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Literatura GISELE THIEL DELLA CRUZ LUCIANA CAROLINA SANTOS ZATERA Infantojuvenil Literatura in fan tojuven il GISELE THIEL DELLA CRUZ / LUCIANA CAROLINA SANTOS ZATERA Literatura GISELE THIEL DELLA CRUZ LUCIANA CAROLINA SANTOS ZATERA Infantojuvenil Literatura in fan tojuven il GISELE THIEL DELLA CRUZ / LUCIANA CAROLINA SANTOS ZATERA Código Logístico 59640 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6702-2 9 7 8 8 5 3 8 7 6 7 0 2 2 Literatura infantojuvenil Gisele Thiel Della Cruz Luciana Carolina Santos Zatera IESDE BRASIL 2020 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2020 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito das autoras e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Popmarleo/Shutterstock CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ D398L Cruz, Gisele Thiel Della Literatura infantojuvenil / Gisele Thiel Della Cruz, Luciana Carolina Santos Zatera. - 1. ed. - Curitiba [PR] : Iesde, 2020. 136 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6702-2 1. Literatura infantojuvenil - História e crítica. 2. Literatura infantojuve- nil brasileira. 3. Leitura - Estudo e ensino. I. Zatera, Luciana Carolina Santos. II. Título. 20-67284 CDD: 808.899282 CDU: 82-93(81).09 Gisele Thiel Della Cruz Doutora em Estudos Literários e mestra em História do Brasil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Escola e Currículo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Graduada em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG), em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e em Pedagogia pelo Centro Universitário Internacional Uninter. É professora de História e de Literatura no ensino médio. No ensino superior, leciona em cursos de Pedagogia, Arquitetura, Letras e História, além de coordenar cursos de graduação em Letras e História (EAD). Produz material didático para a educação a distância. Luciana Carolina Santos Zatera Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) e licenciada em Letras- -Português pela mesma instituição. Licenciada em Pedagogia e História pelo Centro Universitário Internacional Uninter. Atua como professora em cursos superiores de Pedagogia e Letras há onze anos nas modalidades presencial e EAD. É professora de Língua Portuguesa da Educação Básica há vinte anos. Coordena curso de licenciatura em Letras-Português a distância. Publica trabalhos nas áreas de literatura infantil e escreve livros e materiais destinados às áreas de metodologias de ensino e práticas pedagógicas, especialmente voltadas à aprendizagem da linguagem. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 História da literatura infantil 9 1.1 O nascimento da infância 10 1.2 A literatura burguesa 12 1.3 A literatura infantil 15 1.4 Alguns clássicos dos séculos XVIII e XIX 19 2 Literatura infantil no Brasil 26 2.1 As primeiras obras de literatura infantil no Brasil 26 2.2 Monteiro Lobato: um novo paradigma da literatura infantil 33 2.3 A literatura infantil entre 1940 e 1960 40 2.4 Literatura infantil brasileira contemporânea: de 1970 – atualidade 43 3 A literatura infantojuvenil na escola 50 3.1 Encaminhamentos metodológicos para a literatura infantojuvenil 50 3.2 As narrativas 58 3.3 A poesia e o teatro 65 3.4 O livro infantil e as ilustrações 72 4 Formação de leitores: estratégias e projetos 79 4.1 O papel do professor e a formação do leitor 80 4.2 Estratégias de leitura 85 4.3 A escolha do livro literário e o Método Recepcional 89 4.4 Sugestões de trabalho com a literatura infantojuvenil 93 5 A leitura da literatura: imagens e palavras 102 5.1 A literatura infantil e o intertexto 103 5.2 O livro de imagem infantil 109 5.3 Novos temas para a literatura infantil 116 5.4 A periferia da escrita na literatura juvenil 122 Gabarito 130 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro abordará quatro temas-chave na literatura infantojuvenil: sua história, sua estruturação, sua projeção ao longo do tempo e sua metodologia de ensino. Ao pensar a literatura infantil é impossível não associá-la aos conceitos e condicionantes básicos: a literatura e a educação. Por isso, a historicidade da literatura infantil se confunde, em grande medida, com a trajetória da pedagogia. A condução desta obra será alicerçada, primeiramente, no surgimento da literatura infantojuvenil, em suas transformações e reformulações. Já em um segundo momento, serão aprofundados autores e teorias fundamentais, que estudam a função estética da literatura e as metodologias necessárias para o trabalho docente com as práticas de leitura. Considerando as reflexões que tomaram como base os textos de criação, serão propostas metodologias já desenvolvidas por estudiosos do tema, bem como teorias fundamentais para a compreensão do texto de literatura infantojuvenil. Ainda, visando à formação leitora de crianças e jovens, serão apresentadas sugestões de leitura de obras de importante circulação nacional. Desse modo, o conteúdo deste livro pretende contribuir para a formação teórica e prática daqueles que se dedicam à docência e/ ou à formação de leitores. No primeiro capítulo, a abordagem irá centrar-se na trajetória histórica da literatura infantil, tendo como referência os primeiros clássicos que surgiram no fim do setecentos e início do oitocentos. As discussões a respeito da relação entre a sociedade burguesa industrial, o pensamento educacional e a literatura voltada à criança serão os norteadores do texto. Ainda, serão apresentadas análises e referências quanto às alterações estruturais e composicionais das obras infantis, tais como a voz narrativa e a personagem, elementos de grande relevância na ficção infantil. O segundo capítulo irá tratar da produção infantojuvenil brasileira desde o seu início – no fim do século XIX – até a contemporaneidade. Com base em temas, obras e autores, a cronologia será delineada, APRESENTAÇÃO Vídeo 8 Produção e interpretação de Textos bem como a formação da literatura infantil no país, com o objetivo de auxiliar na compreensão dos fatores históricos de cada época e sua influência na criação literária. Nesse percurso, ganhará destaque a obra lobatiana e suas contribuições para o amadurecimento e para a envergadura da literatura infantil nacional. Já o terceiro capítulo apresentará possibilidades de abordagem do texto literário em sala de aula, destacando a função da literatura enquanto direito humano. Nesse sentido, será evidenciada a concepção sociointeracionista, que considera o leitor como sujeito ativo, capaz de dar sentido ao que lê. Ainda, quanto ao texto, serão abordados os gêneros literários, os elementos da narrativa e as ilustrações no livro infantil. No que se refere às orientações nacionais sobre o ensino da literatura, o capítulo irá expor as recomendações presentes nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e os direcionamentosfeitos pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O quarto capítulo discorrerá sobre a formação leitora e a mediação literária. Ao longo do texto, serão apresentadas estratégias de compreensão leitora, embasadas por autores que trabalham a temática. Ainda, haverá uma discussão em relação ao papel do professor como mediador, além de sugestões metodológicas para as práticas de leitura na escola. Por fim, o capítulo cinco contará com possíveis leituras e análises de textos literários verbais e não verbais. Nele, há sugestões de metodologias de leitura e abordagens de textos imagéticos, tendo como referência a semiótica e/ou teorias que discutem o símbolo e a construção iconográfica. Também serão apresentadas obras que tratam de temas relevantes para a sociedade atual e que são fundamentais para a formação do indivíduo: o preconceito, a identidade, as diferenças geracionais, a traição, o desamor, a morte, as variações de modelos familiares, entre outros. Nesse sentido, a ideia central será trazer à tona temáticas necessárias ao repertório de leitura, tanto de professores quanto de alunos, e que devem ser vistas e lidas – obras que sejam instigantes, questionadoras e críticas. Por isso, o espaço da narrativa será plural: descrito no circo, na favela, na escola, na casa desfeita e na cidade composta pela diversidade da população. Dessa forma, espera-se que esse percurso proporcione aprendizados, experiências, descobertas e encantamento pela leitura literária. História da literatura infantil 9 1 História da literatura infantil A história da literatura infantil, em grande medida, confunde-se com a história da infância burguesa. Pensar a literatura infantil no fim do século XVIII significa também refletir sobre a concepção de infância experienciada naquele contexto. A infância, tal qual a conhecemos hoje, está bem distante daquela dos tempos medievais. O conceito, ou a noção de infância, constituiu- -se progressivamente ao longo da transição do medievo para a Idade Moderna e foi, aos poucos, ganhando os contornos do atual modelo de infância: a criança como um ser sob a proteção da família, a qual, de certa forma, coloca sobre ela os desejos de um bom futuro. Um ser protegido e cuidado, além de ser, ao mesmo tempo, visto como alguém em fase formativa. Quando acontece, ao longo do século XVIII, uma grande transforma- ção na Europa em decorrência do início da industrialização e dos questio- namentos ao Antigo Regime, uma onda de revoluções burguesas coloca todo um modelo social, político e econômico em questionamento. Esse período é considerado o Século das Luzes, o Iluminismo, o qual, dentre tantas renovações, instaura uma nova concepção sobre a forma de a Europa e o mundo se organizarem. O mundo dos séculos XVIII e, princi- palmente, XIX introduz uma sociedade de cunho burguês em que, sob ela, estão estabelecidos novos valores e novas preocupações. A família e a criança da sociedade burguesa industrial, de final do setecentos e do oitocentos, são mais centradas e individualistas, mais moralistas e ambiciosas. A infância, como faixa etária diferenciada, é um dos arquétipos desse modelo doméstico, de um indivíduo mere- cedor de cuidados e cujo futuro deve garantir um universo saudável e maduro intelectualmente. Esse modelo se tornou a conduta da classe média em ascensão. Já a família moderna desse novo período se institui sob uma orga- nização mais fechada, de caráter nuclear, em que os filhos precisam de um espaço onde esses valores possam ser experimentados: a escola. Inicialmente, o lugar da norma e da disciplina. Tratados pedagógicos e estudos são direcionados à infância. Há a preocupação, também, com uma literatura dirigida ao público jovem. Não é à toa que surgem as literaturas infantis dos séculos XVIII e XIX, condicionadoras de um estilo de vida, impositivas e moralizantes, apesar de bastante imaginativas, criativas e divertidas. 