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Construção do Eu na Modernidade

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PEDRO LUIS RIBEIRO DE SANTI
A CONSTRUÇÃO DO EU NA MODERNIDADE
INTRODUÇÃO
Este livro nasceu de uma pesquisa iniciada em agosto de 1995 que tinha a finalidade de 
produzir material didático para o curso "Teorias e Sistemas Psicológicos", que ministro no primeiro 
ano do curso de Psicologia desde 1992. Boa parte deste curso é dedicado ao estudo das condições 
que levaram ao surgimento da Psicologia, no final do século XIX.
Desde então, tenho tentado ampliar este trabalho, organizando textos, combinando trechos 
de obras de comentadores e adicionando novos textos originais de cada época. Combinando a 
preocupação com a abertura de vias de comunicação com os alunos e um interesse pessoal, com 
frequência uso outros recursos que não apenas textos teóricos, como literatura geral, filmes, 
referências à 'história dos costumes' e, muito especialmente, a audição de música de época. Essa 
reunião entre uma linguagem teórica e mais abstrata com outras mais imediatas e prazerosas não 
apenas mostrou-se produtivo, atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante 
universitário de hoje, o aumento de sua cultura geral. Ela também deixa evidente para o aluno a 
relação entre os problemas filosóficos das várias épocas, que se refletem em toda a expressão 
humana -dos hábitos à arquitetura, da música à visão de si mesmo.
Tenho procurado digerir esta experiência de mais de quatro anos através da produção de um 
texto didático. Para isso, há que se pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se 
compilam fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tornar um texto sobre a história do 
pensamento humano acessível à linguagem de alunos de graduação.
A esperança maior deste livro é a de convidar, de um lado, os alunos de Psicologia a pensar 
nas relações dessa área de pensamento com o restante do conhecimento e em suas condições de 
surgimento. De outro, convidar o público leitor geral a compreender e refletir um pouco sobre a 
história dos problemas filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a 
Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o qual todos têm contato. Afastamo-
nos de uma posição "substancialista", que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma coisa 
eterna e imutável, a qual a ciência finalmente teria vindo desvelar. Assim, colocamos no livro a 
questão da construção do mundo psicológico, assim como a Psicologia com uma instância de 
produção de conhecimento científico. Ao menos, creio que este livro permite introduzir os alunos à 
ideia de que a compreensão da questão psicológica é muito anterior à sua formulação em uma 
linguagem científica. Ao público leigo geral, compreender que, antes da visão de si mesmo que se 
têm hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras maneiras diferentes de ver a si mesmo e de 
compreender a posição do homem no universo.
Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre o que é alma, desejo, liberdade, 
etc. Mas foi apenas no final do século XIX que surgiram os projetos de se realizar uma ciência da 
mente, nos moldes que conhecemos hoje. Para uma primeira aproximação com o campo da 
Psicologia, é essencial que se procure pensar no motivo pelo qual nasceu a demanda por um 
profissional, dentro dos moldes da ciência, para dar conta das crises de identidade ou do controle 
dos comportamentos.
Como se sabe, a Psicologia é composta de uma grande quantidade de teorias diferentes, que mal 
conseguem se comunicar entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da 'Psicologia 
e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o sentido do surgimento da Psicologia, talvez 
também possamos entender o motivo dessa dispersão.
Essa história é imensa. Ela remonta à filosofia grega e acompanha toda a reflexão filosófica 
posterior e, mais recentemente, alcança as teorias psiquiátricas até o início de nosso século. Por 
isso, tomamos algumas teses sobre o assunto para organizar nosso percurso. Está longe de nossa 
pretensão realizarmos uma obra totalizadora ou sequer de nos aproximarmos disso. Trata-se 
simplesmente de perseguir um fio nesta rede, na esperança de que ele convide os leitores a explorar 
outras vias. Como será possível perceber, cada época tem um número de correntes de pensamento 
paralelas e um número de formas de expressão desses pontos de vista. A seleção dos autores e temas 
obedeceu à orientação de alguns comentadores clássicos, de um lado, e a motivos menos nobres, de 
outro, como o ponto de vista do conhecimento prévio do autor. Muitas discussões essenciais são 
apenas mencionadas, como a questão da Modernidade, algumas passagens da própria história; 
muitas questões paralelas às vezes sequer são mencionadas. Peço desculpas ao leitor mais bem 
informado e reafirmo o caráter meramente didático deste projeto.
A tese básica que orienta este percurso é a de Luis Cláudio Figueiredo, em "Psicologia. 
Uma introdução". Ele propõe a idéia de que houve duas pré-condições para o surgimento de um 
projeto de Psicologia como ciência. A primeira seria o surgimento de uma noção clara de 
subjetividade privada (ou seja, uma afirmação da idéia de que as pessoas são indivíduos livres e, 
enquanto tais, indivisíveis, separados, independentes uns dos outros e donos de seus destinos. A 
segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em crise, gerando assim um sujeito 
em crise de identidade e a procura de um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. De 
momento, essa tese pode parecer obscura, mas gradativamente ela irá sendo explicitada.
De uma forma genérica, podemos dizer que noção de subjetividade privada data do início da 
Modernidade, ou seja, do Renascimento. Será justamente na passagem da Idade Média para o 
Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito chegará a seu ponto máximo 
no século XVII e, a partir de então, iniciará uma longa crise até o final do século XIX.
No final do século XIX, surgirão os primeiros projetos de Psicologia, já com algumas características 
definitivas da diversidade que marca esta ciência. Wundt cria condições para a criação de uma 
Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta tese, que mostra os modos de 
afirmação do eu desde o século XVI, acrescento uma observação minha: a de que, desde o início do 
Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fraquezas e insuficiências do eu. Isto 
indicaria a possibilidade de que a Modernidade incluísse procedimentos de auto-crítica e dissolução 
do eu, além dos clássicos procedimentos de auto-afirmação.
2
A PASSAGEM DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO
Nesta parte, trata-se de expor que nossa concepção 
atual do que seja o "eu" não era possível na Idade 
Média.
No humanismo moderno. De acordo com a tese de Luis Cláudio Figueiredo, seria neste 
período que passaria a se afirmar uma concepção de subjetividade privada -aí incluída a idéia de 
liberdade do homem e de sua posição como centro do mundo. Voltemos alguns passos: o que 
significa dizer que a noção de 'subjetividade privada' passa a existir? Por que tal concepção não 
seria possível anteriormente, no mundo medieval?
Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de privacidade não existisse em um 
num determinado momento. Nossa intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou, até 
mais, solitários- parece-nos clara, certa. "Ter um tempo para si", sem estar trabalhando ou 
estudando (produzindo, de um modo geral), possui um grande valor em nossas vidas. Certamente, 
essa é uma das poucas coisas pelas quais lutamos hoje -é preciso garantir nossa privacidade, diante 
da alta exigência atual para que dediquemos toda a nossa energia e tempo às atividades 
consideradas "úteis". Há até quemdiga, e não são poucos, que nosso excessivo individualismo é um 
dos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os problemas que derivariam disso, 
poderíamos enumerar: a imposição dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao 
que não nos diz respeito imediatamente, a solidão, a falta de um sentido para a vida, o desrespeito 
generalizado às leis, o crescimento -como reação a tudo isso- de movimentos ideológicos ou 
religiosos dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com aquilo que é diferente 
de si ou do grupo, etc.
Existem as nações, grupos religiosos, familiares, etc., mas a menor unidade seria a pessoa. O 
termo 'indivíduo/ remete a isto, somos o "átomo" indiviso do mundo humano- Este sentimento de 
individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos profundamente infelizes e 
nos sentimos incompreendidos, passando por uma dor que provavelmente ninguém jamais passou 
antes. Se um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos compreender e já ter passado pela 
mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e reagimos dizendo que ele não entendeu nada, nosso 
sofrimento é incomparavelmente maior que o dele!
Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que lhe atribuamos, parece-nos 
certo que o sujeito isolado é a unidade básica de valor e referência de Judô. Ainda assim, se dermos 
uma olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que nem sempre foi assim. Esta 
afirmação do "eu" parece ter-se construído gradativamente, através de séculos. O "eu" nem sempre 
foi soberano.
Se nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (século V A.C.), certamente já 
encontraríamos algo que poderíamos chamar de humanismo, como uma valorização do ser humano 
já não submetido ao poder dos deuses, (como na filosofia de Sócrates ou no teatro de Eurípedes), a 
criação do direito e da democracia, etc. Mas o humanismo, entendido como a colocação do homem 
como medida de todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma que tem hoje no 
Renascimento, surgindo de dentro da Idade Média.
Ainda que não entremos em detalhe na discussão do pensamento medieval ou grego, vale a 
pena destacarmos alguns momentos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Em uma 
obra recente, chamada As fontes do Self, Charles Taylor realiza uma análise profunda do nascimento 
do sentimento característico da Modernidade; o de que possuímos uma interioridade.
O ponto de partida da análise de Taylor é Platão. Trata-se de mostrar como, para ele, a razão 
é a percepção de uma ordem absoluta. Ser racional significa ver a ordem como ela é. Não há como 
ser; racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo tempo. Podemos já reconhecer aqui o 
nível de certeza pelo qual aspira a Modernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes. 
No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'dentro' de nós, para Platão ela reside no 
absolutamente Bom.
É em Santo Agostinho que Taylor encontra a grande passagem para a interioridade, Santo 
Agostinho é assustadoramente moderno, considerando que viveu entre os séculosJV_e3Lde nossa 
era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções de 'interno-externo': espírito/matéria, 
alto/baixo, eterno/temporal, imutável/ mutante, etc. Aqui aparece um movimento inédito: com a 
desvalorização do corpo e de tudo o que é mundano, com a correspondente valorização da alma 
como algo interno, a busca por Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado 
no que vemos, mas no próprio olhar, Ele seria a própria luz interior. Santo Agostinho estaria, com 
isto, inaugurando uma experiência radical experiência passa a ser altamente subjetivada e 
dependente de nós. A tradição moderna teria levado esta concepção ao extremo, passando a referir-
se a objetos internos e, ao mesmo tempo, a um 'eu penso' totalmente separado do 'externo'. Mas isto 
já é adiantar demais nossa discussão.
Em uma imagem que reconhecemos como caricatural e bastante insuficiente da concepção 
de mundo medieval no Ocidente -apenas como pano de fundo para introduzirmos as idéias do 
Renascimento, poderíamos dizer que ela se caracteriza por considerar o mundo organizado em torno 
de um centro. Haveria uma ordem absoluta, representada por Deus e Seus legítimos representantes 
na terra: a Bíblia e a Igreja. Cada coisa existente estaria relacionada necessariamente a esta ordem 
superior. Em última instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que seria a 
criação divina. Aí se encontraria o sentido de tudo.
A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restrita, já que tudo faz parte de um 
plano maior, de um todo perfeito disposto por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por 
exemplo, é a da colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tampouco haveria lugar para a 
privacidade. Na medida em que a onipresença e a onisciência são atributos de Deus, nada poderia 
ser mantido em segredo e nunca estaríamos sozinhos: pecar em pensamento já é pecar.
MÚSICA - Canto Gregoriano
A audição e compreensão do canto gregoriano presta-se de forma exemplar à tentativa de 
apresentar o espírito medieval. Ele é um canto em uníssono, ou seja, trata-se de um coral onde todos 
cantam rigorosamente a mesma coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto sagrado e já conhecido 
pelos ouvintes: trata-se da reafirmação do já sabido e da apresentação de um mundo sem novidades. 
Associando-se ao caráter da letra, não há propriamente uma melodia, mas apenas uma sinuosa linha 
melódica que não se repete; não há refrão ou passagens bruscas, de forma que o ouvinte não 
consegue "segurar-se" em nada. Ele não pode se localizar e não deve "prestar atenção" ou estar 
consciente do que ouve, mas se deixar levar por este mar ou rebanho. Hoje, ouvimos o canto 
gregoriano de forma muito diferente da que o caracteriza: nós o utilizamos para meditar, ou relaxar.
De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia liga-se ao que há de mais 
espiritual -o sopro da voz, o sublime, a uma nota que se sustenta idêntica e linear. O ritmo, em 
oposição, representa mais proximamente o corpo e seus movimentos, ele chama à dança, ao que é 
mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso, deus da embriaguez, do vinho, do teatro, 
etc. Ela conteria, assim, um elemento diabólico, excitante. Ao ser assimilada pela igreja, o que é 
atribuído ao Papa Gregório, no século VI D.C., a música é filtrada, retirando-se dela ao máximo 
seus elementos rítmicos; ela passa a se restringir à pura emissão vocal, sem haver sequer 
instrumentos de acompanhamento 5.
Ainda no contexto medieval, surge um outro tipo de música que, de outra forma, reafirma a 
certeza e a necessidade de um centro e de uma referência externa. Nela, a voz da melodia é 
acompanhada por uma segunda, que sustenta uma mesma nota, chamada 'bordão' (segundo Aurélio, 
"uma nota grave, prolongada e constante", mas "também um pau grosso que serve como animo, 
amparo"). Trata-se propriamente de manter uma referência, um centro em torno do qual a melodia 
pode voltear sem jamais se perder6. Já se encontra nesse 
TEXTO ANEXO - John of Salisbury (Século XQ)
No texto que se segue pode-se ver a rigidez de um mundo concebido como hierarquizado 
por uma ordem superior. Não cabe ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar 
que lhe cabe.
O CORPO SOCIAL ("The Body Social")
"Uma comunidade, de acordo com Plutarco, é um certo corpo dotado de vida pelo benefício 
do favor divino, que opera impelido pela mais elevada equidade e que é regulado pelo que pode ser 
chamado de poder moderador da razão. Aqueles que em nós estabelecem e implantam a prática da 
religião e nos transmitem a devoção a Deus... preenchem o lugar da alma no corpo da comunidade. 
E assim,aqueles que presidem a prática da religião devem ser considerados e venerados como a 
alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros da santidade de Deus são Seus 
representantes? Além disso, desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e legisla sobre 
todo o restante, então aqueles aos quais nosso autor chama os prefeitos da religião presidem o corpo 
inteiro...
O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado pelo príncipe, que se submete apenas 
a Deus e àqueles que estão a Seu serviço e O representam na terra, da mesma forma que, no corpo 
humano, a cabeça é animada e governada pela alma. O lugar do coração é preenchido pelo senado, 
do qual procede o início de boas e más obras. Os deveres de olhos, ouvidos e língua são cumpridos 
pelos juízes e governadores das províncias. Oficiais e soldados correspondem às mãos. Aqueles que 
sempre servem ao príncipe são semelhantes aos flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem 
ser comparados com o estômago e os intestinos... Os camponeses correspondem aos pés, que 
sempre semeiam a terra, e precisam mais especificamente dos cuidados e das preocupações da 
cabeça, já que, enquanto caminham sobre a terra trabalhando com seus corpos, eles se deparam 
frequentemente com pedras de hesitação e, por isto, merecem mais ajuda e proteção que os demais 
com toda justiça, desde que são eles que erguem, sustentam e movem adiante o peso de todo o 
corpo...
Então, e só então, a saúde da comunidade será sólida e florescente quando os membros mais 
altos protegem os mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plenamente na mesma medida às 
justas demandas de seus superiores, de modo que todos e cada um operassem como que membros 
uns dos outros por uma espécie de reciprocidade, e cada um considerasse que seu próprio interesse 
era mais bem atendido por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os outros".
O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de uma relação orgânica entre todos 
os seres, sua interdependência. Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a 
liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem não seria, assim, propriamente sujeito.
