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PEQUENO DISCURSO DE JACQUES LACAN PARA OS PSIQUIATRAS - 19671 En 1966 avait été créé, sous l’autorité du Dr. Henri Ey, le Cercle d’études psychiatriques. Un cycle d’enseignement avait été organisé, dans lequel une section était réservée à la psychanalyse. C’est dans ce cadre que le Dr. Jacques Lacan avait accepté d’intervenir. Le 10 novembre 1967, il y fit une conférence sur la psychanalyse et la formation du psychiatre. Cette conférence fut enregistrée sur bande magnétique. Rappelons le contexte de l’époque : la « Proposition du 9 octobre » par le Dr. Lacan, avec les dissensions qui allaient aboutir à la création du « Quatrième Groupe », la préparation de la revue « Scilicet » avec son principe du texte non signé, l’annonce faite par Lacan du litre de son prochain séminaire sur « l’Acte psychanalytique » et l’annonce concomitante de l’échec de son enseignement en tant qu’il ne s’était adressé qu’à des psychanalystes. Le transcripteur a pris le parti de donner à ce « Petit discours aux psychiatres de Sainte-Anne », une forme écrite qui reproduise dans la mesure du possible le style parlé, avec les artifices de ponctuation qui ne peuvent être évités. Sont maintenus les suspens, les hésitations, scansions, répétitions et lapsus comme parties intégrantes du discours. Des indications sur les variations du ton auraient inutilement surchargé le texte, qu’on sache seulement que l’orateur ne se privait pas d’en faire usage : mordant, voire grinçant au début, incisif et concis dans la partie où il s’agit de la théorie du langage, confidentiel et d’une grande douceur à la fin. La très mauvaise qualité de l’enregistrement n’a pas permis de transcrire en totalité quelques passages. D’où l’utilisation des signes […] qui indiquent des passages absolument inaudibles et donc laissés en blanc ou les corrections du transcripteur. Entre crochets <…> quelques rares corrections au texte de la transcription originale. Enfin entre parenthèses sont notées les réactions de la salle. Agradeço a vocês por estarem aqui, hoje, tão numerosos. Procurarei tornar esta coabitação momentânea não muito desagradável, considerando esta espécie de atenção coletiva que vocês de bom grado me concedem. No entanto, a princípio, não foi com essa intenção que aceitei falar, quase resolutamente, porquanto foi mais ou menos assim que me apresentaram as coisas. E, se escolhi este título – pois fui eu quem escolheu –, “Formação do psicanalista e ....Psicanálise”(sic.) (1) –, foi por ele ter me parecido um tema especialmente importante, mas a respeito do qual eu tendia a começar por – Deus meu! – o que se pode ver, tocar, aquilo que, sob todos os aspectos, já está ali como resultado, a saber: como uma constatação bastante desiludida. A formação do psiquiatra não parece ser algo muito simples, nem tampouco evidente. Diria que, até um certo ponto, esse enorme programa no qual me inscreveram o testemunha. A fim de se conseguir deslocar tantas pessoas para a “Formação do psiquiatra”, é preciso imprimir nisso um forte movimento. Enfim..., essa é uma certa concepção da formação cada vez mais difundida: forma-se, forma-se. Formar com a ajuda de comunicações, conferências, acúmulo de proposições, a respeito do que, aliás, se 1 10/11/1967 – « Conférence sur la psychanalyse et la formation du psychiatre à Ste Anne ». Esta conferência havia sido anunciada sob o título de “ A psicanálise e a formação do psiquiatra”. N.T.: texto disponível em: www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque 1 http://www.ecole-lacanienne.net/bibliotheque poderia perguntar, de tempos em tempos, qual pode ser o resultado disso, pois não se pode dizer tampouco que aquilo que vocês ouvirão aqui, sobre o que lhes concerne como psiquiatras – suponho que haja aqui uma grande maioria –, são formulações inteiramente convergentes ou mesmo apenas compatíveis. Então, o que é que vocês vão fazer? Uma síntese, como se diz? Podemos chamar isso de outro modo...por que não miscelânea?! Cabe dizer que algumas vezes a questão relativa à diferença entre a miscelânea e a síntese é formulada seriamente. Então, no momento, é evidente que a formação do psiquiatra parece acarretar muito rebuliço no espaço e no tempo. Trata-se de ver… trata-se de ver, nela, qual é o papel que pode e deve ser reservado à psicanálise. O aspecto desiludido do qual falei há pouco é, em primeiro lugar, esta conjunção que está verdadeiramente ao alcance de todos – penso que ninguém, aqui ou alhures, enfim, ali onde houver psiquiatras, onde se fizer psiquiatria, levantará a voz contra o que agora vou avançar – é que a psicanálise, no plano em que nos encontramos aqui, não está no nível do coletivo. Não falo dos efeitos da psicanálise localizados aqui ou ali - essa é uma outra questão à qual retornaremos mais adiante –, mas, sim, no nível do efeito de massa..... Quando se trata do coletivo, utilizo o termo usado por Freud, termo que me parece excelente porque, massa, não supõe ...nada de comum: não é uma consciência coletiva. Não há necessidade de consciência de massa, há efeitos de massa. Porém, de um modo geral, no nível dos efeitos de massa - que não passam da adição de um certo número de efeitos particulares que se produzem -, a psicanálise teve como resultado o fato de fazer o psiquiatra ocupar-se cada vez menos com o que chamamos o doente. Ele se ocupa cada vez menos porque está inteiramente ocupado com sua formação psicanalítica e pensa que enquanto não tiver a chave que a psicanálise poderá lhe dar, pois bem – Deus meu!-, não valerá a pena fazer o que, até então, não passaria de uma capina grosseira, uma abordagem leviana. O resultado é que, durante seu período de formação, precisamente naquele em que ele é residente, ele não pensa absolutamente no que concerne à sua posição de psiquiatra: ele se considera como psicanalista em formação. É para os dias melhores vindouros que se irá esperar o resultado. Além disso, há um certo número de mal-entendidos encontrados já nas bases. Por exemplo, os que florescem na boca dos candidatos...E devo dizer que, no curso de uma existência já longa, apresentaram-se a mim um bom número de candidatos à posição de psicanalista. À guisa de uma historinha para começar a entrevista, eu lhes pergunto: “enfim, o que é que o impele nessa via?”. É claro que essa é uma pergunta para a qual sobejam respostas. Uma delas, porém, se faz sempre presente porque é, com certeza, a mais nobre: trata-se do desejo de compreender seus doentes. É evidente que não posso dizer que esse não seja um motivo inteiramente aceitável. De fato, a primeira coisa que aparece e se manifesta muito bem é que há algo de estranho no que concerne à compreensão, quando se está na presença daquilo que, cabe dizê-lo, é o coração, o centro 2 do campo psiquiátrico e que se deve chamar por seu nome: o louco. Psicótico, se quiserem. Porém, não há só isso na experiência de um psiquiatra, há também uma quantidade de outros doentes que chegam, por questões de polícia, enquadrados desse mesmo modo. Mas, afinal, afinemos nossos violões. Saibamos do quê temos que falar: do louco. Podemos falar sobre muitas outras pessoas além dos loucos, pessoas que chegam aos mesmos lugares que aqueles nos quais tratamos do louco: são os dementes, pessoas enfraquecidas, desagregadas, postas temporariamente no estado de menos-valia mental. Esse não é, propriamente falando, o objeto do psiquiatra. Por isso é que é preciso fazer uma grande diferença entre uma certa teoria que se pode chamar, mais ou menos com justa razão, de desestruturação da consciência, ou qualquer outro modo de um organodinamismo atuando no sentido de uma função mínima, mas não se pode negar que ele aparece - justamente na medida que o dito organodinamismo teve todo o tempo para retomar suas luzes –, que é preciso mudar de registro quando se fala do louco, propriamente dito. Aliás, os própriosrepresentantes desse organodinamismo sentem necessidade de mudança de registro, e não podem classificar de modo unívoco as demências e as loucuras no mesmo registro jacksoniano, digamos. Quando se trata do louco, deve-se fazer intervir uma outra coisa que chamamos – quando se está desse lado – personalidade, para começar..., e não somente consciência. Ora, é verdade que não compreendemos esse louco e que se vem ao encontro do psicanalista declarando-lhe ser... a esperança, a... certeza... É que se espalhou um zunzunzum de que a psicanálise ajuda a compreender. E, assim, entra-se com uma bela passada no caminho da psicanálise: chegar a compreender o louco. Entretanto, é claro que se pode ficar esperando, pela simples razão de que é uma má jogada acreditar que seja nesse registro