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PEDRO LUIS RIBEIRO DE SANTI A CONSTRUÇÃO DO EU NA MODERNIDADE INTRODUÇÃO Este livro nasceu de uma pesquisa iniciada em agosto de 1995 que tinha a finalidade de produzir material didático para o curso "Teorias e Sistemas Psicológicos", que ministro no primeiro ano do curso de Psicologia desde 1992. Boa parte deste curso é dedicado ao estudo das condições que levaram ao surgimento da Psicologia, no final do século XIX. Desde então, tenho tentado ampliar este trabalho, organizando textos, combinando trechos de obras de comentadores e adicionando novos textos originais de cada época. Combinando a preocupação com a abertura de vias de comunicação com os alunos e um interesse pessoal, com frequência uso outros recursos que não apenas textos teóricos, como literatura geral, filmes, referências à 'história dos costumes' e, muito especialmente, a audição de música de época. Essa reunião entre uma linguagem teórica e mais abstrata com outras mais imediatas e prazerosas não apenas mostrou-se produtivo, atendendo um pouco uma das necessidades mais comuns do estudante universitário de hoje, o aumento de sua cultura geral. Ela também deixa evidente para o aluno a relação entre os problemas filosóficos das várias épocas, que se refletem em toda a expressão humana -dos hábitos à arquitetura, da música à visão de si mesmo. Tenho procurado digerir esta experiência de mais de quatro anos através da produção de um texto didático. Para isso, há que se pagar o preço de uma simplificação inevitável, quando se compilam fontes fragmentadas e, sobretudo, quando se tenta tornar um texto sobre a história do pensamento humano acessível à linguagem de alunos de graduação. A esperança maior deste livro é a de convidar, de um lado, os alunos de Psicologia a pensar nas relações dessa área de pensamento com o restante do conhecimento e em suas condições de surgimento. De outro, convidar o público leitor geral a compreender e refletir um pouco sobre a história dos problemas filosóficos que resultaram no perfil do século XX. Nesse sentido, a Psicologia é apenas uma faceta de um contexto mais geral com o qual todos têm contato. Afastamo- nos de uma posição "substancialista", que levasse a crer que o mundo psíquico seja uma coisa eterna e imutável, a qual a ciência finalmente teria vindo desvelar. Assim, colocamos no livro a questão da construção do mundo psicológico, assim como a Psicologia com uma instância de produção de conhecimento científico. Ao menos, creio que este livro permite introduzir os alunos à ideia de que a compreensão da questão psicológica é muito anterior à sua formulação em uma linguagem científica. Ao público leigo geral, compreender que, antes da visão de si mesmo que se têm hoje na cultura ocidental, já houve inúmeras maneiras diferentes de ver a si mesmo e de compreender a posição do homem no universo. Desde que o homem pensa, ele pensa sobre si mesmo, sobre o que é alma, desejo, liberdade, etc. Mas foi apenas no final do século XIX que surgiram os projetos de se realizar uma ciência da mente, nos moldes que conhecemos hoje. Para uma primeira aproximação com o campo da Psicologia, é essencial que se procure pensar no motivo pelo qual nasceu a demanda por um profissional, dentro dos moldes da ciência, para dar conta das crises de identidade ou do controle dos comportamentos. Como se sabe, a Psicologia é composta de uma grande quantidade de teorias diferentes, que mal conseguem se comunicar entre si. Este estado não parece ser passageiro, mas próprio da 'Psicologia e de outras ciências humanas. Ao compreendermos o sentido do surgimento da Psicologia, talvez também possamos entender o motivo dessa dispersão. Essa história é imensa. Ela remonta à filosofia grega e acompanha toda a reflexão filosófica posterior e, mais recentemente, alcança as teorias psiquiátricas até o início de nosso século. Por isso, tomamos algumas teses sobre o assunto para organizar nosso percurso. Está longe de nossa pretensão realizarmos uma obra totalizadora ou sequer de nos aproximarmos disso. Trata-se simplesmente de perseguir um fio nesta rede, na