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aparece como construção da mente, hipótese de tra- balho, modelo, função pragmática que torna possível a previsão e a ação, descrição de relações entre ele- mentos, nunca a garantia de certeza definitiva. m o desenvolvimento das ciências da natureza Após a física e a astronomia estabelecerem seus métodos, foi a vez de se constituírem outras ciências, como a química. Depois foi a vez das ciências biológicas e da medicina, que se desenvolveram no século XIX. • A evolução das espécies O feito mais notável da biologia no século XIX, no entanto, foi a teoria da evolução orgânica. Inicialmente Jean-Baptiste Lamarck levantou uma hipótese sistemática, mas Charles Darwin o supe- rou com um trabalho baseado em exemplares de plantas e animais coletados em suas pesquisas. A partir do resultado dessas investigações, tra- zido a público em 1859, na famosa obra A origem das espécies, Darwin conclui que a variação e a seleção natural são os fatores principais na origem de novas espécies. A teoria evolucionista abrange todos os animais, inclusive os seres humanos. Essa última referência, porém, só foi amplamente esclarecida em sua obra seguinte, na qual mostra que descen- demos originalmente de algum ancestral simiesco há muito extinto, provavelmente o mesmo antepas- sado de antropoides ainda existentes. Como ele pró- prio esperava, sofreu críticas apaixonadas e foi por muitos considerada uma obra herética. O navio Beagle aportando na Terra do Fogo, sul da América do Su l, em tela do século XIX, de Conrad Martens, pi ntor que acompanhou Darwin em sua expedição. Lil PARA SABER MAIS Na tradição greco-medieva l preva leceu a concepção estática do mundo, segundo a qual cada ser busca rea- lizar sua essência (eterna e universal), o que se opõe à visão transformista da natureza. Do mesmo modo, a interpretação bíblica tradiciona l rejeitava qualquer teoria que contrariasse a tese da criação divina. As hipóteses evolucionistas tomaram corpo após Darwin ter coletado dados em grande escala, depois de engajar-se em uma viagem, a bordo do navio Beagle, de levantamento cartográfico na América do Sul, organizada pelo governo da Inglaterra. Durante cinco anos (1831-1836), observou que determinada espécie sofria mudanças nas diferentes regiões que visitava, mas encontrava dificuldade em explicar como a seleção se configurava, até que se inspirou em uma leitura da obra de Malthus, como diz neste trecho: Em outubro de 1938, isto é, quinze meses após ter iniciado minha pesquisa sistemática, aconteceu estar lendo, por entretenimento, a obra de Malthus sobre a população. Estando bem preparado para apreciar a luta pela sobrevivência que se trava em todo lugar, surgiu-me a ideia de que sob tais circunstâncias, variações favoráveis seriam preservadas e as não favoráveis, destruídas. O resultado deste mecanismo seria a formação de novas espécies. Daí em diante tinha finalmente uma teoria em que trabalhar.8 U' PARA REFLETIR Observe, na citação biográfica de Darwin, como se configurou a cr iação da hipótese da seleção natu- ral. Compare com o que foi visto neste capítulo no tópico sobre hipótese. Lil PARA SABER MAIS Thomas Malthus (1766-1834), economista inglês, em Ensaio sobre o princípio da população, afirmava que o fato de a população crescer ma is que a pro- dução de alimento é a causa da fome, da doença e da guerra. > Simiesco. Relativo a sím io, macaco. 