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História da Educação LUCIANA LAMBLET PEREIRA 1ª Edição Brasília/DF - 2019 Autores Luciana Lamblet Pereira Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário Organização do Livro Didático........................................................................................................................................4 Introdução ..............................................................................................................................................................................6 Capítulo 1 Por quê? E Para onde? A importância da História da Educação da/na prática docente .......................9 Capítulo 2 Com toda humildade e por amor a Deus, devem aprender com perseverança: educação na Roma Antiga e na Idade Média .......................................................................................................................................... 23 Capítulo 3 O indivíduo é controlado a partir do corpo, mas para tornar dócil, também, e sobretudo, a sua consciência: a educação no período de transição da Época Moderna .................................................... 39 Capítulo 4 Éramos um país de doutores e analfabetos: a educação entre o Brasil Imperial e Republicano ............................................................................................................................................ 53 Capítulo 5 Um imenso ponto de estrangulamento: o sistema educacional brasileiro entre as décadas de 1940 e 1970 ................................................................................................................................................................. 67 Capítulo 6 É como se tivéssemos acendido a luz e uma farra estivesse acontecendo: redemocratização, avanços e novos desafios ....................................................................................................................................... 81 Referêcias ............................................................................................................................................................................ 94 4 Organização do Livro Didático Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. Cuidado Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. Importante Indicado para ressaltar trechos importantes do texto. Observe a Lei Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem, a fonte primária sobre um determinado assunto. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. 5 ORgAnIzAçãO DO LIvRO DIDátICO Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Posicionamento do autor Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado. 6 Introdução Prezada aluna, prezado aluno, Neste Livro Didático, convidamos você a mergulhar nas análises e reflexões acerca da História da Educação. Num primeiro momento, discutiremos a importância de se pensar historicamente o ensino, as escolas, o olhar sobre a educação. Como compreender o processo histórico que desembocou em nosso mundo contemporâneo pode contribuir para a sua prática docente no século XXI? Depois seguiremos viagem pelo Egito, Grécia e Roma na Antiguidade. Observaremos como a família e o Estado se relacionaram no processo de ensino de seus filhos. Como, para quê e para quem ocorria a educação? Qual o propósito de se educar? Em seguida, olharemos a Idade Média em suas complexas construções sociais, no ensino quase que monopolizado pela Igreja Católica, na criação das Universidades, nas corporações de ofício e no ensino cavalheiresco. Neste momento, abordaremos o método escolástico que tanto marcou o ensino em nosso Brasil colonial. Partindo dos conflitos e das contradições do medievo, analisaremos as transformações advindas com a Idade Moderna: o humanismo que se contrapôs à escolástica, o método científico que defendeu a primazia da observação, da empiria e da relação intrínseca entre prática e teoria. Também durante este período, veremos as disputas na cristandade e o surgimento de ordens missionárias, como a Companhia de Jesus, cuja proposta educativa impactou na construção de nosso imaginário, na formação dos nossos grupos dominantes e na dominação sob a cultura nativa indígena. Discutiremos o Brasil independente e a ausência de um projeto de organização nacional da educação. Quais impactos a falta dessa política pública ocasionou para o avanço do ensino no país? Quais resquícios da educação colonial ainda se fizeram presentes no Império e nas primeiras décadas da República? Passaremos então para a relação entre processo de industrialização e avanço na organização educacional do Brasil. Analisaremos como o crescimento das indústrias no país e, consequentemente, da urbanização, demandou a expansão do ensino. A necessidade de mão de obra qualificada, de ampliação dos setores administrativos e de serviços, bem como o crescimento da classe média foram fatores fundamentais que pressionaram o Estado a pensar políticas nacionais para a educação. 7 Nasceram aí o dualismo educacional e o “ponto de estrangulamento”. A partir de determinadas escolhas de políticas públicas na educação, o ensino brasileiro passou a se bifurcar em escolas voltadas para as camadas empobrecidas e escolas para as classes média e alta. Além disso, há diversos problemas que persistiram, tais como o analfabetismo, a evasão escolar, a reprovação. Grupos reduzidos conseguiam avançar para o ensino secundário. Menos ainda conquistavam uma vaga nas universidades do país. Com o processo de redemocratização do Brasil, veremos os significativos avanços da nossa estrutura educacional: a ampliação das escolas, o combate ao analfabetismo e à evasão escolar, a ampliação das universidades e escolas técnicas, a melhoria nos índices de qualidade. Mas, também veremos que há muito a percorrer para conseguirmos atingir uma educação de excelência. Também há muitos desafios novos com a chegada do século XXI. Novas e velhas questões estão presentes na educação brasileira. Esperamos que a reflexão do processo histórico da educação contribua justamente para que você encare essas questões e esses desafios, que o auxilie a pensar o ensino, as suas práticas pedagógicas, a sua atuação docente e, especialmente, a função social da escola. Vamos lá? Objetivos » Permitir que as reflexões acerca da Históriada Educação auxiliem no debate sobre as funções sociais da escola e a atuação docente. » Compreender as diferentes organizações educacionais, relacionando-as com a conjuntura vigente. » Contribuir para a percepção de que somos sujeitos históricos e fazemos parte de um processo histórico. 8 9 Introdução O nosso primeiro capítulo será dividido em duas grandes partes. Na primeira, falaremos um pouco sobre História. Por que você precisa estudar a História da Educação para lecionar no século XXI? Qual a importância dessa disciplina para a sua prática pedagógica? O que o século V a.C. tem a nos dizer sobre educação? Essas são perguntas que você mesmo deve ter realizado quando iniciou a disciplina. E nós vamos respondê-las na primeira parte deste capítulo, onde discutiremos a importância do conhecimento histórico, as suas especificidades e finalidades na prática docente. Na segunda parte deste Capítulo 1, iniciaremos de fato a nossa travessia discutindo como egípcios e gregos pensaram e organizaram a educação na antiguidade. Baseados especialmente em textos da época, vamos conhecer o olhar de diferentes sociedades sobre a educação e os métodos de ensino. Objetivos » Discutir a importância da disciplina História da Educação para a prática docente. » Contribuir para a construção do pensamento histórico do discente. » Apresentar as principais características da educação na sociedade do Egito antigo. » Expor as principais características da educação na Grécia antiga. Por que estudar a História da Educação? Já lembrava Croce: fazer história é sempre fazer história contemporânea, mas – podemos acrescentar -, para fazer história contemporânea, temos de reler o presente sobre o fundo do passado e de um passado reconstruído à part entière, 1 CAPÍTULO POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE 10 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE isto é, inteiramente, em todas as suas possibilidades e ramificações, até mesmo nos seus silêncios, nas repressões sofridas, nos seus atalhos interrompidos. (CAMBI, 1999, p. 40) Figura 1. Sankofa. Fonte: <http://todosnegrosdomundo.com.br/memorias-da-africa-em-ferro-a-mensagem-subliminar-esculpida-em-antigos- portoes/>. Acesso em: 5/1/2019. Sankofa é um pássaro que faz parte da simbologia do povo Akan, situado na antiga Costa do Ouro e atual Gana. Sua cabeça está voltada para trás e seu bico segura um ovo. A palavra, em sua tradução literal para o português, significaria algo como “volte e pegue” e está associada ao provérbio: “Não é tabu voltar para trás e recuperar o que você perdeu”. Você já viu esse pássaro em algum lugar? Como você interpretaria esse símbolo? Por que um pássaro teria sua cabeça voltada para trás? O que significaria, do ponto de vista simbólico, “volte e pegue”? Sankofa traz um ensinamento fundamental: a importância de nos voltarmos para o passado. E não é uma ideia de ficarmos presos a ele. É uma defesa de que não devemos desprezá-lo se desejamos ressignificar e compreender o presente. E, mais ainda, se desejamos construir o futuro. A cabeça voltada para trás simboliza a necessidade de olhar para o passado para compreendermos de que forma fomos constituídos individual e