esperança de que ele convide os leitores a explorar outras vias. Como será possível perceber, cada época tem um número de correntes de pensamento paralelas e um número de formas de expressão desses pontos de vista. A seleção dos autores e temas obedeceu à orientação de alguns comentadores clássicos, de um lado, e a motivos menos nobres, de outro, como o ponto de vista do conhecimento prévio do autor. Muitas discussões essenciais são apenas mencionadas, como a questão da Modernidade, algumas passagens da própria história; muitas questões paralelas às vezes sequer são mencionadas. Peço desculpas ao leitor mais bem informado e reafirmo o caráter meramente didático deste projeto. A tese básica que orienta este percurso é a de Luis Cláudio Figueiredo, em "Psicologia. Uma introdução". Ele propõe a idéia de que houve duas pré-condições para o surgimento de um projeto de Psicologia como ciência. A primeira seria o surgimento de uma noção clara de subjetividade privada (ou seja, uma afirmação da idéia de que as pessoas são indivíduos livres e, enquanto tais, indivisíveis, separados, independentes uns dos outros e donos de seus destinos. A segunda seria a de que essa concepção de sujeito teria entrado em crise, gerando assim um sujeito em crise de identidade e a procura de um profissional que lhe pudesse restituir a estabilidade. De momento, essa tese pode parecer obscura, mas gradativamente ela irá sendo explicitada. De uma forma genérica, podemos dizer que noção de subjetividade privada data do início da Modernidade, ou seja, do Renascimento. Será justamente na passagem da Idade Média para o Renascimento que iniciaremos esse percurso. A afirmação do sujeito chegará a seu ponto máximo no século XVII e, a partir de então, iniciará uma longa crise até o final do século XIX. No final do século XIX, surgirão os primeiros projetos de Psicologia, já com algumas características definitivas da diversidade que marca esta ciência. Wundt cria condições para a criação de uma Psicologia experimental, enquanto Freud cria a Psicanálise. A esta tese, que mostra os modos de afirmação do eu desde o século XVI, acrescento uma observação minha: a de que, desde o início do Renascimento, alguns autores já se dedicam a mostrar as fraquezas e insuficiências do eu. Isto indicaria a possibilidade de que a Modernidade incluísse procedimentos de auto-crítica e dissolução do eu, além dos clássicos procedimentos de auto-afirmação. 2 A PASSAGEM DA IDADE MÉDIA AO RENASCIMENTO Nesta parte, trata-se de expor que nossa concepção atual do que seja o "eu" não era possível na Idade Média. No humanismo moderno. De acordo com a tese de Luis Cláudio Figueiredo, seria neste período que passaria a se afirmar uma concepção de subjetividade privada -aí incluída a idéia de liberdade do homem e de sua posição como centro do mundo. Voltemos alguns passos: o que significa dizer que a noção de 'subjetividade privada' passa a existir? Por que tal concepção não seria possível anteriormente, no mundo medieval? Pode provocar alguma estranheza a idéia de que a noção de privacidade não existisse em um num determinado momento. Nossa intimidade, nossa existência enquanto sujeitos isolados -ou, até mais, solitários- parece-nos clara, certa. "Ter um tempo para si", sem estar trabalhando ou estudando (produzindo, de um modo geral), possui um grande valor em nossas vidas. Certamente, essa é uma das poucas coisas pelas quais lutamos hoje -é preciso garantir nossa privacidade, diante da alta exigência atual para que dediquemos toda a nossa energia e tempo às atividades consideradas "úteis". Há até quemdiga, e não são poucos, que nosso excessivo individualismo é um dos grandes problemas da convivência social atual. Dentre os problemas que derivariam disso, poderíamos enumerar: a imposição dos interesses pessoais sobre os coletivos, a insensibilidade ao que não nos diz respeito imediatamente, a solidão, a falta de um sentido para a vida, o desrespeito generalizado às leis, o crescimento -como reação a tudo isso- de movimentos ideológicos ou religiosos dogmáticos e violentos, caracterizados pela intolerância para com aquilo que é diferente