de formas complexas de vida com características favoráveis de produção,
qualidade e resistência, a partir de enxertia, cruzamento e seleção individual,
garantiram a um número crescente de consumidores uma fonte abundante de
carboidratos, lipídios, proteínas, fibras, remédios (fitoterápicos), essências e
recursos para transformação da Natureza. Com a Revolução Verde, entre 1940
e 1980, a produtividade agrícola dobrou ou triplicou, em função do uso de novas
variedades, emprego intensivo de defensivos químicos e fertilizantes inorgânicos,
a partir da síntese de Haber & Bosch (MAHAN & MYERS, 2002). Como
consequência, o comprometimento ambiental provocado pelo uso desses
insumos e as limitações inerentes às técnicas convencionais de melhoria das
espécies comercialmente interessantes implicaram numa mudança de enfoque
tecnológico, com a adoção de técnicas genéticas de manipulação. Também a
indústria farmacêutica que, no final da década de 1930, aprendeu a se utilizar
de microrganismos para a produção de antibióticos, faz uso de recursos da
Engenharia Genética para incremento de produção, ou obtenção de espécies
químicas por rota alternativa. A Medicina incorpora técnicas de diagnose e
tratamento calcados em recursos genéticos, enquanto a tecnologia, lato sensu,
desenvolve meios afins para aplicações diversificadas.
Os cient istas começaram a entender as bases bioquímicas da
hereditariedade em meados do Século XX, com a descoberta e posterior
compreensão do funcionamento dos ácidos nucléicos. A habilidade técnica de
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manipulação dos genes, com o isolamento, duplicação e transferência dos
mesmos, in vitro, desenvolveu-se a partir de então. Teve início a Recriação.
ENZIMAS
A indústria alimentícia emprega enzimas (catalisadores específicos de
natureza protéica e alto peso molecular, existentes no interior das células) na
fabricação de derivados de leite, por fermentação ou coagulação; cerveja, a
partir de cevada e lúpulo fermentados; vinhos, pela transformação microbiológica
do açúcar das frutas (principalmente uva) em álcool; frutose, pela conversão do
amido de milho; ácido cítrico, a partir do açúcar de cana; pão, com a expansão
da massa pelo gás carbônico liberado pelo fermento microbiológico. A indústria
química se utiliza de processos enzimáticos na produção de aminoácidos para
suplementação alimentar de pacientes portadores de deficiência digestiva, e
em ração animal. Enzimas capazes de digerir proteínas (proteases) são incluídas
na formulação de sabões e detergentes para remoção de manchas nos tecidos.
Em Medicina, enzimas pancreáticas são ministradas oralmente a pacientes
que tiveram o órgão removido ou que apresentam disfunção digestiva de origem
genética. Vítimas de ataque cardíaco com formação de coágulos sanguíneos
são tratadas com uma enzima ativadora do plasminogêneo (TPA), que dissolve
os coágulos internamente e evita os danos permanentes causados pela
obstrução das artérias (UCKO, 1992). Essa enzima é produzida por tecnologia
de recombinação de DNA, a mesma tecnologia que atua na transformação da
insulina suína em humana. Procedimentos padronizados de análise clínica de
glicose, uréia, aminoácidos, ácido láctico e dosagem alcoólica empregam
enzimas. O conhecimento bioquímico da estrutura e funcionamento das enzimas
permite prever, para futuro próximo, a fabricação de variedades sintéticas, por
recombinação das bases do DNA, com ação projetada sobre substratos de
interesse.
MICRORGANISMOS
As bactérias são conhecidas desde o Século XVII e seu envolvimento nos
processos fermentativos só foi confirmado no Século XIX, por Pasteur (TORTORA
et al., 2000). Sua ação foi rapidamente associada à produção de etanol, ácido
láctico e gás carbônico. No início do Século XX, desenvolveram-seprocedimentos
fermentativos capazes de produzir acetona e butanol e, algumas décadas depois,
a conversão de 2,3-butanodiol em 1,3-butadieno foi feita em escala industrial,
para síntese de borracha. Nas últimas sete décadas as rotas biotecnológicas
foram utilizadas apenas nos casos em que a rota petroquímica não permitia a
especificidade do produto, ou quando problemas de suprimento encorajavam o
desenvolvimento alternativo.