8 DARWIN, Charles. Autobiografia. Citado por: EPSTEIN, Isaac. Divulgação científica: 96 verbetes. São Paulo: Pontes, 2002. p. 139. O método das ciências da natureza Capítulo 31 Usuário Realce O criacionismo Ainda hoje grupos de inspiração religiosa opõem o criacionismo à teoria darwiniana, sobretudo entre os que não querem descartar a fé na cria- ção divina. Trata-se de um movimento que nasceu nos Estados Unidos, tendo recrudescido a partir de 1999, quando o estado do Kansas determinou por lei que não era obrigatório o ensino da evolução biológica em suas escolas.9 Existem diversas linhas de adesão ao criacio- nismo. Os mais radicais são antievolucionistas, pois creem na versão bíblica, rejeitando que os seres humanos tenham derivado de um ancestral simiesco. No entanto, há os criacionistas modera- dos, que reconhecem as evidências científicas da evolução de plantas e animais, mas atribuem a Deus uma ação contínua nessa evolução. A polêmica: evolucionismo ou criacionismo? As críticas que os cientistas fazem ao criacio- nismo é que desde a Idade Moderna a ciência se tornou laica, isto é, a fé não deve ser tomada como critério de avaliação de uma teoria. Apenas o que pode ser testado de maneira objetiva e a partir de ampla discussão na comunidade científica deve ser levado em consideração - ainda que as teorias pos- sam ser modificadas ao longo do tempo. Isso não significa desrespeitar ou negar crenças pessoais, mas apenas não aceitá-las como critério de fundamento para teorias científicas, porque a fé não se coaduna com a exigência de evidência empí- rica e de rigor do método científico. Charge satirizando a teoria da evolução de Charles Darwin. Nela um gorila pede proteção de Henry Bergh, fundador da Sociedade Americana para a Prevenção da Crue ldade com Animais. Thomas Nast, 1871. O impacto da teoria evo lucionista inspirou a criação de inúmeras caricaturas, gera lmente para ironizar o cientista. 9 Citado em: RevistaNature, lO ago.l999. p. 697. Quanto ao ensino nas escolas, se considerarmos o pluralismo que caracteriza os alunos, vindos de famílias de diferentes religiões ou mesmo ateias, pergunta-se o que seria mais conveniente ensinar. Em entrevista, a secretária da Educação Básica do Ministério da Educação afirmou que o criacionismo pode ser discutido nas aulas de religião, como visão teológica, mas não nas aulas de ciências, nas quais deve prevalecer o enfoque laico. 10 Além disso, as verdades da fé são irrefutáveis, porque derivam de revelação divina e trazem con- sigo valores éticos que deverão ser seguidos, o que contraria a possibilidade de revisão de toda conclu- são científica e vincula-lhes automaticamente nor- mas de conduta moral. Os criacionistas rebatem alegando que, devido à complexidade do Universo, não é possível explicá-lo apenas pela evolução e pelo acaso, sendo necessá- rio admitir uma primeira Inteligência criadora. Mais ainda, aceitar o evolucionismo seria colocar em questão a criação divina. Com relação ao ensino nas escolas, eles consideram mais justo apresentar ambas as orientações, mostrando os pontos fortes e fracos de cada uma. U' PARA REFLETIR Diante da polêmica sobre o que ensinar nas escolas - a teoria da evolução ou o criacion ismo - como você se posiciona? Justifique sua resposta. • A genética Apenas seis anos após a publicação de A ori- gem das espécies, um monge austríaco chamado Gregor Mendel apresentou os resultados de uma experiência com ervilhas. Procedendo ao cruza- mento de sucessivas sementes a partir da combi- nação de sete caracteres, como cor, forma, altura etc., chegou a resultados estatísticos importan- tes para elucidar fatores da hereditariedade. Note-se que, pela primeira vez, um biólogo usava a matemática em um campo que aparentemente a dispensava. Curiosamente, seu trabalho permaneceu quase desconhecido, até que em 1900, De Vries baseou-se nele para explicar a evolução como resultante de saltos repentinos, por mutações. Pouco depois, em 1909, Morgan incorporou o termo "gene" para refe- rir-se aos "fatores hereditários" mendelianos. 