PINTURA - Giotto
Questões para discussão
1. Qual é a diferença entre a meditação solitária de um monge medieval e a experiência de solidão 
de um homem do século XX?
2. Procure identificar alguma forma atual de entender o mundo que seria impensável na Idade 
Média.
3. Hoje ainda existe a idéia de "corpo social"?
3
O HUMANISMO NO RENASCIMENTO
Nesta parte, introduzimos o tema da valorização do homem como um 
todo e de cada indivíduo, no Renascimento, em função da perda das 
referências sólidas medievais.
Iniciemos esta parte por uma definição de humanismo: 
"O termo 'humanismo' derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.) 
designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, 
correspondendo à palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a 
atividades exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...) As chamadas 'humanidades' 
-poética, retórica, história, ética e política- passam, desse modo, a constituir, sob a inspiração dos 
antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício da liberdade." (...)
"Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o 
reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmação do valor espiritual do 
homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e dos seus prazeres." 
Fica evidente, pela passagem acima, que houve uma mudança na concepção do lugar do 
homem no mundo. Há agora uma grande valorização do homem e, ao mesmo tempo, a idéia de que 
ele tem que buscar uma formação, ele deve se constituir enquanto humano.
Se o homem não nasce com seu destino predestinado, ele se deve formar, educar. Nasce a 
necessidade do "cuidado de si".
É comum que tenhamos uma noção da passagem da Idade Média para o Renascimento em termos 
de história; com a diminuição do poder da igreja e advento da reforma, a crise do sistema feudal e o 
nascimento das cidades e rotas de comércio, a expansão marítima, etc. Mas raramente consideram-
se as mudanças de modo de vida das pessoas implicadas nessas transformações políticas e 
econômicas. Há toda uma linha de investigação histórica, que se dedica especificamente ao estudo 
da história dos costumes, da vida cotidiana das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da 
idéia que elas tinham de si mesmas.
Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igrej a e a abertura operada sobre o mundo 
fechado dos feudos foi acompanhada por uma crise da concepção fechada de mundo que vigorava. 
Se os homens acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do mundo) sobre o qual 
podiam se apoiar, agora já não podiam contar com essa certeza. Numa nova caricatura, poderíamos 
dizer que, sob um poder absoluto, não há liberdade, o que é terrível, embora seja relativamente fácil 
'compreender' o mundo, pois há referências claras: o que é certo e o que é errado está pré-definido, 
cabendo, no máximo, tomar um partido ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas, 
surge a idéia de liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se o homem não 
pode mais contar com uma resposta dada por uma autoridade absoluta, ele deverá buscar ou 
construir suas próprias respostas. Este é um dos principais elementos do humanismo.
Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse ateu, mas, de certa forma, Deus 
parece ter se afastado para o céu, deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade Média, é muito 
comum a representação plástica do mundo como uma esfera cujo centro é Deus, Cristo ou, o que é 
menos ortodoxo, a Virgem Maria; já no Renascimento, há inúmeras representações do mundo nas 
quais Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem.
É também comum que no Renascimento comecem a surgir as assinaturas dos artistas em 
suas obras de arte, o que quase não existia no período anterior. Quando pensamos nos pintores mais 
antigos exemplo, ainda que ele estivesse beirando o Renascimento, tendo vivido entre os séculos 
XIII e XIV. Não era o ser humano que criava, ele era apenas um instrumento da criação divina; 
como numa representação do Papa Gregório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a música que está a 
escrever.
No contexto renascentista, não há mais apenas uma certa cena bíblica que importa, mas a 
mão do sujeito que deixa sua marca na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do 
Renascimento, como Leonardo da Vinci ou Michelangelo, que, mais que artistas, são gênios de 
inúmeros talentos. São homens que se formam e que deixam seu traço pessoal na obra que criam. 
Sem sofrer restrições por parte da igreja em suas investigações sobre a anatomia humana ou sobre 
os astros, o homem abre-se para um mundo novo -quer em suas viagens pelo mundo, quer pelo 
estudo da natureza.
Em anexo, trechos de um livro de 1486, bastante expressivo como concepção do humanismo 
renascentista.
TEXTO ANEXO - Pico Delia Mirandola
DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM
"Já o sumo pai, Deus arquiteto, tinha construído, segundo leis de arcana sabedoria, este lugar 
do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona super-
celeste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão 
de animais de toda a espécie as partes vis e fermentares do mundo inferior. Mas, consumada a obra, 
o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande, 
que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e 
Timeu atestam, pensou por último em criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum 
sobreo qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum para oferecer em herança ao 
novo filho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador 
do universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos 
ínfimos graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na 
sua última obra, não era próprio da sua paciência permanecer incerta numa obra necessária, por 
falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor que a quem estava destinado a louvar nos 
outros a liberdade divina fosse constrangido a lamentá-la em si mesmo.
Estabeleceu, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio 
podia oferecer, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o 
homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: 
'O Adão,,, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa 
alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que 
tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos 
outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não será constrangido por 
nenhuma limitação, determina-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. 
Coloquei-te no centro do mundo para que daí possas olhar melhor tudo que há no mundo. Não te 
fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice, te 
plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até 
aos seres que são as bestas, poderá regenerar-te até as realidades superiores que são divinas, por 
decisão do teu ânimo'
"Quem não admirará este nosso camaleão?" (p. 51-53) 
"Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que compreendamos, a partir do momento 
em que nascemos, na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é preocuparmo-nos 
sobretudo com isto: que não se diga de nós que estando em tal honra, não nos demos conta de nos 
termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga." (p. 55)
*
Assim, a fé em Deus não foi abalada, mas agora ele é entendido como um criador que paira 
por sobre sua obra, que passa ater vida própria, liberdade. Deus está "antes" do mundo como criador 
e "depois" dele como juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e o deixado funcionar por suas 
próprias leis. Daí surgirá a possibilidade do conhecimento das leis naturais; se Deus interviesse a 
cada momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento e previsão sobre os 
fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior dado ao homem, fará com que ele tenha que passar a 
tentar descobrir os caminhos do bem, definir o que é certo e errado. Este é o campo da moral, que 
será muito estudado nos séculos seguintes.
A colocação do homem no centro do mundo nos traz ainda a idéia de que todas as coisas 
existem para sua contemplação e uso. Torna-se natural para o homem matar animais ou devastar a 
natureza na medida de seu interesse. A relação do homem com relação ao mundo se tornará cada 
vez mais a de exclusão. O homem julga-se quase como Deus, relativamente acima do mundo, e as 
coisas (e mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos.
Figueiredo observa a peculiaridade dessa posição do homem. Ele é o centro e é livre para 
tornar-se o que quiser, mas ele não é propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é 
justamente esse vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já não há estabilidade 
possível, o homem deve continuamente tornar-se, constituir-se, mover-se:
"Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde 
então no bom uso desta liberdade. E ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem ânimos 
nem garantias. É, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro, da dúvida e da 
suspeita." (p. 24)
Questões para discussão
1. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente e a crença na liberdade do homem?
2. Como a valorização do homem contribuiu para p aumento do conhecimento sobre a natureza?
3. Entre o mundo medieval e o mundo renascentista, qual parece gerar mais angústia no homem? 
Por quê?
4
O ENCONTRO COM A MULTIPLICIDADE
Trabalhamos, nesta parte, o encontro com a diversidade do 
mundo. O confronto com a diferença fez com que o homem se 
perguntasse sobre si.
Derivamos do tema anterior outro que o acompanha. Ainda segundo Figueiredo, a 
multiplicidade é uma característica do Renascimento. A abertura do mundo trouxe o conhecimento 
de civilizações novas, com seus costumes, línguas, hábitos alimentares, etc. Isto, é claro, 
acompanha os novos valores segundo os quais o homem (cada um) deve buscar seu caminho. 