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O esgotamento previsível das reservas de petróleo, seu inexorável aumento
de preço e a instabilidade política de alguns centros produtores importantes
retomam o interesse de governos e empresas. Muitos insumos industriais são
passíveis de obtenção, em condições competitivas, como ácidos, álcoois,
cetonas, proteínas, antígenos, inseticidas, vitaminas, aminoácidos, antibióticos,
esteróides e hormônios, obtidos da massa celular dos microrganismos
multiplicados nos processos.
CLONAGEM
Os processos microbiológicos tradicionais empregam espécies naturais
ou híbridos por cruzamento. Organismos mutantes podem ser obtidos por
alteração do DNA, por radiação ou agentes químicos, com resultados aleatórios
e, quase sempre, sem utilidade prática. Uma técnica mais apurada e recente,
por recombinação, parte da identificação da sequência de nucleotídeos do DNA
nos genes responsáveis pelo controle de produção de um dado metabólito, com
sua subsequente alteração, supressão, ou introdução de novos genes, de forma
a modificar o padrão de produção da célula. Insulina e hormônios do crescimento
são obtidos por essa tecnologia (VIEIRA et al., 1998).
A clonagem genética, técnica em que um determinado gene é isolado,
identificado e copiado, permite a produção de quantidades suficientes de
proteínas para uma análise clínica ou uso massivo. Como exemplos, o interferon
humano, agente quimioterápico no tratamento de câncer e infestações virais,
que só passou a ser empregado em escala comercial quando sintetizado por
bactérias cujos genes haviam sido clonados com DNA humano, a insulina humana
e o hormônio de crescimento, produzidos em larga escala por E. coli. A
biossíntese não se limita às biomoléculas existentes na Natureza, mas viabiliza
o incremento de propriedades através da remodelação molecular.
FONTES DE PROTEÍNAS
O emprego da massa celular como fonte de proteína na alimentação humana
e animal não é recente. Os aztecas faziam uso de algas cultivadas, ainda em
tempos pré-colombianos. Levedo foi produzido na Alemanha, durante as duas
guerras, a partir de melaço ou de resíduos de madeira, como complemento
protéico. O cultivo de Spirulina em lagoa piloto, no México, rende uma tonelada
por dia de células secas, comercializadas para consumo humano e bem aceitas
no mercado local. A alga Chlorella é cultivada em tanques cobertos, no
Japão, e vendida em tabletes. Israel produz ração animal a partir de algas
cultivadas com bactérias em tanques aerados de tratamento de esgoto
doméstico. O Brasil utiliza parte da enorme produção de Saccharomyces
cerevisiae, atrelada ao programa de álcool combustível, como complemento
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protéico de ração animal.
A levedura Candida utilis é a fonte industrial de proteína obtida da
transformação de hidrocarbonetos (petróleo) numa instalação russa com
capacidade superior a 20 000 toneladas/ano. Um processo industrial desenvolvido
no Reino Unido produziu, na década de 1980, 4200 toneladas/mês de proteína
da bactéria Methylophylus methylotrophus, cultivada em metanol, para consumo
animal. O processo foi abandonado por não ser competitivo, em preço, com a
proteína da soja (FERSHT & WINTER, 1992). A competitividade dos produtos
biotecnológicos é função do investimento industrial, preço das matérias primas,
tecnologia disponível, escala de produção, preço de venda, qualidade do produto
e, como toda tecnologia emergente, a conquista de mercado se dá inicialmente
em nichos em que os meios de produção tradicionais são relativamente menos
eficientes.
BIOMINERAÇÃO
A recuperação de metais de minérios de baixo teor é uma aplicação antiga
de microrganismos, embora sua ação tenha sido reconhecida apenas no Século
XX. Algumas bactérias obtêm energia da oxidação de metais, notadamente o
ferro, iniciando uma cadeia de transferência de elétrons que resulta em cátions
solúveis, que podem ser recuperados. Milhões de toneladas de cobre encontram-
se dispersas em canga de baixo teor no oeste americano, depositadas de modo
a ocupar depressões naturais do terreno, com facilidade de drenagem e coleta
do efluente, bombeado para tanques de recuperação. A irrigação dos depósitos
com solução ácida diluída de íons Fe3+ ativa a ação bacteriana, que transfere
elétrons do cobre ao Fe3+. O cobre iônico é lixiviado, coletado, e reduzido com
ferro metálico, enquanto a solução de lixívia é bombeada para irrigação do
depósito. Mais de 10% do cobre minerado nos EUA o são por biomineração.