da compreensão que a análise deva atuar. Com isso quero dizer que há algo da psicanálise que tem a possibilidade de exercer uma ação sobre o louco, é evidente, mas, por ela mesma, a psicanálise não é uma técnica cuja essência seja difundir a compreensão, ou mesmo estabelecer qualquer coisa dessa ordem entre o analisante e o analista, se dermos à palavra “compreensão” um sentido como o jasperiano, por exemplo: uma comunidade de registro, alguma coisa que vai se enraizar em uma espécie de Einfühlung, de empatia, que faria com que o outro se tornasse transparente, à maneira ingênua como nos acreditamos transparentes a nós mesmos, não fosse o fato de que, a psicanálise consiste, justamente, em descobrir que não somos transparentes nem a nós- mesmos! Por que então os outros se tornariam transparentes para nós? Se há algo que cabe a psicanálise destacar, enfatizar, certamente não é o sentido, no sentido que, de fato, as coisas fazem sentido, ou que acreditamos comunicar um sentido, mas, sim, marcar em quais fundamentos radicais de não-sentido e em quais lugares os não-sentido decisivos existem e sobre os quais se fundamenta a existência de um certo número de coisas chamadas fatos subjetivos. É muito mais no balizamento da não-compreensão e pelo fato de dissiparmos, apagarmos, soprarmos o terreno da falsa compreensão que alguma coisa vantajosa pode se produzir na experiência analítica. 3 De modo que, como vocês podem observar, essa experiência do candidato psiquiatra que chega como candidato para fazer-se analisar engaja-se, desde os primeiros passos, desde o primeiro minuto, desde o primeiro segundo de sua abordagem, no plano do mal-entendido, que posso muito bem qualificar de mais radical porque, na verdade, como eu disse há pouco, entre os candidatos que escutei, vi uma grande maioria das pessoas fazer a seguinte declaração de intenção, como se diz, mas porque – eu já lhes disse ao vê-los tão numerosos - abrandei-me um pouco -, cheguei aqui com um grande discurso feito de rugidos, mas agora o temper. Então, na realidade, não houve UM SÓ DELES que também não me dissesse: “Venho aqui a fim de melhor compreender meus pacientes”!.Posso afirmar que TODOS partem desse erro de princípio. Isso diz tudo... Naturalmente, não estou aqui diante de candidatos para ensinar a doutrina, a teoria, para corrigir ou discutir, estou aqui para registrar com qual pé eles partem. Como vocês veem, eles dão partida, todos eles, com o pé que não deviam. Enfim, eles não são nada, nada esclarecidos. Podemos nos perguntar, até certo ponto, como isso acontece, porque não é a primeira vez que acontece o que acabo de lhes dizer. Eu repito isso, entre outras coisas, Deus meu ...., estamos entrando agora no décimo ano de meu ensino. Como vocês podem ver, o efeito é...magistral, cabe dizê-lo! Isso quer dizer que, é claro, há coisas que não penetram, simplesmente por serem ensinadas assim, ex cathedra. Talvez haja pessoas que suspeitam do que acabo de dizer, da validade disso que acabo de dizer. Penso ser esse o caso, em geral, das pessoas analisadas por mim, assim como, aliás, de todos os que passaram por uma verdadeira análise. Se a psicanálise deve ensinar-lhes alguma coisa é, evidentemente, que aquilo que se colhe no final não é da ordem da intersubjetividade do sentido, considerada como sublime. É uma experiência de uma ordem completamente diversa. No final, o que se ganhou é, em termos precisos, o fato de se ver que aquilo que acreditávamos compreender tão bem, justamente dele, nada compreendíamos. Isso tampouco quer dizer que se conquistou outra coisa, inteiramente caracterizada na observação que se constituiu, quanto ao que se poderia chamar uma compreensão mais profunda. Se não é isso o que se colhe ao final, e certamente não é, eu diria que, de um modo geral, não se sai intacto de uma análise. Portanto, o fato de que o preconceito continue a circular no discurso comum é, muito precisamente, alguma coisa cuja natureza deve nos fazer tocar na falha que pode existir entre o discurso comum e essa experiência, a experiência da análise. Se vocês se reportarem a tudo o que acabo de dizer, as minhas observações precedentes, naturalmente eu insisti muito nessa... pequena questão do umbral – pois, no fim das contas, considero que isso é o que está mais imediatamente ao alcance de vocês, uma vez que não suponho que todos aqui já tenham entrado nessa via –, e também no resultado final de que falei há pouco, no nível do coletivo como...não sei bem o quê, e que é com certeza o objeto de questões válidas, que podemos chamar, designar com um termo que não é meu. Tomei esse termo emprestado de um jovem residente que veio me ver, esforçando-se para me dizer o que ele sentia, ele que era efetivamente uma das pessoas, dentre as que já encontrei, mais sensíveis ao que constitui a experiência da posição do 4 médico ao abordar o campo do louco, a realidade do louco, o confronto com o louco, o enfrentamento com o louco. Devo dizer que é bastante excepcional, ele mantinha de modo muito..... muito vivo, muito fresco, muito novo, o que há - digamos a palavra – de angústia nesse encontro, nesse enfrentamento. Não lhe pareceu que a psicanálise diminuísse em nada a observação sobre o encontro com o louco. Para caracterizar como era a sala de plantão, ou seja, uma massa coletiva, na qual ele estava, e a relação entre o que ali se passava e a psicanálise, ele encontrou uma palavra que acho excelente, e que marca exatamente como vem sendo o efeito da introdução da psicanálise nesse campo, digamos, há uns trinta anos. No campo francês, ele qualificou o resultado de um profundo [e .... bem] acentuado PASSIVO. De fato, é muito surpreendente..., muito surpreendente que depois de um certo tempo que corresponde a esses trinta anos, não tenha havido, no campo da psiquiatria, no campo dessa relação com este objeto, o louco, a menor..., a menor descoberta! Nem mesmo a menor modificação do campo clínico, a menor contribuição. Com todos os meios de interrogação consideravelmente acrescidos que se tem em mãos, é claro que tudo o que se pode ver especificar, num certo momento, através de uma pequena referência a um elo psíquico, à associação de certos quadros com certas dosagens, enfim..., tudo isso sempre foi extraordinariamente fugaz. Ao cabo de dois ou três anos, ninguém mais falava da pequena síndrome que tal ou tal descrevera. E continuamos com a bela herança do séc. XIX, constituída, integral, não é?… É claro que se acrescentou um pouco ao que se havia esboçado [não falemos dos grandes nomes franceses, que não pronunciarei, para falar de um outro...], acrescentou-se alguns detalhes, alguns retoques, mas, no conjunto... Enfim, quais são os últimos complementos constituídos tecnicamente aos quais chamo descobertas, especificação de tal entidade clínica? Pois bem, refiro-me a Clérambault. Clérambault… Se vocês quiserem procurar na ponta mais extrema, ali onde isso se torna completamente minúsculo, tomem este último retoque: minha tese “A paranoia de autopunição”. Eu acrescento uma pequena pecinhaao encaixe Kraepelin- Clérambault. Bom e depois...? Eu pergunto...: “isto me interessaria?”, pois talvez eu tenha esquecido alguma coisa, alguém que tenha trazido um novo quadro clínico? Certamente, nem tudo está na clínica. Mas a clínica traduz alguma coisa, no sentido da compreensão ou da extensão, não sei bem, mas com certeza no sentido do que é, do que deveria ser a psiquiatria. Como vocês sabem, a psiquiatria, atualmente – soube disso pela televisão – faz parte do campo da medicina geral, tendo como base o fato de que a própria medicina geral entra inteiramente no dinamismo farmacêutico. Evidentemente, ali se produzem coisas novas: se obnubila, se tempera, se interfere ou se modifica...Mas não se sabe nada do que se modifica, nem, aliás, onde irão dar essas modificações, nem mesmo o sentido que elas têm, já que se trata de sentido. Então, bom…., [já temos o suficiente] dessas coisas, e penso que o [teste] da coisa, a referência, seja o que lhes disse há pouco: o rapaz que parecia distinguir-se entre todos os seus colegas, [por marcar], por chamar pelo nome o que lhe parecia verdadeiramente irredutível, quero dizer, a angústia. Ela era para ele totalmente 5 coextensiva à sua experiência com o louco. Pelo fato de ele estar em análise, ele se achava igualmente no dever de ir…., de ir ao encontro do louco. Será que vamos dar a esse [efeito/seu afeto] de angústia uma espécie de valor místico? Não, não é nada disso. O fato de estarmos angustiados não é porque a angústia seja o importante. [Não falo] de uma experiência existencial. Será que [estou aqui] para enaltecê-la, para fazer, de algum modo, seu panegírico, tal