10 Literatura infantojuvenil 1.1 O nascimento da infância Vídeo A origem da literatura infantojuvenil está vinculada a um contexto histórico bastante específico, o qual remonta à constituição da socieda- de burguesa industrial do século XVIII. Nessa sociedade, está em cons- trução a noção de infância, que está sofrendo modificações ao passar do século. Com isso, a criança passou a ser um indivíduo que precisava de tratamento diferenciado e, ao mesmo tempo, de possibilidades for- mativas e morais. Essa nova abordagem em relação à infância é cons- truto da modernidade. Isto é, até a passagem da Idade Média (séculos V ao XV) para a modernidade, a criança era vista como um adulto em miniatura, conceituação sugerida por Philippe Ariès (1981) e por outros historiadores da infância e da família. Nesse universo medieval, as estruturas feudais eram extremamen- te rígidas. A ascensão social ou a produção em larga escala não faziam parte do que se denominava como feudalismo. O mundo feudal, cris- talizado e restritivo, garantia às famílias a sobrevivência de poucas crianças; além do trabalho pesado, principalmente para aqueles na condição de servos. Havia, nesse contexto, apenas duas possibilidades sociais ditadas pelo nascimento: a servidão e a nobreza. Nesse momento da história, de acordo com Ariès (1981), as crian- ças nobres experimentavam uma forma de ensino bastante peculiar: a aprendizagem, costume que foi sendo difundido na Inglaterra. Du- rante o tempo em que ficavam em casas de estranhos, as crianças executavam serviços pesados e eram então confiadas a mestres. Essa aprendizagem era uma forma de ensino e, de certa maneira, de esta- belecer laços, o que podemos denominar de sociabilidade. No entanto, esse cenário não se estendia a toda população, uma vez que servos (camponeses) não participavam dessa forma de educação. Com isso, podemos compreender que, para Ariès (1981, p. 228), o serviço doméstico se confundia com a aprendizagem, como uma forma muito comum de educação. A criança aprendia pela prática, e essa prática não parava nos limites de uma profissão, ainda mais porque na época não havia (e por muito tempo ainda não haveria) limites entre a profissão e a vida particular; a par- ticipação na vida profissional – expressão bastante anacrônica, aliás – acarretava a participação na vida privada, com a qual se confundia aquela. Era através do serviço doméstico que o mestre O historiador Philippe Ariès é um dos primeiros pesquisadores a descrever a história da infância em sua obra denominada História social da criança e da infância, escrita na década de 1970. Nela, por meio de diferentes fontes históricas, mas principalmente por meio da iconografia, o historiador identificou as diferentes posições que a criança foi obtendo no seio da família. As primeiras refe- rências da arte medieval, ainda no século XII, desconheciam a infância ou não a representa- vam. Algumas apresentavam miniadultos (pequenos homens) sem nenhuma característica de infância. A partir do século XIII, há modificações consideráveis, em muito associadas a imagens de santos e anjos. Já nos séculos XV e XVI, as cenas se modificam: a criança é vista com a família, com jogos, na multidão (mas ressaltada), no colo da mãe, dentre outras manifestações. Portanto, a criança no centro da pintura e agraciada pela família é uma representação moderna e foi o ponto-chave da discussão proposta por Ariès. Curiosidade História da literatura infantil 11 transmitia a uma criança, não ao seu filho, mas ao filho de outro homem, a bagagem de conhecimentos, a experiência prática e o valor humano que pudesse possuir. Já ao fim da Idade Média, período denominado Baixa Idade Média, com o renascimento das atividades comerciais e das cidades surgiu uma nova classe social: a burguesia. Essa burguesia, especificamente a do medievo, vivia das práticas da produção artesanal e/ou manufa- tureira e das atividades bancárias ou comerciais. É nesse momento que as crianças, segundo Ariès, passama frequentar espaços especí- ficos para a sua formação, em detrimento das práticas de aprendiza- gem adotadas pela nobreza e que demandavam o fortalecimento de laços entre as famílias, as alianças e as longas temporadas nas casas de outros nobres. A partir do século XV, as realidades e os sentimentos da família se transformariam: uma revolução profunda e lenta, mal perce- bida tanto pelos contemporâneos como pelos historiadores, e difícil de reconhecer. [...] Dessa época em diante, ao contrário, a educação passou a ser fornecida cada vez mais pela escola. A escola deixou de ser reservada aos clérigos para se tornar um instrumento normal da iniciação social, da passagem do estado da infância ao do adulto. (ARIÈS, 1981, p. 231) As escolas, agora destinadas à burguesia, criam ao mesmo tempo a possibilidade de distanciamento e de retorno para casa. É a partir desse momento que, segundo Ariès (1981), surgem os sentimentos de saudade, de retorno ao lar, de afetividade, permitindo que sejam constituídos laços importantes para a construção da família moderna e da infância. No século XVIII, as grandes transformações na sociedade e a aceleração de um mundo ditado pela industrialização constituíram um novo fenômeno que alimentará um modo de vida contemporâneo. Com isso, a burguesia industrial em ascensão diferenciou-se da burguesia na Baixa Idade Média e configurou um padrão diferente de comportamento, acompanhado de uma nova moral. As necessidades de “classe”, em grande medida definida por seus valores e suas formas de vida como classe média, constituiu um modelo que se estendeu pelos séculos seguintes. Inicialmente, esse comportamento mais regrado, contido e disciplinado foi a marca desse grupo social e, consequentemente, estendeu-se à vida operária, ou seja, a burguesia exercia um controle sobre as classes consideradas inferiores. 12 Literatura infantojuvenil De acordo com Zilberman (2003, p. 17): “A ficção do século XVIII está impregnada pela propagação dessa visão de mundo: ao mesmo tempo que diagnostica a decadência da aristocracia tradicional [...], qualifica positivamente aspectos relativos à vida burguesa ascen- dente”. Desse modo, a criança e a família burguesas fomentaram um estilo de vida e uma visão de mundo que foram reproduzidos e firmados pela escola e pela ficção. Valores como vida doméstica, solidariedade e afeto entre os membros, privacidade e intimidade familiar compuseram esse cenário. 1.2 A literatura burguesa Vídeo A burguesia do século XVIII tem novos traços e exige cada vez mais uma formação adequada para suas crianças. As transformações são cruciais para que a escola e a pedagogia ocupem um lugar importante na formação moral da infância. Por isso, o Século das Luzes colaborou na complementação de um processo que se iniciou na Idade Média: a decadência das linhagens, a desvalorização dos laços de parentesco e, em contrapartida, a formação da unidade familiar e dos laços afetivos. De acordo com Zilberman (2003, p. 133), A ascensão da ideologia burguesa a partir do século 18 modifica esta situação: promovendo a distinção entre o setor privado e a vida pública, entre o mundo dos negócios e a família, provoca uma compartimentação na existência do indivíduo, tanto no âm- bito horizontal, opondo casa e trabalho, como na vertical, sepa- rando a infância da idade adulta e relegando aquela à condição de etapa preparatória aos compromissos futuros. Nesse cenário, a educação ganhou terreno importante no que se refere aos cuidados e às orientações que devem ser fornecidos à criança. O objetivo era garantir a formação de um adulto que estivesse de acordo com as demandas sociais daquele contexto, uma vez que a escola se tornou um espaço de normas e controle que, às vezes, tornavam-se muito mais presentes do que a formação intelectual. De acordo com Zilberman (2003), a escola deveria ajudar a projetar a ideia de uma infância frágil e que, ao mesmo tempo, precisava ser incorporada à vida adulta. Como instituição de ensino, deveria auxiliar na proteção da criança em relação ao mundo exterior, impondo sua au- toridade no espaço da sala de aula. Além disso, a escola tinha também História da literatura infantil 13 como diretriz o ato de impor limites, visando à homogeneidade – to- dos iguais e voltados para um sujeito que tem autoridade: o professor. Portanto, [...] a escola participa do processo de manipulação da criança, conduzindo-a ao respeito da norma vigente, que é também a da classe dominante, a burguesia, cuja emergência, como se viu, de- sencadeou os fatos até aqui descritos. A literatura infantil, por sua vez, é outro dos instrumentos que têm servido à multiplica- ção da norma em vigor. Transmitindo, em geral, um ensinamento conforme a visão adulta de mundo, ela se compromete