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INTERPRETAÇÃO, , RETORICA e LINGUAGEM Coordenação George Salomão Leite Lenio Luiz Streck --INTERPRETAÇAO, ~ RETORICA e LINGUAGEM Prefácio Paulo de Barros Carvalho 2018 1 ); 1 EDITORA f }usPODIVM www.edilorajuspodivm.com.br EDITORA fasPODIVM www.editorajuspodivm.com.br Rua Mato Grosso, 164, Ed. Marfina, 1 ° Andar - Pituba, CEP: 41830-151 - Salvador -Bahia Tel: (71) 3045.9051 , Contato: https://www.editorajuspodivm.com.br/sac Copyright: Edições JusPODIVM Conselho Editorial: Eduardo Viana Portela Neves, Oirley da Cunha Jr., Leonardo de Medeiros Garcia, Fredie Didier Jr., José Henrique Mouta, José Marcelo Vigliar, Marcos Ehrhardt Júnior, Nestor Távora, Robério Nunes Filho, Roberval Rocha Ferreira Filho, Rodolfo Pamplona Filho, Rodrigo Reis Mazzei e Rogério Sanches Cunha. Capa: Ana Caquetti 161 Interpretação, Retórica e Linguagem / coordenadores George Salomão Leite e Lênio Streck.- Salvador: Juspodivm, 2017. 320 p. Vários autores Bibliografia ISBN 978-85-442-1729-0. 1. Direito 1. Leite, George Salomão li. Streck, Lênio Ili. Título. Todos os direitos desta edição reservados à Edições JusPODIVM. CDD340 É terminantemente proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio ou processo, sem a expressa autorização do autor e da Edições JusPODIVM. A violação dos direitos autorais caracteriza crime descrito na legislação em vigor, sem prejuízo das sanções civis cabíveis. ---------------------- ~, Colaboradores CARLOS ALBERTO GABRIEL MAINO Professor com dedicação especial da Pontifícia Universidade Ca- tólica Argentina - UCA. CLÁUDIA MANSANI QUEDA DE TOLEDO Doutora em Sistema Constitucional de Garantias de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino de Bauru-SP. Mestre em Direito das Re- lações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professora de Direito Constitucional e de Direitos Humanos da FDSM-MG e do Curso de Mestrado em Democracia e Constitucio- nalismo da FDSM, na disciplina Horizontalização dos Direito Funda- mentais. Advogada. FRANCISCO PUY MUNOZ Catedrático emérito da Universidade de Santiago de Compostela - Espanha. GEORGE SALOMÃO LEITE Doutorando em Direito Constitucional pela Pontificia Universi- dade Católica de Buenos Aires - UCA. Mestre em Direito Constitu- cional pela Pont1fícia Universidade Cat6lica de São Paulo - PUC/SP. Advogado.' JOÃO MAURÍCIO ADEODATO Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife. Livre-Docen- te da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - USP. Pes- quisador 1-A do CNPq. 5 INTERPRETAÇÃO, RETÓRICA E LINGUAGEM LENIO LUIZ STRECK Professor Titular da Unisinos-RS e Unesa-RJ; Doutor em Direito; membro catedrático da Academia Brasileira de Direito Constitucio- nal. Pós-doutor pela Universidade de Lisboa - Portugal. Doutor e Mes- tre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Dou- torado) da UNISINOS, na área de concentração em Direito Público. Professor permanente da UNESA-RJ. Visitante da ROMA-TRE (Scuola Dottorale Tulio Scarelli), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra - FDUC (Acordo Internacional Capes-Grices), Javeriana-CO e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ex-Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul apo- sentado. Advogado. LUIS MARÍA BANDIERI Professor Titular de Direito Constitucional da Pontificia Univer- sidade Católica de Buenos Aires - UCA. MANUEL ATIENZA Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Universidade de Alicante/Espanha. MILAGROS OTERO PARGA Catedrática numeraria de la Universidad de Santiago de Compos- tela - Espanha. PAULO DE BARROS CARVALHO Professor Emérito e Titular de Direito Tributário da Universida- de de São Paulo - SP e da Pontifícia Universidade Católica de São Pau- lo - PUC/SP. 6 -, -, COLABORADORES PAULO FERREIRA DA CUNHA Catedrático de Direito da FDUP, FMU (Laureate International Universities). Bolsista da Funadesp na Fadisp. Doutor em Direito das Universidades de Coimbra/Portugal e Paris II/França. Agregado em Direito da Universidade do Minho/Portugal. Pós-Doutor em Direito pela USP. Do Comité ad hoc para o Tribunal Constitucional Interna- cional. TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR Professor Titular de Filosofia do Direito da Pontifícia Universida- de Católica de São Paulo - PUC/SP. Advogado. 7 Prefácio Comenta-se que os juristas têm espírito emulativo e disputam, ardentemente, com os recursos inesgotáveis da retórica, a prepon- derância de seus argumentos. Agora, quando se unem, mesmo que em torno de um único pretexto, como o deste livro, os discursos se potencializam, fazendo surgir resultados surpreendentes. O difícil é reuni-los, agrupá-los, convencê-los de que o momento é oportuno e vale a pena empreender o esforço. Para tanto, nada corno propor urna ideia nobre, nobilíssima até, acima das cogitações corriqueiras do trato intelectual, para mobilizá-los e convocá-los ao trabalho. Esta, a iniciativa dos coordenadores - Lenio Streck e George Salomão Lei- te - com o tema, decisivo e grandioso, atualíssimo e suficientemente amplo, a ponto de acolher toda a sorte de reflexões sobre o direito e a própria vida: "Interpretação, Retórica e Linguagem". Pois bem, se pensarmos numa simples acepção de qualquer das três palavras, naquela que primeiro nos acudir à mente, percebere- mos que nada escapará à magnitude da proposta. O mundo, na mul- tiplicidade intensiva e extensiva do real, caberá, por certo, no âmbito semântico de cada uma delas. Por exemplo, se tornarmos "interpre- tar" como atribuir valores aos signos e, por meio deles, fazer refe- rência aos objetos do mundo; "retórica" no sentido de equilíbrio na combinação adequada entre os elementos da trilogia ethos, pathos e logos; e "linguagem" como emprego das unidades do sistema sígni- co, tendo em vista a comunicação entre os seres humanos, já seria o bastante para, feitas as devidas associações, repito, entre "interpre- tação", "retórica" e "linguagem", outorgar ao conjunto expressional o máximo padrão significativo que poderíamos supor, o suficiente para reconhecer ao homem a condição de ente que se locomove no mundo interior e exterior, construindo nele sua existência. 9 INTERPRETAÇÃO, RETÓRICA E LINGUAGEM Os autores são figuras respeitadíssimas no meio jurídico nacio- nal e internacional, ligados a instituições de prestígio, o que garante elevada qualidade no nível do texto. Como toda obra conjunta, é bom lembrar, a harmonia da mensagem fica por conta da ideia comum bem representada no título do livro. Resta-me, portanto, a satisfação de prefaciá-lo, sobretudo porque é domínio sobre o qual tenho gran- de interesse em estudar e conhecer. Parabéns a seus ilustres coorde- nadores e autores, bem como a todos aqueles que participaram deste projeto que julgo ser de enorme importância. 10 São Paulo, 25 de junho de 2017 Paulo de Barros Carvalho Professor emérito da PUC/SP e da USP Membro titular da Academia Brasileira de Filosofia Sumário V PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA Lenio Luiz Streck.................................................................................................................. 13 , A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL George Salomão Leite......................................................................................................... 29 I HERMENÊUTICA NO DIREITO Paulo de Barros Carvalho ............................................................................................... .. 71 O DIREITO E A CONSTITUIÇÃO RETÓRICA DO MUNDO REAL João Maurício Adeodato .................................................................................................... 95 RAZÓN PRÁCTICA, INTERPRETACIÓN JURÍDICA Y SUS FUENTES Carlos Alberto Gabriel Maino ..........................................................................................117 , EL ARGUMENTO DE AUTORIDAD EN EL DERECHO Manuel Atienza ..................................................................................................................... 147 t/ VERDADE, NARRATIVA E PERSUASÃO Tercio Sampaio Ferraz Junior.......................................................................................... 179 LA RETÓRICA V EL ARTE DEL DERECHO Luis María Bandieri............................................................................................................. 195 VEREDAS DA RETÓRICA & DIREITO Paulo Ferreira da Cunha,.................................................................................................. 215 LA INTERPRETACIÓN PRUDENCIAL DEL DERECHO Francisco Puy Mufí.oz e Milagros Otero Parga .......................................................... 237 11 INTERPRETAÇÃO, RETÓRICA E LINGUAGEM UM BREVE DIÁLOGO ENTRE AS TEORIAS CONSTITUCIONAIS DO TRATAMENTO HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO PARA UM CAMINHO ÚNICO: A INTERPRETAÇÃO E A APLICAÇÃO EM PROL DO SER HUMANO Cláudia Mansani Queda de Toledo................................................................................. 257 ✓ DIREITO, RETÓRICA E COMUNICAÇÃO Arguição do Prof Roberto Lyra Filho........................................................................... 279 BIBLIOGRAFIA.................................................................................................................. 