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1.1. O tempo da ética, da história e da razão Tudo o que conhecemos da actual sociedade ocidental, da ciên- cia à arte, da economia à política, da técnica à indústria, entre mui- tos outros aspectos, tem as suas origens nas profundas mudanças ope- radas na sociedade, na economia e nos meios de produção a partir de meados do século XVIII. Podemos afirmar que o acontecimento que marca o fim do e inaugura uma nova era é a Revolu- ção Francesa. Os antecedentes que proporcionaram este ambiente revolucioná- rio e as consequentes transformações na Europa, foram o e a (1773-1783). Pois, se por um lado os acontecimentos além-Atlân- tico estimularam a Revolução Francesa, com a Tomada da Bastilha e a posterior Declaração dos Direitos do Homem em 1789, por outro lado devemos reconhecer a influência determi- nante do pensamento iluminista na sociedade burguesa em ascensão. Sem dúvida, o crescimento demográfico e o desenvolvimento técnico e científico verificados na Europa desde o início de Setecentos, favore- ceram esta ruptura social e cultural e a imple- mentação dos novos valores. Enaltecendo a Razão, o Progresso e a fé no Homem, os filóso- fos iluministas criticaram as injustiças sociais, o absolutismo tirânico e a intolerância religiosa, defendendo um novo mundo fundado no pro- gresso técnico e científico, na moralização dos costumes, no liberalismo político e na educação do povo. Era o tempo dos homens “ilumina- dos”, cultos e informados; o tempo da , do conhecimento e da razão. Pretendendo aplicar estes princípios em todas as vertentes da sociedade (cultural, social e política), os iluministas encontraram no lema da Revolução Francesa – “liberdade, igualdade, fraternidade” – o fundamento da sua interven- ção. Daqui nasceria um estado republicano, democrático, laico e burguês, ideais e valores que viriam a estender-se por toda a Europa e Estados Unidos, com a progressiva implantação do . Consolidava-se uma sociedade dividida em classes – capitalistas, burgueses e trabalhadores –, num fenómeno a que não era alheia uma outra grande revolução: a Revolução Industrial, ocorrida nos finais do séc. XVIII. liberalismo ética AmericanaRevolução Iluminismo Antigo Regime 6 I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 1. A formação do mundo contemporâneo Antigo Regime. O Ancien Régime foi a expressão máxima das monarquias absolutistas europeias, atingida em França sob o reinado de Luís XIV, le Roi Soleil. Representou, por isso, um tipo de poder centrado no clero e na nobreza, pelos quais distribuía os privilégios e a riqueza, enquanto mantinha uma sociedade de raízes feudais e uma economia rural. Iluminismo. Movimento filosófico que se desenvolveu no século XVIII e que defendeu o pensamento racional, a liberdade e o progresso científico, como único caminho para o bem-estar e a felicidade do homem. Surgido em Inglaterra com Locke, teve forte expressão em França, com Voltaire, Diderot, Montesquieu e Rousseau, e na Alemanha com Kant e Lessing. Revolução Americana. Iniciadas as hostilidades contra o domínio inglês em 1773, a Independência da América foi declarada em 1776, e a Constituição promulgada no ano seguinte. Em 1783, a Inglaterra reconhecia a América como Estado autónomo. Ética. Ciência da moral. Liberalismo. Doutrina política que defende os direitos e as liberdades individuais, a livre- -concorrência (a valorização pela formação intelectual e pelo trabalho) e a igualdade dos indivíduos perante a lei. 1 Sir Isaac Newton, Louis-François Roubiliac, 1755. Isaac Newton (1642-1721) foi um ilustre matemático, físico, astrónomo e filósofo inglês que, entre outras contribuições para a ciência moderna, enunciou as leis da gravitação universal, publicadas em 1687. Fundamentando-se em princípios racionais e matemáticos, o pensamento de Newton influenciou os cientistas setecentistas da Idade da Razão e do Iluminismo, para quem o conhecimento do mundo e das coisas devia resultar da observação científica, da explicação empírica e da demonstração através da experimentação. Na origem de um mundo novo, estava uma fé ilimitada no potencial “iluminado” da razão humana. 