de si ou do grupo, etc. Existem as nações, grupos religiosos, familiares, etc., mas a menor unidade seria a pessoa. O termo 'indivíduo/ remete a isto, somos o "átomo" indiviso do mundo humano- Este sentimento de individualidade se mostra, em outro exemplo caricato, quando estamos profundamente infelizes e nos sentimos incompreendidos, passando por uma dor que provavelmente ninguém jamais passou antes. Se um amigo a quem confidenciamos nossa dor diz nos compreender e já ter passado pela mesma experiência, enchemo-nos de orgulho e reagimos dizendo que ele não entendeu nada, nosso sofrimento é incomparavelmente maior que o dele! Assim, quer pelos valores positivos, quer pelos negativos que lhe atribuamos, parece-nos certo que o sujeito isolado é a unidade básica de valor e referência de Judô. Ainda assim, se dermos uma olhada na história dos costumes ou da filosofia, veremos que nem sempre foi assim. Esta afirmação do "eu" parece ter-se construído gradativamente, através de séculos. O "eu" nem sempre foi soberano. Se nos dirigíssemos à filosofia da Grécia clássica (século V A.C.), certamente já encontraríamos algo que poderíamos chamar de humanismo, como uma valorização do ser humano já não submetido ao poder dos deuses, (como na filosofia de Sócrates ou no teatro de Eurípedes), a criação do direito e da democracia, etc. Mas o humanismo, entendido como a colocação do homem como medida de todas as coisas e centro do mundo, parece ter tomado a forma que tem hoje no Renascimento, surgindo de dentro da Idade Média. Ainda que não entremos em detalhe na discussão do pensamento medieval ou grego, vale a pena destacarmos alguns momentos privilegiados na direção da tese que desenvolvemos. Em uma obra recente, chamada As fontes do Self, Charles Taylor realiza uma análise profunda do nascimento do sentimento característico da Modernidade; o de que possuímos uma interioridade. O ponto de partida da análise de Taylor é Platão. Trata-se de mostrar como, para ele, a razão é a percepção de uma ordem absoluta. Ser racional significa ver a ordem como ela é. Não há como ser; racional e estar enganado sobre a natureza ao mesmo tempo. Podemos já reconhecer aqui o nível de certeza pelo qual aspira a Modernidade, representada sobretudo pela figura de Descartes. No entanto, enquanto para Descartes a ordem está 'dentro' de nós, para Platão ela reside no absolutamente Bom. É em Santo Agostinho que Taylor encontra a grande passagem para a interioridade, Santo Agostinho é assustadoramente moderno, considerando que viveu entre os séculosJV_e3Lde nossa era. Todo o seu pensamento seria permeado pelas noções de 'interno-externo': espírito/matéria, alto/baixo, eterno/temporal, imutável/ mutante, etc. Aqui aparece um movimento inédito: com a desvalorização do corpo e de tudo o que é mundano, com a correspondente valorização da alma como algo interno, a busca por Deus passa a ser feita dentro de nós. Deus não deve ser procurado no que vemos, mas no próprio olhar, Ele seria a própria luz interior. Santo Agostinho estaria, com isto, inaugurando uma experiência radical experiência passa a ser altamente subjetivada e dependente de nós. A tradição moderna teria levado esta concepção ao extremo, passando a referir- se a objetos internos e, ao mesmo tempo, a um 'eu penso' totalmente separado do 'externo'. Mas isto já é adiantar demais nossa discussão. Em uma imagem que reconhecemos como caricatural e bastante insuficiente da concepção de mundo medieval no Ocidente -apenas como pano de fundo para introduzirmos as idéias do Renascimento, poderíamos dizer que ela se caracteriza por considerar o mundo organizado em torno de um centro. Haveria uma ordem absoluta, representada por Deus e Seus legítimos representantes na terra: a Bíblia e a Igreja. Cada coisa existente estaria relacionada necessariamente a esta ordem superior. Em última instância, cada ser formaria parte de uma grande engrenagem que seria a criação divina. Aí se encontraria o sentido de tudo. A possibilidade da crença na liberdade humana é muito restrita, já que tudo faz parte de um plano maior, de um todo perfeito disposto por Deus. A noção