299 12 ~. --... \ PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA · Lenio Luiz Streck1 A questão que parece mais evidente, contemporaneamente, é a de que a filosofia está assentada em paradigmas. Heidegger chama- rá a isto de "princípios epocais". Cada época teve um princípio como fundamento: o eidos platônico, a ousia aristotélica, o ens creatum de Aquino (e com isso se encerra a metafísica clássica); depois, o cogito de Descartes, o eu penso kantiano, o absolto hegeliano e a vontade do poder nietzcheano (último princípio epocal da modernidade).2 O linguistic turn e o ontological turn marcaram a ruptura com os dois paradigmas que forjaram até o final do século XIX e início do século XX a marcha da humanidade: o objetivismo e o subjetivismo. Tudo que foi feito em termos filosóficos e jurídicos está umbilical- mente entrelaçado com o objetivismo e o subjetivismo. O século XIX com seus três modelos de positivismo apostou em um mix: o direi- to era posto a partir do paradigma moderno e descrito a partir de uma posição adequacionista. Os positivismos e as correntes críticas 1. Mestre e Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-doutor pela Uni- versidade de Lisboa. Professor titular do Programa de Pós-Graduação em Direito (Mestrado e Doutorado) da UNISINOS; Professor permanente da UNESA-RJ. Professor visitante nas Univer- sidades de Málaga - ES, Javeriana-CO e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Ex-Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul; advogado. 2. Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Trad. de Fausto Castilho. Petrópolis/Campinas: Vozes e Uni- camp, 2012. 13 Lenio Luiz Streck que se forjaram após Kelsen e Hart estiveram e ainda estão ligados à filosofia da consciência (subjetivismo) e descritivismo analítico que guarda parentesco com o objetivismo. Hoje, diante da invasão das teorias voluntaristas como o neo- constitucionalismo e as correntes ainda ligadas à jurisprudência dos valores e dos interesses, torna-se necessário que a comunidade jurí- dica se dê conta da superação da dicotomia sujeito-objeto (nos seus dois âmbitos: o paradigma objetivista-aristotélico-tomista e o para- digma subjetivista da filosofia da consciência), tarefa que somente se torna possível através do primado da linguagem, que encontrou terreno e lastro seguro naquilo que se convencionou chamar de giro -, ontológico-linguístico que se estabeleceu no século XX. Nesse sentido, há nos darmos conta de que as palavras da lei são constituídas de vaguezas, ambiguidades, enfim, de incertezas signifi- cativas. Não é novidade, nem mesmo para a dogmática jurídica mais tradicional - que parcela significativa das palavras da lei são plurívo- cas. Mas isso não pode significar que cada intérprete possa atribuir os sentidos que mais lhe convierem. Daí a importância da hermenêutica. Na história moderna, tanto na hermenêutica teológica como na hermenêutica jurídica, a expressão tem sido entendida como arte ou técnica (método), com efeito diretivo sobre a lei divina e a lei huma- na. O ponto comum entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica teológica reside no fato de que, em ambas, sempre houve uma tensão entre o texto proposto e o sentido que alcança a sua aplicação na si- tuação concreta, seja em um processo judicial ou em uma pregação religiosa. Essa tensão entre o texto e o sentido a ser atribuído ao texto co- loca a hermenêutica diante de vários caminhos, todos ligados, no entanto, às condições de possibilidade de acesso do homem ao co- nhecimento acerca das coisas. Assim, ou se demonstra que é possível colocar regras que possam guiar o hermeneuta no ato interpretativo, mediante a criação, v.9, de uma teoria geral da interpretação; ou se reconhece que a pretensa cisão entre o ato do conhecimento do senti- do de um texto e a sua aplicação a um determinado caso concreto não são atos separados; ou, finalmente, se reconhece que as tentativas de 1.4 ·, --.._ - ' ~ -, ' PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA colocar o "problema hermenêutico", ora no predomínio da subjeti- vidade do intérprete, ora na objetividade do texto, não passaram de falsas contraposições fundadas no esquema sujeito-objeto. Foram várias as tentativas de estabelecer regras ou cânones her- menêuticos - com ênfase no predomínio da objetividade do texto ou na subjetividade do intérprete ou, até mesmo, de conjugar as duas teses (paradigma objetivista e da filosofia da consciência). Lembre- mos, especialmente, Savigny e seus métodos construídos para o di- reito privado, que ainda continuam influenciando as práticas jurídi- cas; Emilio Betti3 e sua abordagem objetivo-idealista; e, no Brasil, por todos, Carlos Maximiliano,4 cuja obra, embora lançada nos anos 20 do século passado, bem retrata o sincretismo metodológico no qual estamos mergulhados. Na medida em que o projeto neopositivista fracassou em sua tentativa de construir uma linguagem rigorosa/técnica/lógica, a semiótica (ou a semiologia), a partir de sua vertente pragmática (filosofia pragmática ou filosofia da linguagem ordinária), trabalha com os múltiplos usos ou jogos que regem o linguajar, privilegian- do o terceiro nível da semiótica, é dizer, a relação dos signos com os seus usuários. A matriz se encontra em Wittgenstein,5 que substitui a (anterior) ênfase no rigor e na pureza do discurso por análises que passam a privilegiar os contextos e as funções das incertezas signi- ficativas dos discursos. Nesse sentido, as obras de Herbert Hart6 e Ronald Dworkin,7 preocupados com a legitimidade e a justificação do Direito, conseguindo superar a antiga tensão entre a dogmática jurí- dica e a sociologia, ao colocar os textos (a enunciação) como o centro das discussões. A filosofia pragmática oferece, assim, um importante 3. 4. 5. 6. 7. BETTI, Emlllo. lntcrpreb .. ;ão das leis e dos atos jurídicos. Trad. de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2007. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. Wittgenstein, Ludwig. Investigações Filosóficas. Trad. de Jose Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. HART, Herbert L. A. O conceito de Direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. 3. ed. Lisboa: Funda- ção Calouste Gulbenkian, 2001. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução de Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 15 Lenio Luiz Streckinstrumental para a interpretação do Direito, o que se pode ver pelas contribuições da retórica jurídica, tema desenvolvido pela teoria da argumentação jurídica, a partir de Viehweg, Perelman e Robert Alexy (este mais recentemente), e no Brasil, Ferraz Jr. e Warat, além dos demais estudos sobre semiótica espalhados pelo mundo. Entretanto, embora se reconheça as contribuições das correntes jusfilosóficas li- gadas à retórica, à tópica e à(s) teoria(s) da argumentação, é preciso ter claro que não se pode confundi-las com a hermenêutica d~ filosófico. Trata-se, pois, de uma questão paradigmática. Dito de outro modo, importa registrar que, muito embora as rele- vantes contribuições que determinadas teses/teorias tenham trazido para o plano da crítica do Direito, muitas delas continuam arraiga_das ao modelo objetivista-reprodutivo, cuja preocupação é de cunho epis- temológico e metodológico, separando conhecimento da ação, e bus- cando garantir uma "objetividade" dos resultados da interpretação, como se pode notar em autores como Coing, Betti e Canaris, que não acompanharam a viragem ontológica heideggeriana-gadameriana.8 Torna-se também necessário chamar a atenção para as insuficiên- cias da assim denominada tópica-retórica, isto porque, muito embora Viehweg diga que a tópica se distingue do dedutivismo, sua dinâmi- ca não escapa das armadilhas da subsunção9 metafísica (no sentido ontoteológico de que fala Ernildo Stein).1º Afinal, Viehweg,11 a tópica é uma técnica de pensar por problemas desenvolvida pela retórica, tendo por objeto raciocínios que derivam de premissas que parecem verdadeiras com base em uma opinião reconhecida. Tais premissas 8. Nesse sentido, ver José Lamego, que coloca Coing, Canaris e Betti nos quadros da hermenêutica historicista. Cf. LAMEGO, José. Hermenêutica e jurisprudência. Lisboa: Fragmentos, 1990. 9. O mÓdelo da subsunção pressupõe a confrontação da lei concebida como universalidade e o caso concreto, identificando-se o dito •caso concreto• como •caso• do gênero designado na lei, conforme bem assinala Jan Schapp. Cf. Schapp, Jan. Problemas fundamentais da metodolo- gia jurídica. Trad. de Ernildo Stein. Porto Alegre: Fabris, 1985, p. 90. No caso da tópica, a sub- sunção decorre da confrontação da universalidade do topos e o "caso" (ou problema) concreto. De um modo mais simples, pode-se dizer que ocorre subsunção quando se quer subsumir o individual sob os conceitos do geral (Gadamer). Por isto, a subsunção é metafísica. 1 o. STEIN, Ernildo. As voltas com a metafísica e a fenomenologia. ljuí: Unijuí, 2014. 11. VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência. Trad. de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Depto. de Imprensa Nacional, 1979. 