coletivamente. A necessidade de buscarmos conhecer e resgatar a nossa ancestralidade, a nossa História e fazer disso instrumentos para nos compreendermos melhor hoje. Provavelmente você já ouviu que “quem vive de passado é museu”. Esta é uma ideia muito perigosa. Negar a historicidade das relações sociais, das nossas sociedades é estorvar um caminho para nos conhecermos melhor. É deixar carente a nossa própria identidade. Assim, Sankofa vem nos ensinar que devemos voltar ao passado não por ele em si, mas pelo nosso presente e também pelo nosso futuro. Não à toa, o pássaro está com um ovo na boca, que representa o que virá. 11 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 Nesse primeiro momento de nossa disciplina vamos discutir um pouco sobre o que é História, qual a sua importância e porque devemos, enquanto professores, independente da disciplina, conhecer a História da Educação. Provocação Antes de seguirmos, leia atentamente este texto do professor Jaime Pinsky, presente no livro Por que gostamos de História (2013): Educação em tempos de crise História está de novo na moda. [...] O fato é que livros de história são cada vez mais lidos – inclusive romances históricos, verdadeiro subgênero de ficção. E, mais ainda, historiadores vêm sendo procurados pelo poder público e por empresas para ajudar em projetos estratégicos. Esses mesmos projetos para os quais já se percebeu que economistas, por falta de instrumental, não vêm dando conta ... A história está presente em quase todas as manifestações do ser humano. Mesmo padrões estéticos, como apreciar pessoas mais magras ou mais robustas, gente de olho claro ou escuro, pele branca como o leite ou bronzeada pelo sol, precisam ser percebidos em relação às variações tempo/espaço. O que é belo hoje pode ser considerado feio ou mesmo doentio amanhã. Queiramos ou não, somo seres em parte explicados pela Biologia, em parte pela História. A grande diferença entre seres humanos e os demais animais é que a História Natural não dá conta de nos explicar como explica os chamados irracionais. Veja-se o caso da educação. Educar não é natural, é histórico. Um animal é treinado, desde os seus primeiros dias de vida, a caminhar, escavar, fugir ou caçar para sobreviver. Os pais de um ser humano frequentemente não têm a competência para habilitá-lo no exercício de sobrevivência: eles mesmos não sabem plantar, colher, coletar, construir abrigos ou costurar roupas. Da mesma forma como compram produtos e serviços essenciais à sua sobrevivência, acabam “terceirizando” o processo de ensino, entregando seus filhos em idade cada vez menor a escolas, creches e outras instituições educacionais. Cada sociedade determina como deve ser a intervenção social que deseja fazer em seus novos membros em função de valores, crenças e padrões de comportamento que ela tenha, imagina ter ou sonha em vir a ter. Daí a historicidade do sistema educacional. Aquilo que uma sociedade pode julgar essencial para suas crianças e jovens será desprezado por outra em outro lugar ou em outra época. Dirão alguns que a educação formal já não é mais tão importante quanto foi no tempo em que informações circulavam principalmente pela palavra escrita no papel. Hoje, as pessoas se informam pela televisão e pela internet e torna-se quase impossível para pais e educadores “controlarem qualidade e quantidade de dados absorvidos pelos mais jovens”. Dirão, ainda, que a sociedade tornou- se extremamente competitiva; ela “exige” acesso contínuo e intenso aos bens materiais que têm valor objetivo ou simbólico. Como lidar com essa realidade que foge do controle dos educadores? Nisso tudo, o que pode fazer o professor, que é o principal encarregado de passar valores de uma geração para outra? Não mentir é um bom começo, não ser moralista, nem agir como oráculo. Cabe-lhe ajudar o aluno a compreender, com clareza, o funcionamento da sociedade em que vivemos, com suas contradições e incoerências. Em seguida, revelar ao jovem a historicidade dos valores, a transitoriedade de padrões de comportamento. (PINSKY, 2013, pp. 153-155) Um ponto central da nossa disciplina será refletir sobre o seguinte aspecto: qual é o objetivo da educação nessa sociedade? Para que se educa? Quem se educa? 12 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE Vamos começar então com uma pergunta básica: o que é História? Você saberia definir? É uma ciência? Qual o objeto de pesquisa dela? Não é uma ciência? São meras narrativas do passado? Segundo o historiador francês Marc Bloch (2001), a História é a ciência dos seres humanos no tempo.Portanto, é mais do que a clássica definição de uma disciplina que estuda o passado. Vamos destrinchar a definição de Bloch a partir das três palavras centrais: ciência, homem e tempo: 1. A História é uma ciência porque possui metodologia, pesquisa, análise de fontes. A produção de um historiador é baseada em muita leitura, em rigor ao observar as fontes, em critérios científicos de análise. Não é ficção e não é o famoso “achismo”. 2. O objeto de pesquisa da História não é o passado. A História estuda o ser humano. É este o foco do historiador: a humanidade, as sociedades, as relações sociais. 3. Mas este objeto, o ser humano, está situado em um determinado tempo. A maneira como nos relacionamos varia de acordo com a temporalidade (e a espacialidade também). Portanto, o tempo é um instrumento fundamental para escrever História. Figura 2. tempo: instrumento essencial da História. Fonte: <https://br.depositphotos.com/96307658/stock-photo-hourglass-on-a-white-background.html>. Acesso em: 9/1/2019. No texto acima, Pinsky afirma que a educação não é natural, mas historicamente construída. O que deve ser ensinado, de que maneira e a quem são escolhas e decisões demandadas pela sociedade num determinado tempo e espaço. Ou seja, a educação não é um sistema suspenso e à parte das relações sociais. Ela está inserida em um contexto, em uma conjuntura social e vai dialogar com ela e ser, ao mesmo tempo, produto e produtora dessa sociedade. Ao final, o autor acredita que as novas exigências de uma sociedade competitiva e conectada trazem novas demandas para a educação e, consequentemente, para os professores. O que e como ensinar diante do advento da internet e disseminação? Como a escola pode se repensar diante dessa nova conjuntura? Ela tinha a mesma função? Devemos utilizar os mesmos métodos de ensino? A escola ainda faz sentido? Jaime Pinsky acredita que a escola ainda tem muito a ensinar aos alunos e propõe os caminhos. Reflita sobre as propostas do autor: você concorda com elas? Por quê? 13 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 A ampulheta é um dos símbolos da História, ressaltando a importância do elemento tempo para a disciplina. O que faremos em nossa disciplina será um recorte temático: estudaremos a forma como a educação foi pensada e organizada ao longo do tempo histórico, desde a Antiguidade até os dias atuais. Agora que já definimos História, cabe ainda discutirmos a questão das fontes. Como podemos saber o que ocorria na educação do Império Romano? De onde o historiador da educação coleta as informações sobre períodos tão longínquos e distintos dos nossos? O historiador da educação, como o de qualquer outra temática, tem as fontes históricas como ferramenta principal para construir o conhecimento. E o que seriam fontes? Tudo, tudo mesmo, o que foi produzido pela humanidade. Todo e qualquer vestígio deixado pela sociedade pode ser utilizado como fonte histórica: poesia, música, vestimentas, diários, cartas, discursos, documentos oficiais, ou como diria Marc Bloch, tudo o que tem cheiro de ser humano. Importante ressaltar que a fonte não é a história. A fonte é o instrumento que o historiador utiliza para construir o conhecimento histórico. É somente a partir da análise e da crítica das fontes que se produz história. Aqui em nossa disciplina traremos para você alguns desses vestígios, dessas fontes para que você possa se aproximar ainda mais do tempo histórico estudado. Vamos para um terceiro ponto a ser discutido sobre a história. Qual é a relação dessa ciência com o passado, o presente e o futuro? Você já ouviu falar que estudamos o passado para compreender o presente? Será essa a função da História? Você concorda com ela? Dizer que a história nos ajuda a conhecer o passado e, portanto, compreender o presente não é exatamente errado. Mas, digamos que seja uma afirmativa incompleta. Isso porque essa estrada é uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que o conhecimento do passado nos leva a uma melhor compreensão do presente, uma melhor compreensão do presente também nos leva a conhecer o passado. Mas como pode isso? Pense aqui conosco: hoje, no presente, você está estudando a história da Educação. Ou seja, você está conhecendo como as sociedades em diferentes momentos pensaram e organizaram a educação. Mas para isso você não fará uma viagem do tempo, você jamais poderá estar de fato nesses tempos históricos. Portanto, é necessário conhecer o seu momento atual para saber fazer as perguntas ao passado. O que buscamos conhecer lá atrás diz muito sobre o que buscamos para o nosso presente (talvez esse ponto fique ainda mais evidente quando você estudar seu capítulo 6). E o que dizer do futuro? A história pode prever o futuro? Conhecendo melhor os processos educacionais de sociedades anteriores à nossa, você poderá prever como será a educação brasileira nos próximos 50 anos? 14 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE Não, a história não prevê o futuro. Então qual a sua relação com ele? Há alguma relação? Há, sim. Vamos refletir juntos! O historiador espanhol Josep Fontana (1998) escolheu o seguinte título para um dos seus livros: História: análise do passado e projeto social. Se, como vimos, o conhecimento acerca de sociedades passadas nos ajuda a conhecer o presente, é somente a partir do entendimento do nosso momento que podemos projetar (no sentido de construir projetos) para o futuro. A luta e construção por uma educação de qualidade, democrática e justa deve partir de um conhecimento crítico do presente que é construído também a partir de um conhecimento crítico do passado. Como bem disse Franco Cambi em sua História da Pedagogia (1999): [...] compreender o presente e para nele ler as possibilidades do futuro, mesmo que seja de um futuro a construir; a escolher; a tornar possível. [...], a focalização do passado que anima o presente e o condiciona, como também o reconhecimento das suas possibilidades sufocadas ou distantes ou interrompidas, e portanto das expectativas que se projetam do passado-presente para o futuro, que estabelece o horizonte de sentido de nossa ação, de nossas escolhas. A memória não é absolutamente o exercício de uma fuga do presente nem uma justificação genealógica daquilo que é, e tampouco o inventário mais ou menos sistemático dos monumentos de um passado encerrado e definitivo que se pretende reativar por intermédio da nostalgia: não, é a imersão na fluidez do tempo e o traçado de seus múltiplos – e também interrompidos – itinerários, a recomposição de um desenho que, retrospectivamente, atua sobre o hoje projetando-o para o futuro, através da indicação de um sentido, de uma ordem ou desordem, de uma execução possível ou não. (CAMBI, 1999, p. 35) Temos ainda um último ponto antes de nos voltarmos para o passado educacional de distintas sociedades. É o último, mas tão importante quanto os demais: a história não julga, compreende. Quando estudamos história, precisamos distinguir muito bem dois verbos: julgar e compreender. Parece muito óbvia a diferença entre os dois. Mas, é muito comum cairmos em armadilhas, especialmente nas do julgamento. Temos uma tendência quase natural a compararmos e a partir daí julgarmos outras pessoas, outros projetos, outras sociedades. Mas não devemos fazer isso dentro do conhecimento histórico. A história não é um tribunal. Não condena e não absolve, ela compreende o processo. Ou seja, ela está o tempo todo perguntado: qual foi o caminho percorrido para se chegar até este ponto? Portanto, atenção! Não usaremos palavras como bom, ruim, melhor, pior, atrasado, evoluído. Estes são julgamento de valor. É importante que você entenda que compreender os processos históricos (por mais dolorosos que sejam, como, por exemplo, os genocídios e a escravidão) não significa legitimá-los. Significa compreender os diversos elementos que resultaramem ações, decisões e relações sociais. Para isso, segundo Edward Carr (1996), o historiador está sempre fazendo duas perguntas centrais: “por quê?” e “para onde?”. A primeira diz respeito às múltiplas causas que levaram a um determinado 15 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 processo ou momento histórico. A segunda pergunta abarca os resultados e impactos que os primeiros elementos geraram em uma determinada sociedade. Esperamos que todo esse momento inicial da disciplina tenha contribuído para oferecer a você instrumentos para pensar historicamente a educação, percebendo a importância deste conhecimento para a sua prática pedagógica. Afinal, quando entrar em sala de aula haverá ali, naquele espaço, naquelas relações, nos conteúdos, a presença deste processo histórico. Para refletir Quando está caminhando, você costuma observar as placas nas ruas, nos museus, teatros? O nome da sua rua homenageia alguém? Se sim, você conhece a história dessa pessoa? Qual era o nome da sua escola? O nome dela se relacionava de alguma maneira com o projeto pedagógico da instituição? Leia o texto abaixo escrito por Peter Burke e reflita sobre as questões levantadas: O que há em um nome de rua? Em países diferentes, pessoas têm maneiras diferentes de lembrar o passado. Para alguns, como os britânicos, o mito da continuidade é especialmente importante, enquanto outros, como os franceses (e eu sugeriria os brasileiros), preferem o mito da revolução. Uma maneira como são reveladas essas importantes diferenças na memória social ou cultural é na escolha dos nomes de ruas, um detalhe minúsculo da paisagem urbana, mas certamente significativo. Na França, ruas e praças foram batizadas e rebatizadas por motivos políticos durante a revolução, e o exemplo francês foi amplamente seguido desde então. [...] Num nível mais grandioso, cidades ou países inteiros têm sido rebatizados em honra de pessoas famosas. A tradição remonta ao mundo antigo (a Alexandria de Alexandre Magno, por exemplo), mas se tornou muito mais comum a partir do século XVIII, como nos casos de Bolívia e Colômbia, em homenagem a Bolívar e Colombo, Washington D.C. e Jefferson City (Missouri), Leningrado e Stalingrado, Florianópolis e João Pessoa. No entanto, essa prática é ainda mais visível no nível das ruas, permitindo a transeuntes que leiam a cidade no sentido literal, bem como metafórico, aprender algo sobre os intelectuais da nação [...] ou sobre os políticos principais [...]. Ao lado dos nomes de heróis e vitórias nacionais, muitas ruas e praças são batizadas segundo datas significativas da história nacional ou local. [...] Em suma, a resposta do historiador cultural à pergunta de Shakespeare, ou, no caso, de Julieta, “O que há num nome?” é “Mais do que se poderia imaginar”. A história se revela ao ar livre, bem como nas bibliotecas, e as ruas podem ser lidas como livros – ao menos pelos pedestres. (BURKE, 2009, pp. 278-282) Por vezes pensamos na história como algo distante de nós, trancada em bibliotecas ou museus. Mas ela está em nosso cotidiano, tanto na forma de hábitos, costumes e mentalidades, quanto nas diversas homenagens que povoam nossa cidade em suas ruas, praças e monumentos. Os prédios, nos quais por vezes diariamente entramos e sequer observamos a sua arquitetura pode conter muito da história da sua região. Convido você a caminhar por sua cidade prestando atenção às homenagens, à história que ela conta pelos nomes das ruas, dos bustos nas praças, das construções históricas. Percorra bairros antigos e novos e observe as diferenças. Vá até o centro comercial e financeiro, sente em um banco e observe a forma como as pessoas se relacionam, se vestem, compram e andam. Ao final desse processo, você terá construído uma bela aula de História. 16 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE Educa teu filho um homem obediente: a educação no Egito antigo. Figura 3. tumba egípcia. Fonte: <https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2018/12/tumba-de-4-mil-anos-e-descoberta-quase-intacta-no- egito.html>. Acesso em: 20/1/2019. As tumbas egípcias são ótimas fontes de estudo. Elas têm representações da vida cotidiana em família, do trabalho, do governo e também das formas de organização da educação. As fontes mais antigas que temos sobre a educação vêm do Egito, datadas do século XXVII a.C. São escritos que contém preceitos morais e comportamentais. Ou seja, são basicamente conselhos de como o filho ou o discípulo deveria se portar na sociedade, numa relação pedagógica baseada na autoridade dos mais velhos que prezava pela memorização e repetição dos ensinamentos. Diferente dos ensinamentos curriculares como conhecemos hoje, estas primeiras fontes egípcias são conselhos de sabedoria prática, de como agir em determinadas situações. Vamos a alguns exemplos? Se tu sentas com um glutão, começa a comer quando a vontade dele tiver passado. Se bebes com um beberrão, bebe só quando o coração dele está saciado... Início do ensinamento feito pelo príncipe Hergedef, filho do rei, para o próprio filho que ele educa, de nome Auibra, ao qual se seguem os habituais conselhos ético-comportamentais: Emenda-te perante teus olhos. Cuida para que outros não te corrijam... Cria um lar: casa com uma mulher forte, nascerá para ti um filho macho. Constrói para teu filho uma casa... Torna tua morada ilustre na necrópole. Procure adquirir uma propriedade de campos que recebam a inundação... (MANACORDA, 2010, p. 25 E[e 26) 17 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 Tais ensinamentos morais eram destinados aos grupos dominantes e, portanto, misturavam-se também conselhos políticos, pois, cada vez mais o propósito dos ensinamentos visava formar o homem político e, portanto, d[o orador. Assim, uma das grandes preocupações educacionais do período era o “falar bem”, que se identificava aqui com a arte de governar: Se a sua boca procede com palavras indignas, tu deves domá-lo em sua boca, inteiramente... A palavra é mais difícil do que qualquer trabalho, e seu conhecedor é aquele que sabe usá-la a propósito. São artistas aqueles que falam no conselho... Reparem todos que são eles que aplacam a multidão, e que sem eles não se consegue nenhuma riqueza... (MANACORDA, 2010, p. 27) Outra questão muito presente nas fontes do período é a obediência. Comandar e obedecer eram, nesta lógica, duas faces da mesma moeda, pois estamos falando de um governo autocrático, com grande concentração de poder. Portanto, muitos discursos educativos determinavam a total obediência ao rei: Se és um homem de qualidade, forma um filho que seja