10 Citado em: Folhaonline. Disponível em: www.folha.uol.com.br. Acesso em: 12 dez. 2008. Filosofia das ciências Representação de molécula de DNA. Se observarmos a figura da dupla hélice, veremos que ela é constituída por duas tiras, que representam as cadeias formadas pela sequência de um açúcar ligado a um fosfato. Essa unidade liga-se a outra idêntica inúmeras vezes, paralelamente ao eixo da dupla hélice (açúcar-fosfato-açúcar-fosfatoetc.). As hastes horizontais, no interior da hélice, são as bases (adenina, timina, guanina e dtosina) que compõem o nosso DNA e costumam ser representadas por A, T, G e C. Essa estrutura permitiu explicar duas propriedades importantes do gene: a codlii.cação de proteínas, dada pela sequência de bases, e a duplicação do gene. Dessa forma, Crick e Watson revelaram o mecani.smo de cópi.a para o material genético, o que levou a uma série de explicações de como a vida funciona. Tomavam impulso os estudos de genética. Mas a grande descoberta da molécula do DNA, em 1953, pelo inglês Francis Crick e pelo norte-americano ]ames Watson, exigiu muito trabalho dos cientistas na primeira metade do século XX. Para se chegar a essa descoberta e entender a estrutura molecular dos genes e como eles controlam as células, foi pre- ciso reunir cientistas de diversas disciplinas, como a bioquímica, a biofísica e a microbiologia. Outros pesquisadores já sabiam que as molé- culas de DNA eram longas cadeias de átomos com largura constante em todo o comprimento. Crick e Watson conseguiram explicar como os átomos se organizavam e se duplicavam, con- cebendo o que passou a ser conhecido como o modelo da dupla hélice. Segundo esse modelo, a molécula de DNA consiste em duas hélices enro- ladas uma na outra, como uma escada em espi- ral, com "degraus" compostos por pares de gru- pos de átomos químicos. A fantástica descoberta da molécula do DNA esclareceu o fenômeno da hereditariedade ao expli- car como os ácidos nucleicos dirigem a produção de proteínas, cuja sequência é única em cada pessoa. Com isso vislumbrou-se a possibilidade de interpre- tar o plano genético de qualquer organismo vivo, o que começou a se concretizar na década de 1970 com a destinação de vultoso financiamento do governo norte-americano ao Projeto Genoma. Esse projeto reúne vários programas de pesqui- sas, que se orientam no sentido de fazer o mapea- mento genético dos organismos e depois o sequen- ciamento das bases de cada um dos fragmentos de DNA já ordenados. As vantagens de se decifrar a constituição genética estão na prevenção de doen- ças e no seu tratamento. Tanto é que já existem patentes sobre genes para doenças desde o Mal de Alzheimer até a calvície. A grande polêmica que se seguiu, no entanto, deve-se a inúmeros aspectos éticos e legais, aos quais se juntam temores e mitos arraigados das mais diversas naturezas, sobretudo no que diz res- peito ao uso de transgênicos, à clonagem humana e à utilização de células-tronco. m A crise da ciência O desenvolvimento da ciência tinha sido tão significativo até o século XIX que não era possí- vel negar a excelência do método científico para conhecer a realidade. Filosofias como o positi- vismo de Comte e o evolucionismo de Spencer traduziam o otimismo generalizado que exaltava a capacidade de transformação humana em dire- ção a um mundo melhor. No entanto, algumas novidades golpearam rude- mente as concepções clássicas, originando o que se chamou de crise da ciência moderna. São elas as geo- metrias não euclidianas e a física não newtoniana. No século XIX alguns matemáticos construíram outros modelos de geometria que partiam de axio- mas que contradiziam os clássicos de Euclides: sur- giram então as geometrias não euclidianas. DNA. Ácido desoxirribonucleico.A sigla deriva do inglês Deoxyribonucleic acid. O método das ciências da natureza Capítulo 31 Usuário Realce Vê-se, a partir de cima, o triângulo na geometria elíptica de Riemann, na geometria hiperbólica de Lobatchevski e na geometria plana de Euclides. ilustração disponível em: http:l /wa pedia.mobi/pt!Ficheiro: E nd _ of _ u niverse.jpg. Acesso em: abr. 2010. O russo Nikolai Lobatchevski, em vez de conside- rar o espaço um plano euclidiano - no qual por um ponto fora de determinada reta