1.6 PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA são os topoi, pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda a parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião acei- ta, que podem conduzir à verdade, A tópica é, assim, uma técnica de pensamento que se orienta para o problema, para resolvê-lo quando estamos diante de uma aporia. Os topoi utilizáveis para a resolução dos problemas são preparados de antemão (catálogos de topai). Com efeito, o fato de ligar-se "ao problema" não retira da tópica sua dependência da dedução e da metodologia tradicional. Quando Viehweg diz que "tópico" jurídico é toda e qualquer ideia ou ponto de vista que possa desempenhar algum papel nas análises jurídicas, sejam de que espécie forem, esbarra em alguns problemas como: pri- meiro, o fato de que cada autor pode associar cada tópico com uma "representação pessoal", remete a tópica ao paradigma da subjetivi- dade; segundo, porque se um tópico (topos) é uma premissa basea- da em uma opinião reconhecida, tem-se que nisso se encontra ínsita uma certa conceitualização universalizante (abstrata, portanto), com o que fica obstaculizada a diferença ontológica (no sentido que lhe dá a antimetafísica heideggeriana); terceiro, porque recupera um certo a priori jurídico, de cunho metafísico, que, muito mais do que resolver aporias, serviria de fundamento de validade das aporias "resolvidas"(mais do que topai expressos, há em Viehweg um catálo- go de premissas extralegais-constitucionais, elaboradas de antemão, portanto, pressupostas). Assim, a hermenêutica filosófica, entendida aqui como ontologia fundamental, retrabalhada como Crítica Hermenêutica do Direito12 avança para além da semiótica e dos modelos epistêmico-metodo- lógicos (nas suas variadas concepções e formulações), isto porque "a perspectiva hermenêutica é a que mais seriamente tem tomado a relaç:io intersubjetiva e a comunidade histórica como sujeito dos 12. A Crítica Hermenêutica do Direito - desenvolvida em livros como Hermenêutica jurídica e(m) crise, Verdade e consenso, Jurisdição constitucional e decisão jurídica, e Lições de Crítica Hermenêutica do Direito - tem como ponto de partida o problema de haver decisões judiciais que não são democráticas, ou seja, nas quais o juiz procedeu de modo arbitrário, conforme a sua consciência e isto é um desrespeito ao Estado democrático de Direito que estabelece as regras do jogo no qual o juiz atua. Em suma, o problema enfrentado pela Crítica Hermenêutica do Direito é o ato interpretativo do juiz no momento de decidir. Por isto há a ênfase na necessidade de uma teoria da decisão. 17 Lenio Luiz Streck diversos processos comunicativos e linguísticos".13 A hermenêutica, na concepção que sustento, opera um salto da causalidade para a existência, das objetificações e dos subjetivismos para o acontecer histórico. Nesse contexto, é preciso denunciar que o processo interpreta- tivo dominante no âmbito do pensamento dogmático do Direito está assentado em um paradigma metafísico, no interior do qual o pro- cesso interpretativo depende sempre de um sujeito, que vai se re- lacionar com os textos jurídico-normativos e os fatos sociais como se estes fizessem parte de um mundo exterior, 14 e o jurista/intérprete deles pudesse livre e conscientemente dispor. Para que se rompa com as concepções vigorantes no campo ju- rídico-dogmaticizante, os textos jurídico-normativos e os fatos sociais não podem ser tratados como objetos. Consequentemente, o intérpre- te do Direito não contempla o objeto ( o Direito, os textos jurídicos, o fenômeno social, etc.), para, assim, (re)construí-lo. É ilusão pensar que é a nossa descrição, enquanto atividade subjetiva, que faz figu- rar as coisas, para depois projetá-las.15 A partir do giro ontológico- -linguístico explicitado na Crítica Hermenêutica do Direito, intérprete é alguém já inserido - desde sempre - na linguagem, da qual o objeto inexoravelmente faz parte. Sem essa dicotomia sujeito-objeto e superados os dualismos pró- prios da tradição metafísica, o intérprete, ao interpretar, somente o faz ou pode fazê-lo a partir dos pré-juízos oriundos da tradição, na qual está jogado. Não há mais um sujeito (intérprete) isolado, con- 13. Cf. Conill, Jesús; Cortina, Adela. Razón dialógica y ética comunicativa en K.O. Apel. ln: ALMARZA- ·Menica, Juan M; et. ai. {Orgs.). EI pensamiento alemán contemporáneo. Salamanca: Editorial San Esteban, 1985. p. 148. 14. Com Stein, é possível afirmar que a partir da relação objetificante o jurista "justifica" seu estar- -fora-do-mundo. O paradigma epistemológico da filosofia da consciência fornece o arcabouço teórico para o hiato existente entre o discurso jurídico e a realidade, entre o intérprete do Direito e as normas e o mundo do qual fala, como se fossem coisas distintas, como se o intérprete fosse um sujeito contemplando os fatos e as normas. STEIN, Ernildo. Regime de constituição de obje- tos e demonstração da relação de objeto. Veritas, v. 43, nº 1, março 1998, p. 109-133. 15. Ver, para tanto, Heidegger, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70. 1992_ P- 2 7 _ 18 PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA templando o mundo e definindo-osegundo o seu cogito.16 Há, sim, uma comunidade de sujeitos em interação. Como bem lembra Lame- go, ao saltar (Überspringen) sobre o mundo" (Heidegger) da filosofia reflexiva, a hermenêutica filosófica opõe o nosso irredutível estar-no- -mundo (/n-der-Welt-sein) na constituição do conhecimento.17 Quando o jurista interpreta, ele não se coloca diante do objeto, separado deste por "esta terceira coisa" que é a linguagem; na ver- dade, ele está desde sempre jogado na linguisticidade deste mundo do qual ao mesmo tempo fazem parte ele (sujeito) e o objeto (o Direito, os textos jurídicos, as normas etc.). Gadamer acentua que a interpretação da lei é uma tarefa cria- tiva. Parte da Auslegung para o Sinngebung. Os diversos princípios que deve aplicar não representam somente problemas metodológicos, senão que entram a fundo na matéria jurídica mesma. Evidentemen- te, uma hermenêutica jurídica não pode contentar-se seriamente em empregar, como padrão de interpretação, o princípio subjetivo da ideia e intenção originárias do legislador. Em muitos casos, não pode evitar ter que aplicar conceitos objetivos, por exemplo, o da ideia ju- rídica que se expressa em uma lei. Ou seja, não há qualquer problema em se fazer sinonímias. Cumprir a lei nos seus limites textuais faz parte da democracia, mormente a partir do momento em que o Direi- to assume um elevado grau de autonomia. É o que Elias Diaz chamará de necessidade de cumprimento da legalidade constitucional. Gadamer acrescenta uma dura crítica à subsunção. Para ele, apa- rentemente é próprio de profanos imaginar a aplicação da lei a um caso concreto como processo lógico de submissão do particular para o geral. Ou seja, é desejável que, em uma democracia, a lei seja aplica- da sem o recurso aos subjetivismos e discricionarismos. Mas isso não significa aderir a uma aplicação mecânica, porque isso seria sucum- 16. Para Heidegger, é preciso inverter a fórmula cartesiana: eu penso porque existo. Não há cogito puro: todo cogito, tal como estabeleceu Husserl, é um cogitatum. O Ser, isto é, o sum do cogi- to, precede o pensamento; foi isto que Descartes esqueceu. O pensamento realiza sempre o caminho do ser-no-mundo. A realidade é um componente estrutural do pensamento. Cf. HEI- DEGGER, Martin. Introdução à filosofia. Trad. de Marco Antônio Casanova. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 119. 17. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. op. cit., passim. 19 Lenio Luiz Streck bir à tese de que direito e lei são a mesma coisa. Quando se critica o recurso à subsunção, apenas se quer dizer que não tem sustentação filosófica ainda falar desse procedimento. O positivismo clássico que pretende reduzir a realidade jurídica ao Direito positivo e a sua correta aplicação, sofre duras críticas de Gadamer, ao ponto de dizer que tal concepção acerca do Direito não tem, atualmente, nenhum partidário. Isto porque, continua o mestre alemão, a distância entre a generalidade da lei e a situação jurídica concreta que projeta cada caso particular é essencialmente insuperá- vel. Aparentemente, nem sequer bastaria pensar, em uma dogmáti- ca ideal, que a força produtora de direito inerente ao caso particular está predeterminada logicamente, no sentido de que caberia imagi- nar uma dogmática que contivesse ao menos potencialmente todas as verdades jurídicas em um sistema coerente. A simples "ideia" de uma tal dogmática completa parece absurda, e isto sem levar em con- ta que, de fato, a capacidade criadora de direito de cada caso está constantemente preparando a base a novas codificações.18 A compreensão como mola mestra do interpretar aparece na dis- cussão acerca da hermenêutica jurídica gadameriana - e também da Crítica Hermenêutica do Direito - como fazendo parte do conteúdo universalizante do seu projeto hermenêutico, ao dizer que o mode- lo da hermenêutica jurídica tem-se mostrado efetivamente fecundo. Assim, para Gadamer, quando o juiz se sabe legitimado para realizar a complementação do direito dentro da função judicial e frente ao sentido original de um texto legal, o que faz é o que de todos os modos têm lugar em qualquer forma de compreensão. Daí, a velha unidade das disciplinas hermenêuticas recupera seu direito se se reconhece a consciência da história efetuai ou, dito de outra maneira, a consciência exposta aos efeitos da história (Wirkungs- geschichtliches Bewusstsein) em toda tarefa hermenêutica, tanto na do filólogo como na do historiador. O sentido da aplicação - que aparece em toda forma de compreensão - não quer dizer aplicação posterior de uma generalidade dada, compreendida primeiro em si mesma, a um 18. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método 1: traços fundamentais de uma hermenêutica filo- sófica. 12. ed. Petrópolis:Vozes, 2012. p. 613. 