como um traço característico? Não, [não disse isso, esta noite]. Mas, enfim, deixando de lado o que a angústia tem de angustiante, diria que é inteiramente decisivo, para se conceber o que acontece com o louco, que se leve em consideração o fato de que aquele que se posiciona como psiquiatra na presença do louco, quer ele queira quer não, ele ali está concernido. Irremediavelmente concernido! Se ele não se sente concernido – e isto é algo inteiramente demonstrável, tangível, sem que se precise, para tanto, fazer intervir a experiência psicanalítica -, se ele não estiver concernido, isso se dá através de certos procedimentos que se manifestam – quando olhamos de perto, de modo não contestável, quer sejamos ou não psicanalistas - como procedimentos que o protegem do que lhe concerne, se vocês me permitem dizê-lo. Quer dizer que ele interpõe entre ele próprio e o louco um certo número de barreiras protetoras, ao alcance dos grandes mestres da medicina. Por exemplo, ele interpõe outras pessoas que lhe fornecem relatórios, não é...? Depois, para os que não são grandes mestres da medicina, basta ter uma pequena ideia, um organodinamismo, por exemplo, ou qualquer outra coisa assim, uma ideia que os separa desta.... desta espécie de ser que está diante deles, o louco. Uma ideia que os separa do louco, rotulando-o como uma espécie, entre outras, de coleóptero, da qual se trata de dar conta em seu estado natural. O que é este “estar concernido”? Não é, de modo algum, ou forçosamente um afeto. É claro que isso toma a forma da angústia, conforme disse há pouco. A angústia, como afeto, não é um afeto assim tão simples. A prova disso, é a dificuldade que temos para dar conta dela: “medo sem objeto”, por exemplo. Apenas o fato de se precisar “sem objeto”, bem mostra que nela há outra coisa além da dimensão afetiva. Sentimos a necessidade de mencionar que, ali, esperávamos encontrar um objeto, objeto que não é simplesmente alguma coisa que lhes remói em alguma parte das tripas. É uma certa relação, uma relação com um objeto ausente.... vocês percebem? Bom...Enfim,... deixemos isso de lado. A questão não é essa. Quero simplesmente precisar-lhes que quando falo da relação do psiquiatra no que concerne ao louco, digo que, nela, não se deve levar as coisas no plano do afetivo, do elã, ou de sei lá eu que tipo de coisa que forçaria essa dificuldade de relacionamento... É evidente que não era do lado do elã generoso que eu indicava a solução. Aliás, para retornar ao personagem exemplar do qual falei há pouco, para ele, certamente não era também por esse lado, no sentido de orientar-se,….pela impressão, pela coisa única que ele julgava dever ser retida nessa relação que lhe parecia, devido ao seu destino, ter esse caráter absolutamente privilegiado. Então, o que estou lhes dizendo é que, no que concerne a esse louco, seja ele quem for, vocês não vão lhe dar o seio, assim como 6 Rosen, como Mme Sechehaye. Vocês não lhe darão o seio, em primeiro lugar porque ele não lhes pede. E isto é talvez o que há de mais perturbador: ele não lhes pede o seio. Em suma, se a questão do louco pode ser esclarecida pela psicanálise, pois bem, será evidentemente a partir, em primeiro lugar, de um outro centramento, o que chamamos relação primeira. Talvez vocês entendam do que estou falando. Procurarei fazê-los perceber porque esse centramento…. não é nada dado, assim, através de tudo que se diz, através de tudo que dizemos, através de tudo o que se relaciona e através de tudo o que é referido no que concerne à psicanálise. E, no entanto, esse centramento ali está incluído. E é extremamente difícil aceder a ele depois de muito se ter ouvido falar de psicanálise, pois o curioso é que o fato de se ter tido acesso à corrente da psicanálise deixa tão intocado quanto antes uma espécie de mundo de preconceitos. Retornamos ao discurso comum que se opõe a esse ‘recentramento’. Esse recentramento, [eu o expressei manifestamente de um modo….]. Enfim... Encomendam-nos repensar – como se diz – alguma coisa que, no caso, não é exígua, já que se trata do próprio pensamento! Encomendam-nos repensar o pensamento e....isso não se faz facilmente. É preciso dizer que depois da descoberta de que há pensamento inconsciente muito ter surpreendido o mundo, isso provocou, na verdade, uma espécie de bloqueio geral durante os dez, vinte anos seguintes e mesmo depois. No início de minha residência, ainda havia um homem de talento que se chamava Charles Blondel, que articulou coisas sobre a consciência mórbida, cujo argumento era que o pensamento e a consciência são forçosamente da mesma dimensão e que, consequentemente, era impensável que houvesse pensamentos dentro do inconsciente. Pois é.... Depois disso, se progrediu muito. Como ninguém mais pensou no que é a consciência e, aliás, tampouco no que é o pensamento, as coisas se tornaram naturalmente mais fáceis, sobretudo porque se faz muito barulho por isso! Hein?….Há os existencialistas, os fenomenólogos, há os...os...os filólogos e, atualmente, os estruturalistas. Então, tudo isso, todos esses discursos se superpõem, todos são mantidos de algum modo, para a formação de vocês, não é? Vocês se formam radicalmente em tudo, isto é, seja o que for que se diga a vocês, isso lhes traz, em suma, mais ou menos o mesmo efeito, ou seja, tudo isso é um blá-blá-blá destinado a lhes seduzir. Então, não há mais objeção ao inconsciente O inconsciente é o pensamento, sim, todo mundo sabe disso. E o que se pode fazer, não é? Devo dizer-lhes que a formação [...] esses discursos bem construídos, não acho que é deixando que eles façam uma espécie de circo...., que esses discursos, um depois do outro, que funcionam um correndo atrás do outro..., não acho que isso possa ter, de modo algum, um papel de formação. Um fiozinho de nada, sim, que vocês mesmos encontrariam sozinhos, nessa relação com esta coisa verdadeiramente única, problemática, que lhes é dada, não direi com o título de louco, porque isso…., não é um título. Um louco é, apesar de tudo, alguma coisa….; isso resiste, e ainda não está prestes a desaparecer simplesmentepor 7 causa da difusão do tratamento farmacodinâmico. Se vocês tivessem um fiozinho de nada, fosse qual fosse, isso valeira mais do que qualquer coisa, tanto mais que isso os levaria necessariamente àquilo de que se trata. Para mim, o fiozinho de nada foi este – eu não era um espertalhão –, esta coisa que se articula assim: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Eu poderia ter partido de um outro ponto, mas esse me pareceu sério; ou o inconsciente não quer dizer absolutamente nada, ou, desde que ele nos é apresentado [….],quero dizer [….] como psicanalistas, interrogá-lo a título de ele ser uma linguagem com um certo número de propriedades que só existem na dimensão da linguagem: como tradução por exemplo. Então...isso só é evidente se, a esse respeito, se puder extrair dessa experiência e desse fiozinho de nada atado a ela, um certo número de questões, ou seja, um certo número de respostas, particularmente a esta questão: o que é uma linguagem? Porque, se, numa primeira aproximação, é impossível afastar isto: a linguagem ali está e é inclusive o que domina, essa é a melhor ocasião de se fazer a pergunta...Quando eu comecei com meu fiozinho de nada, não se havia chegado ainda – peço-lhes que acreditem; vocês o esquecem porque, em primeiro lugar, vocês nasceram ontem, ... – nem todo mundo falava de linguística e, sabe Deus como, se falava dela na mais total confusão! Não é a difusão das ideias que esclarece o espírito e que, por isso, o condiciona às luzes. Enfim, por ora, não há ninguém que não encha a boca para falar em termos de “significante”, “significado”, “comunicação”, “mensagem”...., se caminha para todo lado com isso, é a única sola que se tem. Quando se faz fisiologia, considera-se que a tireoide envia uma mensagem à hipófise...., chamamos isso de mensagem...Tudo bem, é uma questão de definição. Trata-se de ver se é uma linguagem. A partir do momento em que se introduz a palavra “mensagem”, fica muito difícil não se imaginar que a hipófise receba a mensagem... e a responda! Fala-se também de mensagem, mais ou menos referindo-se a não sei qual objeto que se descobre no céu. Traduz-se em termos de mensagem o fato de que ele seja simplesmente visto, que envie fotos...em mensagem! Cabe dizer que esse seria um jogo totalmente inocente, caso a linguagem não estivesse aí envolvida, e, em primeiro lugar de um certo modo: é que se torna cada vez mais difícil falar da linguagem, por causa de todo este grande zum zum-zum monopolizando as palavras que poderiam servir para enganchar as coisas nesse domínio já bastante complexo e tão difundido