sempre a favor do rei... Curva as costas perante o teu superior, o teu superintendente no palácio real... É prejudicial para quem se opõe ao seu superior... É útil ouvri para um filho que ouve, e quem ouve torna-se um homem obediente... Educa em teu filho um homem obediente. Um filho obediente é um servidor de Hórus, o faró... Sê absolutamente escrupuloso para com o teu superior... Age de tal modo que o superior dele possa dizer: Como é admirável aquele que seu pai educou! (MANACORDA, 2010, p. 28) Mais tarde, a educação passou por um processo de institucionalização com pessoas que se dedicavam profissionalmente aos educandos. Mas esta institucionalização não foi acompanhada de uma ampliação da educação. Ela continuou limitada à corte e reservada aos príncipes e nobres, já que tinha como objetivo a formação do homem que iria governar. Houve também a ascensão e valorização da escrita, na formação de um corpo burocrático que auxiliava na governança, na figura do escriba, que ganhou certa importância no contexto egípcio da antiguidade. A escola se constituiu aqui em um espaço de imitação. Crianças e jovens iam a um determinado local para imitar os adultos, para assimilar a sabedoria dos antigos. Além da escrita,do falar bem e da transmissão de tradições, há também relatos que apontam para ensinamentos matemáticos, geométricos, de engenharia, geografia, esportivos e militares, tais como corrida, caça, pesca e tiro com arco. Assim sendo, segundo Mario Manacorda (2010), a educação no Egito antigo era destinada aos grupos sociais dominantes, aos nobres e aos funcionários e tinha dois objetivos principais: inculcar valores ético-comportamentais e instruir profissionalmente os administradores do Estado. 18 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE A resposta descabida trazia uma punição. o autor era mordido no polegar pelo irene”: A educação na grécia antiga entre o militarismo e a paideia Figura 4. Imagem representativa da educação na grécia Antiga. Figura 5. Educação na grécia Antiga. Fonte: <https://educacaonantiguidade.files.wordpress.com/2017/01/jarro.jpg?w=768>. Acesso em: 20/1/2019. A cerâmica é uma das fontes que podemos utilizar para conhecer as representações do ensino na Grécia Antiga. Em suas origens, a educação na Grécia antiga esteve baseada no que Franco Cambi chamou de “uma pedagogia do exemplo”, ilustrada especialmente pela mitologia que deveria servir de exemplo ético-moral. A Grécia era dividida em cidades-Estado (pólis) e a educação variou de cidade para cidade. Porém, de certa forma, a Grécia conseguiu manter uma determinada unidade especialmente pelo viés de uma identidade cultural articulada e até certo ponto comum. Na construção da comunidade da pólis três elementos eram fundamentais: as leis, os ritos e a educação. Essas dimensões ensinavam e inspiravam comportamentos e estavam presentes em atividades como os jogos e o teatro. Ambos com profundo valor educativo. 19 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 Como exemplos educacionais tomemos aqui as duas cidades que mais se destacaram na questão política e militar durante muito tempo na Grécia: Esparta e Atenas. Segundo Cambi: Esparta e Atenas deram vida a dois ideais de educação: um baseado no conformismo e no estatismo, outro na concepção de paideia, de formação humana livre e nutrida de experiências diversas, sociais, mas também culturais e antropológicas. (CAMBI, 1999, p. 82) Esparta era uma cidade de economia predominantemente agrária, governada por um conselho e dois reis. Ficou conhecida na história por sua forte educação militar, onde as crianças do sexo masculino, a partir dos sete anos, eram retiradas da tutela de suas famílias e colocadas em escolas-ginásio para formação militar que ia até os dezesseis anos. A educação aqui era confiada ao Estado e realizada não de forma individual, mas coletivamente nas tropas. Saiba mais Observe o relato de Plutarco sobre a educação espartana: Quando uma criança nascia, o pai não tinha direito de cria-la: devia leva-la a um lugar chamado lesche. Lá assentavam-se os Anciãos da tribo. Eles examinavam o bebê. Se o achavam bem encorpado e robusto, eles o deixavam. Se era mal nascido e defeituoso, jogavam-no no que se chama os Apotetos, uma abismo ao pé do Taigeto. Julgavam que era melhor, para ele mesmo e para a cidade, não deixar viver um ente que, desde o nascimento, não estava destinado a ser forte e saudável... Os filhos dos espartanos não tinham por domésticos, escravos ou assalariados, Licurgo proibira-o. Ninguém tinha permissão para criar e educar o filho a seu gosto. Quando os meninos completavam sete anos, ele próprio os tomava sob sua direção, arregimentava-os em tropas, submetia-os a um regulamento e a um regime comunitário para acostumá-los a brincar e trabalhar juntos. Na chefia, a tropa punha aquele cuja inteligência sobressaía e que se batia com mais arrojo. Este era seguido com os olhos, suas ordens eram ouvidas e punia sem contestação. Assim sendo, a educação era um aprendizado da obediência. [...] Ensinavam a ler e escrever apenas o necessário. O resto da educação visava acostumá-los à obediência, torná-los duros à adversidade e fazê-los vencer no combate. [...] As crianças tomam tanto cuidado em não ser apanhadas quando roubam, que uma delas, conforme se conta, depois de roubar uma raposa que tinha enrolado no seu agasalho, se deixou arrancar o ventre pela fere que lhe cravou os dentes e as garras. Para não ser descoberta, resistiu até a morte. [...] Assim, eles eram treinados para apreciar o valor e interessar-se pela vida da cidade desde a meninice. Se a criança a que se perguntava quem era um bom cidadão ou quem era indigno de estima não sabia responder, via-se aí índice de uma alma lerda e pouco ciosa do valor. Além disso, a resposta deveria conter sua razão e sua justificativa, condensadas numa fórmula breve e concisa. A resposta descabida trazia uma punição. O autor era mordido no polegar pelo irene. [...] (PLUTARCO, 2003) Este relato nos traz algumas reflexões: educamos para fins próprios ou para a sociedade? A criança e o jovem devem ser educados para ocupar posições sociais e prestar sua contribuição para a sociedade? 20 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE Já em Atenas a educação esteve ligada ao desenvolvimento da humanidade em cada indivíduo, na tentativa de atingir a excelência através da palavra, da leitura e da escrita, permeadas pelas ideias de bom e belo. Ou seja, havia a perspectiva de que a educação era instrumento de amadurecimento individual, semeando e cultivando excelências. Assim, o objetivo da educação aqui seria nutrir e desenvolver as potencialidades humanas que não seriam naturais, mas adquiridas pelo estudo e pelo empenho. Segundo Manacorda, esta visão trouxe à tona um grande conflito entre a excelência por nascimento e a excelência adquirida, entre o que é inato e o que é aprendido, ou seja, entre natureza e educação. Esta questão não deve ser separada dos conflitos sociais entre os grupos dominantes e dominados, entre governantes e governados. Se as virtudes e excelências podem ser adquiridas, o que legitimaria o poder? No século VI a.C. nasceu a escola de Pitágoras que compreendia a existência de bens transmissíveis e bens não transmissíveis. A beleza, a coragem, a saúde e a força faziam parte deste segundo grupo. Já a propriedade e os cargos faziam parte do primeiro. Porém, quem os transmite, os perde. Mas há um bem que pode ser transmitido sem perdê-lo: a educação, a paideia. Em síntese, a definição de paideia, pensamento que se tornou hegemônico e gerou frutos posteriores, é que a educação é o desenvolvimento de um espírito que diferencia o homem da brutalidade e o grego dos bárbaros. Era um ideal de desenvolvimento moral, em busca de um suposto homem completo. Para refletir Leia atentamente o que Aristóteles pensava sobre educação: É claro que o jovem deve aprender entre as matérias úteis aquelas indispensáveis, não todas, porém, tendo em vista a distinção entre obras liberais e obras não liberais; e deve, portanto, cultivar entre as obras úteis, aquelas que não tornam ignóbil a pessoa que as cultiva. Devem ser consideradas vis todas as obras, os ofícios, as habilidades que tornam o corpo e a inteligência dos homens livres inaptos para a prática da virtude. Portanto, todos os ofícios que por sua natureza deterioram as condições do corpo são considerados desprezíveis, como também todos os trabalhos com fins lucrativos, porque tolhem a liberdade da mente e a tornam mesquinha. Quanto às ciências liberais, interessar-se por algumas delas, dentro de certos limites, não é indigno de um homem livre, mas ocupar-se em demasia e com excesso traz os mesmos prejuízos. É muito importante também considerar o fim pelo qual cada um age ou aprende: agir em vista de si mesmo ou dos amigos ou por amor à virtude é digno de um homem livre; mas, quem faz estas mesmas coisas para os outros, muitas vezes parecerá que está agindo de maneira servil e mercenária. Os estudos comumente reconhecidos,como dissemos, tendem para os dois sentidos. (Pol., VIII, 1337 b, Apud. MANACORDA, 2010, pp. 84 e 85) Em nossa sociedade atual, quem decide o que é útil aprender ou não? Como definir o que deve e o que não deve estar em nossos currículos escolares? Quais saberes valorizamos e quais saberes desprezamos em nossas salas de aula? 21 POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE • CAPÍTULO 1 Com o passar dos séculos, o ensino na Grécia contou com um corpo de aprendizagem técnico