20 PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMEN~UTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA caso concreto; é mais bem a primeira compreensão verdadeira da ge- neralidade que cada texto dado vem a ser para nós. A compreensão é uma forma de efeito, e se sabe a si mesma como efetual.19 O intérprete do Direito é um sujeito inserido/jogado, de forma inexorável, em um (meio)ambiente cultural~histórico, é dizer, em uma tradição. Quem interpreta é sempre um sujeito histórico concre- to, mergulhado na tradição. Para ter acesso a um texto ( e compreen- dê-lo), é impossível ao intérprete fazê-lo como se fosse uma mônada psíquica, utilizando o cogito herdado da filosofia da consciência. O intérprete é já, desde sempre, integrante de um mundo linguístico. A hermenêutica é crítica porque é produtiva (Sinn9ebung), e não reprodutiva (como queria E. Betti), isto é, a tese gadameriana de que é impossível reproduzir o sentido do texto jurídico assenta-se em uma profunda dialética, como a reproduzir a máxima de Heráclito de que é impossível banhar-se duas vezes na mesma água do rio. Via hermenêutica, rompe-se com qualquer possibilidade de idealismo e realismo. O intérprete não está fora da história efeitual. Na filosofia da consciência se dizia que o sujeito cognoscente poderia, de forma racional, determinar o objeto; com Gadamer, essa relação sujeito- -objeto é rompida/ultrapassada, pois o sujeito não é umé(ffi:.ônadà)e, sim, o sujeito é ele e sua possibilidade de ser-no-mundo, é ele e suas circunstâncias, enfim, é ele e sua cadeia significante. 20 Daí Gadamer dizer, homenageando Lacan em seus Kleine Schriften, que a lingua- gem não é em primeiro lugar aquilo que o indivíduo fala, e sim aquilo pelo qual o indivíduo é falado. A compreensão, condição de possibilidade para a interpretação, pressupõe uma antecipação de sentido, a integração da parte que deve ser compreendida em um conjunto preconcebido. A compreen- são é, pois, um processo de aproximação em desenvolvimento. Este processo desenvolve-se no tempo, pondo em jogo o indivíduo com 19. ldem,ibidem,p.414. 20. A impossibilidade monádica é bem descrita por Kothe, para quem ºa língua já é em si uma in- terpretação do mundo, da qual geralmente não se tem consciência, ficando-se sob o seu domínio. A língua como que impõe a sua visão do mundo ao homem e ela é, neste sentido, o seu incons- ciente" (Idem, ibidem). 21 Lenio Luiz Streck sua história vital e o contexto das tradições sociais (pré-compreen- são ). Como não se está falando de contemplação ( de um sujeito fren- te a um objeto, como no paradigma da filosofia da consciência), e sim no desenvolvimento de uma aproximação, que se produz de forma circular, o sujeito e o objeto se aproximam, em um processo de com- preensão, um ao outro, e se pressupõem mutuamente nos diferentes níveis de aproximação. Este movimento, no dizer de Hassemer, exclui a possibilidade de que se meça e se comprove a compreensão correta (o conhecimento verdadeiro). Já queres e intellectus não estão reci- procamente em uma relação dinâmica de aproximação, a "verdade" - não pode ser aedaequatio rei et intellectus; é um fenômeno de diá- logo, de consenso e de procedimento.21 Tampouco será aedaequatio intellectuset rei. Veja-se, aqui, as duas metafísicas. Nem escravo da lei; nem dono da lei. Eis a necessidade de se en- contrar uma caminho do meio para resolver os impasses interpre- tativos. Daí a questão fulcraf que castiga o imaginário dos juristas desde o século XIX: o que fazer com a moral. Como controlar os sub- jetivismos? Esse é o desafio. O positivismo clássico simplesmente cindiu direito e moral. De- pois disso, as diversas teorias tentaram lidar com isso. Pessimistas como Kelsen simplesmente partiram para uma linguagem de segun- do nível. Optaram por discursos externos, meramente descritivos, problemática que se repete, de outro modo, sem a diferença de níveis de linguagem, no positivismo exclusivo contemporâneo. A hermenêutica, a partir da captura epistêmica que fiz com a CHD, pode ser o caminho para enfrentar tanto os discursos objetivistas, como os discursos subjetivistas, que acabam ideologizados. Nesse sentido, a dupla estrutura da linguagem é um importante componen- te para demonstrar que não interpretamos para compreender, mas, sim, compreendemos para interpretar. Portanto, com isso, a CHD se preocupa com o modo como se julga e não apenas com o modo de justificação do que foi dito pelo juízo. 21. Cf. GRAU, Eros Roberto. La doble desestructuracion y la lnterpretacion dei Derecho. Barcelo- na: MJ. Bsch, 1998. p. 83. 22 PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICA JURÍDICA NÃO RELATIVISTA A CHD aposta em um discurso de primeiro nível e não em um dis- curso meramente~Por isso, não se pode admitir discursos subjetivistas, relativistas ou discricionaristas. Porque, se os admitís- semos, o próprio direito perderia a autonomia mínima para os dis- cursos adjudicadores, como a moral, a política, etc. Para o direito ser direito, devemos preservar-lhe minimamente o seu caráter norma- tivo e naquilo que ele mesmo diz no Estado democrático de Direito. A Constituição não é apenas uma mera ferramenta, um instrumen- to para ser manipulada. El~ é constituinte. Ora, se é constituinte da própria realidade em uma democracia, se deixarmos~ discursos solipsistas valerem mais do que ela, a CF e o restante da estrutura do direito, então a própria democracia fica fragilizada. O Direito não é um conjunto de narrativas. Não é somente retóri- / ca. Texto (lei) e norma ( sentido concretizado) não estão descolados. Por isso não se pode atribuir qualquer sentido a u!!la lei. Nem a um fato. A hermenêutica é inimiga da tese nietzscheana de que "fatos não há e que há somente interpretações". Isso é relativismo. Para o Direito essa tese se apresenta desastrosa, uma vez que deixa aõ intérprete a livre escolha dos sentidos. Aliás, essa é a luta da Crítica Hermenêutica e' do Direito: expungir o solipsismo das teorias jurídicas. E, por óbvio, das práticas cotidianas. Nesse sentido, a imensa batalha para retirar do Código de pro- cesso Civil o poder de "livre convencimento" do juiz. Dizendo de ou- tro modo e retornando à relação texto e norma, palavras e coisas, ser e dever-ser: para a Crítica Hermenêutica do Direito, só existem interpretaçõ~s porque existem fatos. A hermenêutica se apresenta, assim, como uma cadeira que se assenta entre o objetivismo e o sub- jetivismo. Portanto, levemos o Direito a sério. Deixemos que o texto nos diga algo. O intérprete não interpreta a partir de um grau zero de sentido. E tampouco fica preso aos limites pré-concebidos de uma determinada tradição. Interpretação jurídica quer dizer: o grau de autonomia do Direito que deve ser preservado está assentado em "propósitos". O que é isto - o texto jurídico? O que é isto - a Constitui- ção? Nesse sentido, é importante lembrar a seguinte questão: como 23 Lenio Luiz Streck o mundo só "existe" na medida em que for compreendido/interpre- tado, é possível dizer que, se a Constituição Federal estabelece que o Brasil se constitui em um Estado Democrático de Direito, colocando à disposição dos juristas os instrumentos para a sua implementação, é dizer, a função social do Estado; e se ela, a Constituição Federal, não é aplicada, então não há função social do Estado. Quando se fala em função social do Estado e do Direito, parte-se da premissa de que a Constituição brasileira, ao estabelecer o Estado Democrático de Direito, consagrou o princípio da democracia econô- mica, social e cultural, mediante os seguintes pressupostos deontológi- cos: a) constitui uma imposição constitucional dirigida aos órgãos de direção política e da administração para que desenvolvam atividades econômicas conformadoras e transformadoras no domínio econômi- co, social e cultural, de modo a evoluir-se para uma sociedade demo- crática cada vez mais conforme aos objetivos da democracia social; b) representa uma autorização constitucional para que o legislador e os demais ,órgãos adotem medidas que visem a alcançar, sob a ótica da justiça constitucional, nas vestes de uma justiça social; c) implica a proibição de retrocesso social, cláusula que está implícita na princi- piologia do estado social constitucional; d) perfila-se como elemento de interpretação, obrigando o legislador, a administração e os tribu- nais a considerá-lo como elemento vinculado da interpretação das nor- mas a partir do comando do princfpio da democracia econômica, social e cultural; e) impõe-se como fundamento de pretensões jurídicas aos cidadãos, pelos menos nos casos de defesa das condições mínimas de existência. 22 A doutrina e a jurisprudência predominantes estabelecem o ho- rizonte do sentido do jurista, a partir do qual ele compreenderá ( ou não) o Direito. Esse horizonte de sentido é uma espécie de "teto herme- nêutico", isto é, o limite do sentido e o sentido do limite do processo interpretativo. Forma-se, assim, o imaginário dos juristas, entendido como um depósito contendo uma rede de significações, do interior do qual o jurista dirá o tipo de Direito e o modo de interpretar/apli- 22. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. p. 87. 