por toda parte, a tal ponto que, na verdade, nem uma gata conseguiria encontrar nele seus filhotes. Enfim..., eu sou um dos responsáveis desta espécie de grande confusão na qual estamos mergulhados no momento, porque comecei a falar de linguagem há dezessete anos. Naquela época, estávamos na flor dá....da moral, com a situação, o engajamento... Vocês conhecem outras dessas baboseiras! De todo modo, há pessoas que se ocupam da linguagem. O que eu acho mais encorajador é que aqueles que se ocupam verdadeiramente da linguagem, a empregam no mesmo sentido cujas dimensões eu desenvolvi, ou seja, no que ela queria dizer em meu discurso. Ali onde se sabe do quê se fala, em primeiro lugar, todo mundo se dá conta de 8 que uma linguagem não é feita de signos. Isto quer dizer que uma linguagem não tem relação direta com as coisas. Um signo, para defini-lo de um modo claro e simples, eu direi como o penso sem que ninguém me conteste: é o que representa alguma coisa para alguém. A linguagem não serve para isso, ela não é feita de signos, ela pode ser estudada. A função do signo sempre foi muito importante, até mesmo perfeitamente importante demais. Além disso, desde o tempo em que surgiu a semiótica médica, não há nenhuma necessidade dela, nunca ninguém se interessou minimamente pela linguagem. O que perturba, é claro, é que a linguagem tem, em geral, uma significação, quer dizer que ela engendra o significado. Justamente por isso é que nos demos conta de que a relação eventual que a linguagem pode ter com as coisas é uma relação terceira, ternária, e há que se distinguir o significante, o significado, e, eventualmente, o referente, que nem sempre é fácil de encontrar, assim como o significado não é fácil de se circunscrever. No entanto, é nisso que se joga o jogo do impreciso das coisas, isto é, o que faz com que, por exemplo, uma linguagem seja ou não adequada. Uma linguagem, mais do que ser signo das coisas - diremos antes algumas coisas para os que nunca ouviram a enunciação muito elaborada que já dei sobre isso -, digamos - para que nos entendamos hoje - que sua função é... fazer o contorno, não das coisas, mas da coisa. De todo modo, isso se torna muito perceptível para nós quando se trata da experiência analítica. A coisa, que um dia chamei de Coisa Freudiana, que está no coração e que não se toca facilmente - e asseguro-lhes que nunca chegaremos a compreendê-la -, essa coisa é circunscrita pela linguagem. E escreverei a coisa como acoisa, para indicar que ela não se distingue por sua presença. Além do mais, a linguagem é alguma coisa inteiramente necessária. Falo, naturalmente, do primeiro roçado, inteiramente necessário…., para que vocês possam compreender meu fiozinho de nada: o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Todo mundo sabe, vive-se dentro disso, só que é bastante curioso, e mesmo muito curioso, especialmente quando se fala da linguagem, sempre se acredita que se está obrigado a ir na direção do que é exatamente o contrário da experiência comum: a linguagem não é feita para a comunicação. A prova disso está o tempo todo ao nosso alcance. Vocês devem se dar conta disso quando, por exemplo, vocês estão com seu parceiro ou parceira e têm que explicar algumas coisas. Em primeiro lugar, não é somente porque as coisas não vão bem, mas porque não há esperança. E quanto mais vocês tentam, menos vocês comunicam...Enfim! [risos]. Já lá vão pelo menos dezessete anos que me esforço recomeçando sempre as mesmas coisas, obtendo, aliás, sempre o mesmo resultado, que de fato é formidável. Por um momento, isso os diverte, é claro, são jogos de palavras, intelectualizo uma cena de casal, é uma intelectualização bastante conhecida. Então, para que serve a linguagem se ela não é feita expressamente para significar as coisas – quero dizer que essa não é de modo algum sua primeira destinação -, e nem tampouco para comunicar? 9 Pois bem, é simples, simples e capital: ela faz o sujeito. Isso já basta enormemente. Caso contrário, como é que vocês justificariam a existência daquilo que chamamos sujeito no mundo? Será que podemos nos compreender? A resposta é inteiramente accessível: nós nos compreendemos tro-can-do o que a linguagem fabrica. Será que não fica claro, quanto à comunicação que se imaginaria ter, que quando vocês dizem uma frase ela representa uma mensagem e que, do outro lado, a frase é a mesma que a pronunciada por vocês?….Para dizer a verdade, não é a frase pronunciada por vocês que é importante, mas sim a que está do outro lado, é claro. É justamente por isso que vocês não sabem o que haviam dito. É capital que vocês o saibam: cada vez que vocês falam com alguém, vocês não sabem o que dizem, e quando falam sozinhos, menos ainda. Contudo, em resultado da linguagem, alguma coisa acontece. Desde que se encontrou esse sagrado intermediário, alguma coisa acontece, às vezes com o outro, na verdade, sempre com o outro e, por isso, ela lhes retorna sempre de modo imprevisto e em sentido inverso. E é bem assim que o que se chama ser humano tem sua primeira experiência; nós nos damos conta de que acontecem coisas quando se fala. Essas coisas podem muito estar circunscritas nelas próprias e, inclusive, é o que eu me esforço para escrever nesses dezesseteanos que tanto mencionei: a teoria. Por exemplo, a linguagem fabrica o desejo! E, afinal, o desejo não é alguma coisa muito...muito comum. Entre os filósofos, sempre se considerou que o desejo seria o objeto a ser afastado para se alcançar o que chamamos de conhecimento; a consciência é perturbada, supostamente, pelo desejo..., o que aliás é verdade. Mas isso se deve ao que acreditávamos ser o conhecimento! Não vou entrar nesses detalhes ou...distinguir o que prevaleceu durante séculos no que concerne à função do conhecimento, das posições muito diferentes que são as que devemos adotar atualmente pelo fato de se haver criado uma ciência que não deve nada às categorias do conhecimento, e que, sobre isso, não se comporta nada mal - talvez nós nos comportemos pior - , mas não é essa a questão. É que a ciência funciona e....uma multidão de dimensões suscitadas, sugeridas por esta [psicologia] do conhecimento estão totalmente caducas e fora de jogo. O que há de interessante nisso é que, ao se considerar o que chamei há pouco de sujeito como sendo absolutamente coextensivo ao registro cada vez mais elaborado da ciência, pode-se chegar a dar uma teoria completamente diferente, completamente distinta e manejável de um modo inteiramente diverso do que se fez até hoje, daquilo que é, propriamente falando, o desejo. Temos, inclusive, eventualmente, a felicidade de perceber que houve, entre alguns raros filósofos do passado, alguma coisa, não sei bem o quê, a qual se poderia chamar um pressentimento. Penso em Spinoza. Seja como for, essa teoria, como se sabe, ou se acredita saber, eu a dei e até mesmo a afinei durante anos. Estou muito longe de pensar que dei sua formulação definitiva, mas, naquilo que dei, há algo que me parece bastante prometedor. Devido aos cuidados que tive, há nela um pequeno começo de formalização, ou seja, alguma coisa pode se exprimir através do que 10 há de mais puro e de mais manejável na função do significante, isto é, um manejo de letrinhas. É de uma certa maneira de manejar essas letrinhas e inseri-las entre elas mesmas em conexões definidas que se fundou a teoria do desejo, teoria que nos dá a esperança de um desenvolvimento ulterior muito mais preciso, desde que nela se aplique esta espécie de capacidade mental referida à combinatória. Evidentemente, isso supõe o simples reconhecimento daquilo que não é dado de maneira comum na formação que vocês recebem como médicos, formação que se pode qualificar de positivista. Isso é o que não lhes é tornado familiar, por falta de uma verdadeira formação matemática que não seja simplesmente um instrumento para uso dos conhecimentos sobre as coisas enquanto coisas, entes. Isso se tornou perfeitamente perceptível através de um certo uso da matemática, mas que não é seu privilégio. É que, por ela mesma, a combinação dos significantes constitui uma ordem, um registro, que vocês podem qualificar como quiserem, podem fazer dela um jogo. Contudo, é um jogo tão sério, que isso é o que constitui o sério do jogo. O que há de engraçado no jogo é que ele é uma das coisas mais submetidas a leis, não há jogo que não consista em um certo rigor…., ou seja, em uma combinatória entre significantes; significantes, posto que não são signos. Mas o significante que defini muito precisamente nesta fórmula e que, afinal de contas, merece que eu a venha repetindo, não fosse pelo fato de que se pode dizer que ninguém a expressou antes de mim: um significante