passa uma e só uma paralela a essa reta-, pressupôs o espaço de curva- tura negativa, e concluiu que seria possível traçar infi- nitas paralelas a essa reta. No final da década de 1850, o matemático alemão Bernhard Riemann construiu sua geometria em espaço de curvatura positiva, na qual não existem paralelas. Os novos modelos não anulavam a geometria eucli- diana, mas desmoronaram o critério de evidência em que os postulados euclidianos pareciam repousar. Como consequência, seria preciso repensar a "verdade'' na matemática, que dependia do sistema de axiomas postos de início e tomados como verdadeiros por con- venção, a partir do qual poderiam ser construídas geo- metrias igualmente coerentes e rigorosas. • A física não newtoniana Outra crise na ciência decorreu da física não newtoniana, cujos pressupostos eram o mecani- cismo e o determinismo. Mas a teoria da relatividade de Einstein veio sub- verter a concepção newtoniana do Universo, sobre- tudo devido a descobertas como a curvatura da luz das estrelas. Mais ainda, segundo essa teoria, o ritmo da passagem do tempo não é certo nem abso- luto: tempo e espaço não são mais entidades sepa- radas, mas são substituídos pelo conceito de uma quarta dimensão, o espaço-tempo. No início do século XX, outra instigante constata- ção confrontou o princípio do determinismo: após o desenvolvimento da teoria quântica e do estudo do fóton, Werner Heisenberg formulou o principio da incerteza, que seria o reconhecimento de uma certa indeterminação nesse campo da ciência, ou seja, a impossibilidade de precisão. ..._ __ _.l Unidade 6 Filosofia das ciências fJ Novas orientações epistemológicas As "crises" da ciência no final do século XIX e começo do século XX exigiram que a epistemologia contemporânea fizesse uma revisão da concepção de ciência e da sua metodologia. m ETIMOLOGIA Epistemologia. Do grego episteme, "ciência", e Jogos, "teoria". Henri Poincaré ( 1854-1912) afirmou que "as teo- rias não são nem verdadeiras, nem falsas, mas úteis", querendo significar que a crença na infalibilidade da ciência é uma ilusão. O que ocorreu naquele período foi a necessidade de reavaliar o conceito de ciência, os critérios de certeza, a relação entre ciência e rea- lidade, a validade dos modelos científicos. Essas questões são o objeto da epistemologia científica. Essa denominação começou a ser usada em meados do século XIX, correspondendo à teoria do conhecimento. Com maior precisão, e tendo em vista a intensificação das discussões contemporâ- neas em torno da ciência, o termo "epistemologia" passou a ser mais usado para designar o estudo do conhecimento científico do ponto de vista crítico, isto é, do seu valor. Em outras palavras, para exami- nar o valor objetivo dos princípios, das hipóteses e das conclusões das diferentes ciências. • O Circulo de Viena O Círculo de Viena foi fundado no final da década de 1920 por um grupo de cientistas, lógicos e filóso- fos da ciência, liderados por Rudolf Carnap e do qual participaram Otto Neurath e Moritz Schlick, entre outros. Sofreram influência de Einstein, Russell e Wittgenstein, considerados os principais represen- tantes da concepção científica do mundo. Os filósofos do Círculo de Viena pertencem ao movimento filosófico do positivismo lógico ou empi- rismo lógico, segundo o qual o saber científico deve ser expurgado de conceitos vazios e dos falsos proble- mas metafísicos, submetendo-se ao critério da veri- ficabilidade. Desse modo, a verdade ou a falsidade dos enunciados sintéticos só pode ser comprovada empiricamente, porque não há um saber apriorístico sobre a realidade. As leis científicas são sempre a pos- teriori, porque dependem da experiência. Nesse processo é importante o sistema de con- venções pelo qual a lógica simbólica permite a clari- ficação da linguagem científica . • Popper e a "falseabilidade" O filósofo austríaco Karl R. Popper ( 1902-1994) sofreu inicialmente