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BETELLA, Gabriela Kvacek - A leitura do Decameron por Píer Paolo Pasolini

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ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X 
Páginas 356-367 
 
 
A leitura do Decameron por Píer Paolo Pasolini 
 
BETELLA, Gabriela Kvacek (UNIFAI) 
 
RESUMO: Il Decameron (O Decamerão, 1971) de Pasolini integra a chamada “trilogia da 
vida” com I racconti di Canterbury (Os contos de Canterbury, de 1972) e Il fiore delle mille e 
una notte (As Mil e Uma Noites, de 1974). Além de manter a coerência com as ideias expostas 
no famoso ensaio “O cinema de poesia”, o cineasta utiliza a mediação poética da cultura 
popular, salvaguardando a vitalidade desta. Ao transpor estratégias do texto para o discurso 
fílmico, o resultado permite enxergar nos procedimentos da visualização do mundo objetivo o 
código de uma vivência interior, subjetiva. Este trabalho investiga a estrutura da adaptação da 
obra fundamental de Giovanni Boccaccio e da vertigem criativa dos episódios que entrelaçam 
situações, pontos de vista e tipos. Além de dialogar com outros setores artísticos, a 
organicidade do filme se baseia na seleção de dez episódios capazes de compor uma profusão 
atualizada, um diagnóstico do presente. Tal perspectiva fundamenta duas partes cheias de 
sentido: na primeira, o afunilamento de percurso das personagens e sua condição humana 
apoiada no grotesco convivem com o sucesso dos golpes dos espertos sobre os mais fracos de 
raciocínio; na segunda metade do filme, a poesia da criação parece traduzir-se em amplitude 
de horizontes, ao mesmo tempo em que o fingimento e a esperteza aparecem como situações a 
serem examinadas como atos humanos prenhes de intenções. 
PALAVRAS-CHAVE: Pasolini; Decameron; intertextualidades. 
 
ABSTRACT: Il Decameron (The Decameron, 1971) by Pasolini is part of the so-called 
“trilogy of life” with I racconti di Canterbury (The Canterbury Tales from 1972) and Il fiore 
delle mille e una notte (Arabian Nights from 1974). Besides keeping the coherence with the 
ideas expounded in his famous essay “A cinema of poetry”, the filmmaker uses the poetic 
mediation of the popular culture, safeguarding the latter’s vitality. By transposing text 
strategies to the filmic discourse, the result enables us to see in the procedures of the 
visualization of the objective world the code of an inner grasp of life, i.e. a subjective one. 
The present paper examines the structure of the adaptation of Giovanni Boccaccio’s 
fundamental work and of the creative giddiness of the episodes that intertwine situations, 
points of view and kinds. Besides dialoging with other artistic sectors, the organicity of the 
film is based on the selection of ten episodes which are capable of composing an up-to-date 
profusion, a diagnosis of the present. Such a perspective supports two parts full of meaning: in 
the first, the tapering of the characters’ journey and their human condition, dependent on the 
grotesque, live together with the success of the deceits perpetrated by the mischievous against 
the naïves; in the second half of the film, the poetry of creation seems to translate itself into 
the widening of horizons, at the same time that deception and cunning appear as situations to 
be perused as human acts full of intentions. 
 
KEY WORDS: Pasolini, The Decameron, intertextualities. 
 