é o que representa um sujeito, para quem? Justamente, não é para quem, é para um outro significante. Isso pode lhes parecer opaco, pouco compreensível, mas, como acabo de adverti-los, pouco me importa, pois não é feito para vocês compreenderem, é feito para que vocês se sirvam disso....e para que vejam que isso funciona sempre, não somente que funciona sempre, mas que começa a [render] a partir daí. Isso quer dizer duas coisas: primeira, o significante só recebe seu status ali; segunda, só recebe seu status de sua relação com outro significante que inaugura a dimensão da bateria significante. Surgem, então, algumas questões: essa bateria é finita ou infinita? Evidentemente, podemos continuar: por um lado, o que infinito quer dizer; por outro, que o significante é anterior ao sujeito; para que apareça essa função, uma vez que ela é definida por um sujeito, ela se distingue do que se pode chamar, por exemplo, psiquismo, conhecimento, representação. Ela é inteiramente diferente de tudo isso, pois ela é uma dimensão do ser...: há sujeito só e unicamente depois de ter havido o significante. Quanto à questão de saber como o significante aparece antes que apareça o que é o sujeito propriamente falando, podemos também respondê-la. Foi precisamente para dar uma resposta formal que introduzi este campo, esta dimensão do Outro como lugar do significante. Sobre esse Outro, com certeza vocês me perguntarão: onde ele está, hein? Será que é o espaço comum? Será que é o ouvido do vizinho? Será que é isso ou aquilo?... Isso é não compreender nada do que consiste um sistema formalista. Esse Outro é precisamente um lugar definido como necessário a essa primariedade da cadeia significante. 11 No início é assim, já que antes há…. o sujeito2; a dimensão que chamamos verdade é introduzida, uma vez que só há dimensão da verdade a partir do momento em que há significante. Não há nem verdade nem mentira na dissimulação, por exemplo, ou na exibição do animal, pela simples razão que elas são exatamente o que são, nem mentirosas nem verdadeiras; elas respondem a este efeito de captação [reduzido]. É nisso que elas não são do registro do significante. O significante é outra coisa. É a partir do momento em que ele engendrou o sujeito e em que ele se inscreve em algum lugar no nível do Outro que a dimensão de alguma coisa que se propõe sempre como verdade – mesmo quando é uma mentira, pois não seria uma mentira se isso não se propusesse como uma verdade – tem essa dimensão do significante. Observem isto: o Outro, em nenhum caso, é a garantia da verdade. Porque o Outro, por ele próprio, nada nos diz que ele é um sujeito. Há pessoas que dizem que ele é um sujeito, chamam-no Deus, com diversos qualificativos: bom Deus, Deus mau….isso é um outro caso, um outro passo a ser ultrapassado. Não temos nenhuma necessidade de ultrapassá-lo para dar a teoria da linguagem. A experiência da análise não é senão a de realizar o que acontece com essa função: a do sujeito. Ocorre que isso se desdobra em um certo efeito mostrando-nos que, naquilo que é primordialmente importante dessa função do significante predomina uma dificuldade, uma falha, um furo, uma falta relativa a essa operação significante, muito precisamente ligada à confissão, à articulação do sujeito enquanto afetado por um sexo. É porque o significante manifesta faltas eletivas no momento em que aquilo que diz Eu se diz macho ou fêmea, que acontece de ele não poder dizer isso sem acarretar o surgimento, no nível do desejo, de alguma coisa bastante estranha, alguma coisa que representa, nem mais nem menos, a escamoteação simbólica – entenda-se, não mais a encontramos em seu lugar – a escamoteação de uma coisa inteiramente singular que é, em termos precisos, o órgão da copulação: o que, no Real, é melhor destinado a provar que um é macho e outro é fêmea, hein? É isso! Esse é o grande achado da psicanálise. Um achado que só pode ser feito, estritamente, por ter sido feito de um modo que lhe dá um sentido. É o caso de se dizer que lhe dá um sentido admissível, em nível diferente daquilo que Spinoza - já que falei dele há pouco, cabe voltar a falar dele agora – chamava historialae, pequenas histórias: porque mamãe ou papai não deram o bastante, acredita-se nisso...enfim, em um montão de coisas que não se sustentam. O que se chama castração é isso: para que alguma coisa venha se articular em função do significante– do significante enquanto primordial ao sujeito -, alguma coisa que porta o sujeito no plano sexual, é preciso que ali intervenha o seguinte: enquanto [...] do significante, que seja como faltante que se represente precisamente o órgão da copulação. 2 N.Transc.: trata-se certamente de um lapsus. A lógica designa que, nessa frase (e nesse lugar), venha o termo ‘significante’: “Há o significante antes do sujeito”. 12 Isso merece que se preste um pouquinho de atenção, pois o fato de a experiência ser levada de um modo correto, ou seja, que se tenha prosseguido a experiência analítica, dá conta de que: seja o que for que digamos, apenas e simplesmente uma experiência conduzida com a ajuda e no interior da mediação significante, na qual tudo que se pode acrescentar a isso do que chamamos efeitos psíquicos, ou seja, reação, defesa, resistência – ou, se vocês quiserem -, afeto, transferência, tudo isso só ganha seu sentido se chegarmos a apontar aí, [a desembaraçar], a localizá-lo no registro de uma formalização que tem como ponto de partida e como base a primordialidade da cadeia significante em relação ao sujeito. É evidente que não será nesta noite que lhes farei a demonstração disso. Mas, se algum dia o que eu disser tiver um alcance qualquer, é certo e claro, em todo caso, que não digo outra coisa, não faço outra coisa senão prosseguir nessa construção há exatamente dezessete anos, tal como lhes falei há pouco. O que resta no final da experiência analítica não é outra coisa senão [….], pelo fato de essa experiência, que lhes permite saber como é se pôr no lugar do sujeito, nessa dependência muito especial em relação ao significante, que faz com que tal ou tal enunciado seja deduzido, por exemplo, da validade desta fórmula enunciada por mim como: o desejo só se concebe, só toma seu justo lugar, só se anima se vocês efetivamente tiverem percebido que ele se formou neste lugar que chamei, há pouco, o lugar do Outro; que, por sua natureza e por sua função, ele é desejo do Outro. Essa é, precisamente, a razão pela qual, em nenhuma circunstância, vocês não podem reconhecê-lo sozinhos. Isso é o que justifica que a análise só possa ser prosseguida com a ajuda do analista, o que não quer dizer que o analista seja o Outro. Ele é algo muito diferente que não posso explicar- lhes esta noite. Enfim, para aqueles que teriam uma vaga ideia disso, mesmo uma pequena ideia, devo dizer que a proposta [de se deterem] paradoxal que avanço diante de vocês esta noite, será , ainda assim, suficientemente estimulante para aqueles que tenham vontade de saber um pouco mais sobre isso. Posso dizer-lhes que esse é o tema de meu seminário este ano. Nele, procurarei precisá-lo de um modo como ainda não pude fazê-lo, porque há muitas coisas que ainda não pude fazer, porque não se pode imaginar a que ponto eu sou didático em meu ensino. Com isso, quero dizer que parto da ideia de que...bem: é bastante certo que não compreendam nada do que digo. Minha única chance é repeti-lo o tempo suficiente para que isso acabe mobiliando alguma parte dos cérebros. Não há porque se surpreender, é claro, que durante um certo tempo não se tenha nada melhor a fazer do que me repetir, vagamente. Aliás, para alguns, isso tem um outro uso que pode ser sempre desenvolvido, justamente porque o que formulo é muito incompreensível, e que em torno do que ensino há um certo esnobismo. Então, quando se é distinguido desse modo, ensina-se Lacan no Instituto de Psicanálise de Paris, por exemplo, isso é distinto. Mas isso não quer dizer que se compreenda o que digo. Aliás, como acabo de lhes dizer, o que digo não é feito para compreender. É feito para nos servirmos dele e, com o tempo, acabará acontecendo o que sempre acontece quando as fórmulas funcionam; acabamos 13 sempre nos servindo muito estupidamente. Então, nos damos conta que isso esclarece algumas perspectivas. Não há nenhuma necessidade de se sentir, anteriormente, o choque intuitivo da verdade. No entanto, isso não quer dizer que a verdade não esteja referida à coisa... A verdade está referida justamente no fato de que aparece em toda essa questão alguma coisa de inesperado, sobre a qual eu lhes falei há pouco, ou seja, a intrusão verdadeiramente incrível, obscena, deslocada, totalmente fora do lugar, da sexualidade, ali