Citando novamente Figueiredo:
"Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. O que se pode esperar 
legitimamente de um mundo infinitamente diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a 
liberdade de imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir do modelo 
'científico' dos séculos posteriores; elas não são índices de ingenuidade e ausência de espírito 
crítico. São formas maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a esse 
momento particular de abertura do mundo."10 (p. 34)
Introduzimos com isso, uma outra imagem significativa do período, a feira de rua. Ainda que 
a feira já fosse uma instituição medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da 
Europa à diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar uma feira renascentista com 
as novidades trazidas das mais diversas partes do mundo recém-descobertas. Alimentos básicos da 
cozinha, como a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas; pessoas e animais 
de diversas partes são trazidos à Europa no mesmo espírito de exotismo. A própria idéia de 
comércio, como intercâmbio de bens, circulação de mercadorias ou necessidade da criação de 
valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira de rua contém um elemento de festa 
popular, desordem e gritaria diante de uma profusão de mercadorias. Difícil nisto -e isto é 
significativo do período- devia ser a atribuição de valor a cada coisa: quanto vale um cocar 
indígena, que importância ele tinha em seu Contexto original? Quanto vale uma pequena estátua 
que representa a divindade de uma certa cultura? Como crer na fidedignidade do produto oferecido?
De modo idêntico, podemos imaginar o espanto do homem ocidental ao defrontar-se com as 
religiões e costumes distintos pelo mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante 
desse confronto. Uma é mais convencional e reassegura as certezas sobre si: consideraria a 
diferença um erro. Se o outro pensa de forma diferente da minha, ele está errado; cabe, por isso, 
catequizá-lo, conduzi-lo à verdade. Caso ele se recuse, justifica-se a utilização de meios, digamos, 
mais convincentes, dado que se trata de seu próprio bem. A chamada "conquista da América" 
mostrou muito bem como se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extermínio 
massivo de culturas.
A outra atitude parece ser mais auto-crítica e parece ter tido um lugar considerável no 
Renascimento. Diante do confronto com a verdade do outro, acaba-se por se colocar em questão a 
própria verdade, não para substituí-la, mas para tomá-la não mais como única, mas com uma dentre 
as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas, ou ambas inválidas.
Há um brilhante estudo de Todorov sobre este tema, em A conquista da América. Nele é 
analisada a questão do confrontocom o outro através do que considera ter sido, mais do que o 
maior genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade. 
A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos tinham uma absoluta 
incapacidade de entrar em contato com o outro enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo 
auto-referente: alguns astecas tomavam Cortez como o deus e imperador Quetzalcoatl, cujo retorno 
estava predito; os nativos de nações dominadas violentamente pelos astecas viam tão somente a 
troca de um algoz mais violento por um outro erroneamente tomado como menos violento. Quanto 
aos espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a ser escravizado ou morto 
gratuitamente, ou pensavam ter encontrado na América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -como 
Colombo- na crença de que haviam de alcançado as índias, denominando os nativos de "índios". De 
toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista, subjugaram os nativos de muitas etnias (e 
aniquilaram completamente outras), que possuíam uma população quantitativamente muito superior 
a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma entregou-se aos espanhóis e 
parece ter entregue sua nação sem resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta 
este fato:
"O encontro de Montezuma com Cortez, dos índios com os espanhóis, é, antes de mais nada, 
um encontro humano; e não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação humana 
levam a melhor Mas essa vitória, de que somos todos originários, europeus e americanos dá ao 
mesmo tempo um grande golpe em nossa capacidade de nos sentirmos em harmonia com o mundo, 
de pertencer a uma ordem pré-estabelecida; tem por efeito recalcar profundamente a comunicação 
do homem com o mundo, produzir a ilusão de que toda comunicação é comunicação inter-humana; 
o silêncio dos deuses pesa no campo dos europeus tanto quanto no dos índios Ganhando de um 
lado, o europeu perdia de outro; impondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade, 
arrasava em si mesmo a capacidade de integração no mundo. Durante os séculos seguintes sonhará 
com o bom selvagem; mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, e o sonho estava condenado 
à esterilidade. A vitória já trazia em si o germe de sua derrota; mas Cortez não podia saber disso." 
(p. 93-94).
A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habilidade em entender o modo de 
pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov insinua que este teria sido o mais importante fator 
da dominação do europeu sobre o mundo: ele seria capaz de dissimular e mentir. Em nossos termos, 
ele é capaz de criar um distanciamento entre sua ação e sua intenção, de acordo com seus interesses. 
Todorov chega a comparar a capacidade comunicativa de Cortez com as prescrições de Maquiavel 
em O príncipe, escrito na mesma época. Nesta habilidade comunicativa, neste auto distanciamento e 
neste uso puramente funcional da linguagem, estaria fundada a Modernidade. Temos, como em 
relação a Rabelais, uma posição intermediária: o europeu teria uma quase total incapacidade de 
entrar em contato com a alteridade, buscando dominar e assimilar o outro; por outro lado, ele parece 
ter sido mais capaz que outros povos para sair de seu próprio ponto de vista e procurar compreender 
o do outro, ainda que para dominá-lo. Todorov também indica que os europeus estariam 
acostumados a operar um descentramento, desde que seu centro religioso, Jerusalém, era, de fato, 
fora de seu continente.
Na conclusão de sua obra, Todorov apresenta-nos esta formulação paradigmática sobre a 
questão do outro:
"Pois o outro deve ser descoberto. Coisa digna de espanto, já que o homem nunca está só, e 
não seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que acaba de 
nascer, seu mundo é o mundo, e o crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da 
sociabilidade; pode-se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está contida entre dois 
extremos, aquele onde o eu invade o mundo e aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na 
forma de cadáver ou de cinzas. E, como a descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como 
objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente 
dele, com infinitas nuanças intermediárias, pode-se muito bem passar a vida toda sem nunca chegar 
à descoberta plena do outro (supondo-se que ela possa ser plena). Cada um de nós deve recomeçá-
la, por sua vez; as experiências anteriores não nos dispensam disso. Mas podem ensinar quais são os 
efeitos do desconhecimento, (p. 243).
Se voltamos agora à imagem da feira e do comércio, veremos que aqui impera o convívio 
com uma inédita diversidade de coisas. Essa festa, no entanto, traz o problemas, referido antes, de 
atribuição de um valor justo a cada coisa. As coisas estão fora de seus contextos, onde talvez 
possuíssem um valor justo, mas nesse encontro fortuito da feira já não se pode pensar em seu valor 
original.
Ainda nesse sentido, pense-se na reação das pessoas diante do relato dos viajantes sobre as 
coisas incríveis que viram. Uma vez mais, a credulidade das pessoas seria abalada. Como distinguir 
relatos confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um tamanduá parecerá tão 
absurda ou possível quanto a de um dragão do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o 
Eldorado) tocarão nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e selvagens 
(onde, em se plantando, tudo dá...).
PINTURA - Bosch e Arcimboldo
Referimo-nos, na parte anterior, a artistas como da Vinci e Michelangelo. Nesta, o pintor que nos 
ocorre é Bosch. Ele nasceu em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas, 
enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, Bosch parece sofrer mais os efeitos da 
fragmentação. Seus biógrafos informam-nos que Bosch nasceu justamente diante de uma feira, mas 
ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores era medieval e que, ao abrir suas 
janelas, lhe parecia estar assistindo o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba 
expressando melhor que seus contemporâneos a fragmentação do século. Suas pinturas mostram 
corpos dilacerados, em combinações alucinadas. Com frequência, ele é tomado como um pré-
surrealista, mas ele provavelmente acreditava ser um hiper-realista, mostrando a degradação dos 
tempos, o fim do mundo da ordem.