1. PALAVRA ESCRITA 
 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X 
Páginas 356-367 
 
 
Il Decameron de Pasolini é da temporada 1970-71 e constitui a primeira parte de uma trilogia 
(dita “trilogia da vida”), cujos outros filmes são I racconti di Canterbury, de 1971-72 e Il 
fiore delle mille e una Notte, de 1973-74. Em 1975, Pasolini dirigiu Salò o le 120 giornate di 
Sodoma (Saló). Em 2 de novembro desse ano, morreu brutalmente assassinado, deixando pelo 
menos duas filmagens em planos: San Paolo e Porno-Teo-Kolossal. Com seu último filme 
renegou a trilogia, conforme o que escreveria no famoso texto “Abiura della ‘Trilogia della 
vita’” (“Abjuração da ‘Trilogia da vida’”), publicado no volume que reúne os roteiros dos três 
filmes e em 9 de novembro de 1975 no Corriere della Sera, para sair novamente em Lettere 
luterane (1976) e em outras coletâneas. Após celebrar a liberdade e a alegria nos filmes da 
trilogia, Pasolini sentiu “a instrumentalização por parte do poder e da sua cultura” de 
dominação sobre a necessidade e a sinceridade do seu feito artístico, que deveria ser forma de 
representação, assim como símbolo de direito à expressão e de liberação sexual (PASOLINI, 
1990, pp. 199-200). Se a luta pela democratização e pela liberalização sexual foi superada por 
“decisão do poder consumista” em “conceder uma vasta (tanto quanto falsa) tolerância”, tanto 
a “’realidade’ dos corpos inocentes foi violada, manipulada, lesada” por esse poder 
consumista, como também as “vidas sexuais privadas” (como a de Pasolini) traumatizaram-se 
com a “falsa tolerância” e a “degradação corporal”, perfazendo o triste caminho do que “nas 
fantasias sexuais era dor e alegria”, transformado “em desilusão suicida, em informe letargia.” 
(PASOLINI, 1990, p. 200) Não trataremos aqui das conclusões elaboradas pelo cineasta em 
sua renúncia de parte da própria obra, nem da manipulação, da degeneração dos valores 
relativos à tolerância social visualizadas por ele naquele 1975. Também não pretendemos 
discutir neste momento as relações entre a trilogia e Salò, concebido como uma parábola clara 
sobre a violência das forças do Poder7. Mesmo correndo o risco de isolar um elemento de um 
projeto artístico incomum, vivenciando na análise o que o próprio Pasolini chamou de 
“adaptação à degradação”, examinamos aqui a transposição visual de dez histórias 
selecionadas da obra-prima de Boccaccio. Chamamos a atenção para dois aspectos em nossa 
análise: o modo de transposição dos procedimentos novelescos e o ponto de vista da seleção 
de Pasolini. 
 
7 Uma excelente análise do último filme de Pasolini e sua relação com o momento histórico em que foi 
idealizado e produzido é feita por FABRIS, Mariarosaria. Réquiem para uma república. Anais do XVIII Encontro 
Regional de História – O historiador e seu tempo. ANPUH/SP – UNESP/Assis, 24 a 28 de julho de 2006. Cd-
Rom. 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X 
Páginas 356-367 
 
 
 Os filmes da trilogia são leituras de obras literárias difundidas no século IX (origens 
do anônimo As mil e uma noites), século XIV (Decameron, escrito por Giovanni Boccaccio 
entre 1348 e 1353) e século XV (The Canterbury Tales, de Geoffrey Chaucer, obra 
incompleta de 1400). O ponto em comum é o fato de serem reuniões de pequenas narrativas e, 
de certo modo, as três obras constituem o que se pode chamar de “pedra fundamental” da 
narrativa curta, ou seja, formam uma espécie de alicerce da novelística moderna, muito 
embora seus locais de criação sejam tão diferentes – respectivamente, Oriente, Itália e 
Inglaterra – e os estilos reflitam visões de mundo e épocas distantes uns dos outros. 
 Em meio à vertiginosa criatividade, as três obras reúnem contos retirados da tradição 
oral e/ou literária, revisitados de uma maneira “puramente livresca”, segundo a concepção de 
Victor Chklovski (1976, p. 221). O formalista russo distingue esse tipo de narrativa da 
narrativa oral pelos procedimentos específicos para estabelecer elos entre as histórias ou 
episódios; em poucas palavras,a narrativa livresca possui métodos cuja utilização é 
impensável na oralidade, pois só um leitor saberá percebê-los. Ao mesmo tempo em que 
garantem e autenticam a narrativa escrita, esses fatores ganham importância ao diferenciar as 
categorias de narrativas curtas quanto à sua complexidade e rigor estilístico. No caso do 
Decameron, Chklovski aponta sua filiação na literatura européia descendente das compilações 
de origem oriental, cuja contribuição foi juntar os relatos estrangeiros às novelas “nacionais”, 
possibilitando a criação de modos de enquadrar as novelas, mantendo-as distintas do romance 
na posteridade literária. Tendo a narração como um fim em si mesma, os personagens do 
Decameron não ligam os episódios particulares, nos quais a ação concentra as atenções. 
 Para desenvolver algo sobre o termo “Trilogia da vida”, é conveniente buscar as 
intenções literárias das obras nas quais se baseia Pier Paolo Pasolini. Há, de fato, uma 
“vertigem criativa” nas três coletâneas, expressa na diversidade de situações, nos diferentes 
pontos de vista, na profusão de tipos, bem como na capacidade discursiva de entrelaçar 
episódios, situações e narradores. São estratégias que conduzem o leitor ao deleite da 
dimensão quase absurda das narrativas. Ao mesmo tempo em que somos levados ao prazer do 
entretenimento e, portanto, ao domínio de Eros, deus do prazer, ficamos também presos 
através de um fio de realidade tecido pela representatividade das histórias, capazes de 
atravessar o tempo. 
 Sabemos que a divisão do instinto humano entre o princípio do prazer e o princípio 
da realidade foi amplamente discutida por Freud no início do século XX, e, posteriormente, 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
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Páginas 356-367 
 