7I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo PERÍODOS 1700-1750 HISTÓRIA ARTE 1751-1800 1801-1850 Período do Primeiro Império em França (Napoleão), 1804-1815 Invasões Napoleónicas de Espanha e Portugal (Guerras Peninsulares), 1807-1813 Estadias de Lord Byron em Espanha e Portugal (Sintra), 1809-1811 Revolução Liberal em Portugal, 1820 Constituição Liberal em Portugal, 1822 Construção do primeiro caminho-de-ferro em Inglaterra, por Stephenson, 1822-1825 Circulação do primeiro comboio de passageiros entre Liverpool e Manchester, 1830 Invenção do motor eléctrico, 1831 Invenção do telégrafo eléctrico, 1833 Proudhon publica O Que É a Propriedade?, 1840 Revolução Popular em França; implantação da Segunda República, 1848 Karl Marx publica A Luta de Classes em França, 1848 1.a Exposição Universal de Londres, 1851 Início do Segundo Império em França (Napoleão III), 1852 2.a Exposição Universal de Paris, 1855 Os Pestíferos de Jafa, Gros, 1804 3.a Sinfonia (Heróica), Beethoven, 1804 A Coroação de Josefina, David, 1805-1807 Arco do Triunfo, Chalgrin, Paris, 1805-1837 Paulina Borghese, Canova, c. 1807 A Banhista de Valpinçon, Ingres, 1808 O 2 de Maio de 1808, Goya, c. 1814 Os Fuzilamentos de 3 de Maio de 1808, Goya, 1814 Caminhante sobre Um Mar de Névoa, Friedrich, 1818 A Jangada de Medusa, Géricault, 1818-1819 Pavilhão Real, John Nash, Brighton, 1818 O Mar Polar, Friedrich, 1824 A Liberdade Guiando o Povo, Delacroix, 1830 Curso de Filosofia Positiva, A. Comte, 1830-1842 A Marselhesa, François Rude, 1833-1836 Casas do Parlamento, Barry e Pugin, 1835 Lições de Estética, Hegel, 1835-1838 Invenção da fotografia, 1839 A Lei do Contraste Simultâneo, Chevreul, 1839 Palácio da Pena, D. Fernando II e Barão de Eschwege, Sintra, 1840-1847 Produção de tubos de tinta de óleo, 1841-1842 Vapor numa Tempestade, Turner, 1842 As Sete Lâmpadas da Arquitectura, J. Ruskin, 1849 Palácio de Cristal, Paxton, Londres, 1851 Jardins de Stourhead, Henry Hoare, c. 1720 Chiswick House, Lord Burlington, 1725 Diderot e D’Alembert publicam a Enciclopédia, 1751-1777 Ensaio sobre Arquitectura, Laugier, 1753 Igreja de Santa Genoveva (Panteão), Soufflot, Paris, 1755-1790 Reflexões sobre a Imitação das Obras de Arte Gregas, Winckelmann, 1756 Salinas de Chaux, Ledoux, Arc-et-Sans, 1775-1779 Cenotáfio de Isaac Newton, Boullée, 1784 O Juramento dos Horácios, David, 1784 Don Giovanni, Mozart, 1787 As Antiguidades de Atenas, Stuart e Revett, Londres, 1787 Cupido e Psique, Canova, 1787-1793 A Crítica da Faculdade do Juízo, Kant, 1790 Marat Assassinado, David, 1793 Casa de Thomas Jefferson, Thomas Jefferson, Monticello (Virginia), 1796-1806 A Maja Vestida e A Maja Desnuda, Goya, 1800 Declaração da Independência dos Estados Unidos da América e Promulgação da Constituição, 1776-1777 Primeira ponte em ferro, em Coalbrookdale, Inglaterra, 1777-1779 Reconhecimento dos Estados Unidos como nação independente por parte da Inglaterra, 1783 Máquina a vapor por James Watt, 1788 Revolução Francesa – Tomada da Bastilha e Declaração dos Direitos Humanos, 1789 Promulgação da Constituição Francesa, 1791 Abertura ao público de museus, galerias e colecções reais, 1792-1795 Período do Directório em França, 1795-1799 Campanhas Napoleónicas em Itália e no Egipto, 1798-1799 Exposição de obras saqueadas nas campanhas de Itália e do Egipto, 1798 Guerras Napoleónicas na Europa, 1799-1815 Máquina a vapor por Thomas Newcomen, 1712 Vulgarização das viagens e interesse pelas antiguidades, 1730-1760Escavações arqueológicas nas cidades romanas de Herculanum e Pompeia, 1738-1748 QUADRO CRONOLÓGICO – PERÍODO 1750-1850 A Revolução Industrial, mais do que causa, é uma consequência de todo este processo de transformação social e cultural. Para além da explosão demográfica – com a duplicação da população europeia, maio- ritariamente rural, entre 1750 e 1850 –, a invenção da máquina a vapor (por James Watt, em 1788) foi o grande “motor” de transformação eco- nómica e social. Enquadrando-se no espírito iluminista que preconi- zava o progresso, o desenvolvimento e a construção do novo mundo, a Revolução Industrial provocou uma alteração profunda na sociedade. As fábricas multiplicaram-se junto às fontes de recursos e de comuni- cações, atraindo a população