com pa- drões que estão em desacordo com os interesses do jovem. Con- tudo, pode substituir o adulto, até com maior eficiência, quando o leitor não está em aula ou mantém-se desatento às ordens dos mais velhos. Ocupa, pois, a lacuna surgida nas ocasiões em que os maiores não estão autorizados a interferir, o que acontece no momento em que os meninos apelam à fantasia e ao lazer. (ZILBERMAN, 2003, p. 23) Por fim, pode-se afirmar que a escola e a literatura, em grande parte do oitocentos, forjaram um comportamento para a infância e uma voz para a criança. No entanto, a literatura infantil surge quase ao mesmo tempo que a narrativa romance. O romance, segundo Ian Watt (1990) em seu livro A ascensão do romance, surgiu ao fim do século XVIII e tem estreita re- lação com o despontar do que definimos como burguesia industrial. O comportamento individualista e o espírito competitivo foram bastante favoráveis ao florescimento desse formato de narrativa. Essa nova expressão literária quebrava um modelo de recepção co- letiva da arte, como o drama nos teatros, os recitais de poesia e os saraus. Em seu lugar, a leitura do romance garantia uma recepção in- dividual da leitura, na sala, no escritório, no quarto. Segundo o autor, até as personagens da trama são encaradas como indivíduos particula- res. O romance deixa a tradição das histórias atemporais para fazer do tempo uma das características definidoras de sua essência. De acordo com Watt (1990, p. 22): Em nada o romance é tão característico de nossa cultura como a forma pela qual reflete essa orientação típica do pensamento moderno. E. M. Forster considera o retrato da ‘vida através do tempo’ como a função distintiva que o romance acrescentou à preocupação mais antiga da literatura pelo retrato da ‘vida atra- vés de valores’. 14 Literatura infantojuvenil Além de Edward Morgan Forster, outros pensadores identificaram o romance moderno como uma forma literária capaz de dar conta da to- talidade da vida ou como uma espécie de narrativa que estabelece uma aliança entre o tempo e o homem. Por fim, segundo Watt (2007), o ro- mance é o “relato autêntico das verdadeiras experiências individuais”. O crescimento da população em Londres acarretou maneiras es- pecíficas de viver na cidade industrial: a proximidade física, a distância social e a ênfase nos valores materiais. A cidade exige segurança emo- cional e intimidade dos relacionamentos pessoais. Por isso, a natureza privada da leitura do romance, que censura atitudes públicas, alimenta a individualidade e assegura sentimentos e fantasias privadas. Além disso, com o decorrer do tempo, a forma romance, no denominado ro- mance romântico da virada do século XVIII para o XIX, evoluiu de modo exponencial, e editores, autores e administradores de bibliotecas pro- duziam essa narrativa em grande escala. Desse modo, a tematização do indivíduo resultou nessa forma narrativa definida como romance moderno. O cotidiano burguês fez surgir narrativas de cunho psicologizante. A crítica literária da época, que observava esse modelo de texto de criação, procurou explicar o modo de ser das personagens, relacionando a sua constituição àvida do autor. Os romances românticos, os primeiros surgidos nesse período, traziam na trama um tom sentimental vivenciado pelos heróis românticos, ge- ralmente belos e corajosos e por heroínas puras, frágeis e capazes de muitos sacrifícios em nome do amor. Qualquer comportamento que fizesse oposição à moral e à ordem, no enredo da ficção romântica, era finalizado, obri- gatoriamente, pela falta do final feliz e pelo tom de castigo. Muitos heróis enfrentam mentiras, ódios e incompreensões. Um traço bastante acentuado no romance românti- co é a valorização da família e a defesa do casamento. Nesse sentido, o romance valoriza o namoro casto e puro, bem como um casamento com um lar estável. 1 1 De em ak D ak si na /S hu tte rs to ck Foi com base nesse tipo de romance que a literatura infantil en- fatizou, em suas narrativas, a moral, a obediência, o controle, entre outras características dos contos de fadas e das histórias que foram criadas ainda nos séculos XVIII e XIX. O adulto que fala pela criança e que, ao final, ensina o bom comportamento e o desfecho com a moral da história são aspectos típicos das primeiras obras de ficção dedicadas ao público infantil. História da literatura infantil 15 A respeito disso, e com base nos estudos de Zilberman (2003, p. 23), Nessa medida, também a obra literária pode reproduzir o mundo adulto: seja pela atuação de um narrador que bloqueia ou censu- ra a ação de suas personagens infantis; seja pela veiculação de conceitos e padrões comportamentais que estejam em conso- nância com os valores sociais prediletos; seja pela utilização de uma norma linguística ainda não atingida por seu leitor, devido à falta de experiência mais complexa na manipulação da lingua- gem. Assim, os fatores estruturais de um texto de ficção – narra- dor, visão de mundo, linguagem – podem-se converter no meio por intermédio do qual o adulto intervém na realidade imaginá- ria usando-a para incutir sua ideologia. Com base nos contextos históricos que estudamos até aqui, que tal nos aprofundarmos e pensarmos mais sobre essa literatura que se constituiu para o universo infantil a partir do fim do século XVIII? Va- mos entendê-la um pouco mais e verificar quais são as suas principais características. 1.3 A literatura infantil Vídeo Ligada à missão pedagógica da escola, a literatura infantil tem como objetivo moldar o indivíduo para a sociedade, tendo como prin- cipal característica o caráter formativo. Esse processo, que forma por meio da leitura e colabora na (re)produção de valores de um compor- tamento burguês, está presente, como já comentamos, também nos romances românticos do fim do século XVIII e da primeira metade do século XIX. Em suma, pode-se dizer que a literatura infantojuvenil foi constituí- da com base em um material literário já existente e de vertente adul- ta. Os contos de fadas, por exemplo, foram retirados de uma tradição oral, de origem adulta, e adaptados ao universo infantil. Outro fator importante a respeito dessa literatura é que, em sua essência, ao ser produzida para o leitor infantil e jovem, deveria ter uma referência final que elabora, de modo explícito ou não, a moral da história e uma voz narrativa que, de maneira constante, manifesta a fala e os ensinamen- tos adultos. Desse modo, ao utilizar essa literatura dentro da escola burguesa, garantiu-se o processo formativo das crianças com base na seleção de 16 Literatura infantojuvenil aspectos, características e temas que contribuíam para a formação de um bom cidadão. E foi com base na escolha desses textos, adaptados de obras adultas, que se gerou um grande interesse pedagógico por parte das escolas, interesse que estava muito além da fruição do texto enquanto literatura. Desse modo, para Zilberman (1987, p. 44): Fomentando a necessidade da formação pessoal de tipo cognitivo e ético, a pedagogia encontra um lugar destacado no contexto da configuração e transmissão da ideologia burguesa. A literatura infantil emerge dentro desse panorama, contribuindo para a preparação da elite cultural, pela reutilização do material literário oriundo de duas fontes distintas e contrapostas: a adaptação dos clássicos e dos contos de fadas de proveniência folclórica. Com o passar do tempo, já na virada do século XIX para o XX, as nar- rativas começaram a apresentar personagens infantis menos dependen- tes da voz adulta, sendo representadas pela instância do narrador, mais autônomas em suas atitudes. Aos poucos, a moral da história também vai deixando de ser o fio condutor e o desfecho do enredo. Esse amadu- recimento tem seu auge já na segunda metade do século XX e aparece, explicitamente, na produção da literatura infantojuvenil brasileira. Recentemente, a crítica e a teoria literária, vertentes de estudo da lite- ratura, também passaram a fazer do texto literário infantil um objeto de análise. O gênero passou a ser estudado não somente nos cursos de Pe- dagogia, como também nos cursos de Letras. Por esse motivo, sobre a fic- ção infantil recaíram as noções de arte literária e de público especializado. Segundo Zilberman (2003, p. 25), é possível perceber que: A literatura infantil atinge o estatuto de arte literária e se dis- tancia de sua origem comprometida com a pedagogia quando apresenta textos de valor artístico a seus pequenos leitores, e não é porque estes ainda não alcançaram o status de adultos que merecem uma produção literária menor. [...] Em vista disso, a grande carência dela é o conhecimento de si mesma e do am- biente no qual vive, que é primordialmente o da família, depois o espaço circundante e, por fim, a história e a vida social. O que a ficção lhe outorga é uma visão de mundo que ocupa as lacunas resultantes de sua restrita experiência existencial, por meio de sua linguagem simbólica. História da literatura infantil 17 Quadro 1 Personagem, narrador e valor pedagógico na literatura infantil Vy ac he sl av ik us /S hu tte rs to ck SÉCULO XVIII E INÍCIO DO XIX • A criança sob a voz do adulto. • A linguagem é composta por uma intermediação entre a criança e o adulto. • A criança não percebe por conta própria. A realidade é apresentada de maneira sistemática. • Enredos com desfechos pedagogizantes, sustentados na moral da história. SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX • A personagem infantil independente e criativa. • Meninos e meninas passaram a protagonizar o gênero. • Bonecos são humanizados. O leitor encontra um elo visível com o texto. • A voz das personagens é relativizada pelas indicações do narrador. O texto literário demanda a interpretação do leitor. • Identificação da criança leitora com o herói