a influência do Círculo de Viena, mas depois teceu diversas críticas a ele. Para Popper, ao cientista não interessa a justificação de sua teo- ria, que tradicionalmenteé feita por experimentação, hipótese e confirmação, já que a indução apresenta sempre inúmeras dificuldades. Propõe, então, o prin- cípio da falseabilidade ou da refutabilidade. Segundo esse critério, o cientista imagina uma hipótese e a submete ao levantamento de possíveis maneiras de falseá-la, de refutá-la pela experiência. Ou seja, não podemos provar que uma teoria uni- versal é verdadeira, mas podemos provar que é falsa. Quando uma teoria resiste à refutação pela expe- riência, dizemos que está corroborada. Portanto, os cientistas avançam quando deter- minam os limites das conjeturas que utilizam, ten- tando mostrar que são "falsas", para então substituí- -las. Gérard Fourez dá um exemplo: [ .. . ] se digo que a aceleração de um objeto que cai é constante, trata-se de uma proposição que poderia se revelar falsa por ocasião de uma experiência para a qual se utilizassem critérios precisos; é portanto 'falseável '. [ ... ]a proposição 'ajo assim porque é do meu interesse agir assim' pode ser compreendida como uma proposição não falseável , na medida em que posso inventar para mim múltiplos interesses que farão com que esses interesses sejam sempre a causa da minha ação. Por exemplo, se não existem interesses finance iros, poderei dizer que há um interesse pol ítico, ou afetivo etc., de modo que se agirá sempre por interesse.11 Por isso Popper critica a psicanálise e o mar- xismo, cujos universos teóricos restringem-se às explicações de seus idealizadores e não dão condi- ções de refutabilidade empírica. • Kuhn e o conceito de paradigma Na obra Estrutura das revoluções científicas, o filósofo norte-americano Thomas Kuhn ( 1922-1996) desenvolve uma nova noção de paradigma, segundo a qual a ciência progride pela tradição intelectual representada pela visão de mundo assumida pela comunidade científica, que fornece problemas e soluções exemplares para a pesquisa futura. Não se trata de um conceito simples, mesmo por- que o próprio Kuhn o define de diferentes modos em sua obra, mas o principal é que o trabalho científico se desenvolve baseado no modelo consensual ado- tado pelos cientistas. ll:lill PARA SABER MAIS O conceito de paradigma variou na história do pen- samento. Para Platão, era o modelo do mundo das ideias; para Aristóteles, era o exemplo em lógica. Kuhn distingue os seguintes três momentos: o pe- ríodo pré-paradigmático, a ciência normal e a crise. No período pré-paradigmático ou imaturo, os problemas originados no cotidiano pedem explica- ções que não apresentam ainda o consenso a res- peito dos compromissos básicos. Quando é alcan- çado o consenso, temos a ciência normal, em que o trabalho científico se desenvolve com base no para- digma adotado, que dirige a resolução dos proble- mas e a acumulação de descobertas. Chega, porém, o momento de crise, em que o paradigma é questio- nado porque já não resolve uma série de anomalias acumuladas, processo que pode levar à revolução cientifica. Por exemplo: até Copérnico era aceito o paradigma ptolomaico; até a teoria da relatividade, a ciência nor- mal se sustentava pelo paradigma newtoniana. • Feyerabend: contra o método Enquanto Popper afirma que a ciência é racional, na medida em que atende ao ideal de refutabilidade, Kuhn argumenta que uma teoria, como paradigma, deve na maior parte do tempo ser desenvolvida em vez de criticada. Feyerabend, por sua vez, radicaliza e questiona a própria racionalidade científica. O filósofo Paul K. Feyerabend ( 1924-1994) abando- nou cedo o empirismo, classificando-se como "anar- quista epistemológico''. Critica as posições positivis- tas por considerar que as metodologias normativas não são instrumentos adequados de investigação e defende o pluralismo metodológico. Segundo o filó- sofo, por uma questão democrática, já que há plura- lidade de ideias e formas de vida, não seria na ciên- cia que haveria imposição de métodos. A famosa afirmação de que "o único princípio que não inibe o progresso é: tudo vale" aparece num livro cujo título sugestivo indica sua posição: Contra o método. 