 
por Marcuse na década de 1960. Ainda que familiarizados com os conceitos, vale relembrar o 
fato de o chamado “instinto de vida” (termo freudiano para o princípio do prazer) estar 
relacionado à satisfação imediata, ao júbilo da atividade lúdica, à gratuidade da vida, à 
ausência de repressão. Essas características compõem a essência da representatividade das 
fontes literárias da trilogia de Pasolini. Por outro lado, a cultura civilizada moderna trouxe, 
grosso modo, o fim das concessões ou das gratificações sobre o instinto de vida. A marcha 
civilizatória e suas instituições imprimem sobretudo o controle do prazer. Assim, as emoções 
não são mais satisfeitas integralmente, e o princípio do prazer é encoberto pela satisfação 
controlada, pelas relações de trabalho, pela produtividade, pela segurança, etc. Freud chamou 
de “instinto de morte” o princípio da realidade, explicando que ele tenta se impor sobre o 
suposto poder “destrutivo” de Eros, do instinto de vida. Desde então, este é o preço que o 
homem civilizado paga: ele precisa oscilar entre os dois princípios (FREUD, 1975 e 1978). 
Na conhecida interpretação de Marcuse, para o pai da psicanálise a história do homem como 
história da sua repressão pode ser ao mesmo tempo acusação e defesa da civilização: a coação 
sobre a existência é precondição do progresso. 
 Importa ressaltar que Il Decameron de Pasolini tenta resgatar a essência deleitosa das 
novelas de Boccaccio para os tempos atormentados do início da década de 1970. Assim como 
o Decameron do século XIV, escrito sob condições devastadoras impostas pela peste, a 
empreitada cinematográfica acontece sob uma situação-limite. Pasolini adapta dez das cem 
histórias boccaccescas em tempos de projeções fascinantes para a vida material (devidas, 
especialmente, ao consumismo que se alastrava pelas diversas culturas no mundo) e pouco 
rendimento verdadeiro de felicidade. É justo concluir que a adaptação não quis recriar o 
universo das personagens medievais no século XX. Noutras palavras, embora retrate o 
passado medieval, o filme tem em vista as novas formas de relações sociais nos “anos 
loucos”, provavelmente indagando sobre os lugares da burla, do triunfo dos mais espertos, da 
realização sexual, da fé e da hipocrisia religiosa, da luta de classes, dos sentidos da arte. As 
novelas, cuja composição no tempo de Boccaccio já sentia o embate entre forças lúdicas e 
pragmáticas, entre certo prazer literário e uma exemplaridade moral, foram reacomodadas de 
modo a perfazer dois blocos emoldurados por duas dessas histórias. Várias modificações 
significativas levam ao seu entrelaçamento no filme, mas as sutis alterações de espaço e de 
condições de personagens revelam intenções diferentes das de Boccaccio no que diz respeito à 
adesão do ponto de vista aos destinos dos protagonistas. 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
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Páginas 356-367 
 
 
 