da ação. • Modificação de temas e técnicas. • Desfecho que provoca reflexão. SÉCULO XX • Amadurecimento da personagem infantil. • Equilíbrio entre o respeito ao universo em formação da criança e os meios linguísticos que representam. • Textos com consciência verbal, que assumem sua natureza cultural e ideológica. • O texto literário demanda a interpretação do leitor. • Fabulação que desperta para as questões sociais. • Temas amplos relacionados às questões sociais. • Desfecho que provoca reflexão. Fonte: Elaborado pelas autoras. Padrões estéticos e modelos preestabelecidos para o texto literário infantojuvenil que antes garantiam a disseminação de valores conser- vadores e moralistas foram gradativamente substituídos por temas e questões polêmicas que, em certa medida, ora privilegiam o caráter literário do texto ora são condicionantes para ele. Esse movimento foi sentido já na segunda metade do século XX. No Brasil, por exemplo, essas características aparecem na literatura infantojuvenil produzidas nos anos de 1960 e 1970. No início de sua produção, a literatura infantojuvenil esteve asso- ciada, basicamente, aos contos de fadas; uma vez que foram estes os primeiros materiais direcionados a um público com faixa etária especí- fica. As adaptações feitas por CharlesPerrault são os primeiros textos com essa finalidade. Os autores que vieram em sequência continuaram adaptando, de fontes folclóricas, contos em que a presença do maravi- lhoso foi se tornando constante. Com isso, a característica do maravilhoso nessas narrativas se tornou, de fato, uma das marcas da literatura infantojuvenil: ações 18 Literatura infantojuvenil impossíveis de acontecerem na realidade e seres sobrenaturais, como duendes, dragões, bruxas, magos e gigantes eram parte essencial das histórias. No entanto, a produção com um viés realista também está incorporada nessa literatura e tem como objetivo inserir, por meio do cotidiano da criança – ou próximo a ele –, algumas visões de mundo. Com base nessas proposições, um texto mais realista ou de cará- ter maravilhoso permite questionamentos que partem de dois prin- cipais pontos: um defende a necessidade da fuga do maravilhoso e a preparação da criança para viver em um mundo real; e outro defende a necessidade do recurso da fantasia para garantir a saúde psíquica e o imaginário infantil. Esses questionamentos estiveram muito mais presentes nos anos de 1950. Na produção atual, nas discussões e nos estudos referentes a essas indagações, alguns pontos já estão mais diluídos. Mas para que isso aconteça cada vez mais, são feitas releituras de contos de fadas e discussões que se propõem a ponderar as questões sociais com o intuito de trabalhar a consciência crítica do leitor. Para Coelho (2000, p. 52), essas ponderações são proposições feitas para a literatura em geral: É importante notar que a atração de um autor pelo ‘registro realista’ do mundo à sua volta ou pelo ‘registro fantasista’ re- sulta de sua intencionalidade criadora: ora ‘testemunhar a rea- lidade’ (o mundo, a vida real...) ‘representando-a’ diretamente pelo ‘processo mimético’ (pela imitação fiel), ora ‘descobrir o outro lado’ dessa mesma realidade, o não imediatamente vi- sível ou conhecido – transfigurando-a pelo ‘processo metafó- rico’ (representação figurada). Nesse caso, a matéria literária identifica-se não com a ‘realidade concreta’, mas com a ‘rea- lidade imaginada’, com o sonho e a fantasia, o imaginário, o desconhecido. Uma metodologia para trabalhar o texto literário infantojuvenil, se- gundo Costa (2013), precisa distinguir dois principais fatores: o mora- lizador e o imaginativo. Para isso, o leitor deve ter, em sua formação, ferramentas que o habilitem para o prazer da leitura e a compreensão de uma literatura significativa. Em suma, independentemente do fio condutor da narrativa, am- bas falam da realidade humana ou, no caso que nos interessa aqui, da vida da criança. Nenhuma tendência é mais importante do que a Para aprofundarmos um pouco mais nosso estudo, que tal ouvirmos a opinião de um dos maiores escritores de li- teratura infantojuvenil no Brasil, Ziraldo, a respeito da importância da litera- tura desse gênero? Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=VCRKrxxHYtg. Acesso em: 4 set. 2020. Vídeo https://www.youtube.com/watch?v=VCRKrxxHYtg https://www.youtube.com/watch?v=VCRKrxxHYtg https://www.youtube.com/watch?v=VCRKrxxHYtg História da literatura infantil 19 outra. Além disso, segundo Coelho (2000), o fundamental é como a obra se configura e como ela, de acordo com seus elementos, deve ser recebida e interpretada pelo leitor. 1.4 Alguns clássicos dos séculos XVIII e XIX Vídeo Conforme estudamos neste capítulo, o século XVIII é o século da racionalidade das luzes e do desenvolvimento do processo de indus- trialização. Concomitantemente, a Europa experimenta a ascensão do pensamento liberal econômico e político, além da queda de regi- mes absolutistas. Com isso, a alfabetização nas escolas garantiu à burguesia uma formação intelectual e, ao mesmo tempo, o endosso de seus valores. No setecentos, circulavam nas escolas as fábulas de Jean de La Fontaine, de François Fénelon e de Charles Perrault. Além delas, estavam presentes adaptações de clássicos como Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, publicado originalmente em 1719; e As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, lançado originalmente em 1726. Já com relação aos contos infantis de origem europeia, estão as narrativas populares de procedência folclórica. Na França, Contos de Mamãe Gansa (1607), de Charles Perrault, representa concepções romanescas do século XVII. Nesse modelo de narrativa, o real e o maravilhoso estão harmoni- zados de modo perfeito assim como nos contos tradicionais oriundos da tradição popular. As narrativas organizadas por Perrault conhecidas até hoje são: A Bela Adormecida no bosque, Chapeuzinho Vermelho, O Barba Azul, O Gato de Botas, As fadas, A Gata Borralheira, Henrique do Topete, O Pequeno Polegar, Pele de Asno, entre outras. Essas narrativas provêm das tradições orais célticas e bretãs, sendo influenciadas pelos folclores italiano e francês, bem como por elementos religiosos e pagãos. Nelas também estão presentes temas como incesto, canibalismo, demônios e adultério, os quais foram reelaborados por Perrault e compuseram o que se define como literatura infantil: devidamente adaptada ao público infantil e direcionada a garantir a moral e os valores burgueses. Para relembrar, a leitura tornou-se sinônimo de uma sociedade burguesa com dinheiro que, naquele momento, privilegiou as ações individuais em detrimento do sentimento coletivo do medievo. A leitura do romance, por exemplo, é uma leitura individual, que se faz no espaço privado, dentro de casa, em qualquer ambiente. Ela é o símbolo da forma de vida burguesa. Por sua vez, o espaço da escola garante uma maneira de ver o mundo, a qual é tipicamente burguesa. A ideologia burguesa, solidificada na escola, defende determinado padrão de família, um modelo de infância e uma norma comportamental. Atenção 20 Literatura infantojuvenil No que diz respeito ao canibalismo presente nos contos, conta-se que: Na época em que os contos de fadas foram escritos, o hábito não esta- va extinto. A humanidade nunca deixou de recorrer ao canibalismo em épocas de fome severa – e fome era carne de vaca nos séculos passados. Na Prússia, a escassez foi tanta entre 1708 e 1711 que 41% da população (ou 250 mil pessoas) morreu. Duas grandes fomes também atropelaram a França entre 1693 e 1710, ma- tando mais de 2 milhões de pessoas. Assim, o canibalismo acabou saindo da lista de tabus. O historiador Jay Rubinstein conta que, nos séculos 11 e 12, havia feiras de carne humana na Inglaterra e na França – e que há relatos de pais comendo seus bebês em momentos de extrema pobreza. Outra grande época de carnificina foram as Cruzadas. Há uma história famosa, do rei inglês Ricardo Coração de Leão, líder da Terceira Cruzada, que ficou doente ao chegar à Terra Sagrada, e ficou implorando por carne de porco. Na falta de suínos, seus empregados acabaram assando um infiel – que o monarca achou uma delícia. “O quê? Carne de sarraceno é boa assim?”, disse. A história humana é mais indigesta do que parece. (HUECK, 2020) 2 2 De em ak D ak si na /S hu tte rs to ck No século XIX, na Europa, a literatura destinada ao público infantojuvenil se consolidou com os contos de fadas dos irmãos Grimm, as histórias fantásticas de Hans Christian Andersen, Lewis Carroll e Carlo Collodi, as histórias de aventuras de Júlio Verne e Robert Louis Stevenson e as histórias do cotidiano da Condessa de Ségur, por exemplo. Além disso, os irmãos Grimm, na Alemanha, reuniram centenas de fábulas, lendas e contos, buscando produzir os Contos para a infância e para o lar (1812). Eles foram os primeiros autores da Europa a dar valor estético e humano à matéria popular. Em seus contos predominam a esperança e a confiança. Apesar das agruras da vida e das injustiças constantes, o herói sempre vence os obstáculos que lhe são impostos. São contos que constituem essa obra: A Bela Adormecida, Os músicos de Bremen, A Branca de Neve e os Sete Anões, Chapeuzinho Vermelho,A Gata Borralheira, O corvo, As aventuras do Irmão Folgazão, A Dama e o Leão, entre outros. Na Dinamarca, no mesmo período, Hans Christian Andersen produziu os primeiros contos direcionados a crianças. Em 1835, Andersen publicou sua obra Contos de fadas e histórias. Já em 1872, produziu 168 contos em cinco séries, dentre eles: A pastora e o limpador de chaminés, A Rainha das Neves, O Soldadinho de Chumbo, O pinheirinho, A pequena vendedora de fósforos, A roupa nova do imperador, O rouxinol, O jardineiro, A princesa e a ervilha e O companheiro de