rural às cidades em busca de trabalho e de melhor forma de vida. Primeiro em Inglaterra, devido às suas reser- vas de carvão e ferro, depois em toda a Europa, a Revolução Industrial expandiu-se por toda a Europa graças ao desenvolvimento dos cami- nhos-de-ferro, um dos efeitos mais imediatos da máquina a vapor. Porém, a utilização de máquinas para fabricar outras máquinas, em substituição da mão-de-obra humana, foi o que mais revolucionou a indústria. O emprego de máquinas para realizar tarefas simples mas repetitivas, permitiu a criação da produção em série e a dispensa do tra- balho humano, tendo como consequência imediata a redução dos cus- tos e o aumento da produção. Os produtos estavam, assim, acessíveis tanto à classe média como aos próprios trabalhadores. Pelo menos aos que sobreviviam às condições desumanas em que trabalhavam nas fábri- cas, aos prolongados horários de trabalho e às precárias situações de habitação, de manutenção das famílias ou de educação dos filhos. Enfim, assim era todo um quadro de vida reservado a uma classe ope- rária impotente para reagir a uma burguesia cada vez mais rica. Quanto à arte, reflexo e condição das conjunturas sociais e culturais, não dei- xaria de traduzir este cenário pelos meios que lhe são próprios. Quem primeiro se manifestou pela renova- ção das artes foi Denis Diderot (1713-1784). Nos célebres Salons, escritos que podemos considerar os primeiros testemunhos da moderna crítica de arte, Diderot expôs o que considerava dever ser o objectivo da arte: representar os valores sociais da época, exprimir os grandes ideais do indiví- duo e, portanto, ter uma finalidade moral. Os seus comentários, que inauguraram um novo género literário – a crítica de arte –, mais do que formular opinião acerca dos da Academia (fig. 4), tiveram o mérito de alargar um espaço de debate até então reservado a uma elite cultural. Foi neste contexto que criou, juntamente com d’Alembert (1717-1783), a Encyclopédie , uma obra de referência onde se afirmam os valores da experiência e da razão, e se rejeita a tradição em nome do progresso e do desenvolvimento social. (Enciclopédia) Salões 8 I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 3 Enciclopédia, frontispício da primeira edição, Denis Diderot e Jean le Rond d’Alembert, 1751-1777. Inspirado pelo Dicionário das Artes e das Ciências de Chambers (Londres, 1728), Diderot criou uma monumental publicação que constituiu um poderoso instrumento ao serviço das doutrinas filosóficas do séc. XVIII. Porventura, o seu maior mérito foi reunir à sua volta todos os eruditos, cientistas, literatos e livres- -pensadores, interessados em modificar a sociedade. Salões. Eram exposições organizadas periodicamente pela Academia de Belas-Artes de Paris, para mostrar os trabalhos dos seus alunos e dos seus membros. Os prémios concedidos eram, habitualmente, pensões de estudo em Roma. Enciclopédia. Com o título original de “Enciclopédia, ou dicionário racional das ciências, das artes e dos ofícios”, Diderot publicou, entre 1751 e 1777, sete volumes luxuosamente ilustrados com as conquistas contemporâneas nas áreas das ciências, da técnica e das indústrias. Editaram-se 16 000 exemplares que desempenharam um enorme papel na difusão do ideário progressista. 2 Busto de Denis Diderot, Jean-Antoine Houdon, c. 1771. Filósofo, escritor, crítico de arte e erudito francês, Diderot foi um dos mais ardentes impulsionadores do ideário iluminista do séc. XVIII e, sem dúvida, a personalidade mais notável do seu tempo. A Enciclopédia, que foi a sua obra de referência, não deixou de adquirir uma função ideológica, representando os valores da ciência e do progresso social, em detrimento da tradição e da cultura do Antigo Regime. 9I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 4 Distribuição de Condecorações no Salão de 1824, François-Joseph Heim, 1825. Os Salões da Academia de Paris, realizados anualmente, constituíram a legitimação dos artistas que se enquadravam nos parâmetros da “arte oficial”. Destinados a exibir os trabalhos finais dos alunos da Academia, acabavam por ser o pretexto para reunir artistas, coleccionadores, críticos de arte e toda a elite cultural da época que perfilhavam dos mesmos valores e conceitos estéticos segundo os padrões do Classicismo. Daí que o reconhecimento de um artista (e a possibilidade de vender as suas obras) passasse obrigatoriamente pela exposição dos seus trabalhos nos Salons. 