2. IMAGENS DAS PALAVRAS 
 
 Sabemos que o Decameron de Boccaccio é dividido em dez dias (giornate) que 
comportam ao todo cem novelas, dez em cada giornata, contadas por dez jovens narradores 
(fugitivos da peste para o local agradável da colina) que se revezam na tarefa prazerosa; cada 
giornata é governada por um rei ou rainha que estabelece o tema e a sucessão de narradores. 
Essa é a história-moldura, a cornice narrativa do Decameron, desdobrada nas finas ligações 
entre uma jornada e outra, bem como nos elos entre as novelas – um “narrador principal”, 
estranho aos dez jovens, aparece ao fim de cada dia para encerrar os trabalhos e iniciar uma 
nova dezena de narrativas. Essa mesma voz principal pode fazer uma breve introdução a cada 
novela, assinalando um gancho narrativo providencial ao narrador ou narradora seguinte. 
Este, por sua vez, poderá fazer a sua pequena introdução (que, geralmente, comenta a novela 
anterior) com um provérbio ou, pelo menos, com o tom proverbial no mote da novela. A 
moldura oferece ao leitor mais desavisado, portanto, a medida do tempo, bem como a noção 
da existência dos dez narradores, chamando-o à realidade. 
 O Decameron de Pasolini utiliza elementos que conseguem prender a atenção do 
espectador com sucesso, no sentido de a narrativa fílmica promover ligações entre os 
episódios sem diminuir o valor pictórico de muitas cenas para a leitura de uma época, 
conferindo excelente acabamento e considerável organicidade ao produto final. E isso só 
acontece graças à adaptação do procedimento livresco para o cinema, como pode ser visto a 
partir da estrutura central da composição, que também pode servir como um resumo parcial. 
A primeira cena é um fragmento da história que costura a primeira metade do filme. A fonte 
dessa narrativa que aparece aos pedaços é a primeira novela da primeira jornada do 
Decameron de Boccaccio, na qual Cepperello (ou Ciappelletto, conforme as variações 
explicadas pela interseção com a língua francesa), um mau-caráter, termina santificado graças 
à confissão teatralmente mentirosa que faz ao morrer. A história conta a saga de um 
verdadeiro facínora que, após uma sucessão de ardis e perversões se traveste de homem bom e 
contrito. O episódio é entrecortado por outros, assim o espectador se mantém atento ao 
movimento narrativo instaurado. 
 Na primeira cena do filme, Ciappelletto mata violentamente um homem, livra-se do 
corpo e cospe (a propósito, esse gesto de descaso pontua o filme, partindo também de outras 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
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Páginas 356-367 
 
 
personagens, como uma amostra de caráter). As primeirasações passam-se sob um cenário 
noturno ou de penumbra, próprio para os marginais. Há muitas passagens estreitas e frestas 
que a personagem central, interpretada por Franco Citti, atravessa, como se o movimento no 
espaço sugerisse a astúcia. A cenografia de toda a primeira metade do filme será exatamente 
assim, promovendo a ligação entre os episódios. 
 Em seguida, a história de Andreuccio (baseada na quinta novela da segunda jornada) 
é uma sucessão de golpes baixos. Até o protagonista (levado ao filme por Ninetto Davoli) 
aprende a ludibriar após ter sofrido o golpe da falsa irmã. Ciappelletto retorna após essa 
aventura, e está na rua, corrompendo meninos. Pasolini resolve com imagens muita coisa que 
a prosa do Trecento deixava para o leitor descobrir e desenvolver na sua imaginação: o caráter 
de Ciappelletto é fornecido pelas ações mostradas no filme, porém há nestas tomadas uma 
indiscutível economia, graças à imediatez do discurso, que promove a interseção entre as 
histórias trazidas para a cena. Enquanto Ciappelletto seduz meninos, numa das vielas um 
velho está contando uma história correspondente à segunda novela da nona jornada do 
Decameron, envolvendo sexo, fingimento, corrupção, autoridade, punição e ridicularização 
no cenário de um convento: é a história da abadessa que endossa as calças de um padre, seu 
amante, ao correr para surpreender uma das freiras acusada de estar com um homem. É 
curioso observar que o velho começa a narrar para um grande grupo de pessoas lendo uma 
frase do livro que está aos seus pés e, logo em seguida, diz que irá explicar em napolitano o 
que aconteceu naquele convento. Assim, mesmo desfrutando da forma escrita através da 
leitura, o narrador não se convence e opta pela espontaneidade da forma oral em consonância 
com o gestual que acompanha a narrativa - fusão que, segundo o próprio Pasolini, a palavra 
deve assumir. Ao abrir mão da leitura, o velho põe ao alcance de seus ouvintes uma das 
histórias “desmascaradoras” do Decameron, alterando o ponto de vista original, passando-o 
da classe privilegiada (e do registro “oficial” do idioma) para o povo da rua (e para o registro 
no dialeto meridional). 
 A novela emparelha-se pelo tema com o episódio seguinte, de Masetto da 
Lamporecchio no convento (retirado da primeira novela da terceira jornada), com o mesmo 
tipo de corrupção da mesma categoria de pessoas, ou seja, trata da volúpia sexual das freiras. 
Ambas as histórias terminam com a conciliação das transgressões (ou dos pecados) com a 
vida santificada dos ambientes em que acontecem. 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
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Páginas 356-367 
 