viagem. Uma característica das obras de Hans Andersen é a expressão de sonho e De acordo com Lajolo e Zilberman (2009), os Contos de Mamãe Gansa estavam, originalmente, em histórias ou narrativas do tempo passado e foram publicados por Perrault em 1697. No entanto, o livro foi atribuído ao seu filho, Pierre Darmancourt, e dedicado ao delfim da França. Nessa época, Perrault já era um escritor importante e, talvez, com medo de assinar a primeira edição por não saber o destino do novo gênero, delegou ao filho a autoria da obra. Segundo as autoras, “para um membro da Academia Francesa, escrever uma obra popular representa fazer uma concessão a que ele não podia se permitir”. (2009, p. 16). No entanto, foi em terras francesas que esse gênero ganhou popularidade, dando preferência aos livros de contos de fadas. Perrault é o autor responsável pelo surgimento exponencial de literatura infantil. Depois disso, muitos outros autores e escritores, de outros lugares e, principalmente, da Inglaterra, passaram a adotar o conto de fadas. Consequente- mente, devido à industrialização, essa literatura passou a ser absorvida e produzida em grande quantidade. Saiba mais História da literatura infantil 21 realidade, do mundo fantástico e da extrema sensibilidade, bem como da humanização delicada da figura infantil. Com base nessas características da obra de Andersen, pode-se di- zer que a literatura infantil é composta, em sua essência, pela fantasia, somada ao comprometimento com o interesse adulto. Esse gênero faz um movimento de eliminação da realidade. Segundo Zilberman (2003), a fantasia tem um sentido compensatório em oposição à extrema po- breza e à impossibilidade de mudar o mundo. Os contos de fadas são assim adequados ao novo público emergente. Desse modo, a fantasia é subsídio para a compreensão de mundo por parte da criança, preenchendo as lacunas que o indivíduo tem durante a infância. De acordo com a pesquisadora, o caráter maravilhoso presente no conto de fadas poderá corporificar o adulto onipotente, aliado e bom, que soluciona o problema do herói. Ainda, segundo ela, a passagem da narrativa folclórica aos contos de fadas isentou o conteúdo de rebeldia e proferiu a impotência do protagonista central: a criança. Narrativas como as de Perrault e Grimm explicitam essas escolhas em que a presença de um ente auxiliar extraordinário se coloca a ser- viço do herói: uma fada, um duende, um animal encantado. “Essa co- laboração voluntária possibilita a superação, por parte da personagem central, do conflito que deflagra o evento ficcional; e sua ajuda é im- prescindível devido à condição sempre precária ou carente da figura principal” (ZILBERMAN, 2003, p. 48). Essas obras, por fim, contribuíram para garantir as prerrogativas in- fantis, menos pela presença da fantasia e mais pelo embelezamento do real e pela construção de modelos perfeitos de comportamento. Vamos ler um pouco mais a respeito da origem dos contos de fadas? Que tal descobrir algumas curiosidades? A Revista Superinteressante traz um artigo chamado O lado sombrio dos contos de fadas, que conta um pouco sobre os contos mais renomados sob uma perspectiva de mundo diferente. Acesso em: 4 set. 2020. https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ Artigo Ao longo do século XIX, principalmente na segunda metade, há uma mudança na composição da literatura infantil no que diz respei- to à personagem infantil. Para aprofundar mais seus estudos a respeito do tema, recomendamos o vídeo de uma entrevista com a professora Karin Volobuef com a temática: Literatura Fundamental 85: Contos de Hans Christian Andersen. Nessa entrevis- ta, ela conversa a respeito do desenvolvimento da obra de Andersen e a importância de seus contos. Disponível em: https:// www.youtube.com/ watch?v=sTDF0YtWRO4. Acesso em: 15 set. 2020. Vídeo https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ https://www.youtube.com/watch?v=sTDF0YtWRO4 https://www.youtube.com/watch?v=sTDF0YtWRO4 https://www.youtube.com/watch?v=sTDF0YtWRO4 22 Literatura infantojuvenil O Maravilhoso Mágico de Oz, escrito por Lyman Frank Baum, foi publicado pela primeira vez em 1800 e, em sua introdução, o autor anuncia: “[a obra] aspira ser um conto de fadas modernizado [...]” (2014, p. 9). Sem dúvida, para além de sua inovadora estrutura narra- tiva, o autor garantiu enorme sucesso e permaneceu por décadas no imaginário de muitas gerações. Uma das novidades trazidas pela obra, e também por Alice no País das Maravilhas (1865), de Lewis Carroll, e As aventuras de Pinóquio (1883), de Carlo Collodi, segundo Zilberman (2003), é a de que são narrativas em que a personagem infantil está realmente exercendo o papel de protagonista. Algo que o leitor passa a identificar visivelmente no tex- to é essa alteração na construção da personagem. O adulto continua participando do texto e pode ser um leitor desse gênero, no entanto a obra direciona-se, impreterivelmente, ao público infantil, e isso fica evidente na incorporação do adjetivo infantil para essa modalidade li- terária. Além disso, os livros falam a linguagem de seus leitores e, por esse motivo, o público que irá receber aquele livro sabe efetivamente do que se trata e quais aventuras poderá encontrar em seu interior. Para entender como esse processo ocorre e identificar o lugar que a criança irá ocupar na trama, vamos analisar uma obra específica. Em O Maravilhoso Mágico de Oz, obra analisada por Zilberman (2003), a personagem-protagonista Dorothy realiza um percurso pelo mundo de Oz. Esse percurso retrata as conquistas do espaço de uma menina não somente em sua terra, mas também no espaço imaginário de Oz. Essa obra traz em seu discurso valores da cultura ocidental, principalmente a americana. Nela são proclamadas a inteligência, os sentimentos, a cora- gem e a valorização do lugar. Dorothy declara: “não im- porta o quanto sombrios e cinzentos nossos países são, nós, as pessoas de carne e osso, preferimos viver lá do que em qualquer outro lugar, por mais bonito que seja. Não há lugar como o lar” (BAUM, 2014, p. 37). A obra, para além das pretensões do autor, de ser um conto modernizado, pode ser classificada como uma narrativa maravilhosa. Para isso, podemos utilizar uma classificação de Todorov: Cl as si cV ec to r/ Sh ut te rs to ck (Continua) História da literatura infantil 23 No caso do maravilhoso, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas persona- gens, nem no leitor implícito. Não é uma atitude para com os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilho- so, mas a própria natureza desses acontecimentos. [...] Relaciona-se geralmente o gênero maravilhoso ao conto de fadas; de fato, o conto de fadas não é senão uma das varie- dades do maravilhoso e os acontecimentos sobrenaturais aí não provocam qualquer surpresa [...]. (TODOROV, 2008, pp. 59-60) Desde a saída de Dorothy da casa, arrastada por um ciclone rumo a Oz, e seu retorno ao lugar, a obra não coloca em dúvida que se trata de um conto maravilhoso. Tia Em estava preocupa- da com o destino da menina, além de Dorothy retornar para casa apenas de meias, sem os sapatos de prata (símbolo típico dos contos de Grimm, como as botas sete léguas). Ao mesmo tempo, o pacto de leitura já está estabelecido e, em nenhum momento, há dúvidas de que aviagem aconteceu, mesmo que o sapato tenha se perdido. Esse conjunto de elementos faz um aporte em um modelo clássico do conto e, ao mesmo tempo, sugere modificações. De acordo com Zilberman (2003), Dorothy, e não o mágico, é a personagem central da narrativa. Durante sua viagem, ela en- contra três amigos: o Espantalho, o Homem de Lata e o Leão Co- varde, os quais esperam que o mágico resolva seus problemas, assim como Dorothy, que deseja voltar para casa. A trajetória de Dorothy e seus amigos representa a necessidade do encontro de cada um consigo mesmo e é isso o que dá tom à narrativa de aventura. O desdobramento do relato está vinculado ao deslocamento no espaço e aos problemas das personagens (heróis) dentro delas. Cada uma das personagens tem dentro de si as virtudes que procura, assim como Dorothy, que deseja retornar a casa, pois, ao chegar em Oz, recebe os sapatos que, desde o início, já possibilitariam seu regresso. As viagens, além de reforçarem a narrativa de aventura, garantem o tempo necessário para que as personagens reconheçam as suas qualidades. A voz do narrador indica ao leitor possibilidades de interpre- tação. “Este terá que reconhecer, antes de todos, que as perso- (Continua) 24 Literatura infantojuvenil nagens possuíam de antemão o que buscavam, faltando-lhes apenas a autoconfiança adquirida após o segundo encontro com o mágico” (ZILBERMAN, 2003. p. 77). É por meio da construção da autoconfiança e do reconhecimento do grupo (os heróis) que nasce a própria identificação de Dorothy e da criança leitora. A narrativa, segundo Zilberman, sugere recursos para que cada um possa refletir sobre si mesmo com base nas atitudes dos heróis que, por sua vez, revelam que nada lhes falta. As perso- nagens Leão, Homem de Lata e Espantalho encarnam a busca da identidade e refletem sobre seus dramas íntimos. Dorothy é a única personagem com atributos reais, fato que, para Zilberman (2003), é ponto de entrada no texto. A menina ocupa o lugar do herói, o ponto de confluência entre o real e o ficcional. Ela, expelida pelo ciclone, deseja retornar aos tios e a Kansas. Em tempo algum a menina deseja ficar em Oz. Sua von- tade é retornar à cidade com os tios, na fazenda. Em seu percur- so em busca de uma forma para voltar, a heroína destrói, direta ou indiretamente, a Bruxa Má do Leste, a Bruxa Má do Oeste e o Mágico de Oz. Dorothy pode ser definida como a heroína do relato porque destrói as figuras malignas e instaura a boa ordem em Oz, pois mesmo não