Depósitos minerais podem ser lixiviados sem remoção física da jazida, que é
explodida e percolada com solução apropriada, ou após o esgotamento
convencional do veio principal, recuperando-se o metal remanescente por
aplicações periódicas de solução às paredes da mina. Recuperação de
considerável quantidade de urânio de minas canadenses têm sido conseguida
dessa forma.
As técnicas de recombinação de DNA vêm sendo aplicadas às cepas
bacterianas empregadas em biomineração, principalmente o Thiobacillus
ferrooxidans. Aplicação de microrganismos na depuração de depósitos de carvão
e petróleo ricos em enxofre é um objetivo de interesse de empresas e
ambientalistas, visando à eliminação do fenômeno da chuva ácida, provocada
pela presença dos óxidos de enxofre na atmosfera, poluída pela queima desses
combustíveis.
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APLICAÇÒES AMBIENTAIS
O uso de agentes biológicos de controle de pragas tem-se revelado eficiente
e limpo (MELO & AZEVEDO, 1999). As formas tradicionais de emprego desses
agentes são a introdução de machos estéreis para acasalamento com fêmeas
silvestres, a aplicação de feromônios interferentes com o ciclo sexual dos insetos,
e o lançamento de microrganismos produtores de toxinas causadoras de doenças
específicas entre os mesmos. A bactéria Bacillus thuringiensis é usada contra
mosquitos há mais de 30 anos, sendo produzida e comercializada em vários
continentes. Seus esporos são aspergidos sobre as áreas afetadas pelos
mosquitos e comidos pelas larvas, liberando uma endotoxina que as mata em
minutos, por destruição da membrana celular de seu trato digestivo. A bactéria
E. coli, clonada por recombinação de DNA, produz a mesma toxina em
condições vantajosas, por se tratar de microrganismo mais resistente às
adversidades ambientais dos sítios de aplicação. Os vírus são aplicados com
eficácia e permanecem muito tempo ativos na folhagem do local tratado, alojam-
se nas células digestivas dos insetos que dela se alimentam e multiplicam-se
ao ponto de gerar infecção sistêmica letal.
Microrganismos degradam espontaneamente compostos químicos naturais
que lhes sirvam de alimento. Por semelhança estrutural, muitos compostos
sintéticos podem conjugar-se ao sítio ativo das enzimas digestoras e degradar-
se, sendo eliminados do meio ambiente. Outros tantos, contudo, não encontram
enzimas capazes de romper suas moléculas e permanecem intactos no ambiente
por muito tempo. Técnicas de engenharia genética possibilitam a mudança de
especificidade enzimática (VOET et al., 2000) e aumentam o número delas nos
microrganismos, introduzem novos plasmídeos e alteram os mecanismos de
absorção das substâncias pela membrana celular, facilitando a metabolização.
Bactérias podem ser usadas na limpeza de terrenos contaminados com metais
tóxicos,por adsorção irreversível na membrana celular, rica em sítios aniônicos.
APLICAÇÕES AGRÍCOLAS
As leguminosas acomodam em suas raízes bactérias do gênero Rhyzobium,
fixadoras do nitrogênio atmosférico (na forma de amônia) por ação do complexo
enzimático nitrogenase. A relação planta-bactéria é de simbiose, com o vegetal
recebendo o nitrogênio amoniacal, e o microrganismo, o carbono. O plantio de
leguminosas em solos pobres em nitrogênio favorece o rendimento de culturas
consorciadas, sem o emprego de fertilizantes inorgânicos. A nitrogenase é inibida
por oxigênio e os microrganismos que a possuem fazem a fixação apenas em
meio anaeróbico. A alternativa para tais solos é a aplicação de fertilizantes
inorgânicos, produzidos a partir de amônia sintética. A síntese de amônia pelo
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processo Haber-Bosch rendeu a ambos um prêmio Nobel e afastou do mundo o
espectro da fome, pelo menos do ponto de vista técnico. O processo usa como
reagentes nitrogênio atmosférico e gás hidrogênio (energeticamente caro) e é
conduzido a altas temperatura e pressão (mais energia).