de justiça na Idade Média, por exemplo, é a da colocação de cada ser no lugar que lhe é próprio. Tampouco haveria lugar para a privacidade. Na medida em que a onipresença e a onisciência são atributos de Deus, nada poderia ser mantido em segredo e nunca estaríamos sozinhos: pecar em pensamento já é pecar. MÚSICA - Canto Gregoriano A audição e compreensão do canto gregoriano presta-se de forma exemplar à tentativa de apresentar o espírito medieval. Ele é um canto em uníssono, ou seja, trata-se de um coral onde todos cantam rigorosamente a mesma coisa. Sua letra é, invariavelmente, um texto sagrado e já conhecido pelos ouvintes: trata-se da reafirmação do já sabido e da apresentação de um mundo sem novidades. Associando-se ao caráter da letra, não há propriamente uma melodia, mas apenas uma sinuosa linha melódica que não se repete; não há refrão ou passagens bruscas, de forma que o ouvinte não consegue "segurar-se" em nada. Ele não pode se localizar e não deve "prestar atenção" ou estar consciente do que ouve, mas se deixar levar por este mar ou rebanho. Hoje, ouvimos o canto gregoriano de forma muito diferente da que o caracteriza: nós o utilizamos para meditar, ou relaxar. De forma geral, poderíamos dizer que, na música, a melodia liga-se ao que há de mais espiritual -o sopro da voz, o sublime, a uma nota que se sustenta idêntica e linear. O ritmo, em oposição, representa mais proximamente o corpo e seus movimentos, ele chama à dança, ao que é mais instável. Na Grécia, a música era atribuída a Dioniso, deus da embriaguez, do vinho, do teatro, etc. Ela conteria, assim, um elemento diabólico, excitante. Ao ser assimilada pela igreja, o que é atribuído ao Papa Gregório, no século VI D.C., a música é filtrada, retirando-se dela ao máximo seus elementos rítmicos; ela passa a se restringir à pura emissão vocal, sem haver sequer instrumentos de acompanhamento 5. Ainda no contexto medieval, surge um outro tipo de música que, de outra forma, reafirma a certeza e a necessidade de um centro e de uma referência externa. Nela, a voz da melodia é acompanhada por uma segunda, que sustenta uma mesma nota, chamada 'bordão' (segundo Aurélio, "uma nota grave, prolongada e constante", mas "também um pau grosso que serve como animo, amparo"). Trata-se propriamente de manter uma referência, um centro em torno do qual a melodia pode voltear sem jamais se perder6. Já se encontra nesse TEXTO ANEXO - John of Salisbury (Século XQ) No texto que se segue pode-se ver a rigidez de um mundo concebido como hierarquizado por uma ordem superior. Não cabe ao homem questioná-la ou pretender escolher ou mudar o lugar que lhe cabe. O CORPO SOCIAL ("The Body Social") "Uma comunidade, de acordo com Plutarco, é um certo corpo dotado de vida pelo benefício do favor divino, que opera impelido pela mais elevada equidade e que é regulado pelo que pode ser chamado de poder moderador da razão. Aqueles que em nós estabelecem e implantam a prática da religião e nos transmitem a devoção a Deus... preenchem o lugar da alma no corpo da comunidade. E assim,aqueles que presidem a prática da religião devem ser considerados e venerados como a alma do corpo. Pois, quem duvida de que os ministros da santidade de Deus são Seus representantes? Além disso, desde que a alma é como se fosse o príncipe do corpo e legisla sobre todo o restante, então aqueles aos quais nosso autor chama os prefeitos da religião presidem o corpo inteiro... O lugar da cabeça no corpo da comunidade é ocupado pelo príncipe, que se submete apenas a Deus e àqueles que estão a Seu serviço e O representam na terra, da mesma forma que, no corpo humano, a cabeça é animada e governada pela alma. O lugar do coração é preenchido pelo senado, do qual procede o início de boas e más obras. Os deveres de olhos, ouvidos e língua são cumpridos pelos juízes e governadores das províncias. Oficiais e soldados correspondem às mãos. Aqueles que sempre servem ao príncipe são semelhantes aos flancos. Oficiais financeiros e comerciantes podem ser comparados com o estômago e os intestinos... Os camponeses correspondem aos pés, que sempre semeiam a terra, e precisam mais