e programado, além de profissionais pagos para tal atividade. Com o desenvolvimento da democracia em Atenas, a educação se abriu para todos os cidadãos – e não apenas para os grupos dominantes, e nasceu a escola de escrita. Nesse processo, as escolas se tornaram cada vez mais públicas e menos privadas, estando, portanto, sob a tutela do Estado. E, como era visto quem ensina? De maneira geral, os professores tinham certo grau de prestígio, mas isto poderia variar de cidade e de condição civil do professor. Quando o mestre era alguém escravizado, sua posição social não era equivalente aos de professores que chegaram a enriquecer com o ofício. Em algumas regiões, o mestre era socialmente valorizado desde que não cobrasse e não lucrasse com o ensino. Muitas vezes era tido como indigno aquele que cobrasse por ensinamentos. Para Cambi, três aspectos do ensino na Grécia antiga são importantes para a tradição ocidental da educação: 1. a noção de paideia, que universalizou e tornou socialmente mais independente e finalizado para o sujeito-pessoa o processo de formação, entendido como um formar-se universalizando-se e desenvolvendo a própria humanitas, por meio de um comércio estreito, constante e pessoal com a cultura e sua história; 2. a pedagogia como teoria, tornada autônoma por referentes históricos contingentes e destinada a universalizar e tornar rigoroso (no sentido racional) o tratado dos problemas educativos: nasce um saber da educação no sentido próprio, com todos os riscos de abstração, de teorismo, de normativismo que isto comporta; 3. a problematização da relação educativa, que supera o nexo pedagogo-pais e docente–discente, relação autoritária e formalista, abstrata e geralmente impessoal. [...] (CAMBI, 1999, p. 102) Assim, podemos dizer que absorvemos dos gregos (embora seja ressignificada constantemente) a ideia de que a educação contribui para o aprimoramento humano. Ou seja, de que, a partir do ensino e da aprendizagem, podemos desenvolver potencialidades que não são inatas, mas adquiridas por meio do processo educacional. 22 CAPÍTULO 1 • POR QUÊ? E PARA OnDE? A IMPORtÂnCIA DA HIStÓRIA DA EDUCAçãO DA/nA PRátICA DOCEntE Sintetizando Vimos até agora: » A história da educação nos ajuda a conhecer o processo histórico da organização educacional ao longo do tempo e, com isso, contribui para a melhor compreensão das questões presentes. » Ao compreendermos de forma crítica o presente, temos instrumentos para pensar, projetar e construir um futuro onde a educação seja de fato democrática, plural e acolhedora. » A educação no Egito Antigo esteve limitada aos grupos dominantes, uma vez que era compreendida como uma aprendizagem para governar. Suas características principais estavam na valorização das tradições, na obediência, na arte do bem falar e na escrita administrativa e burocrática. » A educação em Esparta concentrava-se na questão militar e era gerenciada pelo Estado. » Em Atenas, o pensamento da paideia compreendia que a educação era um instrumento para desenvolver potencialidades humanas, num caminho para a excelência do homem. 23 Introdução A queda do Império Romano inaugurou a chamada Idade Média, período que até hoje olhamos muitas vezes a partir de estereótipos. O mais conhecido deles é a Idade das Trevas. Neste capítulo vamos apresentar as formas de aprender e ensinar da Roma Antiga e como a educação, a partir da queda do Império, se transformou em um quase monopólio da Igreja Católica durante a Idade Média. Como, para quê e para quem a Igreja medieval educou? Te convido a perceber como a educação romana internalizou a paideia grega e como esta se tornou uma paideia cristã quando a Igreja ocupou o lugar do Estado na estrutura educacional, já que, num momento de intensas guerras, ascensão e destruição de reinos, era ela unificadora, forte e estável. Vamos lá? Objetivos » Analisar a forma como a educação no Império Romano absorveu a visão grega da paideia. » Apresentar os objetivos e os métodos da educação na Roma Antiga. » Discutir a ascensão do poder da Igreja Católica na estrutura educacional durante a passagem do Império Romano para a Idade Média. » Compreender os diferentes espaços educacionais presentes na Idade Média: mosteiros, universidades, corporações de ofício, educação cavalheiresca;Entender as críticas humanistas à escolástica e sua proposta educacional. 2 CAPÍTULO COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA 24 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Fez educar seus filhos em todas as artes segundo a educação grega: a educação na Roma antiga Observe a imagem a seguir: Figura 6. A educação romana. Fonte: <https://classicgrandtour.com/2015/12/28/inocentes/>. Acesso em: 30/1/2019. Voltando seu olhar para a criança em sua relação com os adultos da cena, como você interpretaria o processo educacional neste período da Roma da antiguidade? Quem primeiro acolhe essa criança? Depois ela é passada para a responsabilidade de quem? O que você acha que era ensinado a ela? É um menino ou uma menina? A quem se destinava a educação e para quê? Esta peça está atualmente no Museu do Louvre, em Paris. É parte do sarcófago de M. Cornélio Estácio. Nele podemos perceber as fases da educação na Roma antiga. Num primeiro momento, a mãe cuida do filho e o pai apenas observa, depois, ao crescer, o pai assume a responsabilidade sobre a criação e ensina o filho em disputas de jogos e também na aprendizagem, tomando-lhe a lição como na última imagem. Na Roma Aantiga, durante muito tempo, a educação na primeira infância era responsabilidade do pater familias. Ou seja, segundo Manacorda: [...] desde os primeiros tempos da cidade, a autonomia da educação paterna era uma lei do estado: o pai é dono e artífice de seus filhos. De fato, a antiga monarquia romana era uma república de patres, patrícios ou donos de terra e das familae, isto é, dos núcleos rurais, dos quais faziam parte sob o mesmo título as mulheres, os filhos, os escravos, os animais e qualquer outro bem. [...] O próprio pater é a patria : a antiga lei das Doze Tábuas, do início da república até metade do século V a.C., permite, entre outras coisas, que o pai mate os filhos anormais, prenda, flagele, condene aos trabalhos agrícolas forçados, venda ou mate os filhos rebeldes, mesmo quando, já adultos, ocupam cargos públicos. Não é surpreendente, portanto, que na Roma antiga não tenha existido durante muito tempo nenhuma forma de educação pública para a primeira infância [...] (MANACORDA, 2010, p. 97) 25 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 Desta forma, a criança dos grupos sociais mais abastados crescia em casa, recebendo os cuidados da mãe ou da nutriz, desfrutando da companhia de colegas, brinquedos e das primeiras aprendizagens. A partir dos sete anos, o pai se tornava o tutor da criança, ensinando os saberes rudimentares, as tradições familiares, exercícios físicos e militares. A família, portanto, exercia papel central na educação, tendo o pai o papel prioritário, servindo também de guia e exemplo. Com o passar do tempo e a expansão de Roma, tornando-se um império, essa educação vai gradualmente passando das mãos do pai para um pedagogo ou ummestre, tendo como principal objetivo a formação do cidadão, do político, a preparação para a guerra ou para paz, a legislatura e as letras. Roma foi pouco a pouco construindo um grande império e entrando em contato com diferentes culturas, artes, ciências e filosofias. Os gregos foram um dos muitos povos conquistados pelos romanos. Parte considerável desta população subjugada se tornou escravo-mestre das crianças romanas. Assim, a educação em Roma, inicialmente restrita aos ensinamentos paternos, passou para a mão de mestres escravos, ainda no seio da família. Somente os jovens iam para a escola. Esse é um ponto fundamental da educação e cultura romanas: houve muita influência grega, numa espécie de helenização do estilo de vida romano. E isto ocorreu na pedagogia também. Você se lembra que no capítulo anterior estudamos o ideal da paideia? Este conceito entendia que a formação humana se daria pela cultura e, portanto, o ensino servia para elevar ao máximo as potencialidades e virtudes dos homens. A paideia é incorporada pelos romanos. Eram, portanto, pedagogias fortemente ligadas ao saber filosófico, à retórica e à perspectiva enciclopédica do saber. Ao ponto de Demarato de Corinto, pai do primeiro rei etrusco romano afirmar: “faz educar seus filhos em todas as artes segundo a educação grega” (MANACORDA, 2010, p. 103). Essa influência grega na educação romana foi amplamente debatida entre os estudiosos, administradores e governantes romanos: até que ponto a influência grega é benéfica a Roma? Deve-se manter a tradição ou é importante incorporar novos conhecimentos e visões de mundo? Outro ponto de debate era o público que estas escolas deveriam atingir: a quem educar? Os governantes mais velhos e conservadores olhavam com alarme o crescimento do número de jovens que participavam das escolas recentemente implementadas. Isto porque, como vimos, muito da educação era uma preparação para a vida pública, para o governo, para a fala nos conselhos e nas assembleias. Assim, com a ascensão e consolidação do império, as escolas foram se constituindo enquanto espaços exclusivos para determinados grupos sociais, afastando os populares delas. Nestas escolas, o método de ensino era a repetição e a memória, o melhor instrumento para a aprendizagem. 