 
 Antes de conhecermos o final da história de Ciappelletto, assistimos ao adultério de 
Peronella, correspondente à segunda novela da sétima jornada (nesse dia, o tema para as 
novelas deveria tratar das beffe de que as esposas se utilizam para enganar os maridos, seja 
pelo amante ou para se safar). Além de refletir o que poderia ser considerado “desvio de 
regras”, a história também se insere na temática do engano, do fingimento, do mau-caratismo 
que vinha se desenvolvendo no filme, sempre aproveitando as facetas do enganador e do 
enganado. Em outros termos, poderíamos dizer que o eixo da primeira metade do filme está 
baseado no triunfo da astúcia que não mede os prejuízos de terceiros, bem como na inversão 
de algumas “regras” ou convenções (a mulher, por exemplo, pode parecer passiva, porém 
possui um substrato de astúcia invejável). Esse eixo vai se definindo em complexidade à 
medida que cada quadro fornece um dos possíveis cenários da corrupção. Ciappelletto tem 
desenlace semelhante em dramaticidade à novela de Boccaccio – a contrição exagerada e 
embusteira do pecador o transforma em santo. Contudo, a história se prolonga, e Pasolini 
revela a manipulação dessa santidade pelos interesses pré-capitalistas, incluindo os religiosos, 
tão ou mais degenerados que a pior corja do populacho medieval. Desse modo, vemos que 
estrutura e significado atualizam o entrelaçamento dos episódios no filme. 
 