onde menos se a esperava. Afinal de contas, é preciso dizê-lo, não é porque agora temos o conhecimento de que ela ali está que sabemos mais sobre ela! Pois tampouco basta chamar isso sexualidade. Há pouco, tentei dar-lhes uma fórmula mais precisa, dizendo-lhes que a sexualidade concerne à confissão do sujeito afetado por um sexo. Não é vagamente a sexualidade, não é tudo o que se pode saber sobre a sexualidade. A prova disso é que, atualmente, tudo o que se pode saber sobre a sexualidade – e passos foram dados sobre esse assunto depois de Freud, experiências foram feitas - , atualmente se sabe um pouquinho mais sobre o que é...., por exemplo, o cromossoma sexual. E para quê isso nos serve em psicanálise? Pois bem, para absolutamente nada. Não se trata de sexualidade em seu conjunto, em sua essência, como se, aliás, isso existisse em algum lugar... A sexualidade não tem nenhum sentido. Há fatos biológicos que se reportam a coisas que geralmente são qualificadas de sexuais; depois, quando se olha de perto, vê-se que há uma quantidade de estágios e que esses estágios não se recobrem. E, se tomarmos as coisas no nível hormonal, por exemplo, ou no dos caracteres ditos sexuais secundários, vê-se muito bem que a repartição, o jogo das coisas, não é o mesmo que se o tomamos no nível das funções celulares. Então, não falemos da sexualidade como se ela fosse uma coisa vaga e grande...Não, há alguma coisa que se produz para o sujeito nesse nível....Dado que isso chega ali onde não o esperamos, e que, em todo caso, há uma coisa bem certa que é o fato de que isso resiste, e resiste tanto que, seja o que for que se pense, longe de estarmos verdadeiramente habituados ao que Freud descobriu, isto é, que a sexualidade ali está concernida, nós sempre nos encontramos nisso da maneira mais enérgica. E isso, por uma simples razão: é que é no nível dessa declaração de sexo, ali exatamente onde eu a introduzo, que se colocam as coisas. De fato, há nisso algo que parece tão opaco e, para dizer tudo, incompreensível, que nos refugiamos em todas as outras espécies de ideias sobre a sexualidade: fazemos entrar em jogo a sexualidade como emoção, como instinto, como afeto, como atração. Todos os tipos de coisas que nada têm a fazer na questão. Vale antes procurar compreender o de que se trata no nível do que chamaria o ato sexual, sendo o ato alguma coisa concebida como tendo essencialmente nele próprio essa dimensão significante. Não se trata simplesmente de saber o que se faz e como se opera; trata-se de perceber que o que traz dificuldades é que se entra no ato sexual para que tal ou tal, se prove macho ou fêmea, por exemplo. É a partir do ato que começam as dificuldades. É do ato enquanto significante que, como significante, falha. Disso decorre minha observação: definitivamente, não 14 importa o que vocês façam, senhoras e senhores, vocês nunca terão certeza absoluta de serem machos ou fêmeas. Essa é a coisa... Enfim,….acho que esta noite eu me deixei levar um pouquinho….O que gostaria de lhes dizer é que o fim, a ponta, o ápice da experiência psicanalítica se caracteriza no fato de que ela é precária. Quero dizer que não basta ter tido por um momento essa experiência que é a do sujeito como sendo determinado por todos os significantes que lhe preexistiram. É claro que é na medida que esses significantes lhe são mais próximos, por serem os que constituíram aquilo de onde ele surgiu um dia, ainda que por acaso, ou seja, o desejo de seus pais. Ainda que tenha sido por acaso, foi ali que ele caiu, isto é, tudo o que lhe acontece– pelo menos no início – vai depender desse lugar que se chama, no que concerne a seus pais, o desejo, que já se manifesta em sua existência – e podemos tomar a palavra existência em todos os sentidos que vocês quiserem lhe dar, inclusive existencialista -, [existência] do Outro, desse Outro que ali está encarnado também pela relação de seus pais com esse Outro como lugar do significante. É ali que o sujeito vem cair e não é possível que isso não tenha uma função determinante sobre tudo o que vier a lhe acontecer. Gostaria de voltar aos psiquiatras e lhes transmitir minha álgebra.... Lamentarei muito se ela não lhes parecer imediatamente surpreendente...enfim. Essa é uma fórmula de polidez. Não tenho tempo de escrevê-la de outro modo, mas, em contrapartida, acho que poderá lhes dar uma pequena ideia das maneiras simples com as quais se pode expressar certas coisas para que elas não sejam, em seguida, confundidas com outras. [Lacan vai ao quadro]. Há pouco, eu lhes falei do órgão, órgão copulatótrio uma vez que ele falta; eu lhes indiquei o que isso queria dizer, a ordem de verdade que permite descobrir que se tomou o bom começo… Há outras coisas que vêm neste lugar onde o órgão falta, há inclusive outras coisas que se colocam, expressamente feitas para que não percebamos que ele falta. Foi o que chamei, em minha álgebra, objeto a. Todos os que têm uma leve nuança do que é a psicanálise devem saber a relação de ‘homotopia’, ou seja, no-mesmo- lugar, que pode existir entre a castração e a função eventualmente desempenhada por um certo número de objetos. A tal ponto que se fala de castração anal, oral e tudo o que a isso se segue. Não darei, aqui, um curso sobre isso. Seja como for, esse objeto a é a fórmula geral daquilo que se manifesta de modo absolutamente decisivo e causal na determinação daquilo que a descoberta do inconsciente nos permitiu perceber: a divisão do sujeito. Esse sujeito não é simplesmente como na teoria matemática, por exemplo, na qual uma sequência de cadeias significantes apenas transmite de uma ponta a outra um único um só e unívoco sujeito, aliás impossível de se localizar em algum dos significantes dos quais se trata. Ora, certamente se produz alguma coisa diferente da função, do efeito de linguagem em toda sua generalidade, que está estreitamente ligada ao que é seu primeiro efeito, ou seja, a uma certa participação do corpo enquanto real. Estritamente ligada ao fato de que o sujeito atua precisamente neste duplo registro. Isso que faz com que, se podemos depurar o sujeito da ciência, o sujeito de uma cadeia 15 matemática como alguma coisa simples e unívoca, nós não podemos fazê-lo no caso do ser falante, que é um ser vivo, pela simples razão que alguma coisa permanece encadeada precisamente a essa origem, ou seja, a essa dependência primeira da cadeia significante, que não é manejável ao seu bel-prazer, que permanece fixada em certos pontos. E que mesmo alguns dados da experiência, dentre os mais evidentes como, por exemplo, o de que sua mãe não tem pênis, não é uma coisa que funcione para uma parte do sujeito, para a parte dividida, pela simples razão que, para essa parte dividida, é preciso, não que ela não o tenha, mas que ela tenha sido privada dele. Eis o que S/ (barrado) designa: o sujeito enquanto dividido em uma certa relação com o objeto a. Esse objeto a tem por propriedade ser aquilo que faz o desejo, já que o desejo é o que é suportado pela fórmula da fantasia. Esse desejo depende do desejo do Outro, ou seja, o que é formalizável no nível do Outro como efeito do desejo. Estando diante de vocês, esta noite, faço aqui uma reserva, na medida que os suponho – no que concerne ao que lhes digo, e que repito, de tempos em tempos -, embrutecidos pelo cansaço. Então, inscreverei aqui o que não inscrevi em nenhum outro lugar, mas o faço a fim de impedir que isso escape: demanda de a. Tenho minhas razões para pô-lo assim, isso é muito simples. Mas, para esta noite, isso pode bastar. O que faz a ligação do desejo, uma vez que ele é função do sujeito, do próprio sujeito designado como efeito de significante, é que o a é sempre demandado ao Outro. Essa é a verdadeira natureza da ligação que existe [para] este ser que chamamos normalizado. Então, para lhes explicar as coisas de modo simples, há homens livres. E o que tenho dito desde sempre, pois eu o escrevi para o Congresso de Bonneval muito antes dos dezessete anos que mencionei – vocês não imaginam o quanto estou velho -, é que os homens livres, os verdadeiros, são precisamente os loucos. Para eles, não há demanda de a, pois o louco tem o seu a. É o que ele chama de suas vozes, por exemplo. E o motivo de vocês se angustiarem diante dele, com toda razão, é porque o louco é um homem livre. Ele não está ligado ao lugar do Outro pelo objeto a, ele tem o a à sua disposição. O louco é verdadeiramente o ser livre. Nesse sentido, o louco é, de certo modo, um ser de irrealidade, um absurdo, absurdo aliás magnífico assim como tudo o que é absurdo. Os filósofos chamaram o bom Deus causa sui, causa de si. Digamos que o louco tem sua causa em seu bolso, por isso ele é um louco. Por