26 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Aprendem de cor um grande número de versos, porque acham um sacrilégio pôr aquelas coisas por escrito, embora para outras coisas usem as letras gregas. Porque não querem que nem suas doutrinas sejam divulgadas, nem aquele que estuda, confiando na escrita, acabe descuidando da memória; coisa que acontece à maioria que, servindo-se das letras, afrouxa a diligência para aprender a memorizar. (MANACORDA, 2010, p. 119) Até mesmo o ensino da escrita era mecânico: imitando incessantemente um modelo preestabelecido pelo mestre. Somado a isso, também há relatos da utilização de castigos físicos com varas e chicotes. Também era central na educação romana a preparação físico-militar, encarada como um dos fundamentos da formação do cidadão. Outra questão discutida é que a grande memorização de textos, a didática enfadonha e os conteúdos distantes da vida diária levavam a uma visão de insignificância da escola. E isto leva a uma pergunta central: qual a função da escola? [...] numa sociedade que recebeu a escola de uma tradição alheia, efetivando uma ruptura com as próprias tradições, e em que a finalidade “impudente” da conquista de hegemonia política das massas através da cultura se revela ilusória, nessa sociedade inevitavelmente a escola e sua cultura acabam por se fechar em si mesmas, numa idolatria exclusiva de suas tradições estranhas e fechadas. (MANACORDA, 2010, p. 121) A educação também teve como função e resultado a construção de uma romanização no Império Romano, através da língua e da literatura, mas também pelas escolas de direito, conferindo certa unidade espiritual num espaço político tão amplo e diverso que ia do Norte Europeu, passando pelo Oriente Próximo e chegando ao Norte da África. Importante Foi durante a expansão do Império Romano que surgiu uma nova religiosidade: o cristianismo. Sendo, como toda e qualquer doutrina religiosa, uma forma de ver e sentir o mundo, organizando modos de conduta, de ser e agir no cotidiano, o cristianismo impactou também o campo da educação. Em suas origens, o cristianismo apresentou ao mundo uma nova concepção de homem, de família, de trabalho e de política baseada nos valores da igualdade, do amor, da solidariedade, da colaboração, da compaixão, da tolerância e da paz. Estes eram valores que se encontravam em franca oposição à cultura hegemônica vigente na época. É justamente a partir dessa subversão de valores a da institucionalização do cristianismo, via Igreja Católica, que a educação começou a ser modificada no Império Romano. O pedagogo Franco Cambi afirma que a paideia grega foi questionada e paulatinamente substituída por uma paideia christiana. Com a expansão da Igreja após da adoção do cristianismo como religião oficial do Império, aquela passa a organizar e regular a educação da comunidade, tomando cada vez mais do Estado o papel de provedor e administrador de escolas. Vamos observar algumas dessas mudanças? 27 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 Com as crises internas do Império e as invasões bárbaras, o sistema de ensino das escolas romanas sofreu um grande baque. Num cenário de guerras e penúria, as famílias tentavam proteger seus filhos e muitas delas optaram por uma educação estritamente familiar. Por parte dos bárbaros, havia uma crítica à educação voltada para o dizer, para as letras e uma ênfase nos ensinamentos ligados à função militar. A educação deveria ser, portanto, treinamento: Todos os notáveis se reuniram, foram a Amalasunta e começaram e repreendê-la pelo fato de que o rei não estava sendo educado numa forma justa e adequada, segundo eles. As letras – diziam eles – não têm nada a ver com o valo, e os ensinamentos de pessoas anciãs têm, em geral, a covardia e a permissividade como efeito; era necessário, portanto, que um menino destinado a ser exemplo de coragem e a adquirir grande fama se libertasse do medo dos mestres e se exercitasse antes de tudo nas armas. Acrescentaram que nem Teodorico permitira aos godos enviar os filhos à escola de letras humanas, antes dizia a todos que, uma vez dominados pelo medo do chicote, nunca teriam ousado enfrentar com coragem o perigo da espada e da lança... Portanto, querida soberana – diziam a ela -, manda para aquele lugar esses pedagogos e põe tu mesma ao lado de Atalarico alguns coetâneos: estes, crescendo junto com ele, o impelirão para a coragem e a valentia segundo o uso dos bárbaros. (MANACORDA, 2010, p. 170) Portanto, havia neste período um embate entre os resquícios de uma educação romana (muito influenciada pelos gregos, como vimos), a força e os valores da Igreja Católica que se colocava cada vez mais como uma instituição que unifica e estabiliza e, por fim, as propostas bárbaras que se faziam presentes, especialmente no que tange ao treinamento militar. Havia aí um ponto muito interessante de convergências: Nesta situação de destruições e de adaptações, que muda de um lugar para outro, a cultura continua sendo tarefa dos romanos, que procuram conservar a cultura tradicional romana. [...] É verdade que os primeiros bárbaros chegam em território imperial já aculturados à civilização romana e a maioria já convertidos Primeiro ponto: o papel do educador, que se tornou responsável não somente pela educação intelectual, mas também pelo crescimento espiritual do seu aluno. Este educador valorizava a formação filosófica, literária e artística de seus discípulos, mas esta cultura tinha um objetivo: servir a Deus. Segundo ponto: a formaçãode mosteiros. Esses espaços tiveram especial importância na Europa medieval com a reprodução de textos, a preservação de manuscritos, a educação do clero. Foram importantes centros educativos e também de debates da fé e da filosofia cristã. Terceiro ponto: as obras de Santo Agostinho, que trouxeram a filosofia platônica para o cristianismo, especialmente na visão da verdade e seu inatismo, e no dualismo entre corpo e alma. Santo Agostinho também influenciou na educação cristã com sua rígida ascese, baseada no senso do pecado. Sua perspectiva pedagógica compreendia que a ascensão a Deus estava diretamente ligada a um processo de autoeducação do indivíduo a partir do uso da sua racionalidade para corrigir erros e pecados. Assim, o bom cristão deveria realizar, sob sua direção, o crescimento interior educativo que o aproximasse de Deus. 28 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA ao cristianismo e há, portanto, uma mentalidade cristã comum aos velhos povos romanizados e aos novos povos bárbaros. [...] Mas o que mais interessa aqui é que exatamente esta sensibilidade e cultura de inspiração cristã que se inseriu entre os romanos, antes ainda das invasões bárbaras, ao lado da cultura helênica, já criara a situação dissociada já referida. Se é uma coisa, mas também se é outra: se é cristão, mas ao lado da participação na catequese e na liturgia da nova religião, se continua a educar na escola com textos de tradição clássica. (MANACORDA, 2010, p. 136) Neste cenário de intensas disputas ocorreu um processo conhecido como encastelamento ou feudalização na Europa Ocidental. Frente às crises internas do Império Romano do Ocidente, sua queda definitiva, a construção e decadência de reinos bárbaros, o continente se viu mergulhado em guerras, violências e muita instabilidade. A população passou então a buscar proteção nos feudos forjados e protegidos pelas casas nobres. Assim, muito da estrutura educacional construída pelo Império Romano se esfacelou e perdeu certa organicidade. Mas, neste campo, o que especialmente nos chama a atenção é a permanência da Igreja enquanto vínculo e unidade. Se, como já vimos anteriormente, o Estado foi perdendo espaço no controle e organização do ensino, com a queda do Império Romano, a Igreja Católica se tornou ainda mais senhora dos corações e mentes. É especialmente este domínio que vamos discutir no próximo tópico. nas páginas sagradas encontram-se imagens, metáforas e outras coisas do gênero: a educação na Idade Média. Você já ouviu dizer que a Idade Média foi a Idade das Trevas? Já assistiu a algum filme ou documentário que apresentava esse período de forma obscurantista, permeado por pessoas ignorantes, cujas crenças nos fariam rir hoje? Já ouviu histórias que retratavam a Idade Média como um período de doenças, fome e mortes? Provavelmente, sim. Esses estereótipos foram construídos posteriormente por sociedades e culturas que desejavam se contrapor ao medievo. Como todo e qualquer estereótipo, ele reduz as características de um período tão rico e complexo. Há divergências entre os historiadores sobre a temporalidade da Idade Média, mas utilizaremos aqui a datação mais clássica que aponta a queda do Império Romano do Ocidente como seu início, e a queda de Constantinopla como seu fim. Ou seja, um período que vai do século V ao século XV. Portanto, estamos falando de mil anos de história. Muita coisa aconteceu nesse período e nos marca até hoje. Veremos, por exemplo, a fundação das universidades, tão importantes na nossa sociedade atual. Assim, o que gostaríamos que você mantivesse em mente durante no seu estudo é que essa época foi extremamente dinâmica e complexa, bem diferente dos estereótipos, e, portanto, muito rica e interessante. 