Há outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez por ter nascido já no século XVI, 
quase 80 anos depois de Bosch-sem o mesmo tom apocalíptico. Ele é Arcimboldo, com suas 
composições de retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série mais conhecida é a das quatro 
estações, onde constrói expressões humanas combinando elementos típicos de cada época. O efeito 
é grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita para um tipo de música a 
que nos referiremos na próxima parte, chamado "Las Ensaiadas".
Enfim, justamente da crise no final da Idade Média, resulta essa falta de critérios absolutos, 
que gera uma crescente insegurança. Numa citação de Montaigne, um dos mais importantes 
pensadores do século XVI, encontramos uma articulação do que temos dito:
"Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e 
diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme."11
MÚSICA - A POLIFONIA
A polifonia é um tipo de música típica do Renascimento. Assim como o canto gregoriano 
expressava bem o espírito medieval, a polifonia encarna seu tempo. O termo significa "muitas 
vozes" e é justamente como se o coro em uníssono do gregoriano se tivesse estilhaçado: cada voz 
canta uma melodia diferente, por vezes também uma letra diferente. Podem ser quatro ou muitas 
mais vozes, gerando um efeito ruidoso, quase já nãomusical. No entanto, elas convivem. Através 
do século XVI, vai aumentando a capacidade dos compositores de harmonizá-las.
Há uma peça de especial interesse dentro do que temos trabalhado. Ela se chama Voulez 
ouyr les cris de Paris? ("Querem ouvir os gritos de Paris?"), de Clément Janequin12. Nela, cinco 
cantores perguntam-nos, por um minuto, se queremos ouvir os gritos de Paris. Suas vozes são um 
pouco defasadas entre si, mas tudo é compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio è 
então começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa feira, com vários 
vendedores chamando a atenção para o seu produto. Eventualmente, as vozes unem-se por instantes 
em torno de um tema para, em seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge e, 
novamente, desagrega-se, como numa rapsódia. Tudo é muito engraçado e carnavalesco (é 
inevitável pensarmos na situação da gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados 
na rigidez de conservatórios grasnem, gritem e, é claro, desafinem, com a leitura rigorosa da 
partitura).
O centro da produção polifônica é a Espanha que, por ter sofrido a invasão muçulmana, traz 
em sua cultura muitos elementos assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando 
a perda da felicidade e da ordem pelas viagens e guerras13.
Em anexo, está o começo de um dos livros mais debochados do século XVI. Nele podemos 
reconhecer, desde a referência constante no Renascimento à cultura clássica grega, até o tom 
irreverente e visceral do mundo menos idealizado e mais próximo da experiência imediata dos 
prazeres do corpo. Trata-se de um mundo de exageros, deboche e excessos, habitado por gigantes.
TEXTO ANEXO - François Rabelais
GARGÂNTUA E PANTAGRUEL
"AO LEITOR
Antes mesmo de ler, leitor amigo,
Despojai-vos de toda má vontade.
Não escandalizeis, peço, comigo:
Aqui não há nem mal nem falsidade.
Se o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito não tive, no
entretanto, 
A não ser rir, e fazer rir portanto, 
Mesmo das aflições que nos consomem. 
Muito mais vale o riso do que o pranto. 
Ride, amigo, que rir é próprio do homem." (p. 31).
"PRÓLOGO DO AUTOR -
Bebedores ilustres e preciosíssimos bexiguentos (pois a Vós, não a outros se dedica o meu 
engenho): Alcebíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvando o seu preceptor 
Sócrates (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse ser ele semelhante aos 
"silenos". Silenos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que hoje vemos nas vendas dos 
boticários, tendo pintadas umas figuras alegres e frívolas, como harpias, sátiros, gansos ajaezados, 
lebres chifradas, patos com cangalhas, bodes voadores, veados atrelados e outras figuras 
semelhantes, nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como fazia Sileno, mestre do 
excelente Baco. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas valiosas como o bálsamo, a âmbar-
cinzento, o amorno, o almíscar, jóias e outras preciosidades. Tal se dizia ser Sócrates, porque, quem 
o visse por fora, e estimando apenas a aparência exterior, não lhe daria mínimo valor tanto ele era 
feio de corpo e ridículo em sua aparência, com nariz pontudo, olhos de boi, cara de bobo, simples 
em* seus modos, rústico em suas vestes, parco de riquezas, infeliz com as mulheres, inapto para 
todos os ofícios da república, sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, sempre 
brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aquela caixa, porém, lá dentro 
encontraria um bálsamo celeste e inapreciável um entendimento mais que humano, virtudes 
maravilhosas, coragem invencível sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, 
incrível desprendimento com relação a tudo que os humanos tanto prezam, tudo aquilo que tanto 
cobiçam e em prol do quê correm, trabalham, navegam e batalham.
Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e divertidas crônicas? Eis 
que, ditando-as, não pensei senão em vós, que porventura bebeis como eu bebo. Porque, na 
composição deste livro senhoril, não perdi, e jamais empreguei um outro tempo, do que aquele que 
gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. São estas as horas mais 
adequadas para escrever sobre essas altas matérias e ciências profundas, como bem fez saber 
Homero, paradigma de todos os filólogos, e Ênio, pai dos poetas latinos, assim como testemunha 
Horácio, embora um grosseirão tenha dito que os seus "Odres" cheiravam mais a vinho do que a 
azeite.
Coisa idêntica disse um bufão dos meus livros; mas merda para ele! O odor de vinho, ó, 
como é mais saboroso, mais agradável, mais atraente que o do azeite!
E sinto-me muito mais lisonjeado, quando se diz que gasto mais vinho do que azeite, do que 
ficou Demóstenes quando dele disseram que gastava mais azeite do que vinho. Para mim, só me 
sinto honrado e jubiloso por ter fama de ser um bom copo e um bom companheiro: graças a isso sou 
bem recebido em todos os bons grupos de pantagruelistas. (...)
E agora diverti-vos, meus queridos, e lede alegremente, para satisfação do corpo e benefício 
dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e que a úlcera vos corroa: tratai de beber por mim, que eu 
começarei, sem mais demora." (p. 33-36)
*
Vemos, com Rabelais, a valorização do riso e de toda forma de prazer corporal, em 
confronto com a tendência nascente (e que dominará o século XVII) de só respeitar a seriedade, a 
contenção e a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como Umberto Eco 
deixa claro, no eixo de seu romance "O Nome da Rosa", o risco que a visão ortodoxa considerava 
haver no riso, também no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso - o prazer -, 
observamos o esforço em obter o auto-controle. Ao mesmo tempo, vemos a valorização 
renascentista da cultura greco-romana.
Questões para discussão
1. Qual é a importância da feira de rua no universo do Renascimento? 
2. Que tipo de reação foi gerada pelo confronto com outras culturas? 
3. Por quê no Renascimento o homem perdeu suas certezas?
5
OS PROCEDIMENTOS DE CONTENÇÃO DO EU
Acompanhamos, nesta parte, algumas das medidas tomadas para o 
restabelecimento de referências para a colocação do homem no mundo. Elas 
estarão voltadas ao próprio eu, na figura do auto-controle.
A nova valorização do ser humano e a imposição de que ele construa sua existência e 
descubra valores segundo os quais viver, aliada a toda a dispersão e fragmentação do mundo, que 
apontamos acima, levarão à tentativa de criação de mecanismos para o domínio e formação do eu. É 
na formação destes procedimentos -"modos de ser"- que poderemos começar a reconhecer os rumos 
que levarão à Psicologia. Citando uma vez mais Figueiredo:
"(...) tão importantes ou até mais importantes do que a abertura de espaços de liberdade individual, 
com se vê acontecendo ao longo do processo de desintegração das 'civilizações fechadas', são as 
tentativas de circunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências subjetivas no sentido 
moderno do termo e que vieram a se converter em objeto de um saber e de uma intervenção 
psicológicos devem a sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às tentativas 
de ordenação e costura, ou seja, a todas as praticas reformistas que implicavam uma subjetividade 
individualizada e uma tensão sustentada entre áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou dimen-
sões de submissão. (...) Como se vê, o 'indivíduo', ao contrário do que o termo sugere, nasce da 
dispersão e traz uma cisão interior inscrita em sua natureza.