isso é que, diante dele, vocês têm um sentimento bastante particular que deveria constituir para nós um progresso, progresso capital, que poderia resultar do fato de alguém dentre os psicanalisados ocupar-se verdadeiramente do louco, um dia. É verdade que, de tempos em tempos, isso resulta em alguma coisa que se parece com a psicanálise, com os primeiros sucessos. Não vai muito além disso. E por que não vai muito longe? Eu lhes digo porque: é que a experiência da psicanálise é uma experiência precária. E por que ela é precária? Porque há o psiquiatra. Quando vocês saem de uma análise dita didática, vocês retomam a posição psiquiátrica. A posição psiquiátrica é perfeitamente definível do ponto de vista histórico. Há um senhor que se chama Michel Foucault que escreveu a História da loucura. Ele explica, ele enfatiza... [neste exato momento, a rolha de uma garrafa de água mineral 16 espoca sozinha], ele demonstra de modo magnífico [risos] – vocês estão vendo, isto é um signo. É bonito, não? É o que se chama calor comunicativo- Foucault demonstra a mutação essencial resultante do momento em que esses loucos - com os quais se agira até então, Deus meu, conforme se vê em todo tipo de registros, principalmente nos registros do Sacré - foram tratados da maneira que chamamos humanitária, ou seja, internados. Essa operação não é de modo algum sem interesse, do ponto de vista da história da mente...., pois foi precisamente ela que nos permitiu pôr em questão a existência de alguma coisa que se poderia chamar de sintomas. Só se começou a ter uma idéia de sintoma a partir do momento em que o louco foi isolado Naturalmente, esse livro fundamental de Michel Foucault teve um sucesso que se pode dizer verdadeiramente notável. E não houve sequer um psiquiatra que se tenha ocupado dele! Peço a vocês que me apresentem uma única resenha desse livro de Michel Foucault que tenha sido publicada em uma revista psiquiátrica. É absolutamente chocante! Porque aborda alguma coisa absolutamente capital para a compreensão da posição do psiquiatra! Ele reinsere as coisas em um contexto que permite ver, de fato, o de que se trata: o que quer dizer Esquirol e Pinel? Aqui, neste momento, não se trata de fazer política..., de modo algum. Trata-se de se dar conta de uma certa função nascida com essa prática constituída em isolar o louco. O fato de tendermos, hoje, a isolá-los cada vez menos, significa que introduzimos aí outras barreiras, outras muralhas...das quais esta, em particular: nós os consideramos muito mais – e esta é a tendência psiquiátrica – como objetos de estudo do que como um ponto de interrogação no nível do que acontece com um certo tipo de relação do sujeito, daquilo que situa o sujeito emrelação a esta alguma coisa que qualificamos de objeto estranho, parasita, ou seja, a voz, essencialmente. Como voz, ela só tem sentido por ser suporte do significante. A partir disso, o que acontece com a posição do psiquiatra nos permitirá vislumbrar, se assim posso dizê-lo, que ela não é uma posição simplesmente. Além do fato de [observá-lo], ou seja, de tomar uma certa posição de princípio que é também radicalmente contrária, se isso é possível, ao que nela pode ser experimentado, uma vez que o psiquiatra saberia a que ponto chegou a consideração do sujeito, o que faz barreira é o fato de o psiquiatra estar integrado a uma certa relação hierárquica; quer ele o queira quer não, ele está em posição de autoridade, de dignidade, de defesa de uma certa posição que, em primeiro lugar e antes de tudo, é a sua. Trata-se precisamente de ele responder a essa existência do louco mediante outra coisa que não a angústia. Não avançarei mais sobre esse assunto nesta noite, pois se poderia pensar que pretendo, de algum modo, por em questão a posição do psiquiatra. Ela não pode ser diferente do que é. Eu questionaria, antes, o fato de minha dignidade, se assim posso dizê-lo, [não ter acusado] um certo escalão de voz nestas espécies de reuniões das quais se almejaria que fossem de sociedades científicas, que são as que provam que os psicanalistas conservam, em sua hierarquia, alguma coisa que é da mesma ordem que essa distância, esse escalonamento em relação ao objeto, e que constitui justamente a impossibilidade na qual está o 17 psiquiatra, no concerne à abordagem da realidade do louco a partir de um novo ponto de vista. O que quero enfatizar esta noite, é alguma coisa, uma consideração – como os estou vendo aqui, e conheço muito bem as expressões de vocês, dos que já ouviram falar sobre algumas coisas e de outros que ainda não - da qual vocês não tiveram qualquer informação até o momento, e que é a seguinte: essa história do sujeito, vocês me diriam, não é para entificá-lo, isso podia acontecer no tempo de Freud, mas já é passado. Penso, contudo, que vocês se dão conta de uma certa transformação considerável pela qual nosso mundo está passando, e que faz com que o sujeito, em nosso tempo, seja alguma coisa que a existência da ciência define como sujeito. Nossa ciência só se constituiu de uma ruptura que se pode datar, e sua época não é outra senão o século de ouro, o século XVII. A ciência nasceu precisamente no dia em que o homem rompeu as amarras com tudo o que se pode chamar de intuição, conhecimento intuitivo, e se remeteu ao puro e simples sujeito introduzido, inaugurado inicialmente sob a forma perfeitamente vazia enunciada no cogito: penso, logo sou. Hoje, está inteiramente claro aos nossos olhos que essa fórmula, embora decisiva, não se sustenta, pois ela permitiu o seguinte: não se teve mais necessidade de recorrer à intuição corporal para se começar a enunciar as leis da dinâmica. A partir daquele momento nasceu a ciência, correlativa a um primeiro isolamento do sujeito puro, se assim posso dizer. Esse sujeito puro, é claro, não existe em nenhum lugar, a não ser como sujeito do saber científico. É um sujeito do qual uma parte é velada, justamente a que se exprime na estrutura da fantasia, ou seja, que comporta uma outra metade do sujeito e sua relação com o objeto a. O fato de que tudo o que até aqui se interessou, sem o saber, nessa estrutura real, isto é, a maneira como ela foi tratada até agora, a maneira como isso se inscreve nas relações sociais, a maneira como, de algum modo, toda a construção social se fundou sobre essas realidades subjetivas, mas sem saber nomeá-las, é claro que a expansão, a dominância desse sujeito puro da ciência é o que leva a esses efeitos dos quais vocês são todos atores e participantes, ou seja: esses profundos remanejamentos das hierarquias sociais que constituem a característica de nosso tempo. Pois bem, o que vocês devem saber, porque irão vê-lo cada vez mais – até o momento, foi tão naturalmente que vocês não o viram, embora isso salte aos olhos – é que há um preço a pagar pela universalização do sujeito, uma vez que ele é o sujeito falante, o homem. O fato de que se apaguem as fronteiras, as hierarquias, os graus, as funções régias e outras, ainda que permaneçam sob formas atenuadas, quanto mais isso caminha, mais isso recebe um outro sentido, e mais isso se torna submetido às transformações da ciência, mais é o que domina toda nossa vida cotidiana, até a incidência de nossos objetos a. Não posso me deter aqui, mas se há um dos frutos mais tangíveis que, atualmente, vocês podem tocar todos os dias, no que concerne aos progressos da ciência, é que os objetos a cavalgam por toda parte, isolados, sozinhos e sempre prontos a pegá-los na primeira esquina. Não faço aqui alusão a outra coisa senão à existência do que chamamos 18 as mass-media, estes olhares errantes e estas vozes insensatas pelas quais vocês estão muito naturalmente destinados a serem cada vez mais rodeados, não sendo suportados senão [o que é do interesse] pelo sujeito da ciência que os derrama em seus olhos e em seus ouvidos. Só que isso tem um preço – vocês ainda não se deram conta dele, embora alguns o tenham atravessado; afinal, alguns de vocês não tinham apenas um ou dois anos de idade naquela época, e muitas coisas aconteceram -, é que, provavelmente devido a essa estrutura profunda, os progressos da civilização universal se traduzirão, não somente em um certo mal-estar como já o Sr. Freud o percebera, mas em uma certa prática que vocês verão se tornar cada vez mais extensa, que não mostrará seu rosto imediatamente, mas que tem um nome e, quer o transformemos ou não, sempre quererá dizer a mesma coisa: a segregação. Vocês poderiam ter um reconhecimento considerável para com os senhores nazistas, eles foram os precursores, no que concerne a concentrar as pessoas. Logo depois, tiveram imitadores, um pouco a leste – esse é o preço dessa universalização, uma vez que ela