29 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 Como dissemos no tópico anterior, após a queda do Império Romano do Ocidente, a Igreja se tornou definitivamente a principal protagonista e organizadora da educação na Europa. Vamos ver como se deu essa relação entre Igreja e educação na Idade Média? Nos turbulentos anos de ascensão e queda de impérios bárbaros e reorganização de principados, ducados e reinos, a Igreja se manteve forte e relativamente coesa para tomar para si a função de reorganizar a cultura e a escola europeias. E considerando que a Igreja já tem uma dupla estrutura organizacional, isto é, vivendo ela em parte no meio do povo através dos bispados e das paróquias (clero secular) e em parte longe dele nos mosteiros (clero regular), é nessa dupla estrutura eclesial que devemos procurar os primeiros testemunhos do surgimento de novas iniciativas da educação cristã, ao lado das remanescentes ilhas livres de romanidade clássica. (MANACORDA, 2010, p. 144) A partir da citação acima, podemos perceber um primeiro desafio para a Igreja: como conciliar a educação de ordem moral católica com a cultura e escola romanas que muito beberam dos gregos? Houve um embate entre a Igreja e a cultura clássica. Alguns repudiavam, como o papa Gregório I que afirmou: Ficamos sabendo, e não podemos lembrar isso sem sentir vergonha, que a tua fraternidade ensina a alguns a gramática; isto é muito grave, porque os louvores de Cristo não podem estar na mesma boca com os louvores de Júpiter (MANACORDA, 2010, p. 155) Mas havia também aqueles que tentavam conciliar o classicismo com o cristianismo, estando o primeiro a serviço do segundo. Ou seja, os instrumentos, os conhecimentos, as artes liberais advindas das épocas pagãs deveriam contribuir para o conhecimento e reafirmação da fé e dos valores cristãos. Vejamos um exemplo: [...] não somente não devem negligenciar os estudos literários, mas, com toda humildade e por amor a Deus, devem aprender com perseverança para poder penetrar de forma mais fácil e correta os mistérios das escrituras. E, já que nas páginas sagradas encontram-se imagens, metáforas e outras coisas do gênero, evidentemente entenderá melhor seu sentido espiritual quem com maior profundidade tiver se instruído no magistério das letras. (MANACORDA, 2010, pp. 164-165) A cultura clássica, portanto, foi aceita e estimulada desde que cumprisse o propósito de contribuir para que o cristão se aproximasse mais das obras de Deus. A partir desta questão, podemos perceber que a educação defendida pela Igreja Católica durante a Idade Média se baseou em uma dupla preocupação: a moral e a instrução. 30 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Neste momento, existiam basicamente três tipos de escola: uma voltada para os leigos e administrada pelo Estado; outra administrada pela Igreja situada nas paróquias e que recebia também os leigos, ou episcopal, voltada para a formação de clérigos; e uma terceira situada nos mosteiros. Havia uma grande preocupação por parte da Igreja relacionada à formação dos clérigos. Pelos relatos, cartas e concílios, podemos observar que muitos eclesiásticos não tinham os conhecimentos rudimentares da leitura e escrita. Com a queda do Império Carolíngio, as tensões entre Império e Igreja findaram e esta última conquistou, segundo Manacorda, o monopólio da instrução, tanto no ensino religioso quanto no literário, tanto para leigos quanto para eclesiásticos. Importante Uma das principais criações da Idade Média foi a universidade. Acredita-se que sua origem esteve ligada aos mestres livres. Esses eram clérigos ou leigos que tinham licença para ensinar e se fortaleceram especialmente a partir do crescimento das cidades e do fortalecimento dos grupos sociais mercantis. Também entende-se que o nascimento dessas instituições esteja vinculado aos clérigos vagantes que se reuniam para ouvir os ensinamentos dos licenciados. Eles tinham associações, as universis, sendo, portanto, universitates.Nem sempre esses clérigos eram bem-vindos nas cidades onde se hospedavam. Os relatos contam muitos casos de bebedeiras e arruaças que complicavam a vida dos moradores. Artes liberais, medicina, jurisprudência e teologia foram os principais campos de ensino das primeiras universidades. Figura 7. Universidade de Oxford. Fonte: <https://brasilescola.uol.com.br/historia/universidades-na-idade-media.htm>. Acesso em: 30/1/2019. Universidade de Oxford – fundada em 1096 é a mais antiga do mundo anglófono e a segunda mais antiga da Europa. Ainda em funcionamento, é considera uma das melhores universidades do Ocidente. 31 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 Figura 8. Universidade de Paris. Fonte: <https://brasilescola.uol.com.br/historia/universidades-na-idade-media.htm>. Acesso em: 30/1/2019. Universidade de Paris – fundada em 1170 a partir de uma escola situada na Catedral de Notre-Dame. Atualmente, está dividida em treze universidades independentes. Aproveitando-se da expansão comercial e do desenvolvimento das cidades, essas instituições, que começaram a partir de aulas esparsas ou em pequenos locais de ensino independentes, foram ganhando força e fôlego. Diante dessa novidade, governantes e Igreja tentaram de certa forma controlar e regular estas novas instituições, observando seu conteúdo e método e organizando administrativamente. É nesse momento, por exemplo, que surge a figura do Reitor (existente até nossos dias) que deve observar a qualidade dos mestres e do ensino, bem como garantir os currículos e métodos de ensino da universidade. Segundo o historiador Jacques Verger, em seu verbete “Universidade” no Dicionário Analítico do Ocidente Medieval (2017), a despeito da vigilância da Igreja Católica, as universidades medievais tinham grande autonomia e liberdade. Cada instituição poderia elaborar seus estatutos com regras e disciplinas internas. As assembleias de mestres decidiam os programas, os cursos, os exames e até mesmo as questões relativas às colações de grau. Era a própria instituição que decidia pela entrada dos alunos e pela admissão de novos mestres. Outra característica interessante da universidade medieval foi o seu caráter universalista: a partir da cultura clássica (acrescida dos conhecimentos advindos do contato com os árabes) e do saber da revelação cristã, o ensino tinha as mesmas bases. Isso foi possível porque tais universidades estiveram ligadas ao poder, também universalista, do papa. Era esta autoridade que legitimava e confirmava a existência, o funcionamento e a organização das instituições universitárias medievais. Ainda segundo Verger, as universidades cresceram também para atender a uma demanda social cada vez mais complexa das cidades que, como vimos, cresceram e se fortaleceram. A necessidade da formação para atuar em diversos e complexos setores sociais pressionou para a ampliação das universidades. Eram necessários secretários, médicos, pregadores cultos e, especialmente, juristas. Importante ressaltar, porém, que o acesso à educação universitária era restrito aos grupos sociais que poderiam arcar com seus custos. Apenas poucos alunos recebiam alguma ajuda de custo de ordens religiosas. A grande maioria era proveniente dos grupos mais abastados. 32 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Fora dos mosteiros, das escolas eclesiásticas e das universidades, esse período contou ainda com duas importantes formas de ensino: a educação cavalheiresca e as corporações de ofício. A primeira esteve ligada aos nobres que deveriam não apenas focar nos exercícios militares e guerreiros, mas também na aprendizagem das “boas maneiras”, da gentileza e dos costumes. Nesse sentido, a honra, vista a partir de uma visão comportamental da nobreza, tornou-se ideal chave para a compreensão das relações cavalheirescas. Nunca de conseguirá disciplinar alguém com varas: para quem zela de sua honra a palavra vale quanto uma pancada. Guardai vossa línguas: é isto que convém ao jovem; trancai a cadeado a porta, para que não sai uma palavra má. Guardai vosso olhos: olhai à vontade os costumes que merecem ser vosso modelos; mas os maus costumes desprezai-os. Figura 9. Universidade medieval. Fonte: <https://brasilescola.uol.com.br/historiag/universidades-medievais.htm>. Acesso em: 30/1/2019. 33 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 Guardai vosso ouvido: para não vos tornades tolos. Não deis atenção às más conversas, elas serão a vossa infâmia. Oh, guardai-os bem esses três, porque estão muito livres. Línguas, olhos, ouvidos são indisciplinados e não têm honra. (MONACORDA, 2010, p. 197) A educação cavalheiresca esteve voltada para a aprendizagem dos modos de se comportar na corte, as chamadas “boas maneiras”: tocar um instrumento, compor versos, jogar xadrez, conhecer leis, cerimonial, diplomacia e políticas. Não era uma preparação de forte cunho intelectual, mas a preparação de pessoas para ocuparem um determinado papel na sociedade: nobres. Havia aí um profundo desprezo pela cultura livresca e erudita e a valorização da cultura guerreira, como as caçadas e os jogos de arma. Já as corporações de ofício, no que tange a aprendizagem, visava juntar ciência e trabalho. Eram associações de pessoas que exerciam o mesmo ofício, elaborando regras, estatutos e formas de ensino. Os aprendizes tinham mestres que lhes ensinavam o ofício específico daquela corporação, não havendo separação entre trabalhar e aprender. Essa diferenciação pode ser assim sintetizada: A educação das aristocracias se ritualiza, mas também se classiciza, separando- se nitidamente da sociedade com suas lutas e suas necessidades; a popular mergulha nessa realidade, carrega-se de realismo, articula-se em conhecimentos técnicos (do fazer) e contrapõe-se àquela outra, separada e artificial, das classes altas; age nos espaços abertos do social (na oficina, na praça, na