24 ~. PARA ALÉM DA RETÓRICA, UMA HERMENÊUTICAJURIDICA NÃO RELATIVISTA car Direito que quer para a sociedade. Na verdade, o jurista se confor- ma com aquilo que é predito acerca do Direito. Não se insurge contra essa fala falada. Submerge, pois, no mundo de uma tradição inautên- tica, na qual os pré-juízos se tornam um prejuízo. Desse modo, se há uma inefetividade dos dispositivos da Consti- tuição e se os "operadores jurídicos", mergulhados na crise paradig- mática, continuam .a negar o elevado grau de autonomia alcançado pelo Direito, circunstância que vivamente transparece das práticas cotidianas - tanto nas salas de aula dos cursos de Direito, como na doutrina e nos resultados dos julgamentos dos Tribunais -, é de se perguntar, por exemplo, onde está o sentido do Direito? A compreensão do novo modelo de Direito ( e de Estado) estabe- lecido pelo Estado Democrático de Direito implica a construção de possibilidades para a sua interpretação. Entender o Estado Democrá- tico de Direito - e seu programa de metas deontológico - a partir do horizonte do sentido proporcionado pelo modelo liberal-individua- lista-normativista ( que o vê como um conjunto meramente axioló- gico de princípios), redefine e esvazia as possibilidades do novo mo- delo. Se estamos desde sempre na linguagem e falamos a partir da tradição, os pré-juízos representados pelo velho modelo de Direito pré-formam o nosso olhar sobre o novo que, neste caso, nem sequer pode ser visto como novo, pois o novo somente será novo se tiver- mos a linguagem apropriada ( que é condição de possibilidade) para dizê-lo/compreendê-lo, isto é, se pudermos tratá-lo (fazê-lo ser) pela linguagem. Enfim, sem o necessário horizonte crítico para fundir com a tradição, a interpretação resultará em um mal-entendido. Sem poder-dizer-desvelar o sentido do ser do Estado Demo- crático de Direito - e suas implicações já anteriormente analisadas e delineadas, este ficarádifuso, diluído. mal compreendido. Dito de outro modo, se todos os 'textos jurídico-normativos do sistema jurí- dico somente podem ser considerados como válidos se interpretados em conformidade com a Constituição, e se a compreensão é condição de possibilidade para a interpretação, e se isto não .está ocorrendo, então é possível dizer que não está havendo a compreensão. Isto por- que a linguagem - morada do ser - está tomada pelo sentido comum teórico, que, e aqui parafraseio Bachelard, antes de ser juiz ou teste- 25 Lenio Luiz Streck munha do processo interpretativo, deve ser visto como réu! E como réu, deve ser acusado, suspenso, interditado, para que, a partir disto, se possa compreender o novo, deixando a linguagem do novo vir ao ente, com o consequente desvelar do ser. Enfim, é relevante ressaltar que as presentes reflexões preten- dem contribuir para a construção das condições de possibilidade de uma nova maneira de compreender o Direito. Ou seja, essa (nova) hermenêutica deve ser vista não como um emaranhado sofisticado de palavras, mas, sim, como uma ferramenta metateórica e transme- todológica a ser aplicada no processo de desconstrução do universo conceituai e procedimental do edifício jurídico, nascido no paradig- ma metafísico, que o impediu ( e continua impedindo, ao abrigo do paradigma epistemológico da filosofia da consciência) de submetê-lo às mudanças que há muito tempo novas posições teóricas - não mais metafísicas - nos põe à disposição. Hermenêutica é experiência. É vida. É este o nosso desafio: aplicá-la no mundo da vida (Lebenswelt). REFERÊNCIAS BETTI, Emilio. Interpretação das leis e dos atos jurídicos. Trad. de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; MOREIRA, Vital. Fundamentos da Constitui- ção. Coimbra: Coimbra Editora, 1991. CONILL, Jesús; CORTINA, Adela. Razón dialógica y ética comunicativa en K.O. Apel. ln: ALMARZA-Mefíica, Juan M; et. ai. (Orgs.). 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Trad. de Jose Carlos Bruni. São Paulo: Abril Cultural, 1975. 27 A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL to problemático que exige recursos dialécticos y que gira alrededor de una aporía fundamental de la búsqueda de la solución más justa para cada situación concreta. La racionalidad debe superar el árnbi to deductivo de la lógica formal que si bien es cierto es rnuy eficaz en el campo de las ciencias, no resulta oportuno para la jurispru dencia en la que es más recornendable ernplear la tópica. Y la tópica ~ es una técnica dei pensarniento problemático, entendiendo por pro blema toda cuestión que suscite una disputa y aparentemente ofre zca más de una solución. Por eso el problema debe forrnularse ade cuadarnente y, una vez formulado, se deben introducir una serie de deducciones más o menos explícitas que conduzcan a su resolución. Pero no se trata de deducir la solución para el problema a partir de las bases del sistema que se articula mediante las deducciones, sino, inversamente, de reinventar inductivamente un sistema diferente para cada problema. Por eso sefiala Viehweg que la tópica pone en rnovimiento la "heuresis" o "inventio". "La tópica o ars inveniendi proporciona indicaciones útiles, los topai o Iocí, ofrecen soluciones iniciales concretas. Funcionan corno "fórmulas de búsqueda" en el sentido retórico, corno directrices ofrecidas, aceptadas, aceptadas, o de alguna manera irnpuestas o rechazadas, para la invención, es decir, para descubrir puntos de vista que solucionen el problema en la dirección indicada dentro de una tópica de primem o segundo grado, corno posibilidades para ingresar en conversaciones corno objetos de las negociaciones.17" Lüderssen, citado por Juan Antonio Garcia Amado, assinala não saber exatamente qual a definição de tópica jurídica, enumerando este autor os topoi mais freqüentes sobre o pensar tópico, a saber: teoria da prática; doutrina da argumentação; pensamento orienta do para o problema; orientação para a ação ou decisão; doutrina dos lugares comuns, etc. Afirma ainda que é utópico pretender en contrar um ponto a partir do qual estes 'tópicos da tópíca' podem sistematizar-se juntos. Para Lüderssen, a tópica é a 'busca raciona lizada de premíssas"'18• 17. http:/ /mingaonline.uach.cl/scielo.php?pid=50718-095020020001 00002&script=sci_arttext acesso em 17 .11 .16, às 19h40 . 18. "Juristiche Topik und Konsensorientierte Rechtsgetltung" in Europaisches Rechtsdenken in Geschi chte und Gegenwart. Festschrift für Helmut Coing zum 70. Geburtstag,, Munich, Beck, 1982, p. 549 e ss, apud Juan Antonio Garcia Amado, Teorias de la Topica Jurídica, pp. 85/86, trad. livre do autor. 35 George Salomão Leite ........ ., .... ,., .. ,.."... . . ., ............ ., ............ ., ...... . Consoante Marco Aurélico Marrafon, a tópica jurídica pode ser analisada sob três (03) diferentes perspectivas, a saber: a) do objeto; b) do instrumento e; c) do tipo de atividade. Explica o citado autor: "i. do objeto: é técnica do pensamento problemático, porque se re- laciona com um problema, que no direito é um caso concreto que permite diferentes respostas jurídicas válidas; ii. do instrumento: opera a partir da noção de topos (topoi) ou lugar comum da argumentação, cuja natureza é de uma premissa éndoxa; iii. do tipo de atividade: é atividade de busca e exame de premissas colocadas em debate, na tentativa de obtenção de um consenso que forneça uma única resposta válida. 19" Deste modo, explica o citado autor, os três eixos acima apontados não são excludentes entre si, mas expõe os pilares do pensamento problemático, "porque parte do problema, buscando solucioná-lo sem dele se desvincular, opera e se realiza através dos topai, os quais são as premissas examinadas e confrontadas dialeticamente na busca de uma verdade que seja uma solução justa para o caso concreto."2º Esclarecedoras são as palavras de Tercio Sampaio Ferraz Jr. acer- ca do significado da tópica jurídica:"Quando se fala, hoje, em tópica pensa-se, como já dissemos, numa técnica de pensamento que se orienta para problemas. Trata-se de um estilo de pensar e não, propriamente, de um método. Ou seja, não é um conjunto de princípios de avaliação de evidência nem de cânones para julgar a adequação de explicação propostas, nem ain- da critério para selecionar hipóteses. Em suma, não se trata de um procedimento verificável rigorosamente. Ao contrário, é um modo de pensar, problemático, que nos permite abordar problemas, deles partir e nele culminar. Assim, pensar topicamente significa manter princípios, conceitos, postulados com caráter problemático visto que jamais perdem sua qualidade de tentativa. ( ... ) 19. Predomínio da Tópica promove crise na teoria das fontes do Direito. ln http://www.conjur.com. br /2 O 1 5-j u n-08/ constitui ca o-pode r-p redo mi n io-to pica-j u rid ica-pro move-crise-teoria-fontes- -d i reito. Acessado em 17.11.2016. 20. Predomínio da Tópico promove crise na teoria das fontes do Direito. ln http://www.conjur.com. br/2015-jun-08/constituicao-poder-predomínío-topica-jurídíca-promove-crise-teoria-fontes- -direito. Acessado em 17.11.2016. 36 A TÓPICAJURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL realmente. Segundo o mestre grego, são "verdadeiras" e "primeiras" aquelas coisas nas quais acreditamos em virtude de nenhuma outra coisa que não seja ela própria. Por outro lado, "opiniões geralmente aceitas" são aquelas que todo mundo admite, ou a maioria das pesso- as, ou os filósofos, em outras palavras: todos, ou a maioria, ou os mais notáveis e eminentes.9 Posto deste modo qualquer problema, basta pensar corretamente conforme as opiniões que pareçam adequadas ( ex endoxon) para atacar ou defender. Desta forma, o que diferencia o raciocínio dialético do raciocínio analítico (demonstrativo) não é o aspecto formal, mas sim o material, é dizer, a natureza das premissas utilizadas. O raciocínio dialético utiliza-se de premissas verossímeis, ou seja, de opiniões geralmente aceitas, ao passo que o analítico utiliza-se de premissas verdadeiras e primeiras, que não podem sequer ser postas em dúvida.10 No que tange ao vocábulo "topai", aparece pela primeira vez no final do primeiro livro da Tópíca, mas sua explicação encontra-se na Retórica. Aduz Aristóteles que os topai são "pontos de vista utilizáveis e aceitáveis em toda parte, que se empregam a favor ou contra o que é conforme a opinião aceita e que podem conduzir à verdade."11 Quanto à tópica ciceroniana, esta teve maior influência histórica do que a aristotélica. Pretendeu Aristóteles construir uma teoria da tópica, situada no campo filosófico, ao passo que a tópica de Cícero estava totalmente vertida para sua utilização prática. O trabalho de Cícero consiste em uma coletânea de topois voltados para sua aplica- ção prática, e não de uma ordenação teórica dos topoi, como fez Aris- tóteles. Para Cícero, a tópica consiste na arte de buscar argumentos. A tópica ciceroniana está voltada para a práxis. 