Pesquisas em andamento procuram desvendar o mecanismo de ação da
nitrogenase, objetivando o desenvolvimento de tecnologia industrial de produção
de amônia à temperatura e pressão ambientes. A compreensão da simbiose
leguminosa/microrganismo (LARCHER, 2000) pode resultar no desenvolvimento
de meios de adaptação do fixador de nitrogênio a raízes de outros vegetais. A
segunda possibilidade é mais interessante, pois o fertilizante assim obtido é
virtualmente gratuito e não lixiviável do solo. Uma terceira corrente, ainda,
vislumbra o desenvolvimento genético de variedades de plantas capazes de fixar,
por si próprias, o nitrogênio necessário ao seu crescimento.
Na clonagem tradicional as plantas são reproduzidas a partir de tecidos de
uma matriz, sendo todas as descendentes geneticamente idênticas a ela. Outro
tipo de reprodução assexuada é feito a partir de embriões gerados por células
somáticas induzidas. As técnicas estabelecidas de clonagem a partir de células
ou tecidos vegetais (embriogênese) permitem a ocorrência estatística de
mutantes aleatórios, sem que seja possível dirigir as características da
descendência. A produção de híbridos por fusão protoplasmática (DODDS, 1985)
é uma tecnologia promissora. Células de indivíduos distintos são misturadas
num meio químico e/ou enzimático adequado, que rompe a membrana celular e
permite a mistura dos conteúdos das células. Os híbridos resultantes têm
características aleatórias, apenas identificáveis pelo cultivo, e dificuldades
inerentes à seleção dos híbridos com relação às espécies originais e regeneração
ainda devem ser superadas.
A transformação genética, por DNA recombinante, é uma realidade manifesta
nos centros de pesquisa, fazendas experimentais e de produção comercial,
ganhando espaço considerável na mídia em função de sua potencialidade,
realizações e interesse popular (WATSON et al., 1992). A manipulação do genoma
vegetal depende do conhecimento da relação entre um determinado gene e dada
característica da espécie. A sequência do DNA identificada como responsável
por tal característica deve ser isolada e clonada no vegetal objeto de interesse.
O cultivo do mesmo revela o sucesso da operação. A inserção de uma nova
qualidade numa espécie aclimatada a um ecossistema implica na alteração do
relacionamento dessa espécie com seu meio, com decorrências nem sempre
previsíveis. Via de regra, o objetivo da clonagem é aumentar a produtividade
agrícola, a resistência da variedade às pragas tradicionais ou a condições de
salinidade, fertilidade do solo, climatológicas ou a algum defensivo, ou a mudança
de alguma característica do produto obtido do vegetal.
A introdução de genes estranhos em células vegetais é realizada,
espontaneamente, pela bactéria Agrobacterium tumefaciens , que infecta
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dicotiledôneas (batata, tabaco, tomate, soja) e monocotiledôneas (arroz, trigo,
milho). As células atingidas passam a produzir aminoácidos e derivados de
açúcar com os quais a bactéria se nutre. Estudos revelaram o mecanismo de
ação da bactéria: produção e inoculação de plasmídeos indutores de tumor, que
passam a integrar o genoma celular do receptor. A imitação da engenharia
genética praticada pelo microrganismo tornou-se ferramenta poderosa na
clonagem por vetores plasmídicos, quando biologistas moleculares removeram
os genes (do plasmídeo) responsáveis pela produção dos nutrientes citados e
inseriram outros, capazes de dar ao vegetal inoculado resistência a herbicidas
e doenças. Colônias de A. tumefaciens clonado são cultivadas e aplicadas no
desenvolvimento de vegetais resistentes. O mesmo plasmídeo é utilizado na
introdução de genes clonados no tabaco, para produção, pelas células do vegetal,
de toxinas letais a larvas e lagartas. Alternativamente, podem ser usados vírus
clonados como vetores genéticos. Geminivírus , cuja cápsula protéica foi
geneticamente alterada, são adequados à introdução de DNA exógeno em células
de cereais, como trigo e milho.