resulta do progresso do sujeito da ciência. É precisamente enquanto psiquiatras que vocês poderiam ter algo a dizer sobre os efeitos da segregação, sobre o sentido verdadeiro que isso tem. Saber como as coisas se produzem permite certamente lhes dar uma forma diferente, uma guinada menos brutal e, se quiserem, mais consciente do que quando não se sabe a quê se cede… O que vocês representam na história, se assim posso dizê-lo, e como as coisas andam depressa, o que se verá logo, talvez dentro de trinta ou cinquenta anos é que já havia outrora alguma coisa que se chamava o corpo dos psiquiatras, e que se achava em uma posição análoga ao que seria preciso inventar para compreender o de que se tratará nas agitações que se produzirão e em níveis planetários, acreditem, no nível das iniciativas, constituindo uma nova repartição [interhumana] que se chamará: efeito de segregação. Neste momento, o historiador dirá, Deus meu, os caros psiquiatras nos dão um pequeno modelo do que poderia ter sido cogitado e que teria nos servido, mas, na verdade, eles não o fizeram porque, naquele momento, eles dormiam. E por que? Deus meu, porque eles nunca viram claramente do que se tratava em sua relação com a loucura, a partir de um certo período. Eles não viram sabe Deus porquê, se dirá. Eles não viram justamente porque tinham os meios de vê-lo. Simplesmente porque a psicanálise estava ali e porque a psicanálise é muito difícil. E é muito difícil por que? Porque, no fim das contas, fizeram da psicanálise alguma coisa que podemos chamar de um meio de acessão social. Acessão social a quê? A alguma coisa que não é muito complicada. Falei muito com meus colegas americanos sobre questões de técnica, por exemplo, e o que lhes parecia decisivo para a manutenção de certos hábitos, de certos costumes, de uma certa rotina, diziam eles, era a tranquilidade deles. Nada lhes parecia mais decisivo para motivara maneira de interromper ou terminar a sessão, por exemplo, do que o fato de que poderiam estar absolutamente seguros de que às dezesseis horas e cinquenta minutos eles iriam tranquilamente beber seus whiskies. Eu lhes dou minha palavra! Não estou exagerando. Para dizer tudo, há muitas outras coisas 19 bastante repousantes em psicanálise, tal como ela está atualmente organizada, não fosse por essa espécie de progressão, de acesso seguro a posições que se considera tanto mais eminentes quanto mais se seja suposto deter um saber que os outros, os pequenos, os novatos, enfim aqueles aos quais ainda não se teria dado a baraka, ou seja, a bênção não têm. Por outro lado, em muitos casos, se pode observar claramente alguém que sai de sua análise capaz de ver as coisas que o psicanalista veterano – que pelo tempo, teve tempo de se esquecer inteiramente sua experiência que chamei de precária – deixa passar tranquilamente. Então, com certeza eu poderia pensar que, depois de tudo, não falei para obter grandes resultados. Embora eu tenha falado por um tempo tão longo, está claro que toda uma ordem de costumes, no que concerne à transmissão da experiência psicanalítica, se verifica não apenas não ter sido nada tocada, mas conserva todo seu prestígio, todo seu poder de atração sobre os jovens gênios excitados pelo almejo de a ela dedicarem sua existência. Sim, na verdade, eu poderia pensar que falei por longo tempo e por pouca coisa, se, afinal, permanece o obstáculo que me permitiria – isso seria fácil – mostrar a mesma ausência de progresso nas verdades analíticas, que naquelas que designei há pouco relativas à experiência psiquiátrica. É evidente que não basta se servir de meu vocabulário para rotular... coisas que foram ditas antes de mim de uma outra maneira, para que isso tenha um efeito mínimo sobre o que efetivamente acontece na prática psicanalítica. Sim, não basta nem mesmo, eu diria, repetir simplesmente o vocabulário – ninguém mais se dá conta de que o desejo,... a demanda... As pessoas se esqueceram completamente que ninguém havia falado do desejo e da demanda antes de eu ensinar a distingui-los, mas isso não tem nenhuma importância porque se pode falar do desejo e da demanda e isso não ter nenhuma espécie de efeito na prática analítica, sequer o menor início de iluminação no pensamento do psicanalista que os emprega. Pode-se também transcrever de modo mais inteligente, se assim posso expressar-me – eu queria, hoje, lhes dar uma teoria inteligente, mas, como vocês vêem, o tempo me ultrapassa –, pode-se falar de maneira mais inteligente sobre o que estou expondo e até transcrevê-lo de um modo muito mais interessante. Porém, há nisso uma coisinha que só descobri muito recentemente e que lhes comunico porque estou de bom humor [isso não faz parte de meu plano]. Observei isso depois de... – devo dizer que, desde o início, me pautei pelo princípio de que não há propriedade intelectual, eu sempre disse isso, desde os primeiros minutos de meu ensino – enfim... Por que uma outra pessoa não poderia retomar o que exponho? E até mesmo, se ela assim o quiser, como se fosse dela. Não vejo nisso nenhum obstáculo. Nessa ordem das coisas, por que se diria que isso pertence ao Sr. Fulano? Só que, [em função de um objetivo] secundário, retomei minhas posições. Há então aqueles que fazem isso, bom..., há muitos atualmente que o fazem. Inclusive, alguns de meus alunos pensam… “Sim, agora vamos fazer outra coisa: a doutrina de Lacan! Sabemos que é verdadeira, está estabelecida, adquirida, todo mundo concorda e, afinal, é a doutrina que está circulando!”... É assim. 20 Porém, há uma coisa muito chocante. É que aqueles que fazem muito bem o trabalho da transmissão, sem me citarem, regularmente perdem a ocasião, com frequência visível, aflorando em seus textos, de fazerem apenas um pequeno achado: eles poderiam ir mais longe. Pequeno ou até mesmo grande. Pelo fato, é claro, de eu nunca ter tempo de dizer tudo, de tudo transformar em moeda corrente: enquanto eu viver, não creiam poder tomar qualquer das minhas fórmulas como definitiva… ainda tenho alguns outros pequenos truques dentro de minha sacola de malícias! Algumas vezes, nada é mais visível que o fato de que eles estão muito próximos de encontrarem esse achado, antes de mim... E me daria muito prazer alguém encontrar um achado em minha sacola de malícias antes de mim [risos]! Mas, nada acontece! Pois bem, então por que não me citam? Porque, assim, todo mundo acredita que é deles. E eles estão tão fascinados por isso, por quererem que tenham sido eles que disseram isso – efetivamente todo mundo sabe que fui eu, mas pouco importa -, que ficam impedidos de dar o pequeno passo seguinte. Já é tarde, e não posso... Gostaria de trazer alguns exemplos, embora não queira ser malvado...[risos]. E por que, por que eles fariam o pequeno achado se me citassem, hein? Não é pelo fato de me citarem, mas porque, pelo fato de me citarem, eles me presentificariam – acontece a mesma coisa em relação aos nomes próprios em uma análise. Vocês sabem que é extremamente útil dizê-los. Eles evocariam o contexto, o contexto de tumulto no qual desenvolvo tudo isso. O simples fato de enunciá-lo nesse contexto de tumulto, me remeteria ao meu lugar, lhes permitiria fazer justo o pequeno achado seguinte e dizer; “Taí,… isso está grosseiramente incompleto. É possível se dizer alguma coisa muito mais inteligente!”. Só que,… só que há um obstáculo que faz com que... – isso tem uma certa relação com... Eu lhes explicarei em um outro momento.. -, isso se chama alienação, não é? [risos]. Há coisas como essa...nas quais não se tem escolha. Na última vez que lhes fiz um pequeno discurso, eu lhes falei de uma coisa engraçada sobre a psicanálise que passou... – porque, no fundo, tudo o que eu digo, passa! Posso dizer, tudo o que eu quiser, não é? Isso não lhes faz diferença... - , eu lhes falei da besteira e da canalhice, entre outras... Pois bem, a psicanálise - não posso desenvolver isso esta noite – é um domínio absolutamente extraordinário e específico. Isso é o que poderia, de fato, fazer pensar que ela é verdadeiramente de natureza científica. Nunca ousei dizê-lo: na psicanálise, não há nela nenhum lugar para a canalhice; nela, a canalhice não pode se manifestar. É, como vocês sabem, a bolsa ou a vida… não se tem escolha. Naturalmente escolhe-se a vida...e ficamos com a bolsa desbeiçada. Pois bem, ali onde não se pode escolher, isso é o que eu chamo alienação – observem que chegamos a uma definição completamente diferente da usual -, ali onde não podemos escolher uma alternativa forçosamente escolhemos a besteira, um pouquinho desbeiçada pela canalhice. É isso. 21 Até logo. Tradução: Vera Avellar Ribeiro – 28/09/2005 22
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