Impõe-se ao homem, a partir de agora, escolher o seu caminho. Essa escolha implica em 
uma construção da identidade, e i odos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço 
brutal, quase sobre-humano;o homem deve dominar a dispersão que o mundo é. O carnaval de 
Rabelais será contido, o corpo e suas funções serão calados em favor da coesão e da ordem do 
sujeito. Durante a Idade Média, era relativamente difícil explicar como era possível ser 
responsabilizado por pecar: se a pessoa não era livre e apenas cumpria os planos de Deus, como 
responsabiliza-la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma: Deus fez o 
homem livre para que ele possa ser julgado; ele pode escolher um bom caminho e ser recompensado 
por isso, mas pode ser desviado dele por tentações e dispersões -e o mundo renascentista as oferece 
em quantidade- e, então, ser responsabilizado e punido por isso. A questão passa a ser: o que eu 
devo ser? Como devo me formar? Em termos mais psicológicos, como construir uma identidade?
Há vários exemplos de modos de constituição de identidade no Renascimento. Talvez o mais 
conhecido seja o de Dom Quixote de La Mancha, personagem de Cervantes, que se identifica com o 
ideal do cavaleiro andante medieval e procura afirmar-se. A evocação deste exemplo já sugere que a 
afirmação de uma identidade coesa pode assemelhar-se à alucinação, na medida em que ela deve 
impor-se sobre o mundo, ele próprio em frangalhos.
Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento vislumbrado no século XVI para a 
constituição de uma identidade coesa, que consiga não se deixar levar pela dispersão. O pensamento 
religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, produzirá, sobretudo através de Santo Inácio de 
Loyola, procedimentos para a afirmação da identidade sobre a dispersão do sujeito, guiando-o de 
volta a Deus.
Santo Inácio converteu-se à religião já adulto. Ele havia sido militar, e uma das 
características mais marcantes que impôs a seu sistema foi a disciplina. Tendo fundado a 
Companhia de Jesus, imprimiu um traço distintivo dos jesuítas até hoje, sua iniciativa prática e 
pregação militante. Santo Inácio parte do mundo renascentista, reconhecendo a liberdade humana, 
mas constata a perdição do homem e buscará mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem. 
Seu procedimento, propriamente humanista, faz escola até hoje: o homem é livre para ser o que é e 
parece estar perdido; ele precisa e pode, portanto, dirigir sua livre vontade ao caminho correto para 
se encontrar. O que ele precisa é de um manual de instruções, uma técnica para dirigir sua ação. Em 
Os Exercícios Espirituais, são propostos uma série de procedimentos, com a duração de 28 dias, 
cujo cumprimento rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais, vale a pena 
reproduzir alguns trechos da obra:
TEXTO ANEXO - Santo Ignácio de Loyola
EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS
"I ° Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a 
consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente, e outras atividades espirituais, de que 
adiante falaremos. Porque; assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, também 
se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de 
si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na 
disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa." (p. 11-2).
"5a Anotação. Muito aproveita ao exercitante entrar neles com grande ânimo e liberalidade para com 
seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade, para que sua divina majestade 
se sirva de sua pessoa e de tudo quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15).
"EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA O HOMEM SE VENCER A SI MESMO E ORDENAR A 
PRÓPRIA VIDA, SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFEIÇÃO DESORDENADA" (p. 
27).
PRINCÍPIO E FUNDAMENTO
O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a 
sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a 
alcançar o fim para que é criado. Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a 
atingir o seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornar-
nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do 
nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais 
saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante 
em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fim para que somos 
criados." (p. 28).
"REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMENTE COMO SE DEVE NA IGREJA 
MILITANTE
Ia regra. Renunciando a todo juízo próprio, devemos estar dispostos e prontos a obedecer em 
tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, à santa Igreja hierárquica, nossa mãe." (p. 
188)
"9a regra. Louvar finalmente todos os preceitos da santa Igreja, e estar disposto para procurar 
razões em sua defesa, e nunca para os criticar."
"13a regra. Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que o que nos parece 
branco é negro, se assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso 
Senhor -o esposo- e a Igreja -sua Esposa- não ha senão um mesmo Espírito, que nos governa e 
dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e mesmo Senhor, autor dos 
dez mandamentos, que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe."
"15a regra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação. Mas se em alguma 
ocasião se falar disso, faça-se de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro. Algumas 
vezes isso acontece, quando concluem: "Seja está determinado que me vou condenar ou salvar, não 
são as minhas ações boas ou más que hão de mudar esta determinação". E com este raciocínio 
tornam-se negligentes e descuidam as obras que conduzem à salvação e ao proveito espiritual das 
suas almas." (p. 192)
"17a regra. Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de se produzir o veneno 
que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé e da graça, mediante o auxílio 15 Santo Inácio 
antecipa de forma espantosa alguns dos mais importantes pensadores do século XVII: Descartes e 
Hobbes. Mais perto de nós, antecipa também as Psicologias humanistas ou de auto-ajuda e ainda 
alguns cultos religiosos e procedimentos de Marketing. neste sentimento de vazio e cria a demanda 
por nos formarmos ■ . Mitinuamente.
Assim, a liberdade humana é reconhecida apenas para sei lhe atribuir a causa da perdição 
humana. Curiosamente, a salvação implica justamente em abrir mão de forma absoluta dessa 
liberdade, transferindo-a à autoridade religiosa com toda a boa-vontade e determinação. A 
submissão do sujeito deve ser absoluta, esse é o preço a pagar pelo repouso numa certeza sem 
conflitos. Exige-se disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra mão da própria experiência 
imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos 28 dias, a iluminação não chegou, isso não se 
deve a uma falha do método, mas certamente à pouca fé e à fraqueza da vontade do exercitante15.
E bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um gênero literário de bastante sucesso no 
final do século XX, chamado "Psicologia de auto-ajuda". A crença na liberdade humana absoluta, 
que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento de 
culpa: se somos o que fazemos de nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por 
nós, nós a merecemos. A premissa do título de um livro como "Só é gordo quem quer", poderia ser 
derivada em "só é pobre quem quer", ou "Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação 
reconhecida para nosso ser é a própria vontade; todas as determinações históricas, sociais, 
genéticas, etc, são simplesmente negadas.
A cada época, a falta de sentido de nossa existência mostra-se preza fácil das"autoridades de 
plantão" a nos oferecer generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que esta 
produção, é a percepção de como a Modernidade parece implicar
MÚSICA - UMA POLIFONIA MAIS COMPORTADA
Uma vez mais, a música nos auxiliará na exemplificação de iiMI conceito. No final do século 
XVI, a polifonia parece I i adativamente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas io 
sendo harmonizadas e não se tem mais a impressão de ruído: elas simplesmente são disciplinadas, 
dispostas de tal forma que ( omponham um todo equilibrado. Estamos a um passo da "fuga" (estilo 
próprio ao século XVII). Mesmo as letras parecem mais t (importadas, evocando a contra-reforma. 
Não será possível retornar .10 universo do canto gregoriano, mas será possível buscar ordem dentro 
da diversidade, como vimos através de Santo Inácio.
Eis uma curiosa letra, composta por Mateo Flecha, El Viejo, mim gênero que tem o evocativo nome 
de Las Ensaiadas:
EL FUEGO - Mateo Flecha, El Viejo
Corred, corred, pecadores! 
No os tardeis a traer luego 
agua al fuego, agua al fuego! 
Fuego, fuego, fuego! 
Este fuego que se enciende
es el maldito peccado, 
que al que no halla ocupado 
siempre para sí lo prende. 