O desenvolvimento de plantas tolerantes a herbicidas está entre os feitos
mais populares da genética (CALVO, 1998). A Monsanto produz defensivos à
base de glifosato, substância que atua por inibição enzimática, que erradicam
os vegetais (de maneira não seletiva) de locais como vias públicas e pátios
ferroviários. Embora inadequado ao uso agrícola, por não distinguir ervas daninhas
de plantas produtivas, o glifosato é ecologicamente interessante, por persistir
pouco tempo no solo (sofre degradação microbiana), não ser alérgico aos
mamíferos, e por ser usado em baixas dosagens. Culturas tolerantes ao glifosato
foram desenvolvidas por clonagem de DNA e inoculação pelo plasmídeo de A.
tumefaciens, objetivando aumentar a produção celular das enzimas inibidas.
APLICAÇÒES NA MEDICINA
Anticorpos monoclonais são proteínas usadas em diagnose e terapia de
câncer, supressão imunológica em transplantes de órgãos e detecção de
infecções, como herpes e doenças sexualmente transmissíveis. Os monoclonais
são mais específicos que os obtidos por outras técnicas e distinguem agentes
infecciosos com precisão absoluta. Células clonais são todas descendentes de
uma só célula-mãe e produzem anticorpos exatamente iguais, com ação
específica, podendo ser obtidas por clonagem e cultivadas in vitro. No caso de
órgãos transplantados, os anticorpos suprimem exclusivamente a reação imune
de rejeição do órgão, mantendo ativas todas as demais funções do sistema
imunológico do organismo receptor, enquanto o tratamento com drogas suprime
a ação do sistema imune como um todo. Diagnose e identificação do tipo de
câncer são rotineiramente feitas por detecção in vitro, através de anticorpos
monoclonais. Uma técnica, a título de exemplo, envolve a introdução de
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anticorpos radiomarcados no organismo, que localizam o tumor e indicam a
eventual ocorrência de metástases. Dada sua especificidade, anticorpos
monoclonais são usados como transportadores de drogas tóxicas, depositando-
as exclusivamente em determinadas células. A molécula ativa é quimicamente
ligada ao anticorpo e por ele transportada e ancorada nas células-alvo. Métodos
de DNA recombinante permitem aos biologistas moleculares desenvolver
anticorpos previamente especificados (SCROFERNEKER, 1996).
A diagnose pré-natal de doenças genéticas é feita por coleta e análise do
DNA do feto. Cerca de 3 000 manifestações diferentes são causadas por genes
defeituosos e a identificação pré-natal da desordem permite à família decidir
sobre a continuidade da gestação e/ou cuidados especiais a serem adotados
ao longo da vida do portador. A inserção de célulasclonadas, objetivando a cura
intra-uterina das doenças genéticas, é vista como a solução definitiva desses
males. Essa possibilidade emerge da fantasia de poucos anos no passado para
a realidade de laboratórios e clínicas, com o avanço do Projeto Genoma.
A GEOGRAFIA DA BIOTECNOLOGIA
Os Estados Unidos lideram a corrida biotecnológica, notadamente no campo
da pesquisa básica e formação de quadros de alto nível em pesquisa genética.
Desde o começo da década de 1980, quando a Comissão Presidencial para
Competitividade Industrial estabeleceu as diretrizes de investimento em áreas
tecnológicas (tanto por parte do governo como pela iniciativa privada) e assumiu
a coordenação de esforços de fomento à pesquisa em tecnologia avançada. O
OTA (Office of Technology Assessment), do Congresso, recomendou, ao final da
mesma década, o apoio governamental na formação de cientistas especializados
em Biotecnologia, com o objetivo manifesto de manter a dianteira americana
em relação aos demais países. O relatório do órgão enfatizou os estudos em
fermentação e bioengenharia, áreas em que a supremacia era japonesa.
A Academia Nacional de Ciências propôs um programa de fundos especiais
para jovens cientistas que se dedicassem a temas pertinentes, na agricultura e
assuntos interdisciplinares. A indústria, por sua vez, investiu na área da saúde,
principalmente no desenvolvimento da tecnologia dos anticorpos monoclonais e
DNA recombinante. O investimento privado foi distribuído entre centros de
pesquisa próprios, joint-ventures, e contratos e doações a centros universitários,
que promovem a pesquisa básica associada aos temas de interesse comercial.