9. Ibidem, mesma página. 1 O. Chaim Perelman, baseado em Aristóteles, faz a seguinte distinção entre os raciocínios analíticos e dialéticos: "Os raciocínios analíticos são aqueles que, partindo de premissas necessárias, ou pelo me- nos indiscutivelmente verdadeiras, redundam, graças a inferências válidas, em conclusões igualmente necessárias ou válidas."( ... ) Por sua vez "os raciocínios dialéticos ( ... ) dizem respeito aos meios de per- suadir e de convencer pelo discurso, de criticar as teses do adversário, de defender e justificar as suas próprias, valendo-se de argumentos mais ou menos fortes." Lógica Jurídica - Nova Retórica, p. 1; Cf. tb. José Souto Maior Borges, O Contraditório no Processo Judicial (uma visão dialética), p. 25. 11. TheodorViehweg, Tópico e Jurisprudência, p. 27. 33 George Salomão Leite 2. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DA TÓPICA Urge advertir, desde logo, que a definição do que seja a tópica, em Viehweg, não é clara. Oferece este autor várias formulações acer ca de um mesmo conceito. Aliás, a obscuridade e a generalidade dos conceitos são características marcantes na "Tópica e Jurisprudência", conforme observaremos mais adiante. Na introdução de sua obra, Viehweg nos afirma ser a tópica "uma técnica de pensar por problemas, desenvolvida pela retórica."12 Um pouco mais adiante, caracteriza a tópica como "um procedimento de discussão de problemas"13; aduz, ainda, que "o ponto mais impor tante no exame da tópica constitui a afirmação de que se trata de uma techne do pensamento que se orienta para o problema''14; por fim, define a tópica como um "procedimento de busca de premissas." 15 Em razão da generalidade da definição do conceito de tópica jurídica, Viehweg torna-se alvo de duras críticas formuladas pelos opositores do estilo tópico.16 Juan Omar Cofré, em trabalho sobre Lógica, Tópica e Retórica, aduz o seguinte: Viehweg, siguiendo a Otte, sostiene que la tópi ca puede ser entendida de tres maneras diferentes: (1) como una técnica de búsqueda de premisas; (2) como una teoría sobre la na turaleza de las premisas y (3) como una teoría dei uso de las pre misas en la fundamentación jurídica. Así, surge entonces el sistema tópico o la tópica propiamente tal que, según el autor alemán, se debe entender como una parte de la retórica ya que está orientada y organizada de acuerdo a problemas y vale para resolverlos, tanto en el campo de la investigación como en el de la dogmática y de la práctica jurídica. El razonamiento tópico es un tipo de razonamien- 12. Ibidem, p. 17. 13. lbldem, p. 18. 14. Ibidem, p. 33, grifado no original. 15. Ibidem, p. 39. 16. Apenas a título de exemplo, Flume, citado por Claus - Wihelm Canaris, assevera que "todo o pensamento jurídico é pensamento problemático e cada regulação jurídica é o de um problema." A esta proposição, acrescenta Canaris uma outra: utodo pensamento científico é em geral pensa mento problemático - pois um 'problema' nada mais é do que uma questão cuja resposta não é, de antemão, clara." Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito, p. 246. 34 A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL George Salomão Leite1 SUMÁRIO: 1. Tópica. Considerações históricas; 2. Conceito e características da Tópica; 2.1 O problema; 2.2. Topoi; 2.3. Meditação pré-lógica; 2.4. Legitimação das premissas; 3. Tópicos sobre "Tópica e Jurisprudência"; 4. Tópica na interpretação constitucional; 5. Konrad Hesse e a interpretação constitucional; 6. Princípios da interpretação constitucional; 6.1. Supremacia da Constituição; 6.2. Unidade da Constituição; 6.3. Maior efetividade possível; 6.4. Harmonização das normas constitucionais ou concordãncia prática; 6.5. Correção funcional; 6.6. Força normativa da Constituição; 6.7. Princípio do efeito integrador; 7. A ponderação de interesses e o princípio da proporcionalidade; Conclusões; Bibliografia. "Lo importante es la técnica dei pensar sobre los problemas, la qual se desenvolvió em el seno de la retórica, o sea dei arte de la persua- sión. La retírica dialéctica procede de um modo radicalmente dife- rente dei método sistemático. Em efecto, el método sistemático, toma como ponto de partida uma verd:cide primaria, un axioma, que no puede ser aniquilado por la duda; y procede por medío cte una :sede <lc rigorosas <l.aducdones dei tipo que es característico de la matemática. AI contrário, la retóri- ca dialéctica toma como punto de partida e! sentido común, e! qual va tanteando e! caminho en e! campo de las verossimilitudes, y se guía 1. Doutorando em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires - UCA. Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/ SP. Advogado. 29 George Salomão Leite por la prudencia humana. Para todo eso adiestra la imaginación y en- sefía a considerar las circunstanciasdesde muy diversos aspectos; y trabaja ponderando la respectiva fuerza de convicción de cada uno de los vários puntos de vista que encuentra y que ensaya. Se trata da arte de los debates y de las deliberaciones, para averiguar cuál, entre varias opiniones diferentes, tiene um mayor peso de convencimento y conduz a um resultado más plasible. A mi entender, lo principal radica em la acentuación puesta en e! punto de que e! pensamento sobre los contenidos jurídicos es una especie dei pensamineto sobre problemas, dei pensamento suscitado por una questión práctica de conducta humana. El pensamiento sobre problemas analisa todos los componentes de la cuestión jurídica planteada; intenta comprender la significación y el alcance de cada uno de esos componentes; rela- ciona esos componentes con las valoraciones adecuadas; indaga las respectivas relaciones de rango o jerarquia entre los valores que ven- gan em cuestión. Y finalmente toma en cuenta los diferentes efectos de cada una de las soluciones propuestas, tratando de compararlos con los valores y con los propósitos y fines implicados por la situaci- ón conflictiva, que fue la que planteó e! problema. Paréceme que tiene uma importância permanente e! insistir sobre el diálogo, sobre el debate, sobre la confrontación de las diferentes argumentaciones, sobre el processo de aquilatar cada uno de los ale- gatos, sobre e! atribuir a cada uno de ellos e! sentido, el papel y e! alcance que !e corresponda. Estimo que es muy correcto invocar la prudência, como suma y com- pendio jerarquicamente organizado de un modo certeiro, de todos los datos y de todos criterios de valor que vengan en cuestión para resolver un problema jurídico, como, en general, cualquier proble- ma de conducta humana práctíca, como lo son también las questio- nes políticas." (Luis Recaséns Síches, Introducción ai estudío dei derecho, p. 261) 1. TÓPICA. CONSIDERAÇÕES HISTÓRICAS Após um longo período de esquecimento, a tópica jurídica surge na Alemanha alguns anos depois da Segunda Guerra Mundial, com o intento de responder à crise do positivismo desencadeada pela implantação de regimes totalitários2• Neste mesmo sentido, elucida Paulo Bonavides que "a insuficiência do positivismo explica o advento da tópica na medida em que lhe foi possível abranger toda a realidade do direito, valendo-se, conforme ressaltou Kriele, de normas positivas, 2. Juan Antonio Garcia Amado. Teorias de la topica jurídica, p. 23. 30 A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL escritas ou não escritas, em vinculação com as regras de interpretação e os elementos lógicos disponíveis."3 A tópica é um estilo de pensamento voltado para a práxis jurídi- ca, que se insurge contra o raciocínio axiomático-dedutivo, de tipo silogístico, rejeitando a concepção legalista e estatizante do direito, expressão da vontade arbitrária de um poder soberano, que nenhu- ma norma limita e não é submetido a nenhum valor.4 O estilo de pensar por problemas foi retomado por Theodor Viehweg, em sua obra Topik und Jurisprudenz publicado pela primei- ra vez em 1953, onde pugna pela estrutura tópica da Ciência do Direi- to, oujurisprudenz nos termos do próprio Viehweg. Desde então, re- acendeu-se o debate em torno da estrutura do pensamento jurídico, que para o citado autor é um pensamento voltado para o problema, contraposto, desde logo, ao pensamento sistemático. Para compreendermos o estilo tópico, faz-se necessário a análise da obra "Tópica e Jurisprudêncía"S, pois foi a partir desta que teve início toda a discussão supramencionada. Viehweg inicia sua obra pelos fundamentos do pensar tópico, pondo de lado uma investigação histórica independente. O autor parte, inicialmente, das considerações relativas aos procedimentos científicos (scíentiarum instrumenta) feitas por Gian Battista Vico, em 1708, em sua dissertatio denominada De nostre temporis studíorum ratione (O caráter dos estudos de nosso tempo), onde, na realidade, procura Vico analisar a conciliação entre dois métodos científicos de estudo, a saber: o antigo (tópico) e o moderno (crítico). O primeiro é uma herança da antiguidade, transmitida por Cícero, sendo seu ponto de partida o senso comum (common sense), que mani- pula o verossímil (varíssirnila), mediante a contraposição de pontos de vista, segundo os cânones da tópica retórica, trabalhando, sobretudo, com uma rede de silogismos. Por sua vez, o método crítico tem como 3. Curso de Direito Constitucional, p. 450. 4. Cf. Chaim Perelman, Lógica Jurídica, p. 96. 