sendo uma fada, no sentido do termo, é ela quem desbanca as bruxas más. Finalmente, na personagem do mágico está representado o adulto, vinculado às mentiras e às trapaças. Dorothy, a criança, desvela o adulto, nesse caso o mágico, em seus medos e suas mentiras. O exercício liberal cabe à criança e à sua nova configuração. Por fim, o livro é uma aventura infantil, cuja narrativa toma partido da criança. Ela é a protagonista do texto, o que demonstra claramente a ruptura e a mudança em relação aos modelos anteriores. Assim como Dorothy, são Alice, Tom Sawyer, Peter Pan, Pinóquio, Emília, crianças ou bonecos humanizados que são verdadeiramente protagonistas, têm voz e maior poder decisório, questionam a autoridade e, acima de tudo, têm ética. História da literatura infantil 25 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo fizemos uma viagem pela história da literatura infantil. Procuramos identificar o seu surgimento e as relações com o contexto em seu entorno. Em grande medida, ela se mistura com a própria formação da escola moderna e com uma noção moderna de infância. Observamos e compreendemos que para a sociedade burguesa em ascensão foi cons- truído um aparato para formação intelectual e de normas, em muito soli- dificado pela literatura infantil e pela escola. Depois, conhecemos os primeiros autores da literatura infantil que produziram, primeiramente, os contos de fadas, cuja característica principal está centrada no maravilhoso e no fantástico, além de representar a criança pelo olhar do adulto, dando pouca voz a essa personagem e propondo comentários e desfechos moralizantes via voz narrativa. Por fim, nas últimas décadas do século XIX, há uma significativa alteração na composição da narrativa e a criança passa a ter voz, a opinar e dar sentido a sua existência dentro do enredo. O “olhar” adulto se distancia um pouco. A personagem infantil é criativa e ousada, como Dorothy, Alice e Pinóquio. ATIVIDADES 1. Descreva o contexto que favoreceu o surgimento da literatura infantil e qual foi a sua relação com a escola. 2. Apresente a importância de Perrault para a literatura infantil. 3. Quais são as inovações que aconteceram na literatura infantil no que diz respeito à personagem criança, das narrativas do século XVIII para as do XIX (principalmente mais para o fim desse século)? REFERÊNCIAS ARIÈS, P. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981. BAUM, L. F. Ozma de Oz. Rio de Janeiro: Editora Marinho, 2014. COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Ática, 2000. COSTA, M. M. Metodologia do ensino da literatura infantil. Curitiba: Intersaberes, 2013. HUECK, K. O lado sombrio dos contos de fada. Superinteressante. Disponível em: https://super. abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/. Acesso em: 15 set. 2020. LAJOLO, M.; ZILBERMAN, R. Literatura infantil brasileira. 6. ed. São Paulo: Ática, 2009. TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008. WATT, I. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding. Trad. de Hildegard Fiest. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. ZILBERMAN, R. A literatura infantil e o leitor. In: CADEMARTORI, L.; ZILBERMAN, R. (org.). Literatura infantil: autoritarismo e emancipação. São Paulo: Ática, 1987. ZILBERMAN, R. A literatura infantil na escola. São Paulo: Objetiva, 2003. https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ https://super.abril.com.br/especiais/o-lado-sombrio-dos-contos-de-fadas/ 26 Literatura infantojuvenil 2 Literatura infantil no Brasil Quando criança, você costumava ouvir histórias contadas pe- los seus pais, avós, tios ou professores? Quando nos perguntam de quais histórias nos lembramos da época da infância, é comum citarmos os contos de fadas: Cinderela, Chapeuzinho Vermelho, Os três porquinhos e tantos outros. Essas histórias, porém, foram re- colhidas da tradição popular europeia e chegaram ao nosso país por meio de adaptações e traduções realizadas por pioneiros da literatura infantil brasileira. Além desses contos que povoaram nosso imaginário e conti- nuam a encantar crianças, você conseguiria se recordar de autores ou obras autenticamente nacionais lidas ou ouvidas por você na in- fância ou que continuam a circular entre o público infantil até hoje? Neste capítulo, abordamos justamente a produção infantojuve- nil nacional, do seu início, no final do século XIX, até a contempo- raneidade. Vamos analisar, com base em temas, obras e autores, como a literatura infantojuvenil se formou no Brasil, compreen- dendo os fatores históricos de cada época e em que medida eles influenciaram na criação literária ao longo do tempo: desde que os materiais escritos para crianças e jovens eram escassos e a litera- tura infantil se restringia à adaptação de modelos estrangeiros até ela ganhar força e ter sua própria identidade. 2.1 As primeiras obras de literatura infantil no BrasilVídeo Enquanto na Europa a literatura infantil surgiu no século XVIII, no Brasil esse evento foi mais tardio, em razão da própria configuração política do país, que foi colônia de Portugal por mais de trezentos anos. Literatura infantil no Brasil 27 No entanto, o surgimento da Imprensa Régia no Brasil, em 1808, proporcionou a publicação de algumas produções voltadas ao público infantil, mas, segundo Lajolo e Zilberman (2010), não o suficiente para configurar, ainda no século XIX, o aparecimento,de fato, de uma litera- tura para a infância. Com a Independência, em 1822, buscava-se progresso econômico para o país, porém, na área da educação, assim como em outras, o Brasil enfrentava dificuldades para colocar significativas mudanças em prática. Desse modo, no período do Império, apesar de vários projetos terem sido concretizados (como as reformas de ensino), grande parte deles, de acordo com Coelho (2010), frustrou-se. Por essa razão, é possível afirmar que apenas no final do século XIX a literatura infantil teve início no país. Esse surgimento coincidiu com o advento da República e foram várias as razões contribuintes para que a literatura voltada às crianças ganhasse espaço, como a mudança de regime político e a intensificação das políticas abolicionistas. Além disso, o mercado interno brasileiro estava em desenvolvimento, o que colaborou para a expansão da indústria nacional e para a formação de camadas médias da população. A abolição da escravatura ocorreu em 1888, mas, anteriormente já havia leis aboli- cionistas, como a proibição do tráfico de pessoas da África para o Brasil. Além disso, fugas e rebeliões de escravizados eram comuns. Desse modo, o capital necessário para a manutenção da mão de obra negra ficava muito alto (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010). A república foi proclamada em 1889, por Marechal Deodoro da Fonseca e um grupo de militares do exército brasileiro, destituindo, assim, o imperador D. Pedro II do poder e alterando o regime político do país. As camadas médias eram intermediárias: havia a aristocracia rural e a alta burguesia de um lado; e escravos e trabalhadores rurais de outro. Durante o período colonial e o Império, havia praticamente apenas essas duas classes definidas. De acordo com Lajolo e Zilberman (2010), com o movimento republicano e a camada média ascendendo, o número de bancos aumentou, assim como o funcionalismo público, as ferrovias, o mo- vimento dos portos e, especialmente, segundo Coelho (2010), os profissionais liberais. Saiba mais Por conseguinte, as cidades foram se formando por meio des- ses grupos, intensificando o processo de urbanização ocorrido no entresséculos. Essa configuração social, de acordo com Lajolo e Zil- berman (2010), foi favorável ao surgimento da literatura infantil no Com a vinda da família real, em 1808, foi necessário tomar algu- mas medidas administrativas no Brasil Colônia. Uma delas foi a criação da Imprensa Régia, que foi a única tipografia existente no país até a Independência. Ela era a responsável por imprimir textos legislativos, encadernar impressos, editar livros etc. Curiosidade 28 Literatura infantojuvenil Brasil, uma vez que a população, constituída por diferentes públi- cos, consumia produtos industrializados, como revistas femininas, romances, materiais escolares e livros para crianças. É nesse período que o sistema educacional “passa por reformas de real alcance”, conforme Coelho (2010, p. 220), “e incorpora em sua área também a produção literária para crianças e jovens”. Há, portanto, nesse contexto, a valorização da instrução e da escola. Um país em crescente urbanização e modernização, enfim, mos- trava-se preparado para iniciar, de fato, a formação de uma litera- tura infantil brasileira. O novo público formado por consumidores desse tipo de cultura era favorável “ao contato com livros e literatu- ra, na medida em que o consumo desses bens espelha o padrão de escolarização e cultura com que esses novos segmentos sociais de- sejam apresentar-se frente a outros grupos”, identificando-se com a alta burguesia ou diferenciando-se dos mais humildes (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 27). Todavia, os materiais impressos destinados à leitura nas esco- las brasileiras eram escassos. Por isso, ainda no final do século XIX, alguns pioneiros dedicaram-se a produzir livros destinados às crianças, principalmente para serem utilizados nas escolas. Assim, a literatura infantil brasileira nasce intimamente relacionada à edu- cação escolar e, por essa razão, nos períodos posteriores ao século XIX, será difícil desvincular a arte literária da concepção pedagógica. O debate sobre a literatura infantil e a pedagogia é bastante polêmico. Afinal de contas, a literatura infantil pertence à arte literária ou à área pedagógica? Para ampliar seus conhecimentos sobre esse tema, leia o artigo Literatura