3. IMAGEM DAS IMAGENS 
 
 A segunda parte do Decameron é ainda mais ousada, pois a história que costura os 
episódios é praticamente recriada a partir da quinta novela da sexta jornada sem utilizá-la por 
inteiro. Pasolini interpreta um discípulo de Giotto (1267-1337), e não o artista do Trecento 
que figura na novela de Boccaccio, sem encenar a battuta final que teria colocado o 
interlocutor de Giotto (o Sr. Forese da Rabatta) em seu devido lugar. Na versão de Boccaccio, 
surpreendidos pela chuva os dois se abrigam e cobrem-se com velhas capas e chapéus 
emprestados de camponeses, tornando-se irreconhecivelmente feios. Forese da Rabatta brinca 
com o mestre, dizendo que um estranho jamais poderia imaginar que o outro era o melhor 
pintor do mundo, debaixo daquela indumentária, ao que Giotto responde: “Messere, credo 
Che egli il crederebbe allora che, guardando voi, egli crederebbe che voi sapeste l’abbicì.” 
(BOCCACCIO, 1980, p. 542) [“– Senhor, penso que ele o acreditaria, desde que, olhando 
para você, imaginasse que você conhece o á-bê-cê.” (BOCCACCIO, s. d., p. 329)] 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
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 Pasolini livra o aluno de Giotto dessa espirituosidade. O pintor no filme é 
absolutamente concentrado e dedicado, a ponto de se comunicar pouco com palavras. Em 
compensação, este personagem oferece a sua medida da representação para um artista, na 
cena em que seu olhar capta o cotidiano da gente comum em Nápoles, cenário de boa parte do 
filme. Durante a história do discípulo de Giotto, na cena rodada na lateral externa da igreja de 
Santa Chiara, as imagens são selecionadas “preferencialmente através de primeiros planos, 
graças a um gesto de enquadramento que remete ao olho da câmara e que une numa mesma 
dimensão pintura e cinema” (FABRIS, 1993, p. 116). São tomadas muito próximas da 
perspectiva utilizada por Giotto. O olho do pintor (quase um cineasta) percebe de perto o 
movimento, as cores, as atitudes e as proporções, repensadas pelo engenho incansável e até 
perturbado transpondo para a ideia de um grande painel cenas e rostos da realidade tomada a 
partir do contato direto que chega a emocionar o pintor – é inevitável pensar na humanização 
do artista através da interpretação de Pasolini. Curiosamente, o título em português da obra de 
Giotto – Giudizio Universale ou Juízo Final – soa estranho para o afresco do discípulo no 
filme, que prefere o sonho da criação à “finalização” da pintura. 
 Vale também lembrar que a pintura real, considerada por muitos a maior obra de 
Giotto, foi realizada durante a primeira década de 1300, em Pádua, na Capella degli Scrovegni 
(que foi conhecida como Capela di Santa Maria dell’Arena, pois foi construída sobre as ruínas 
de um anfiteatro romano), fartamente decorada pelo artista florentino – são trinta e sete cenas 
cobrindo acontecimentos desde os anteriores ao nascimento da Virgem Maria até a 
ressurreição de Jesus, nos quais os recursos realistas permitem visualizar muitos efeitos, entre 
os quais a emoção, a devoção, a humildade e a pureza com medida, a ponto de oferecer 
dimensão nobre a argumentos e conteúdos de histórias populares. Por outro lado, o Giudizio 
Universale, a despeito de remeter a diversas fontes pictóricas, a histórias de santos, ao 
Evangelho (Mateus, 25 e Apocalipse de S. João), é a única pintura na capela com 
características fantásticas, como a retratar mais o produtoda imaginação do pintor que a 
observação da realidade, razão pela qual o resultado nos conduz para um plano metafísico, 
dividido em subplanos hierárquicos com a figura do Redentor no centro. O pintor interpretado 
por Pasolini em seu filme idealiza um painel vivo, em que figuras familiares aos espectadores 
(porque já vistas em cenas anteriores) aparecem quase encenando a pintura, com Nossa 
Senhora (Silvana Mangano) na moldura central. O resultado inacabado no filme também é um 
produto da imaginação do artista, porém o discípulo de Giotto não leva a cabo sua idealização 
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nem transfigura as convenções metafísicas como a distribuição das figuras nos planos 
superiores e inferiores, de acordo com a composição equilibrada entre virtudes e vícios. Ao 
representar um artista que aproveita o mestre sem copiá-lo, alterando o que supomos ser o 
modelo, Pasolini parece definir uma personalização do processo de influência. 
 As atitudes do pintor condensam o processo de pesquisa, de representação, de 
assimilação de influências e de contemplação. A figura de Pasolini, artista que recusa as 
alturas de um determinado ponto de vista para apresentar as classes menos privilegiadas, 
associa-se ao leitor da novela de Boccaccio e admirador de Giotto, definido por Boccaccio 
como portador de “uno ingegno di tanta eccellenzia” (1980, p. 540), fundador de uma 
concepção de arte capaz de nos fazer julgar “objeto real o que, na verdade, somente está 
pintado” (s. d., p. 328). O filme sobrepõe ao realismo de Giotto “um artista visionário que, no 
sonho, cria uma aparição que não ousará materializar” (FABRIS, 1993, p. 116) e representa o 
cineasta cuja capacidade de reescritura dos mestres pode incluir a reverência e a sensatez na 
superação. 
 Na primeira parte de seu filme, Pasolini evidencia o fechamento ou afunilamento no 
percurso das personagens, ao mesmo tempo em que favorece o grotesco da condição humana 
(principalmente através dos rostos expressivos que aparecem em profusão) e o sucesso da 
esperteza, distribuída por todos os estratos humanos, como se estes pudessem transmitir todas 
as máculas e primores da sociedade. A segunda parte traz a poesia da criação segundo 
Pasolini, traduzindo o prazer da criação artística marcadamente através da história da 
execução de uma obra – o mural pintado pelo discípulo de Giotto com ritualismo, ansiedade, 
sensibilidade, diversão, sonho, incompletude, diga-se de passagem, fatores essenciais da 
criação segundo Pasolini. Ao lado disso, a segunda parte também aperfeiçoa as intenções da 
primeira e ainda transita pelo terreno da esperteza e do fingimento, porém faz incursões na 
área da intencionalidade dos atos humanos, na vida e na arte. 
 Embora seja normal aceitar que a segunda metade do Medioevo conheceu uma época 
de declínio das instituições e, em contrapartida, a nova classe burguesa triunfava com astúcia, 
é sempre bom lembrar que esse tempo conheceu a multiplicidade de formas, o lado mais 
pitoresco do mundo e as várias filosofias, as várias condutas de vida coexistentes para o 
futuro abandonar o homem a si mesmo. Surgida nesse clima, a obra de Boccaccio antecipa 
algumas situações para o cotidiano das novelas do Decameron. Um bom exemplo é a novela 
de Ricciardo e Caterina, quarta novela da quinta jornada, que está na segunda parte do filme 
ANAIS DO IX SEMINÁRIO NACIONAL DE LITERATURA HISTÓRIA E MEMÓRIA – 
LITERATURA NO CINEMA e 
III Simpósio Gêneros Híbridos da Modernidade – Literatura no cinema 
Seminário Nacional de Literatura, História e Memória (9. : 2009 : Assis – SP) ISSN: 2175-943X 
Páginas 356-367 
 