5 A Galeria de Charles Towneley em Park Street, Johann Zoffany, 1783. A paixão antiquária que despertou na aristocracia europeia, especialmente a britânica, durante o séc. XVIII, resultou tanto de um genuíno interesse científico, como de interesses comerciais, diplomáticos e, também, de uma questão de moda. O gosto pela arte clássica associava- -se, neste caso, a uma reacção ao Barroco europeu e ao sistema social e político que ele representava. Em consequência das expedições à Grécia e ao Próximo Oriente, muitas obras foram trasladadas dos seus lugares de origem para colecções particulares e para museus. É este o tema de A Galeria de Charles Towneley, que surge sentado à direita, enquanto antiquários e connaisseurs debatem o seu refinado gosto clássico. 1.2. Fundamentos do Neoclassicismo Uma das consequências mais imediatas do Iluminismo foi o inte- resse pelo passado histórico, que motivou, entre outros fenómenos, a redescoberta das civilizações da Antiguidade Clássica e Pré-Clássica. Foi neste contexto que Napoleão, na sua fúria conquistadora e com a aceitação da sociedade de então, empreendeu as célebres campanhas ao Egipto (1798-1799), durante as quais recolheu o importante espó- lio artístico e arqueológico que, ainda hoje, se encontra distribuído pelos museus de Paris, Londres e Berlim. Este é, de resto, o pano de fundo em que nasce a Arqueologia, uma ciência que se estrutura no séc. XIX mas que tem os seus antecedentes na actividade dos artistas, eruditos, coleccionadores e viajantes do século anterior. Roma era, já desde o séc. XVI, o grande repositório arqueoló- gico e lugar de eleição para curiosos e estudiosos da Antiguidade investigarem as ruínas da cidade e as colecções particulares, em espe- cial as do Vaticano. Foi a partir do estudo destas colecções que Johann Joachim Winckelmann (1717-1768) elaborou a “História da Arte na Antiguidade” em 1764. Neste texto, que inaugura a moderna Histó- ria da Arte, este antiquário alemão rompeu com a antiga historiogra- fia estabelecida por Vasari no séc. XVI, baseada na biografia de artis- tas, bem como nas correntes que se limitavam ao estudo das fontes escritas. Winckelmann aplicou ao estudo da arte clássica um sistema de análise formal que lhe permitiu determinar a sua evolução histó- rica e estabelecer os princípios estéticos que a regeram. Igualmente importante foram as descobertas arqueológicas de Herculanum (1738) e Pompeia (1748), duas cidades romanas do século I, cujas escavações Winckelmann e o pintor seu compatriota A. R. Mengs (1728-1779) acompanharam de perto, o que muito contri- buiu para acentuar e divulgar o gostopelo clás- sico (fig. 6). Aliás, neste capítulo da divulgação distinguiu-se Giovanni Battista Piranesi (1720- -1778), autor de inúmeras gravuras de grande formato reproduzindo os principais monumen- tos de Roma. As suas ilustrações, que enalteciam a imponência da arquitectura romana, eram não só testemunhos de uma civilização passada que servia de modelo para o presente, como também importantes fontes de informação e elementos de estudo para o ensino nas . Estavam lançadas as bases do Neoclassi- cismo. Mais do que uma reacção à retórica do Barroco ou às excentricidades do Rococó, este foi um período artístico em que a arte se conci- liou com a revolução, com as mudanças sociais e culturais, reencontrando na estética clássica a grande herança e principal fonte de inspiração. Academias 10 I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 6 Auto-Retrato, Anton Raphael Mengs, 1774. Pintor alemão totalmente devotado à cultura clássica, Mengs teve juntamente com Winckelmann um importante papel na revisão das linguagens artísticas e na difusão da cultura clássica. Tal como neste auto-retrato, as suas obras reflectem o espírito heróico, pragmático e racional que marcou o Neoclassicismo. 