11 FOUREZ. Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Editora Unesp, 1995. p. 72-73. O método das ciências da natureza Capítulo 31 :. Para Feyerabend, não existe norma de pesquisa que não tenha sido violada, por isso o cientista pode fazer aquilo que lhe agrada mais. E deve tornar per- suasiva a teoria utilizando-se de recursos retóricos por meio de propaganda, a fim de melhor conven- cer a comunidade científica. Como exemplo, cita Galileu, que procedeu desse modo para convencer acerca da hipótese do movimento relativo. Gilles-Gaston Granger destaca o duplo signifi- cado dessa teoria provocadora: O aspecto positivo deste anarquismo consiste, sem dúvida, numa crítica violenta ao conservadorismo e ao dogmatismo, sublinhando a mobilidade do conhecimento científico e sua abertura às novidades. Seu aspecto negativo vem da insistência em considerar a diversidade, ou até a incoerência, como um valor em si, e a indiferença em procurar critérios de decisão e de escolha entre as teorias, exagero este que, a meu ver, desqualifica a doutrina.12 13 A ambiguidade do progresso cientifico No esboço que fizemos sobre o desenvolvimento da ciência, iniciado na Idade Moderna, ficou patente o incrível impulso adquirido por ela durante o século XX. Além de inúmeras descobertas, houve também um avanço sem precedentes nas conquistas tecno- lógicas. Os professores - e irmãos -David e Arnold Brody disseram a esse respeito: Entramos no século XX a cavalo. Sairemos dele a bordo de naves espaciais. Ingressamos neste século morrendo de febre tifoide e varíola, e nos despediremos dele tendo vencido essas doenças. Na virada do século XIX, transplantes de órgãos eram inconcebíveis, enquanto na virada deste século muitos terão sobrevivido por que o coração ou outro órgão vital de uma outra pessoa os sustenta. Em 1900, a expectativa de vida humana era de 47 anos. Hoje é de 75. Adentramos este século comunicando- -nos a curta distância com o recém-inventado rádio. Hoje enviamos sinais e imagens coloridas através de bilhões de quilômetros no espaço. 13 O cubismo, movimento artístico iniciado em 1907 por George Braque e Pablo Picasso, introduziu na arte conceitos emprestados das geometrias não euclidianas do século XIX e da teoria da relatividade de Ei nstein: o espaço da pintura passa a ser fragmentado e articulado com o tempo. No quadro de Mareei Duchamp, Nu descendo a escada (1911}, o espaço está completamente fragmentado, e o homem descendo a escada realiza movimento contínuo. Contudo, é importante acrescentar: se, por um lado, a ciência tem proporcionado maior conheci- mento do mundo e ampliado os poderes humanos, não há como negar o risco dos seus efeitos maléfi- cos, como a guerra ou a poluição. Não é excessivo enfatizar que esses problemas não se devem pro- priamente à ciência ou à tecnologia, mas ao uso que delas fazem as pessoas, seja individualmente ou por meio de empresas privadas ou do poder público. Resta lembrar a importância da liberdade de manifestação do pensamento. O espírito da Inquisição, que condenou Galileu, tem ressurgido na forma de Estados totalitários e ditatoriais, mas também nas mentes que temem as novidades tra- zidas pelas conquistas científicas, pois elas colocam em xeque sua maneira tradicional de ver o mundo. 12 GRANGER, Gilles-Gaston.A ciência e as ciências. São Paulo: Hucitec/Editora Unesp,l994. p. 43. 13 BRODY, David Eliot e BRODY, Arnold R. As sete maiores descobertas científicas da história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 396. Unidade 6 Filosofia das ciências
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