 
de Pasolini, imediatamente antes da quinta novela da quarta jornada (curiosamente, numa 
combinação de elementos invertidos), em que um jovem casal de amantes (Elisabetta e 
Lorenzo) é cruelmente separado. Há, em ambas as narrativas, a explicitação de subterfúgios 
característicos de classe através das reações das famílias das moças, e a leitura de Pasolini 
traça um parecer. Boccaccio separa as histórias em jornadas diferentes provavelmente porque 
as punições pela violação da honra virginal são distintas em função da condição dos rapazes. 
Lorenzo, empregado da família de Elisabetta, é morto sem que a moça saiba, restando a ela 
somente o consolo de trazer a cabeça do amado para casa, após ele aparecer em sonho para 
contar o que acontecera. Para compensar o peso desse final triste, a novela sobre os jovens 
amantes na jornada seguinte termina bem. Ricciardo trazia vantagens para a família de 
Caterina, então os pais dela concordam com o casamento como solução. Pasolini inverte a 
ordem de aparição das novelas para destacar a hipocrisia e a crueldade nas duas histórias 
quase lidas como uma só. Nesse sentido, leva ao exagero o cinismo dos pais de Caterina na 
transposição da cena do noivado em pleno flagrante dos amantes, para enfatizar a atitude 
tipicamente burguesa da fase inicial do capitalismo. Lorenzo, que não tinha atributos para a 
união com uma família rica e precisava ser eliminado, a marca do dialeto do sul na 
interpretação do ator deixa óbvia a intenção de destacar a condição inferior da personagem. A 
escolha e a disposição das duas novelas no filme sugerem a intenção de reforçar a visão de 
classes, conforme assinala Ben Lawton (1977). Mais que isso, através das duas histórias em 
espelho, o filme revisita em tempos de capitalismo desmedido as forças de dominação 
burguesas (e, por extensão, as forças do poder) sobre a louvação da juventude e do prazer (e 
da liberdade, da igualdade). 
 Outra novela também aproveitada por Pasolini que dá a dimensão de alcance do 
significado do Decameron é a décima novela da sétima jornada, na qual dois homens 
libertam-se, cada um à sua maneira, do peso de uma ideia que lhes fora incutida 
principalmente pelo hábito da religiosidade. A libertação de Meuccio no filme é, de fato, 
eufórica e triunfante, compensando as dúvidas que o companheiro e ele próprio tiveram 
durante a vida toda. Novamente Pasolini opta pelo exagero para destacar os elos entre uma 
realidade aparentemente distante e um tempo carente de libertações pessoais e espirituais. 
 