especificamente dos cuidados e das preocupações da cabeça, já que, enquanto caminham sobre a terra trabalhando com seus corpos, eles se deparam frequentemente com pedras de hesitação e, por isto, merecem mais ajuda e proteção que os demais com toda justiça, desde que são eles que erguem, sustentam e movem adiante o peso de todo o corpo... Então, e só então, a saúde da comunidade será sólida e florescente quando os membros mais altos protegem os mais baixos, e os mais baixos respondem fiel e plenamente na mesma medida às justas demandas de seus superiores, de modo que todos e cada um operassem como que membros uns dos outros por uma espécie de reciprocidade, e cada um considerasse que seu próprio interesse era mais bem atendido por aquilo que ele soubesse ser mais vantajoso para os outros". O que pretendemos destacar deste texto é a concepção de uma relação orgânica entre todos os seres, sua interdependência. Em tal universo, não faz sentido pensarmos que uma pessoa teria a liberdade de optar pelos rumos de sua vida. O homem não seria, assim, propriamente sujeito. PINTURA - Giotto Questões para discussão 1. Qual é a diferença entre a meditação solitária de um monge medieval e a experiência de solidão de um homem do século XX? 2. Procure identificar alguma forma atual de entender o mundo que seria impensável na Idade Média. 3. Hoje ainda existe a idéia de "corpo social"? 3 O HUMANISMO NO RENASCIMENTO Nesta parte, introduzimos o tema da valorização do homem como um todo e de cada indivíduo, no Renascimento, em função da perda das referências sólidas medievais. Iniciemos esta parte por uma definição de humanismo: "O termo 'humanismo' derivado de humanitas, que no tempo de Cícero (106-43 a.C.) designava a educação do homem enquanto considerado em sua condição propriamente humana, correspondendo à palavra grega paideia: a educação por meio de disciplinas liberais, relativas a atividades exclusivas do homem e que o distinguiam dos animais. (...) As chamadas 'humanidades' -poética, retórica, história, ética e política- passam, desse modo, a constituir, sob a inspiração dos antigos, a base de uma educação destinada a preparar o homem para o exercício da liberdade." (...) "Outro fundamento do humanismo renascentista foi a convicção de que o mundo natural é o reino do homem. Esse naturalismo conduziu, paralelamente à afirmação do valor espiritual do homem e que o torna livre, à exaltação do valor do corpo e dos seus prazeres." Fica evidente, pela passagem acima, que houve uma mudança na concepção do lugar do homem no mundo. Há agora uma grande valorização do homem e, ao mesmo tempo, a idéia de que ele tem que buscar uma formação, ele deve se constituir enquanto humano. Se o homem não nasce com seu destino predestinado, ele se deve formar, educar. Nasce a necessidade do "cuidado de si". É comum que tenhamos uma noção da passagem da Idade Média para o Renascimento em termos de história; com a diminuição do poder da igreja e advento da reforma, a crise do sistema feudal e o nascimento das cidades e rotas de comércio, a expansão marítima, etc. Mas raramente consideram- se as mudanças de modo de vida das pessoas implicadas nessas transformações políticas e econômicas. Há toda uma linha de investigação histórica, que se dedica especificamente ao estudo da história dos costumes, da vida cotidiana das pessoas e, o que nos interessa mais no momento, da idéia que elas tinham de si mesmas. Tudo leva a crer que a diminuição do poder da igrej a e a abertura operada sobre o mundo fechado dos feudos foi acompanhada por uma crise da concepção fechada de mundo que vigorava. Se os homens acreditavam ter um ponto de referência externo (um centro do mundo) sobre o qual podiam se apoiar, agora já não podiam contar com essa certeza. Numa nova caricatura, poderíamos dizer que, sob um poder absoluto, não há liberdade, o que é terrível, embora seja relativamente fácil 'compreender' o mundo, pois há referências claras: o que é certo e o que é errado está pré-definido, cabendo, no máximo, tomar um partido ou outro. Já num mundo aberto, sem referências absolutas, surge a idéia de liberdade, mas ao mesmo