infantil: entre a infância, a pedagogia e a arte, de Lucila Simões, publicado no Caderno de Letras da UFF. Acesso em: 2 set. 2020. http://www.cadernosdeletras.uff.br/joomla/images/stories/edicoes/46/diversa1.pdf Artigo Nesse momento inicial, ainda de pouca criação, destacam-se as traduções e as adaptações de obras estrangeiras, realizadas por escritores e intelectuais, como Figueiredo Pimentel e Carlos Jansen, que viam nessa atividade uma oportunidade econômica, http://www.cadernosdeletras.uff.br/joomla/images/stories/edicoes/46/diversa1.pdf Literatura infantil no Brasil 29 já que seus livros poderiam ser adotados pelas escolas. Algumas das obras adaptadas e traduzidas por eles, citadas por Lajolo e Zilberman (2010), foram: Contos seletos das mil e uma noites (1882); Robinson Crusoé (1885), Viagens de Gulliver (1888); D. Quixote de la Mancha (1901); Contos da Carochinha (1894); Histórias da Vovozinha (1896); Histórias da baratinha (1896) etc. As três últimas obras tra- ziam adaptações dos contos clássicos de Perrault, irmãos Grimm e Andersen. Esse primeiro período da literatura infantil brasileira constituiu-se, basicamente, da produção de dois tipos de literatura para crianças: traduções e adaptações de contos de fadas europeus e obras que atendiam a um projeto educativo e ideológico para a formação de cidadãos, também inspirado em um modelo europeu, conforme apontam Lajolo e Zilberman (2010). As autoras nomeiam essa primeira etapa de nacionalismo na literatura infantil. As obras europeias, que inspiraram as brasileiras, tinham como protagonista uma criança, normalmente criada com base em uma imagem estereotipada, seja ela bem comportada ou malvada. As situações em que essa personagem se envolve também são mo- delares, como “lendo livro, ouvindo histórias edificantes, tendo conversas educativas com os pais e professores, trocando cartas de bons conselhos com parentes distantes” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 34). Ou seja, a personagem reproduz comportamentos e valores esperados, de modo passivo, e com o objetivo de os leito- res repetirem essas atitudes em seu cotidiano. Esse modelo de história para crianças atendia aos anseios bra- sileiros republicanos, já que o patriotismo fazia parte do projeto de modernização do país. Além de algumas traduções de livros europeus com esse tipo de conteúdo, Adelina Lopes Vieira e Júlia Lopes de Almeida publicaram Contos Infantis, em 1886. Já no início do século XX, Olavo Bilac, Coelho Neto, Manuel Bonfim e Júlia Lopes de Almeida publicaram outros livros, notadamente com temáticas patrióticas, como Poe- mas infantis (1904), de Bilac, e Através do Brasil (1910), de Bilac e Manuel Bonfim, inspirado em uma obra francesa. 30 Literatura infantojuvenil Em 1905, surge a primeira revista em quadrinhos brasileira voltada ao públi- co infantojuvenil, chamada O Tico-Tico. Foram muitas as personagens que passaram pelas histórias da revista, inclusive vindas de fora, como Gato Felix e Mickey Mouse, da Disney, e super-heróis norte-americanos, como o Super-Ho- mem. Além de histórias em quadrinhos, as publicações traziam passatempos, literatura juvenil, informações sobre história, ciências, civismo etc. 1 1 De em ak D ak si na /S hu tte rs to ck De modo geral, essas obras que marcam a primeira fase da litera- tura infantil brasileira revelam os pilares que sustentavam o sistema educacional da época. Vamos observar um breve resumo no quadro a seguir. Quadro 1 Características das obras da primeira fase da literatura infantil brasileira • Entusiasmo e dedicação à pátria. • Culto às origens e amor pelaterra (idealização da vida rural em oposição à urbana). Nacionalismo • Valorização dos grandes autores e obras literárias do passado como modelos a serem imitados. Tradicionalismo cultural • Valorização do estudo e do livro como meio à ascensão econômica.Intelectualismo • Imposição de valores cristãos: caráter, honestidade, solidariedade, fraternidade, pureza. Moralismo e religiosidade Fonte: Elaborado pelas autoras com base em Coelho, 2010, p. 223-224. Como exemplo, vamos ler dois trechos de obras dessa época para compreendermos como essas características se apresentam nos tex- tos. O primeiro é o conhecido poema A pátria, de Olavo Bilac; o segun- do, é um conto do livro Contos infantis, de Adelina Lopes Vieira e Julia Lopes de Almeida. Literatura infantil no Brasil 31 A Pátria Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste! Criança! não verás nenhum país como este! Olha que céu! que mar! que rios! que floresta! A Natureza, aqui, perpetua- mente em festa, É um seio de mãe a transbordar carinhos. Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos, [...] Boa terra! jamais negou a quem trabalha O pão que mata a fome, o teto que agasalha... Quem com seu suor a fecunda e umedece, Vê pago seu esforço, e é feliz, e enriquece! Criança! não verás país nenhum como este: Imita na grandeza a terra em que nasceste! (BILAC, 1904, p. 114-115) O bem Iam três amiguinhos, três crianças a caminho da escola. Um deles disse: - Se eu estudar bastante, o meu paizinho prome- teu-me uma libra. Que festanças farei! - Pois eu, reponde com meiguice o segundo, ficando bem quietinho dá-me um beijo a mamãe. Diz o terceiro: - Eu sou um órfão, não tenho um seio amigo, nem pai, nem mãe, nem teto hospitaleiro. Quero estudar sem outra recompensa que o prazer de ser bom. Ah! Se o consigo!... Fazer bem pelo bem, virtude imensa! (VIEIRA; ALMEIDA, 1910, p. 21) No final do século XIX e início do XX, era comum os livros destina- dos às crianças apresentarem nos prefácios ou notas da editora “a manifestação consciente do proje- to de uma literatura adequada às condições brasileiras e essencial à nossa nacionalidade” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 44). Como exemplo, podemos citar um trecho do prefácio de Poesias infantis, de Olavo Bilac (1904, p. 5): “O que o autor deseja é que se reconheça [...] a boa vontade com que um brasileiro quis contribuir para a educação moral das crianças do seu país”. Ou, ainda, em um fragmento do prólogo de Contos infantis, de Adelina Lopes Vieira e Julia Lopes de Almeida (1910, p. 6-7): “[...] são [...] de grande valor, para o espírito [...] das crianças, umas frases bondosas, em que a virtude derrame seu perfume suave, capaz de modificar ímpetos de gênio e indiferença pelo sofrimento alheio”. Saiba mais 32 Literatura infantojuvenil Na leitura do poema A Pátria, podemos perceber o patriotismo como característica principal do texto, isso porque os versos acon- selham a criança leitora a amar sua terra. O tom imperativo (pre- sente no uso dos verbos “ama”, “olha”, “vê”) associa-se ao elogio exacerbado à nação e à exaltação da paisagem brasileira, evocan- do a natureza rica e bela, inclusive, a partir de metáforas femininas relacionadas à fertilidade, como nos versos A natureza [...] / É um seio de mãe a transbordar carinhos. Já nas três últimas estrofes do poema, temos o enaltecimento ao trabalho, como fonte de dignidade e riqueza. Essa ideia está relacionada tanto ao cultivo da terra como solo fértil, quanto ao fato de que a nação reconhece e recompensa o amor e o esforço de “seus filhos”. Temos, portanto, com base nesse texto e em outros da mesma época, a difusão de uma visão da realidade brasileira deturpada pela ideologia ufanista, de acordo com Lajolo e Zilber- man (2010). No conto O bem, é notável a valorização do moralismo por meio da obediência aos pais, e que a bondade deve ser uma virtude da criança. Percebemos, sobretudo, um tom demasiadamente ideali- zado, característica própria dos textos dessa fase, pois forneciam “exemplos de qualidades, sentimentos, atitudes e valores a se- rem interiorizados pelas crianças”, conforme asseveram Lajolo e Zilberman (2010, p. 42). Temos, portanto, nessa fase, uma literatura infantil excessiva- mente marcada pela adesão ao projeto ideológico nacionalista, cujas “campanhas de difusão patriótica, escolarização e serviço militar apresentavam-se como salvadoras, no discurso otimista da sociedade dominante” (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 38). Esse primeiro período encerra-se com Tales de Andrade, ao pu- blicar, em 1919, o livro Saudade, cuja temática 1 , voltada, segundo Coelho (2010, p. 240), à “valorização nostálgica dos acontecimentos simples do campo em confronto com as dificuldades e fracassos encontrados na vida da cidade”, influenciará decisivamente na pro- dução direcionada à infância nas próximas décadas. Consiste no orgulho exacerbado pela nação em que o indivíduo se sente superior aos demais que não são de mesma nacionalida- de. É considerada uma forma de patriotismo. Glossário A temática rural ganhou destaque no contexto pós-Primeira Guerra, quando os valores da sociedade urbana, que ansiava ser moderna, foram postos à prova. O início da industrialização atraiu a população rural para as cidades e, como consequência, problemas sociais e econômicos se agravaram no espaço urbano (COELHO, 2010). Assim, a vida idealizada no campo passou a ser tema fértil para a literatura infantil. 