7 “Capriccio” arquitectónico, Canaletto, 1765. Nascido no impulso arqueológico de meados do séc. XVIII, o “capriccio” é um tratamento pictórico, fantasioso e lírico das ruínas antigas da cidade de Roma. Para além do seu aspecto pitoresco, essas construções são testemunho de uma civilização distante, mas uma referência a imitar. Por outro lado, o seu estado fragmentário convidava a reconstruir no imaginário o que o tempo destruíra. Academia. Herdando a designação e o método da antiga escola filosófica fundada por Platão nos jardins de Academo, em Atenas, as Academias de letras, artes e ciências proliferam por toda a Europa durante o Setecentos, inscrevendo-se na dinâmica iluminista e progressista da época. Primeiro em Paris, depois em Londres, as Academias de Belas-Artes visavam o ensino artístico, tendo por método o estudo por observação directa das obras-primas da Antiguidade Clássica. Estudavam-se as ordens arquitectónicas, os modelos clássicos e os cânones, através da cópia de estampas, gravuras ou modelos naturais. 11I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 8 Paisagem com Um Sacrifício a Apolo, Claude Lorrain, 1662. As cenas pastorais e as visões poéticas de Lorrain, fruto das suas longas estadias em Roma, constituíram uma fonte de inspiração para os paisagistas neoclássicos dos sécs. XVIII e XIX. Ainda no séc. XVII, Lorrain desenvolve uma obra já profundamente clássica, tanto no tema como na plástica: a representação de uma cena da mitologia clássica – o pai de Psique pede ajuda a Apolo para encontrar um marido para a filha –, não é senão um pretexto para o pintor captar toda a eloquência da paisagem romana na delicadeza da sua atmosfera. 9 Pórtico de Uma Casa de Campo, Hubert Robert, 1773. Na sequência da revalorização do Classicismo, as ruínas antigas constituem uma fonte de inspiração privilegiada pelos pintores setecentistas. Mas, o fascínio provocado pelas ruínas devia-se, também, a um certo efeito de catarse provocado pelos estados extremos da natureza: perante a supremacia das forças naturais, a destruição imperfeita da obra humana era uma manifestação da sua própria fragilidade. Neste aspecto, e pela nostalgia que sugere, a “poética das ruínas” anunciava a aproximação ao Romantismo. Os “caprichos” de ruínas tiveram um dos seus maiores expoentes na obra de Hubert Robert. As “suas” ruínas, captadas a partir da observação directa em Itália, são de tal modo enaltecidas plasticamente, que parecem ganhar um renovado valor estético. Ao limite, podemos afirmar que esses monumentos são belos porque são ruínas. 12 I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 1. O autor refere que “o Neoclassicismo não consiste unicamente numa moda deco- rativa antiquizante […]. A sua natureza revela-se mais profunda.” Como explica o autor a verdadeira essência do Neoclas- sicismo? 2. No texto podemos ler que “o regresso ao antigo não passa de um meio de alcançar este ideal.” A que ideal, ou ideais, se refere o autor? 3. Que obra de Winckelmann é considerada pelo autor como pioneira na elaboração desta nova doutrina? E quais são as gran- des ideias nela presentes? O NEOCLASSICISMO E A EMERGÊNCIA DO MUNDO MODERNO «As noções de Neoclassicismo, de Romantismo e de Realismo correspondem a uma classificação tradicional e cómoda. Mas, se estas correntes se sucedem, também coexistem e parcialmente se sobrepõem. O primeiro período (c. 1750-1815) com- preende o final do reinado de Luís XV, o de Luís XVI (1774-1792), a Revolução e o pri- meiro Império. É complexo, cruzado por correntes contrárias: o regresso ao antigo é uma delas; mas, desde o princípio, o Neoclassicismo comporta fortes elementos românticos e acontece os mesmos artistas inspirarem-se nas mesmas correntes. [...] O Neoclassicismo não consiste unicamente numa moda decorativa antiquizante, apenas com um efeito superficial. A sua natureza revela-se mais profunda. Trata-se de uma reacção contra a frivolidade da arte e dos costumes da primeira metade do século XVIII e contra as complicações do estilo “rocaille” ou “rococó”, condenado por razões morais e estéticas. Os filósofos da “Luzes”, os autores da Enciclopédia, esfor- çam-se por transformar a sociedade, quer pelo progresso científico e técnico (no qual a Inglaterra detém um grande avanço), quer por um regresso à simplicidade e à pureza “primitivas”: sonha-se com um mundo