tempo, a de solidão e responsabilidade. Se o homem não pode mais contar com uma resposta dada por uma autoridade absoluta, ele deverá buscar ou construir suas próprias respostas. Este é um dos principais elementos do humanismo. Isso não quer dizer que o homem do Renascimento fosse ateu, mas, de certa forma, Deus parece ter se afastado para o céu, deixando o mundo a cargo dos homens. Na Idade Média, é muito comum a representação plástica do mundo como uma esfera cujo centro é Deus, Cristo ou, o que é menos ortodoxo, a Virgem Maria; já no Renascimento, há inúmeras representações do mundo nas quais Deus paira sobre ele, que tem agora ao centro o próprio homem. É também comum que no Renascimento comecem a surgir as assinaturas dos artistas em suas obras de arte, o que quase não existia no período anterior. Quando pensamos nos pintores mais antigos exemplo, ainda que ele estivesse beirando o Renascimento, tendo vivido entre os séculos XIII e XIV. Não era o ser humano que criava, ele era apenas um instrumento da criação divina; como numa representação do Papa Gregório, na qual o Espírito Santo lhe sopra a música que está a escrever. No contexto renascentista, não há mais apenas uma certa cena bíblica que importa, mas a mão do sujeito que deixa sua marca na obra. Assim, surgem os nomes mais conhecidos do Renascimento, como Leonardo da Vinci ou Michelangelo, que, mais que artistas, são gênios de inúmeros talentos. São homens que se formam e que deixam seu traço pessoal na obra que criam. Sem sofrer restrições por parte da igreja em suas investigações sobre a anatomia humana ou sobre os astros, o homem abre-se para um mundo novo -quer em suas viagens pelo mundo, quer pelo estudo da natureza. Em anexo, trechos de um livro de 1486, bastante expressivo como concepção do humanismo renascentista. TEXTO ANEXO - Pico Delia Mirandola DISCURSO SOBRE A DIGNIDADE DO HOMEM "Já o sumo pai, Deus arquiteto, tinha construído, segundo leis de arcana sabedoria, este lugar do mundo como nós o vemos, augustíssimo templo da divindade. Tinha embelezado a zona super- celeste com inteligências, avivado os globos etéreos com almas eternas, povoado com uma multidão de animais de toda a espécie as partes vis e fermentares do mundo inferior. Mas, consumada a obra, o Artífice desejava que houvesse alguém capaz de compreender a razão de uma obra tão grande, que amasse a beleza e admirasse a sua grandeza. Por isso, uma vez tudo realizado, como Moisés e Timeu atestam, pensou por último em criar o homem. Dos arquétipos, contudo, não ficara nenhum sobreo qual modelar a nova criatura, nem dos tesouros tinha algum para oferecer em herança ao novo filho, nem dos lugares de todo o mundo restara algum no qual se sentasse este contemplador do universo. Tudo estava já ocupado, tudo tinha sido distribuído nos sumos, nos médios e nos ínfimos graus. Mas não teria sido digno da paterna potência não se superar, como se fosse inábil, na sua última obra, não era próprio da sua paciência permanecer incerta numa obra necessária, por falta de decisão, nem seria digno do seu benéfico amor que a quem estava destinado a louvar nos outros a liberdade divina fosse constrangido a lamentá-la em si mesmo. Estabeleceu, portanto, o óptimo Artífice que, àquele a quem nada de especificamente próprio podia oferecer, fosse comum tudo o que tinha sido dado parcelarmente aos outros. Assim, tomou o homem como obra de natureza indefinida e, colocando-o no meio do mundo, falou-lhe deste modo: 'O Adão,,, não te demos nem um lugar determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma específica, a fim de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto, aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem definida dos outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo contrário, não será constrangido por nenhuma limitação, determina-la-ás para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder te entreguei. Coloquei-te no centro do mundo para que daí possas olhar melhor tudo que há no mundo. Não te fizemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a fim de que tu, árbitro e soberano artífice, te plasmasses