1 Literatura infantil no Brasil 33 2.2 Monteiro Lobato: um novo paradigma da literatura infantil Vídeo A partir de 1920, inaugura-se uma nova fase da literatura infantil, notadamente representada por Monteiro Lobato que, por essa razão, ganha o título de pai da literatura infantil brasileira. Para Coelho (2010, p. 247), Lobato foi um divisor de águas nessa área, pois “encontrou o caminho criador de que a Literatura Infantil estava necessitando. Rom- pe, pela raiz, com as convenções estereotipadas e abre as portas para as novas ideias e formas que o novo século exigia”. Anteriormente, o autor já havia publicado livros não infantis, como Urupês (1918), no qual reuniu contos escritos para o jornal O Estado de S. Paulo. O conto que dá nome à obra denuncia o modelo agrário bra- sileiro, destacando a miséria, a violência e o atraso econômico do país, especialmente na figura da personagem Jeca Tatu. Você sabia que a palavra jeca faz parte dos dicionários de Língua Portuguesa como um brasileirismo que significa caipira? Ela passou a ser usada em razão do grande sucesso da personagem de Monteiro Lobato. Essa personagem é avessa à figura romântica do interior do país retratada, até então, nas obras literárias, como se anuncia em nota, no início de Urupês (LOBATO, 2009, p. 11): “na contramão dos cânones do romantismo, nascia Jeca Tatu, ‘sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das grotas’”. Com um olhar crítico sobre a realidade brasileira da época, Lobato denuncia a situação em que se encontravam os moradores do campo e o descaso das autoridades públicas, fato que pode ser percebido no trecho: “no meio da natureza brasílica, tão rica de formas e cores [...], o caboclo é o sombrio urupê de pau podre [...]. Só ele não fala, não canta, não ri, não ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive... (LOBATO, 2009, p. 170). Saiba mais Ainda na década de 1920, o Brasil passaria por diversas renova- ções no âmbito cultural. Há pelo menos duas delas que nos interes- sam nesse espaço: a Semana da Arte Moderna e a Escola Nova. Em relação à Escola Nova, conforme Lajolo e Zilberman (2010), peda- gogos brasileiros (Anísio Teixeira, Francisco Campos, Fernando de Azevedo, entre outros), opondo-se à educação tradicional e elitista, propuseram a escolarização em massa da população, o desenvol- vimento do pensamento reflexivo e a atividade de pesquisa. Ainda, sugeriram que o Estado deveria se responsabilizar pela gestão da educação, tornando-auniversal e homogênea. 34 Literatura infantojuvenil Em relação aos ideais modernistas que influenciaram a literatu- ra do período, destaca-se o nacionalismo, tema também explorado pela literatura europeia da época. Entre as características comuns nas produções modernas, Lajolo e Zilberman (2010, p. 52) citam: “a pesquisa do passado nacional na busca de fontes autênticas de bra- silidade não contaminadas [...] pela influência europeia”, o recurso ao folclore (indígena e africano) e “a criação de tipos humanos que representem [...] o homem brasileiro”. Desse modo, é possível afirmar que Lobato iniciou sua produção literária infantil nesse contexto, todavia sofreu influência também do humanismo liberal, cuja filosofia, segundo Coelho (2010, p. 248, grifos do original), aponta para a ideia de que está “no indivíduo de exceção, na inteligência, na cultura e no esforço das minorias escla- recidas (e não nos movimentos de massa) a solução para os grandes problemas que afligem a humanidade”. A consciência nacionalista era um dos problemas a serem enfrentados, uma vez que não era fácil encontrar a identidade nacional de um povo por tantos anos “colonizado culturalmente e dependente economicamente” de ou- tros países (COELHO, 2010, p. 248). No entanto, foi em sua produção literária infantil que Lobato dei- xou evidente a busca pela brasilidade. Isso pode ser notado por meio de adaptações de histórias como: O irmão de Pinóquio e O Gato Félix (1927); História do mundo para crianças (1933); D. Quixote para crianças (1936); O Minotauro (1939); de traduções de obras estrangei- ras na década de 1930: Alice no País das Maravilhas; Mowgli, o menino lobo; ou da criação de suas próprias narrativas: A menina do nariz ar- rebitado (1920); O Saci (1921); Fábulas (1922); Reinações de Narizinho (1931); Viagem ao céu (1932); As caçadas de Pedrinho (1933); Memó- rias de Emília (1936); O poço do Visconde (1937); O Pica-Pau Amarelo (1939); A chave do tamanho (1942). Em busca de uma linguagem que de fato atingisse os jovens lei- tores, inclusive criticando a literatura da época feita para esse pú- blico, Lobato escreve, em 1920, seu primeiro livro infantil: A menina do nariz arrebitado. Obra que foi considerada sucesso absoluto de vendas, principalmente porque foi adotada nas escolas públicas de São Paulo. Além de escritor famoso, passou a preocupar-se com a publicação de livros no Brasil, fundando sua própria editora. Literatura infantil no Brasil 35 São várias as passagens em obras de Lobato que criticam o modo de se fazer literatura infantil em sua época. Desde cartas escritas ao amigo Godofredo Rangel até trechos nos próprios livros infantis. Vamos con- ferir alguns? “Ah Rangel, que mundos diferentes, o do adulto e o da criança! Por não compreender isso e considerar a criança ‘um adulto em ponto pequeno’, é que tantos escritores fracassam na literatura infantil e Andersen fica eterno” (LOBATO, 1964, p. 347). “— Ignoro se o Pequeno Polegar anda aqui pelo meu reino. Não o vi, nem tive notícias dele, mas a senhora pode procurá-lo. Não faça cerimônia... — Por que ele fugiu? — Indagou a menina. — Não sei — respondeu dona Carochinha — mas tenho notado que mui- tos dos personagens das minhas histórias já andam aborrecidos de viverem toda a vida presos dentro delas. Querem novidade. Falam em correr mundo a fim de se meterem em novas aventuras. [...] Andam todos revoltados, dan- do-me um trabalhão para contê-los. Mas o pior é que ameaçam fugir, e o Pequeno Polegar já deu o exemplo” (LOBATO, 1980, p. 14). No primeiro trecho, Lobato critica os autores que o precederam, pois não valo- rizavam a imaginação da criança e insistiam em uma linguagem moralizante e instrutiva, o que tornava as obras deles insossas, incapazes de despertar a curio- sidade do jovem leitor. No segundo trecho, aparece a personagem Dona Carochinha, que originalmente re- feria-se à figura de uma velhinha bondosa, contadora de histórias, ideia que surgiu do livro Contos da Carochinha, de Figueiredo Pimentel, primeiro a ser publicado no Brasil com contos europeus traduzidos e adaptados. Contudo, em Reinações de Narizinho, Lobato caracteriza essa personagem como uma barata velha e ranzinza, que conta histórias emboloradas, das quais as crianças já estavam cansadas. Assim, fica evidente a crítica à reprodução de antigos modelos europeus e a necessidade de criar histórias que valorizassem a imaginação e a inte- ligência do leitor infantil. 2 2 De em ak D ak si na /S hu tte rs to ck O público infantojuvenil identificou-se rapidamente com a pri- meira história de Lobato para crianças, especialmente pelo modo como foi possível construir, nela, um universo familiar e afetivo, permeado pelo maravilhoso. É por meio dessa obra que o autor consolida o espaço e grande parte do elenco que vai preenchê-lo: o Sítio do Picapau Amarelo (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010), em que o meio rural é local de alegria, fantasia, criatividade e aventuras vivi- das pelas célebres personagens Emília, Narizinho, Pedrinho, Dona 36 Literatura infantojuvenil Benta, Tia Nastácia e tantas outras que povoam a imaginação das crianças e jovens há um século. Assim sendo, o sítio não é apenas o cenário onde a ação pode transcorrer. Ele representa igualmente uma concepção a respei- to do mundo e da sociedade, bem como uma tomada de posição a propósito da criação de obras para a infância. Nessa medida, está corporificado no sítio um projeto estético envolvendo a lite- ratura infantil e uma aspiração política envolvendo o Brasil – e não apenas a reprodução da sociedade rural brasileira. Pois, pro- ceder a essa reprodução corresponderia a assumir uma atitude retrógrada, se lembrarmos que o país começava a passar por um avançado processo de urbanização para o qual Lobato estava to- talmente alerta. (LAJOLO; ZILBERMAN, 2010, p. 56) Monteiro Lobato, portanto, não inaugura o rural como temática na literatura infantil, pois este já fora cenário de outras obras – como em Saudade, de Tales de Andrade –, contudo supera a visão romântica de felicidade e riqueza por meio da agricultura. O sítio é muito mais um espaço metafórico, conforme afirmam Lajolo e Zilberman (2010), especialmente em suas obras criadas após 1930. Além das riquezas que nele são encontradas, como o petróleo, em O poço do Visconde, o sítio é aberto às inovações tecnológicas, às novidades estrangeiras, ao cinema, aos quadrinhos etc. Além da inclusão desses elementos que caracterizam a cultura internacional, podemos destacar outros aspectos das obras loba- tianas que foram responsáveis pela inovação da literatura infantil brasileira e pela singularidade do autor. Podemos observar alguns desses aspectos no quadro a seguir. Malba Tahan é o pseu- dônimo de Julio Cesar de Melo e Souza, professor e escritor brasileiro que estudou a cultura e a lín- gua árabe para traduzir, adaptar e escrever várias obras inspiradas nessa cultura e sobre o ensino de Matemática. O homem que calculava é uma de suas histórias mais conhecidas. Para saber um pouco mais sobre o autor e suas obras, você pode acessar: https://www.malbatahan. com.br/. Acesso em: 14 set. 2020. Livro (Continua) Quadro 2 Características das obras de Monteiro Lobato Características Exemplos Questionamento do uso da língua padrão escrita e valorização da língua falada Lobato busca recuperar o estatuto oral da literatura infantil, pois Dona Benta conta as histórias em voz alta aos moradores do Sítio, adotando um estilo coloquial, sem erudição e preocupação com a gramática. Incorpora a oralidade sem infantilidade, tanto nas falas das personagens quanto no discurso do narrador. Em Reinações de Narizinho o narrador comenta: “a moda de Dona Benta ler era boa. Lia ‘diferente’ dos livros. Como quase to- dos os livros para crianças que há no Brasil são muito sem graça, cheios de termos do tempo do Onça ou só usados em Portugal, a boa velha lia traduzindo aquele português de defunto em língua do
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