O controle sobre produtos biotecnológicos (organismos patogênicos ou
geneticamente alterados) é coordenado por um comitê criado em 1985
(Biotechnology Science Coordenating Committee), que reúne representantes
de outras agências reguladoras, como a EPA e o FDA, e estabelece a jurisdição
das várias agências. Como exemplo dos cuidados americanos, o Departamento
de Defesa restringe as exportações de agentes biotecnológicos sempre que
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antevê a possibilidade destes serem empregados na fabricação de armas
químicas ou biológicas. O desenvolvimento de tais armas nos EUA não é
reconhecido oficialmente, embora o Exército mantenha instalações em Utah
para testes de agentes letais altamente infecciosos, com apoio do Pentágono
(COSTNER & THRORNTON, 1990).
O sucesso do programa americano é baseado em fatores como: fomento
continuado e crescente, desde a década de 1970; existência de uma rede
universitária desenvolvida e engajada, voltada à pesquisa básica e formação de
cientistas; presença de profissionais da saúde nos centros de pesquisa,
estimulando os trabalhos em genética aplicada; acesso dos cientistas à mídia,
esclarecendo e alertando a população sobre os riscos e benesses inerentes à
Biotecnologia; viabilidade de resultados práticos a partir de investimentos
moderados; visibilidade dos resultados, através da mídia e no quotidiano do
cidadão comum, o que torna infrutíferas as manifestações de grupos refratários,
patrocinados ou não, e familiaridade do público com o espírito de fronteira, em
contraste com as reações populares contrárias à inovação tecnológica, comuns
em países onde os resultados da pesquisa científica demoram a permear a
sociedade.
A Europa desenvolve seus programas de Biotecnologia com capital
governamental e de grandes corporações (multinacionais farmacêuticas),
financiando pesquisas também nos EUA. O principal enfoque no fomento por
governos europeus volta-se aos projetos de tecnologia aplicada, conduzidos em
colaboração com universidades e transferidos para empresas, muitas vezes
nascentes, que viabilizam sua produção e comercialização. Na França, em
particular, o assunto ganhou importância especial, com objetivos comerciais
definidos. Embora cada país europeu tenha seu próprio programa, destacam-se
as iniciativas conjuntas, como a European Federation of Biotechnology, visando
a competir com EUA e Japão.
O Japão elegeu a Biotecnologia entre as prioridades nacionais e colocou-a
sob custódia da Agência de Ciência e Tecnologia, com responsabilidade de
supervisionar e estabelecer metas e recursos para os programas de fomento.
O Ministério da Indústria e Comércio estabelece planos plurianuais, que orientam
órgãos públicos e privados de desenvolvimento. As áreas entendidas como
prioritárias são as de interesse produtivo de potencial mais imediato, como a
tecnologia do DNA recombinante, projeto de biorreatores e geração de massa
celular (proteínas) por fermentação. A iniciativa privada orienta seus esforços no
sentido da produção competitiva de insumos químicos e farmacêuticos. O sistema
educacional japonês formou uma elite tecnológica apta a converter rapidamente
conhecimentos científicos em disponibilidade industrial.
O Brasil acumula tradição histórica em Biotecnologia, alguns centros
acadêmicos tradicionalmente envolvidos com o assunto e programas nacionais
e internacionais em andamento, com apoio de agências de fomento
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(CRECZYNSKI-PASA, 2001). A produção de vacinas, anticorpos, produtos
químicos, massa celular, alimentos e álcool combustível por rota biotecnológica
é tradicional no país. O posicionamento geográfico confere ao Brasil condição
única no mundo para exploração de fontes, em variedade e quantidade, pela
extensão de florestas naturais, área agricultável, grau de insolação, hidrografia
e biodiversidade, que tornam óbvias as potencialidades de aplicação, conforme
atestam as exportações da agroindústria brasileira, uma das principais locatárias
da Biotecnologia de escala. A formação de recursos humanos de alta qualidade,
contudo, é restrita a poucos centros de excelência e constitui-se no ponto frágil
do processo de implantação de um programa sustentável de independência
tecnológica, no que será um dos segmentos mais influentes e sensíveis da
economia do Século XXI.