Qualquier que de Dios pretende 
salvacíon, procure luego 
agua al fuego, agua al fuego.
Fuego, fuego, fuego! 
Venid presto, peccadores, 
a matar aqueste fuego; 
Haced penitencia luego 
de todos vuestros errores. 
Reclamen essas campanas 
dentro en vuestros coraçones. 
Dandán, dandán, dandán... 
Poné en Dios Ias aficiones, 
todas Ias gentes humanas. 
Dandán, dandán, dandán... 
Llamad essos aguadores,
 luego, luego, sin tardar! 
Y ayúdennos a matar este fuego. 
No os tardeis en traer luego 
dentro de vuestra conciencia 
mil cargos de penitencia 
de buen' agua, 
y ansí mataréis 
la fragua de vuestros maios deseos, 
y los enemigos feos huyrán.
El fuego" e "La Negrina", extraídas de "Las Ensaiadas, Sony Music, 1991". Ambas são 
ainda polifonias, compostas de vários fragmentos temáticos e mesmo de vários idiomas, mas pode 
se notar, especialmente na segunda, o quanto as vozes já estão harmonizadas, submetidas a uma 
composição rigorosa. Ouça também o início da "Missa Papae Marcelli", de Palestrina, extraída de 
"Baroque. Palestrina e Monteverdi, EMI Classics, 1995".
A expressão 'salada' é especialmente própria para definir a polifonia, neste caso. Mesmo já 
se tratando de uma música mais contida, não faltam misturas de temas musicais, idiomas 
-aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos de canções unidos ao gosto do compositor. Já 
mais ao final do século, encontramos uma música propriamente equilibrada e muito bonita, um dos 
melhores frutos da religião, a música sacra.
Tomemos agora outro exemplo bem mais cruel e naturalista de procedimento de afirmação 
do sujeito: O Príncipe, obra de Maquiavel do começo do século XVI. Trata-se de uma série de 
prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto poderia se traduzir assim: que tipo 
de sujeito um príncipe deve ser? Como deverá ser seu "eu"?.
Seu princípio é o de que o mundo (figurado pela figura do povo é volúvel -voltando-se para 
aquilo que representar seu interesse mais imediato-, sem memória, egoísta e, enfim, mau. A grande 
preocupação de Maquiavel é a fragmentação da Itália e a sua invasão por bárbaros. É necessária a 
imposição de um sujeito forte. O (•overnante não tem outra opção que se afirmar à força, criar 
alianças mais pelo temor do que pelo amor, como única forma de estabelecer uma unidade à 
dispersão. O valor primeiro de tudo será a obtenção e manutenção do poder centralizado. Para tanto, 
não há que se ter vergonha por fazer qualquer coisa neste sentido, mesmo matar a quem quer que 
represente uma ameaça ao"poder. O princípio ético é II da afirmação do poder.
Maquiavel foi tomado como imoral e desumano (de seu nome deriva o adjetivo 
'maquiavélico', que atualmente significa ardiloso, maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de 
Machiavel nesse mtexto de crise da fé em um poder transcendente e entendemos o medo da 
dissolução, talvez torne-se mais compreensível a radicalidade e a urgência de seus preceitos. 
Abaixo, seguem-se trechos de O príncipe.
TEXTO ANEXO - Nicoló Machiavelli
O PRÍNCIPE
"(...) é que os homens, com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com 
que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela própria 
experiência, percebem mais tarde ter piorado a situação." (p. 11)
"E quem conquista, querendo conservá-los [o poder e o domínio] deve adotar duas medidas: 
a primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar 
nem as suas leis nem os impostos; por tal forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o território 
conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado antigo." (P-13)
"E que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas, senão a 
destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere 
ser destruído por ela, porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da 
liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por 
benefícios recebidos. Por quanto se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os 
habitantes, eles não esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada incidente, a eles 
recorrem como fez Pisa cem anos após estar submetida aos florentinos." (p. 30).
"Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer 
outra coisa por fazer senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que 
compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que nasceram 
príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao 
contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o 
seu Estado." (p. 85)
"Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder de um príncipe para com os súditos 
e os amigos e, porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado 
presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à 
orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para 
quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e 
não à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou 
conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como 
se deveria viver, que aquele que abandone o que faz por aquilo que se deveria fazer aprenderá antes 
o caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as 
suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons. Donde é 
necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da 
bondade, segundo a necessidade." (p. 89-90)
"Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde que por ela mantenha seus 
súditos unidos e leais (...)." (P-95) "Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o 
contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, 
em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos 
homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, 
ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os 
bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando estase avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, 
encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por 
dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e, 
no momento oportuno; não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em 
ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por 
um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a 
eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona." (p. 96)
"Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça depois de tanto 
tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas 
províncias que tem sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com que 
obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe 
negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos 
repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele 
ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas (...)" (p. 146)
Sem dúvida, por mais que possa parecer estranho, há uma -crie de pontos em comum entre 
este procedimento e o prescrito por Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro 
o retorno a Deus, ambos crêem na necessidade da afirmação do sujeito .ilravés de procedimentos 
radicais e estreitos. Mas com Maquiavel, i stamos diante de um mundo sem ideal, no qual a 
imposição do sujeito se faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do homem: não há 
apenas o elogio do homem como no Renascimento. É disso que trataremos na próxima parte.
Acrescento ainda uma diferença essencial entre os dois: Santo Inácio pensa que seu 
procedimento é acessível a todos, enquanto que Maquiavel, ao menos nessa obra, refere-se a 
afirmação de um único sujeito, em detrimento dos demais. Ele trata da constituição do Estado, 
como Hobbes, no século seguinte, a quem antecipa.
Questões para discussão
1. Como se relaciona a crença na liberdade do homem e a tentativa de submetê-
lo a uma ordem disciplinar rígida no século XVI?
2. Quais são as semelhanças entre Santo Inácio de Loyola e Maquiavel?
3. Quais poderiam ser as relações entre os 'Exercícios Espirituais' e as atuais
terapias de auto-ajuda?
6
A POSIÇÃO DE CRÍTICA À APARÊNCIA
Nesta parte, procuramos mostrar que a tendência à glorificação do eu não é 
absoluta. Alguns pensadores já começam a denunciar como ilusórias suas 
pretensões cada vez maiores. A Modernidade contém tanto procedimentos para a 
construção do eu quanto para a sua desconstrução.
Ainda no século XVI -que possui uma riqueza aparentemente infinita-, podemos identificar 
ainda outra postura quanto ao valor do ser humano. Há uma série de autores que criticam a 
pretensão do homem em ser tão ideal e que apontam, como já o íizera Maquiavel, para uma 
eventual maldade e vaidade humanas. Esta posição possui relações complexas com o humanismo. 
Em um certo sentido, afirma-o, em outro, arrasa-o.
À primeira vista, pode parecer que esta vertente estaria excluída da Modernidade, mas 
veremos que esta última precisa de lais procedimentos. Ao menos alguns pesquisadores, como 
Harold Bloom, reconhecem justamente em alguns destes autores -sobretudo Shakespeare- os 
fundamentos mais expressivos da Modernidade.
Dentre os temas que temos trabalhado, podemos retomar dois. Em primeiro lugar, o que 
acabamos de tratar acima, a formação do "eu". Montaigne, a quem já citamos acima, diante da 
instabilidade e insegurança de tudo, acaba por fazer renascer um outro dos movimentos do 
pensamento grego: o ceticismo. Não podendo confiar ou acreditar em nada, Montaigne se retira da 
vida social, isola-se e passa a escrever durante anos, e até o fim de sua vida, sua famosa obra 
Ensaios. Não se trata apenas de um livro, mas da própria Formação do sujeito Montaigne. Ele 
descreve a si e às suas experiências, copia e cita textos de seus autores favoritos e afirma que 
escreveu o livro apenas para si e para os amigos. A escrita será um momento de interiorização, de 
digestão de experiências.