festa) e não naqueles espaços separados, dos castelos ou da cela do mosteiro. Uma sociedade rigidamente hierárquica separa e contrapõe – hierarquizando-os – também os modelos educativos e culturais. (CAMBI, 1999, p. 151) 34 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Saiba mais Tendemos a associar educação apenas à escola. Ou seja, institucionalizamos o educar compreendendo que o único espaço possível de aprendizagem é a escola. Mas, na verdade, a unidade escolar é apenas um dos muitos locais educadores. Vejamos agora outras práticas educadoras no medievo. Durante a Idade Média, a grande maioria da população era formada de analfabetos. Seus conhecimentos estavam atrelados às crenças, tradições e sabedoria do senso comum. Assim, como forma de educar essa população, outras estratégias pedagógicas foram utilizadas: o teatro, as imagens e as festas. As festas poderiam ser pagãs, agrícolas ou religiosas e tinham cânticos, mitos, teatro, ritos. Quanto ao teatro, havia o sacro e o popular. No teatro sacro, valores cristãos impregnavam as peças que visavam demonstrar para a população a moral correta e virtuosa, delimitar o que é bom e o que é mau. Figura 10. teatro medieval. Fonte: <https://www.todamateria.com.br/teatro-medieval/>. Acesso em: 30/1/2019. Já no teatro popular, podemos encontrar a ironia, o deboche, a subversão da ordem, o burlesco e até mesmo o grotesto (assim também como em muitas festas, como, por exemplo, o Carnaval). Abaixo segue um trecho de uma peça popular do dramaturgo francês Rutebeuf, intitulada O pregão das Ervas, escrita por volta do século XIII “Respeitáveis senhores, que me dais ouvidos Grandes e pequenos, jovens ou vividos Vós fostes pela sorte favorecidos Pois ireis, agora, a verdadeencontrar Sabendo que este médico não vos pode enganar Uma vez que por vós mesmos podeis comprovar O poder destas ervas antes do fim Vamos fazendo a roda em torno de mim Sem ruído, em silêncio, é bem assim... Eu, aqui, sou é pesquisador E tenho servido a muito imperador Até mesmo lá do Cairo, o senhor Muito poderoso, ele faz questão de me contratar todo verão Pagando para mim um salariozão.” Fonte: <https://www.todamateria.com.br/teatro-medieval/>. Acesso em: 30/1/2019. 35 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 A partir do fim do medievo, e, especialmente, no período de transição entre Idade Média e Idade Moderna, ocorre a ascensão de uma nova classe social: a burguesia. Fortalecida no comércio, nos transportes, nos bancos e nas manufaturas, esse grupo também demandou ensino, educação e aprendizagem para seus filhos. A burguesia construiu uma nova visão de mundo que foi sendo ressignificada ao longo dos séculos e ganhando novos espaços e dimensões, mantendo uma base voltada para a laicidade e a afirmação do homem e suas potencialidades. Muitos contratavam mestres para educarem As imagens também tinham grande potencial educador, especialmente nas Igrejas. Para um público majoritariamente analfabeto, as imagens nos vitrais cumpriam o papel de contar histórias bíblicas e ensinar a moral e a fé cristãs aos seus fiéis frequentadores. Você já teve a oportunidade de entrar em igrejas com vitrais? Se na sua cidade houver igrejas com vitrais, não perca a oportunidade de ir admirá-las. São verdadeiras obras de arte e nos ajudam a perceber múltiplas formas de comunicação e educação para além da leitura, escrita e oralidade. Abaixo, seguem dois exemplos de vitrais da Catedral de Chartres, na França: Figura 11. vitral medieval. Fonte: <https://catedraismedievais.blogspot.com/2013/04/vitrais-da-catedral-de-chartres.html>. Acesso em: 30/1/2019. Figura 12. vitral da Catedral de Chartres. Fonte: <https://catedraismedievais.blogspot.com/2013/04/vitrais-da-catedral-de-chartres.html>. Acesso em: 30/1/2019. 36 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA seus filhos, mediante pagamento em moedas, numa ideia de contratação de um serviço. Essa aprendizagem esteve ligada às ideias utilitárias. Ou seja, uma educação voltada para o que seria “produtivo”. Vejamos alguns exemplos: Messer Giannozzo Manetti nasceu no ano de 1393... O pai..., Bernardo, mandou-o, ainda de poucos anos, segundo o costume da cidade, a aprender a ler e a escrever; tendo aprendido em pouco tempo quanto é necessário para ser um bom mercador, passou-o para o ábaco e em poucos meses tornou-se tão douto naquela ciência quanto um profissional da mesma. Aos dez anos foi posto no banco e em poucos meses lhe foi entregue a conta da caixa. Depois que ficou, conforme o costume, algum tempo no caixa, lhe foram entregues os livros e ficou neste exercício vários anos. Feito isso, começou a pensar consigo mesmo se seria possível conquistar, naquilo que estava fazendo, fama ou glória para si e sua família, mas não viu essa possibilidade e chegou à conclusão de que o único meio para tanto era o estudo das letras: e por isso determinou absolutamente de, proposta qualquer outra preocupação, dedicar-se a esses assuntos. Tinha já vinte e cinco anos. Sejam os meus filhos mandados às escolas, a fim de que saibam falar e escrever bem segundo as letras; sejam enviados a aprender o ábaco para que saibam ocupar-se do comércio; e, se for possível, aprendam os autores, a lógica e a filosofia: é isto que desejo; mas não se tornem nem médicos, nem juristas, mas só negociantes. (MANACORDA, 2010, pp. 210-211) Neste sentido, a educação burguesa era voltada para a especialização, para a ampliação às diferentes camadas (veremos isto mais detidamente no capítulo 5) e pela laicidade, separando do predomínio eclesiástico o campo educacional. Assim, mestres e escolas formaram-se à revelia dos governantes e da Igreja, atendendo especialmente as necessidades das corporações de ofícios e dos burgueses. Que obra de arte é o homem – Humanismo e a crítica ao ensino escolástico No século XV surgiram as críticas humanistas à educação hegemônica na Idade Média. Defendia- se um retorno aos clássicos da antiguidade greco-romana, criticava-se o uso da memória e de metodologias repetitivas para a aprendizagem, repudiava-se a relação de submissão que se tinha aos manuais e compêndios. O humanismo tinha como principal característica a crença nas potencialidades do homem. Sua educação se contrapôs às universidades e seu ensino escolástico, optando como espaço para a criação e o debate cultural as novas academias e livre associações. 37 COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA • CAPÍTULO 2 A proposta educação humanista passou pela leitura direta dos textos, especialmente os clássicos da antiguidade greco-romana; a ênfase na poesia; a quebra do rigor disciplinar que impunha castigos físicos e uma rígida separação entre mestres e discípulos; e, especialmente, uma grande variedade de áreas do saber. O homem do renascimento prezava pela multiplicidade dos saberes. Um grande exemplo deste ideal, você deve conhecer: Leonardo da Vinci, que durante a sua vida foi pintor, escultor, astrônomo, engenheiro, arquiteto, inventor e um grande estudioso da anatomia humana. Outro ponto que Da Vinci ilustrou muito bem foi o momento pelo qual a Europa passava: vemos uma mudança de olhar sobre o conhecimento, o início da transição para uma perspectiva metodológica e científica (que iremos trabalhar no próximo capítulo) baseada na matemática, na mecânica, na observação e na experimentação. Veja exemplos do pensamento de Da Vinci: Mas parece-me que essas ciências sejam vãs e cheias de erros, porque não nasceram da experiência, mãe de toda certeza, nem levam a determinada experiência, isto é, sua origem, meio ou fim não passam por nenhum dos cinco sentidos... Nenhuma investigação humana pode ser considerada verdadeira ciência se essa não passa pelas demonstrações matemáticas. Aquele que despreza a máxima certeza das matemáticas, apascenta-se na confusão e nunca conseguirá acabar com a confusão das sofísticas ciência... o que não podem fazer as falsas ciências mentais, pelas quais se aprende um eterno gritar. (MANACORDA, 2010, p. 226) Figura 13. O homem vitruviano. Fonte: <https://www.historiadasartes.com/sala-dos-professores/o-homem-vitruviano-leonardo-da-vinci/>. Acesso em: 30/1/2019. O Homem Vitruviano, de cerca de 1492, desenhado em lápis e tinta sobre papel, Leonardo da Vinci, Gallerie dell’Accademia, Veneza, Itália. 38 CAPÍTULO 2 • COM tODA HUMILDADE E POR AMOR A DEUS, DEvEM APREnDER COM PERSEvERAnçA: EDUCAçãO nA ROMA AntIgA E nA IDADE MÉDIA Observe que aqui, Da Vinci tenta comprovar a simetria do corpo humano, estudando as suas proporções a partir de uma perspectiva matemática. Isto corrobora com a máxima do pensamento renascentista: “O homem é a medida de todas as coisas”. Porém, mais uma vez encontramos um dos questionamentos centrais da história da educação e, portanto, da nossa disciplina: para quê e para quem se educa? A educação humanista, embora abarcasse um universo de temáticas e disciplinas, e assinalasse para um movimento que visava a relação teoria e prática, ainda carregava em si uma cultura livresca, uma valorização do saber teórico, que pouco ou quase nada se relacionava com a prática e o cotidiano da grande maioria da população. Importante ressaltar também que o movimento humanista esteve particularmente restrito a pequenos círculos de nobres, mecenas e eclesiásticos O interessante aqui é perceber que muitos humanistas fizeram esta autocrítica. Nicolau Maquiavel foi um deles. Para o autor do famoso tratado O Príncipe, o saber precisava conduzir para
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