4. ALMA, OLHAR E MÃO DA ESCRITA E DA IMAGEM 
 
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 Os episódios do filme são distribuídos por dois feixes dispostos a absorver e 
ultrapassar a narrativa original. Não se trata de proporcionar mais universalidade ou de 
atualizar a obra do Trecento, pois o filme aproveita quadros narrativos para uma montagem 
ou, melhor dizendo, para a “arquitetura” de uma segunda narrativa cuja independência do 
texto que lhe serviu de inspiração pode ser reconhecida. Afinal, tanto o cineasta quanto o 
escritor “narram” do próprio ponto de vista, a atualidade de cada um. Não há baralhamento de 
autorias, pois ambos partem de seus universos e são igualmente autores. 
 Boccaccio utilizou procedimentos livrescos (técnicas apuradas dos Fabliaux, das 
crônicas contemporâneas, do romance medieval e do folclore popular) com intenções de 
explorar possibilidades narrativas mantendo fixo o enfoque erudito que, embora distribuído 
entre dez jovens, ainda se mantém na mesma posição social em toda a moldura. Pasolini faz 
uso pleno de recursos visuais que atualizam formas e conteúdos para um ponto de vista que 
democratiza torpezas e problematiza a ligação entre realidade e criação, procedimentos 
impossíveis para um artista do tempo deBoccaccio. A coerência com alguns postulados da 
estética pasoliniana é quase óbvia. 
 Para Pasolini, o mundo não se confessa na tela; o cineasta deve assumir a função de 
“dizer”, de intervir. Sendo assim, poderá utilizar-se de um procedimento análogo ao dos 
ficcionistas: com a mão por trás da narrativa, escritor e cineasta tanto podem nomear 
narradores e livrar-se da responsabilidade sobre a apresentação dos fatos, como também 
podem fazer digressões no decorrer da narrativa, e voltar ao fio principal. As molduras 
narrativas podem ajudar a cumprir essas funções. Na adaptação para o cinema, a obra literária 
sofre intervenções que naturalmente fazem dela instrumento da expressão do cineasta. 
 Pasolini estabeleceu uma interessante analogia entre a montagem cinematográfica e a 
morte: esta faz um balanço rápido da vida, seleciona passagens mitificando-as inclusive, para 
extrair delas um proveito; a montagem “corta o fluxo contínuo da imagem em movimento e 
transforma a combinação dos fragmentos em discurso” (apud XAVIER, 1993, p. 105) - ela 
“mortifica” o registro, mas dá um significado à sucessão, instaura uma perspectiva, objetivo 
que toda narrativa deve almejar, segundo Pasolini. Cada filme seu é a invenção de um modo 
de narrar (montar) para produzir sentido, fazer um diagnóstico do presente, mesmo com 
aparência de falar sobre o passado. 
 O patamar de criação atingido pelo que Pasolini chamou “cinema de poesia” trouxe 
complexidade ao processo narrativo fílmico, o que representa um desafio ao espectador que 
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precisa estar atento ao modo pelo qual os procedimentos técnicos (montagem, movimentos de 
câmera, enquadramentos, cenografia, fotografia, etc.) presentes na visualização do mundo 
objetivo oferecem o código de uma vivência interior, subjetiva (apud XAVIER, 1993, p. 107). 
E assim como o espectador, o leitor da narrativa cuidadosamente elaborada que está livre e, ao 
mesmo tempo, de acordo com as regras estéticas (como as de Boccaccio, por exemplo) é 
educado pelo discurso que se preocupa com o desenvolvimento do detalhe, com a paciência 
na narrativa que não dispensa em hipótese alguma a concisão. Ao final da leitura, espectador e 
leitor poderão perceber o significado do detalhe ou, pelo menos, desconfiar dele. Afinal, nada 
aparece ao acaso na narrativa que se liberta (e liberta o leitor) de convenções formais e morais 
taxativas e presas a uma estética de época. Concomitantemente, esse procedimento narrativo 
põe em prática a lição da experiência, da narrativa oral, da leitura dos antecessores, da 
observação das tintas e das nuances da realidade à sua volta. 
 
REFERÊNCIAS 
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Círculo do 
Livro, s. d. 
_____. Decameron. 5. ed. Milano: Garzanti, 1980. 
CHKLOVSKI, Victor. A construção da novela e do romance. In: EIKHENBAUM, B. e 
outros. Teoria da literatura. Formalistas russos. Trad. Ana Mariza Ribeiro Filipouski e 
outros. 2. ed. Porto Alegre: Globo, 1976. 
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. In: Os Pensadores. Trad. Durval Marcondes et 
al. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 129-194. 
_____. Mais além do princípio do prazer. In: Pequena Coleção das Obras de Freud. Trad. 
Christiano Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1975. Vol. 13. 
LAWTON, Ben. Boccaccio and Pasolini. A Contemporary interpretation of the Decameron. 
In: BOCCACCIO, Giovanni. The Decameron. Trad. Mark Musa and Peter Bondanella. New 
York: W. W. Norton, 1977, pp. 306-322. 
MARCUSE, Herbert. Eros e Civilização. Uma interpretação filosófica do pensamento de 
Freud. Trad. Álvaro Cabral. 8. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, s. d. 
PASOLINI, Pier Paolo. Abjuração da “Trilogia da vida”. In: LAHUD, Michel (org.) Os 
Jovens Infelizes. Antologia de Ensaios Corsários. Trad. Michel Lahud e Maria Betânia 
Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990, pp. 199-204. 
XAVIER, Ismail. O cinema moderno segundo Pasolini. Revista de Italianística. São Paulo: 
ano I, nº 1, 1993, pp. 101-109.
Andrea Camilleri: o roteirista, o diretor e o autor

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