O ceticismo toma ao menos dois aspectos no período. Um deles é chamado de "fideísmo". 
Ele implica em numa crítica ao valor crescente atribuído ao homem, mostrando sua insignificância; 
mas esta diminuição do homem teria o sentido de fazê-lo voltar novamente a Deus. Assim, de um 
lado, o homem é insignificante diante de Deus e, de outro, segundo alguns dos fideístas, a razão 
humana é inferior à fé. Mas também, há propriamente um ceticismo que não se contenta em mudar 
o centro de lugar (do Homem de volta para Deus) -qualquer possibilidade de crença em alguma 
referência absoluta parecerá insustentável. Embora Montaigne se declare católico, sua obra leva-nos 
a crer que ele se filia ao segundo grupo. O eu não é para ele uma referência a priori, como o será 
para Descartes, mas sim algo inconstante e sempre inacabado. Ele se forma continuamente num 
processo reflexivo.
Trata-se da introspecção, daquela conversa proveitosa consigo mesmo, que Bloom 
reconhece como o cânone ocidental (aquilo que caracterizaria a Modernidade ocidental). É como se, 
a partir de então, Montaigne já não fizesse mais parte do mundo; ele se torna -ou pensa como se 
fosse- um ponto de vista alheio, do qual é possível realizar a crítica do mundo, nele não se incluindo 
propriamente. Em um certo sentido, este é um dos pontos mais altos de autonomia a que poderia 
aspirar o "eu" 11. Montaigne vive a diversidade e busca afirmar-se enquanto ser particular, como se 
pode ver na citação abaixo:
"Não cometo esse erro tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o que 
está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir 
como ajo e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que ocorre em 
geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as semelhanças. Não imponho a 
outrem nem meu modo de vida nem meus princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer 
comparações. (...) pela imaginação ponho-me muito bem em sua pele e os estimo e honro tanto 
mais quanto divergem de mim. Aspiro particularmente a que julguem cada qual como é, sem 
estabelecer paralelos com modelos tirados do comum. Minha fraqueza não altera absolutamente o 
apreço em que deva ter quem possui força e vigor. "Há pessoas que só aconselhariam aquilo que 
imaginam poder imitar". Embora me arraste ao nível do solo, não deixo de perceber nas nuvens, 
por mais alto que se elevem, certas almas que se distinguem pelo heroísmo. Já é muito para mim 
ter o julgamento justo, ainda que não o acompanhem minhas ações, e manter ao menos assim 
incorruptível essa qualidade. Já é muito ter boa vontade, mesmo quando as pernas fraquejam."
Desse ponto, teria surgido propriamente o que chamamos hoje de mundo interno ou 
privacidade; o universo de nossos pensamentos, fantasias, projetos, 'encanações' e auto-tormentos.
O segundo ponto que retomamos é aquele de que no Renascimento há um elogio ao ser 
humano. Neste segundo aspecto, estamos agora longe do humanismo; elogiam-se outras coisas. 
Esta vertente crítica a qual Montaigne pertence, quase sempre é marcada por procedimentos que nos 
são muito caros, o que faz com que a leitura de alguns deles nos pareça altamente atual. As obras 
são marcadas quase sempre pela melancolia e pelo humor irônico, altamente crítico.
Um dos mais deliciosos textos do período é O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam.Nele, o autor, que é ligado à Igreja, tinha a intenção de fazer um apelo por reformas na 
burocratização e hipocrisia da Igreja. Mas o que ele atinge é muito mais. O texto acaba por arrasar 
qualquer idealismo sobre a bondade humana e seu amor pelos demais. Se não conhecêssemos o 
autor, nós o imaginaríamos como o primeiro ateu confesso. Em anexo, i rechos de Erasmo. 
TEXTO ANEXO - Erasmo de Rotterdam
ELOGIO DA LOUCURA
"Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu 
nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura 
que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. A prova incontestável do que 
afirmo está em que não sei que súbita e desusada alegria brilhou no rosto de todos ao aparecer eu 
diante deste numerosíssimo auditório." (p. 7).
"Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes, como costumam fazer 
em geral os filósofos, refletisse bem nos incômodos que acompanham essa condição? Qual é a 
mulher que se submeteria ao dever conjugai, se todas conhecessem ou tivessem em mente as 
perigosas dores do parto e as penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao matrimônio e o 
matrimônio à Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me deveis. Alem disso, 
uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do insolúvel laço, e que anseia por tornar a 
passar por eles, nãó o fará, talvez em virtude da assistência da ninfa Esquecimento, minha cara 
companheira?" (p. 16).
"Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao 
ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da 
loucura? Beijar, num transporte, uma verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e 
pretender um pai que o filho zarolho tenha dois olhos de Vênus, não será isso uma verdadeira 
loucura? Bradem, pois, quanto quiserem, ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é 
a única que cria e conserva a amizade." (p. 29).
"O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do matrimônio. 
Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser dissolvido pela morte. 
Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se 
a união do homem com a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulação, pelas 
carícias, pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e 
auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vida 
e os segredos de sua futura cara-metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da 
simplicidade! Ainda menos numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por 
interesse, por complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas. 
Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo 
querido da mulher, e a mulher, do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família. 
Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo 
atencioso, fica a consolar a cara metade, e enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da 
mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho, 
pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil? Afinal de 
contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida, sem a minha 
intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa 
a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro 
o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc, se não se enganassem reciprocamente, não se 
adulassem, não fossem prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura." 
(p. 30-31).
"Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma 
alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas) todas 
as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente 
comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o 
nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a 
juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramo sejam a 
pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, 
as fraudes, etc? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão 
grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível 
vale de misérias." (p. 47).
"As vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se ambos mutuamente. Também 
não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele. Mas na minha opinião o 
homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que 
não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia dizer se haverá, em 
todo o gênero humano, um indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade. 
Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A 
razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas quando um 
marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça 
crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente o seu 
destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia -ninguém acha que se trate de 
loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais natural deste mundo." (p.63).
Através do humor, Erasmo opera uma implacável desconstrução de todo um sistema de 
valores tomados como óbvios. Trata-se do desvelamento e desnaturalização de costumes tomados 
como naturais. Este tipo de discurso produz uma espécie de ruído de fundo constante à tentativa de 
afirmação de qualquer idéia de verdade.
Já que falamos de Erasmo, além de O elogio da Loucura -uma das obras mais arrasadoras de 
valores e desveladora de hipocrisias sociais e que garante ao autor um lugar de destaque na vertente 
crítica-, é oportuno dizer que ele também pertence a outra tradição literária: a dos autores de 
manuais de boas maneiras. Estes manuais dizem respeito justamente à questão do controle do corpo. 
Em O processo civilizador, de Elias, e na História da vida privada, de Aries & Duby, 
encontramos análises de A civilidade pueril e de outras obras de Erasmo que, a um só tempo, nos 
mostram como o corpo passa a ser progressivamente alvo de auto-controle e observação, e revelam 
o quanto este processo foi longe e nos compreende. É impossível não rirmos diante das 
recomendações sobre como lidar com nossa glutonice e eventual necessidade de arrotar, urinar ou 
soltar gazes (em casos urgentes, estes últimos devem ser encobertos com uma tosse -boa dica...). 
Estamos de volta ao grotesco e nos parece inimaginável hoje que os próprios termos sejam 
incluídos num manual. Já no século XVIII, estas expressões desapareceram. Nosso riso à leitura 
destes velhos manuais nos mostram o quanto o princípio que os rege foi eficaz e age em nós; as 
normas que nos indicam que as funções corporais devem ser ocultas são absolutamente 
automatizadas e, por que não dizer, inconscientes.
Creio que será interessante agora evocar como Elias trabalha o conceito de 'civilização'. A 
civilização expressa-se em um conjunto extenso de formas de expressão com

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