melhor, com uma espécie de “idade de ouro” governada pela razão natural e pela justiça. Este fervilhar de ideias gene- rosas conduz às revoluções políticas e sociais, americana primeiro, francesa depois, donde emergirá o mundo moderno. Propõem-se à gente nova exemplos de virtude cívica, de dedicação ao bem público e à pátria, de energia e ascese, que na arte se traduzem na força plástica, pela simplicidade da composição, do desenho e da cor, e pelo empobrecimento volun- tário da técnica. O regresso ao antigo não passa de um meio de alcançar este ideal: pedem-se assuntos morais à história da Grécia e da República Romana e uma lingua- gem formal à arte greco-romana. A Itália constitui o centro deste renascimento clássico. As escavações de Roma vêm enriquecer as colecções dos Papas e dos particulares. Nasce em Florença e na Toscana a “etruscomania”. A redescoberta, na Campânia, das cidades sepultadas pela erupção do Vesúvio em 79 d. C. – Herculanum a partir de 1738, Pompeia um pouco mais tarde – revela a existência de uma pintura antiga e de objectos de uso quotidiano, testemunhas de uma Antiguidade viva, espantosamente próxima. Colec- ções de estampas gravadas dão a conhecer estas obras, assim como os templos dóricos da Grande Grécia. Mais do que nunca Roma se torna uma cidade cosmopolita. Poucos são os artis- tas europeus que se dispensam de se deslocar até lá. Teóricos alemães (Winckel- mann, Mengs), italianos (Milizia), franceses (Caylus, Quatrémère de Quincy) elabo- ram a nova doutrina. As Reflexões sobre a Imitação da Arte Grega em Pintura e em Escultura (1755) causam sensação: o seu autor, Winckelman, entende que a escul- tura grega representa a forma de arte mais próxima do “belo ideal” e que os artis- tas modernos nela se devem inspirar. Nove anos mais tarde publica a sua História da Arte Antiga (1764), em que pela primeira vez traça a evolução da arte grega. [...] Muitos elementos românticos ou pré-românticos misturam-se na corrente neo- clássica: é o aspecto irracional e subjectivo desta época complexa. A palavra “sublime” ocupa lugar de relevo na estética do tempo. Para Diderot, o sublime é aquilo que escapa à razão e às regras clássicas do belo,aquilo que exprime uma grandiosidade sobre-humana. Confunde-se com o “génio”, ao qual a Enciclopédia consagra um artigo antes de os românticos de 1830 dela se apoderarem: o génio de Shakespeare opõe-se à beleza de Virgílio.» Albert Châtelet e Bernard Philippe Groslier. História da Arte Larousse, vol. 2. Lisboa: Civilização, 1985, p. 450. LeiturasLeituras 10 Cárceres, G. B. Piranesi, 1761. A série de gravuras dos Cárceres revela a obsessão de Piranesi pela magnificência da arquitectura romana, cujas dimensões ainda não tinham sido alcançadas pela arquitectura moderna. O aspecto pitoresco destas construções, complexas articulações inspiradas nas ruínas antigas, é superado pelo seu carácter visionário e delirante. 13I CAPÍTULONeoclassicismo e Romantismo 11 Galeria de Vistas da Roma Antiga, Giovanni Paolo Pannini, 1758. Contagiado pelo fascínio que os monumentos e as esculturas da Antiguidade exerciam sobre a sociedade da época, Pannini representa nesta obra uma galeria de pintura que, idealmente, pudesse integrar as esculturas e as gravuras mais famosas de Roma, centro das artes e referência cultural e espiritual daquele tempo. À direita podemos ver o célebre grupo do Laocoonte. 12 Um Capricho Arquitectónico, Francesco Guardi, 1770-1780. No contexto da revalorização iluminista da técnica, isto é, no enquadramento dos meios e dos processos artísticos num espírito científico, o género da veduta (vista) populariza-se entre os artistas. Trata-se de captar a realidade através de processos rigorosos e exactos, utilizando um instrumento equipado com lentes e espelhos que reflectem as imagens e permitem estabelecer os seus contornos com exactidão. Um dos grandes mestres da veduta foi Guardi que, nas suas visões fantásticas dos lugares – o capriccio –, acrescenta uma enorme espontaneidade à pincelada, criando uma atmosfera idílica e romântica. Obras como esta revelam-nos quanto o Neoclassicismo e o Romantismo se inspiraram em referências semelhantes.
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