PERFIL PROFISSIONAL DO BIOTECNOLOGISTA
A evolução acelerada dos conhecimentos em Biotecnologia demanda um
profissional apto a assimilar inovações com desenvoltura, enquanto a natureza
múltipla de sua atuação social exige comportamento ético claramente definido.
Sua formação profissional, centrada no conhecimento científico, tem como bases
o pensamento lógico e a experimentação. Apoiada na aplicação de conceitos
de Biologia, a Biotecnologia exige sólida fundamentação tecnológica e domínio
de ciências básicas, como a Química, a Física e a Matemática, contempladas
nos cursos de formação de especialistas, em suas várias modalidades.
O ensino desta modalidade em nosso sistema universitário é recente, embora
várias de suas abordagens se fizessem presentes como disciplinas tradicionais
em cursos de Engenharia, Agronomia, Farmácia, Medicina e outros. Países de
tradição universitária, como EUA, França e Japão, consolidaram a formação de
Biotecnologistas sob diferentes titulações acadêmicas, com destacada
solicitação do mercado de trabalho em suas indústrias e centros de
desenvolvimento de tecnologia de ponta.
Alguns centros de pesquisa nacionais destacam-se no desenvolvimento de
técnicas e produtos vinculados, como o IPT (SP), em sua Divisão de Química,
que desenvolve pesquisas de processos e elabora projetos e estudos de
viabilidade técnica e econômica. Ainda em São Paulo, o Instituto Butantã dedica-
se à produção de soros e vacinas, caracteristicamente por rotas biotecnológicas.
Em Campinas, o ITAL consagrou-se no desenvolvimento de produtos e tecnologia
para a indústria alimentícia, sendo um centro internacional de referência. O
Polo de Biotecnologia do Rio de Janeiro, criado em 1988, atua no fomento e
transferência de tecnologia e gestão de projetos. A Embrapa desenvolve
pesquisas voltadas à agricultura sustentável,ecologicamente correta, testando
variedades geneticamente modificadas e transgênicas. Atua, também, na direção
da clonagem de animais de interesse zootécnico.
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Entre as possibilidades de atuação do biotecnologista, merecem destaque:
pesquisa e desenvolvimento de produtos biológicos; desenvolvimento de
processos fermentativos; desenvolvimento de processos de transformação de
biomassa; elaboração, teste e produção de fármacos, soros e vacinas;
desenvolvimento de variedades geneticamente modificadas ou transgênicas para
a agricultura e criação animal; monitoramento de produtos geneticamente
desenvolvidos; desenvolvimento de insumos agrícolas compatíveis com a
preservação ambiental; gestão e tratamento de efluentes agrícolas, urbanos e
industriais; exploração da biodiversidade no reconhecimento e aproveitamento
de recursos; aperfeiçoamento de processos industriais associados aos recursos
biológicos (oceano, florestas, culturas); aplicação de técnicas de Biologia
Molecular e Engenharia Genética; automação, controle e especificação de
processos biotecnológicos; desenvolvimento de equipamentos de processo;
controle de qualidade de produtos biológicos; supervisão e assistência técnica;
ensino superior e formação profissional; comercialização e marketing.
CONCLUSÀO
Empresas estrangeiras introduzem produtos e tecnologias, como a já citada
Monsanto, com suas variedades vegetais tolerantes a herbicidas, enquanto
empresas nacionais, como as de celulose, promovem reflorestamentos a partir
de eucaliptos clonados. O Brasil faz Biotecnologia com qualidade e tradição.
Por suas características físicas e geográficas, o país apresenta condições
ímpares de desenvolvimento sustentado da agroindústria, da exploração da
biodiversidade e geração de biomassa. A defasagem é histórica, com relação
aos centros industrializados, no tocante a tecnologias convencionais de
desenvolvimento e produção em escala econômica de insumos químicos e
farmacêuticos, aspecto que se acentuou a partir de 1990, com a abertura do
mercado aos produtos importados, mais competitivos em tecnologia e preço. O
mercado de trabalho para o biotecnologista cresce na medida em que sua
atuação se abre nas tecnologias emergentes, alternativas vantajosas para um
país que precisa conquistar seu próprio espaço junto aos mercados
internacionais, e é condizente com a alta qualificação requerida na abordagem
da interação tecnologia-sociedade.
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