5. Neste trabalho utilizamos a obra traduzida porTércio Sampaio FerrazJr. Há também uma versão em espanhol traduzida por Luis Diez Pícazo, e com epílogo de Eduardo Garcia de Enterría. 31 George Salomão Leite ponto de partida um primum verum, que não pode sequer ser posto em dúvida. O seu desenvolvimento se dá através de uma longa cadeia de- dutiva, à maneira da geometria. Segundo Vico, as vantagens deste novo método estariam na agudeza e na precisão da· conclusão, caso o primum verum seja mesmo verum. As desvantagens, entretanto, predominam, consistindo na "perda em penetração, estiolamento da fantasia e da me- mória, pobreza da linguagem,falta de amadurecimento do juízo, em uma palavra: depravação do humano.'16 Tudo isto, aduz Vico, pode ser evitado pela tópica retórica, pois esta "proporciona sabedoria, desperta a fanta- sia e a memória e ensina como considerar um estado de coisas de ângulos diversos, isto é, como descobrir uma trama de pontos de vista."' Em decorrência disto, conclui Vico, que deve haver uma interca- lação entre os dois métodos, pois um sem o outro não se efetiva. Após a "alusão de Vico", Viehweg passa a examinar os fundamen- tos da tópica em Aristóteles e Cícero. O nome "tópica': que significa técnica de pensar por problemas, foi atribuído por Aristóteles no seu famoso texto Tópica. Nesta obra o au- tor se ocupa da antiga arte da disputa, domínio dos retóricos e sofistas, que constitui o campo do meramente oponível, é dizer, da dialética. No livro I da Tópica, Aristóteles afirma que o seu "tratado se pro- põe encontrar um método de investigação graças ao qual possamos raciocinar, partindo de opiniões geralmente aceitas, sobre qualquer problema que nos seja proposto, e sejamos também capazes, quando replicamos a um argumento, de evitar dizer alguma coisa que nos cau- se embaraço.''B Para isto, Aristóteles classifica os raciocínios em de- monstrativo,-dialético e erístico. Diz-se que o raciocínio é uma demonstração quando as premis- sas das quais emanam são verdadeiras e primeiras, ou quando o co- nhecimento que delas temos provém originariamente de premissas primeiras e verdadeiras; por sua vez, dialético é o raciocínio que par- te de opiniões que parecem ser geralmente aceitas, mas não o são 6. Theodor Viehweg, Tópica e Jurisprudência, pp. 21 /22. 7. lbidem,p.22. 8. Tópicos, p. 5. 32 \ A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL Os pontos de vista referidos, chamados loci, topoi, lugares-comuns, constituem pontos de partida de séries argumentativas, em que a razoabilidade das opiniões é fortalecida. Como se trata de séries argumentativas, o pensamento tópico não pressupõe nem objetiva uma totalidade sistematizada. Parte de conhecimentos fragmentá- rios ou de problemas, entendidos como alternativas para as quais se buscam soluções. O problema é assumido como um dado, como algo que dirige e orienta a argumentação, que culmina numa solu- ção possível entre outras.''21 Karl Larenz, outro crítico da técnica do pensamento problemáti- co, assim descreve a tópica: "procedimento de um discurso vinculado ao caso, o tratamento en- globante dos problemas emergentes no caso com o objetivo de um consenso dos interlocutores, ou em termos gerais mais abstratos, a 'aptidão de consenso' da solução proposta em conclusão. Em tal dis- curso são considerados relevantes os diversos pontos de vista ('topoi')que se mostrem aptos a servir de argumentos pró ou contra a solução ponderada. De entre eles, o argumento sobre as conseqüências ('o que ocorreria se fosse adotada esta ou aquela solução') desempenha um papel de particular importância." 22 Acrescenta Larenz que "o fato de se esta ou aquela conseqüência (possível ou provável) é de antever suscita por si nova discussão. Em última análise, uma discussão assim prosseguida é infindável, pois que jamais se sabe se novos pontos de vista ('topoi') que nunca forma con- siderados devem ser levados em conta."23 Objetivando conciliar e tornar inteligível a compreensão do estilo tópico proposto por Viehweg, comparando, também, as várias defini- ções destoantes da tópica formuladas pela doutrina, leciona Juan An- tonio Garcia Amado que este problema reside no fato de os autores mesclarem de modo variável três elementos entre si heterogêneos, sem precisar a ordem de sua importância e a forma de sua incardi- naç:ão dentro da teoria. Estes elementos são os seguintes: "o objeto e fator desencadeante do processo: o problema, a aporia; o instrumento com que se opera: os topoi; o tipo de atividade em que tal proceder se 21. Introdução ao Estudo do Direito, pgs. 328/329. 22. Metodologia da Ciência do Direito, p. 170. 23. Ibidem, mesma página. 37 George Salomão Leite manifesta: a discussão de problemas, a busca e exame de premissas por meio do discurso, da argumentação."24 Seguindo a orientação do ilustre autor espanhol, iremos abordar separadamente cada elemento integrante da definição de tópica jurí- dica, a saber: o problema; os topoi; e a legitimação das premissas. A estes elementos que integram a definição de tópica jurídica, analisa- remos um outro denominado "meditação pré-lógica". Ao término da análise, formularemos nossa definição de tópica jurídica e verificare- mos se a mesma (tópica) consiste em um instrumento interpretativo, mas precisamente, de interpretação da norma constitucional. 2.1 O Problema Conforme demonstramos no item anterior, em Viehweg "o ponto mais importante no exame da tópica constitui a afirmação de que se trata de uma techne do pensamento que se orienta para o problema."25 Neste reside o ponto essencial de toda a tópica. O problema é o ponto de partida do pensamento tópico, aquilo em torno do qual os raciocínios giram ou, segundo Viehweg, signifi- ca "toda questão que aparentemente permite mais de uma resposta e que requer necessariamente um entendimento preliminar, de acordo com o qual toma o aspecto da questão que há que levar a sério e para a qual há que buscar uma resposta como solução."26 De forma similar, Jan Schapp define caso como "aquilo que acontece ao indivíduo e que o jurista deve resolver. Caso é tanto para aquele que é lesado em seus bens jurídicos, como para aquele que lesa bens jurídicos de outro. A relação entre ambos dá-se no caso,faz parte do próprio caso.27" Segundo Juan Antonio Garcia Amado, o que faz com que uma questão se constitua um problema é a existência de distintas alterna- tivas para seu tratamento, de diferentes respostas ou vias de atuação possíveis. Porém, busca-se uma solução ou resposta, o que, ineludi- 24. Teorias de la Tópica Jurídica, p. 90, trad. livre do autor. 25. Topica e Jurisprudência, p. 33, grifado no original. 26. Ibidem, p. 36. 27. Problemas fundamentais de metodologia jurídica, p. 25. 38 -·, ··, -.°\ \ A TÓPICA JURIDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL velmente, leva à necessidade de uma decisão, de uma eleição entre alternativas. 28 Na verdade, o que caracteriza o problema não é o fato de ele sus- citar mais de uma resposta, haja vista que, partindo de premissas verossímeis, para a sua solução haverá sempre duas ou mais respos- tas possíveis. O que efetivamente define o problema é estar sempre aberto para discussão, é dizer, permanecer sempre sem uma solução definitiva, que resolva a questão de uma vez por todas. E é por esta razão que pretende Viehweg atribuir à jurisprudência uma estrutura tópica, pois aquela está sempre a serviço de um problema fundamen- tal: a aporia da justiça. O que é o justo aqui e agora? Eis um problema que o direito busca permanentemente resolver.29 Interessante, também em Viehweg, é o silogismo por ele criado para justificar a jurisprudência como sendo de natureza tópica, verbis: "Pois bem, se é certo que a tópica é a techne do pensamento problemá- tico, a jurisprudência, como uma techne a serviço de uma aporia, deve corresponder à tópica nos pontos essenciais." 30 Podemos ilustrar o que acima foi dito da seguinte maneira: onde há sociedade, há problema, onde há problema há direito, assim, po- demos concluir que o direito só existe em função dos problemas. Onde não houver problemas, conflitos de interesses, não haverá ra- zão de existir o direito. A sociedade precisa do direito para pôr ter- mo aos problemas que se lhe apresentam diariamente. Não há como conceber uma sociedade vivendo harmonicamente sem a presença do direito regulando as condutas intersubjetivas. Isto porque a socie- dade compõe-se de homens, e estes possuem determinadas paixões que geralmente se conflitam, ou seja, há pessoas egoístas, pessoas desonestas, de modo que o ser humano não é um ser frio, isento de 28. Teorias de la Tópica Jurídica, p. 76. 29. Sobre a aporia da justiça, elucida Viehweg: "Nela, trata-se simplesmente da questão do que seja justo aqui e agora. Esta questão na jurisprudência, a menos que se possam mudar as coisas, é iniludível. Se não se colocasse (de interesse) e da retidão humana, faltaria o pressuposto de uma jurisprudência em sentido próprio. Esta questão irrecusável e sempre emergente é o problema fundamental de nosso ramo do saber. Como tal, domina e informa toda a disciplina." Tópica e Jurisprudência, p. 88. 30. Ibidem, p. 89. 39 George Salomão Leite paixões, por isso não podemos deixar de dizer que não existe socie- dade sem conflitos. Uma pessoa isolada em uma ilha não necessita do direito porque nunca haverá a possibilidade dele entrar em conflito consigo mesmo, que dizer, nunca poderá haver um problema de natureza intersubjeti- va porque não há outra pessoa para que este problema se possa origi- nar. Ou seja, onde houver apenas uma pessoa não há direito. A partir do momento que pusermos mais um indivíduo nesta ilha, começarão a surgir conflitos de toda ordem, isto é, haverá uma delimitação espa- cial, as paixões individuais começarão a vir à tona, de modo que cedo ou tarde um problema irá surgir e, consequentemente, uma norma também virá para dirimir este conflito. Desta forma, podemos obser- var que o direito surge em razão de problemas oriundos da convivên- cia entre humanos, e apenas retira sua razão de ser a partir destes mesmos problemas. O direito é feito pela sociedade e para esta mes- ma sociedade. Ou seja, o direito é feito para dizer o justo aqui e agora. É um meio a serviço de um fim. O direito é técnica, instrumento que serve ao problema fundamental da justiça. Eis a razão de ser do direi- to: a aporia fundamental da justiça, A tópica pretende fornecer indicações de como se comportar em tais situações, a fim de não se ficar preso, sem saída. É, portanto, uma técnica do pensamento problemático. 31 Apoia-se Viehweg nas ideias de Nicolai Hartmann para contrapor o pensamento sistemático ao pensamento aporético.32 No pensamento problemático, o problema está à frente de tudo, é a partir dele que será feita à seleção do sistema, ou seja, o acento 31. Ibidem, p. 33. 32. Eis o trecho que o autor transcreve o trabalho de Hartmann: ºO modo de pensar sistemático pro- cede do todo. A concepção é nele o principal e permanece sempre como o dominante. Não há que buscar ponto de vista. O ponto de vista está adotado desde o princípio. E a partir dele se selecionam os problemas. Os conteúdos do problema que não se conciliam com o ponto de vista são rejeita- dos. São considerados como uma questão falsamente colocada.Decide-se previamente não sobre a solução dos problemas, mas sim sobre os limites dentro dos quais a solução pode mover-se." ~ .. o modo de pensar aporético procede em tudo ao contrário.º "(O modo de pensar aporético) não põe em dúvida que o sistema exista e que para sua própria maneira de pensar talvez seja latentemente o determinante. Tem certeza do seu sistema, ainda que não chegue a ter dele uma concepção." Ibi- dem, p.35. 40 A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL no problema opera uma seleção de sistema. Partindo de determinado problema, buscamos uma solução em um sistema A, caso o sistema A não ofereça a solução adequada passamos ao sistema B, e assim por diante, até que achemos uma solução adequada em um determinado sistema. Desta forma, o acento no problema opera uma seleção de sistema. Consoante o pensar sistemático, ao revés, o acento no sistema opera uma seleção de problemas. Cada sistema busca nele próprio os seus problemas. Caso no sistema não seja encontrada uma resposta para o que se denominou de problema, então, conclui-se que aquilo não é um verdadeiro problema, mas sim um falso problema e, por- tanto, será desconsiderado do sistema. O sistema, no dizer de José Souto Maior Borges, é um antídoto contra a dúvida e a fragilidade de argumentação: é pensar com segurança. Acrescenta ainda este autor que "o modo de representação sistemática é, por excelência, modo de representação conceitual."33 Feitas essas considerações, é necessário frisar que Viehweg não se contrapõe a todo e qualquer sistema, senão aos sistemas do tipo axiomático-dedutivo. Um sistema deste tipo é formado do seguinte modo: a base do sistema está composta por axiomas, ou seja, pro- posições que prescindem de demonstração, que não podem sequer ser postas em dúvidas, e que são consideradas válidas. A partir das regras de transformação utilizadas pelos lógicos, podemos deduzir destas proposições axiomáticas outras igualmente válidas e assim por diante, até que se complete o sistema. Deste modo, caracteriza-se o sistema axiomático pela nota de completude, coerência e indepen- dência dos axiomas. Para Viehweg, um sistema jurídico desta natu- reza nunca foi construído, "ainda que sua existência seja pressuposta usualmente em nosso pensamento jurídico."34 Em síntese, o problema é o ponto inicial e nodular de todo o pen- sar tópico e, embora não despreze a existência do sistema, dele não se faz depender. O problema pode não ser perdido de vista, pois é ~. 33. O Contraditório no Processo Judicial (uma visão dialética), p. 28. 34. Tópica e Jurisprudéncia, p. 77. 41 George Salomão Leite ............................................................................................................................................... ·---····················································· em função dele existe. Como já disse Viehweg, a jurisprudência está a serviço de uma aporia: a aporia fundamental da justiça. Por problemas constitucionais, devemos entender todo o conflito de interesses que envolvam a Constituição. Onde esta estiver envolvi- da, devemos afirmar que o problema é de natureza constitucional. Os problemas constitucionais são, na maior parte dos casos, problemas de poder ou de violação dos direitos fundamentais. 2.2 Topoi Elemento importante na configuração do estilo tópico, os topoi são entendidos em razão de sua natureza funcional. Servem a uma discussão de problemas. No entender de Viehweg, os topoi devem ser compreendidos de um "modo funcional, como possibilidades de orien- tação e como fios condutores do pensamento:r;is Os topoi são pontos de vista auxiliares utilizados na busca de uma solução adequada para um problema previamente dado. Entre- tanto, Viehweg não deixa claro o que pode ser utilizado como topoi na discussão do problema. Seriam topoi as normas jurídicas? Ou quem sabe as proposições jurídicas formuladas pela doutrina? Poderíamos também utilizar como topoi a jurisprudência dos tribunais? Eis uma questão que Viehweg não deixa claro. Analisando a Tópica e Jurisprudência de uma forma sistemática, percebemos que qualquer elemento que sirva à discussão em busca da solução adequada do problema posto, pode ser utilizado como to- poi: a norma jurídica, as proposições jurídicas formuladas pela dou- trina, a jurisprudência, etc. É bom acrescentarmos que estes pontos de vista recebem seu sentido a partir do problema, e a ele encon- tram-se vinculados.36 Por esta razão, é que os topoi são aceitáveis ou 35. Ibidem, p. 38. 36. Passaremos a compreender a natureza assistemática (no sentido de não poder se configurar como sistema axiomático) a partir das seguintes palavras de Viehweg: 'e uma simples questão de formulações determinar se se apresentam como conceitos ou como proposições. Não se pode esque- cer que seu valor sistemdtico tem que ser necessariamente intranscedente. Grandes conseqüências não se conciliam bem com sua função, motivo pelo qual o peso lógico das tramas de conceitos e pro- posições elaboradas pelos topoi é sempre pequeno."( ... ) "A constante vinculação ao problema impe- 42 A TÓPICA JURÍDICA COMO TÉCNICA DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL inaceitáveis, adequados ou inadequados, pertinentes ou impertinen- tes etc. Em Karl Larenz, são topoi "argumentos utilizados na solução de problemas jurídicos, e que podem contar neste domínio com a concor- dância geral, o 'consensus omnium"'. Em razão da diversidade de for- mas com que Viehweg apresenta os tópicos (conceitos, proposições), adverte Larenz que, aparentemente, estes podem ser entendidos como toda e qualquer ideia ou ponto de vista que possam desempe- nhar algum papel nas análises jurídicas, sejam elas de que espécies forem.37 Em outras palavras, toda proposição ou conceito que sirva a uma discussão de problemas e que leve a busca de uma solução ade- quada para o caso concreto pode ser considerado como topoi. Ainda segundo Larenz, "não se consegue depreender com exatidão o que é que VIEHWEG entende por tópico jurídico. Aparentemente, considera como 'tópico' toda e qualquer ideia ou ponto de vista que possa desem- penhar algum papel nas análises jurídicas, sejam estas de que espé- cie forem. Perante a possibilidade de empregos tão variados, não é de surpreender que cada um dos autores que usam o termo 'tópico; hoje caído em moda, lhe associe uma representação pessoal, o que tem de ser levado em conta na apreciação das opiniões expendidas38." Um defensor do pensamento tópico, Gerhard Struck, em seu es- tudo Topische Jurisprudenz, põe em evidência a importância dos topai tanto na legislação quanto na jurisprudência. Para tanto, enumera 64 pontos de vista, dentro dos quais, apenas exemplificativamente, cita- remos alguns: a) Lex posterior derogat legi priori (Lei posterior revo- ga a lei anterior); b) Lex specialis derogat legi generali (Lei especial derroga lei geral); c) Res judicata pro veritate habetur ( coisa julgada é tida como verdade); d) ln dúbio pro reo in dúbio pro libertate (em de o tranqüilo raciocínio lógico para trás e para diante, quer dizer, a redução e a dedução. Vemo-nos continuamente perturbados pelo problema."(. .. ) "Como antes dizíamos, a constante vinculação ao problema só permite conjunto de deduções de curto alcance. t preciso que haja a possibilidade de os interromper a qualquer momento à vista do problema. O modo de pensar problemático é esquivo às vinculações."Tópica e Jurisprudência, pp. 38 e ss. 37. Metodologia da Ciência do Direito, p. 203. 38. Metodologia da Ciência do Direito, p. 204. 43 George Salomão Leite caso de dúvida a favor do réu ou da liberdade); e) as exceções têm interpretação estrita etc. 39 Em nosso entender, os topoi são argumentos materiais de que se utilizam os práticos do direito, para tentar oferecer uma solução ade- quada ao problema posto. Procura, através dos topoi, fundamentar a justa decisão. Nesse sentido, seriam topoi constitucionais, pois,
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