e te informasses, na forma que tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas, poderá regenerar-te até as realidades superiores que são divinas, por decisão do teu ânimo' "Quem não admirará este nosso camaleão?" (p. 51-53) "Mas com que objectivo recordar tudo isto? Para que compreendamos, a partir do momento em que nascemos, na condição de sermos o que quisermos, que o nosso dever é preocuparmo-nos sobretudo com isto: que não se diga de nós que estando em tal honra, não nos demos conta de nos termos tornado semelhantes às bestas e aos estúpidos jumentos de carga." (p. 55) * Assim, a fé em Deus não foi abalada, mas agora ele é entendido como um criador que paira por sobre sua obra, que passa ater vida própria, liberdade. Deus está "antes" do mundo como criador e "depois" dele como juiz, mas é visto como tendo criado o mundo e o deixado funcionar por suas próprias leis. Daí surgirá a possibilidade do conhecimento das leis naturais; se Deus interviesse a cada momento com milagres, seria impossível o projeto de conhecimento e previsão sobre os fenômenos naturais. Já a liberdade, dom maior dado ao homem, fará com que ele tenha que passar a tentar descobrir os caminhos do bem, definir o que é certo e errado. Este é o campo da moral, que será muito estudado nos séculos seguintes. A colocação do homem no centro do mundo nos traz ainda a idéia de que todas as coisas existem para sua contemplação e uso. Torna-se natural para o homem matar animais ou devastar a natureza na medida de seu interesse. A relação do homem com relação ao mundo se tornará cada vez mais a de exclusão. O homem julga-se quase como Deus, relativamente acima do mundo, e as coisas (e mesmo o corpo humano) serão tomadas como objetos. Figueiredo observa a peculiaridade dessa posição do homem. Ele é o centro e é livre para tornar-se o que quiser, mas ele não é propriamente nada. Há uma negatividade no homem e é justamente esse vazio que ocupa o lugar do centro; o mundo já não é fechado, já não há estabilidade possível, o homem deve continuamente tornar-se, constituir-se, mover-se: "Este imenso espaço de liberdade será também o espaço das virtudes que consistem desde então no bom uso desta liberdade. E ainda o espaço de uma aventura sem destino certo, sem ânimos nem garantias. É, finalmente, o espaço insólito da ignorância, da ilusão, do erro, da dúvida e da suspeita." (p. 24) Questões para discussão 1. Como foi possível conciliar a crença em um Deus onipotente e a crença na liberdade do homem? 2. Como a valorização do homem contribuiu para p aumento do conhecimento sobre a natureza? 3. Entre o mundo medieval e o mundo renascentista, qual parece gerar mais angústia no homem? Por quê? 4 O ENCONTRO COM A MULTIPLICIDADE Trabalhamos, nesta parte, o encontro com a diversidade do mundo. O confronto com a diferença fez com que o homem se perguntasse sobre si. Derivamos do tema anterior outro que o acompanha. Ainda segundo Figueiredo, a multiplicidade é uma característica do Renascimento. A abertura do mundo trouxe o conhecimento de civilizações novas, com seus costumes, línguas, hábitos alimentares, etc. Isto, é claro, acompanha os novos valores segundo os quais o homem (cada um) deve buscar seu caminho. Citando novamente Figueiredo: "Há algo de maravilhoso e inquietante na infinitude das variações. O que se pode esperar legitimamente de um mundo infinitamente diverso e surpreendente? Tudo. A credulidade e a liberdade de imaginação do homem renascentista não devem ser julgadas a partir do modelo 'científico' dos séculos posteriores; elas não são índices de ingenuidade e ausência de espírito crítico. São formas maduras e tolerantes de relação com a diferença, as mais ajustadas a esse momento particular de abertura do mundo."10 (p. 34) Introduzimos com isso, uma outra imagem significativa do período, a feira de rua. Ainda que a feira já fosse uma instituição medieval, agora seu conteúdo está revestido com a abertura da Europa à diversidade cultural do mundo conhecido. Pode-se imaginar uma feira renascentista com as novidades trazidas das mais diversas partes do mundo recém-descobertas. Alimentos básicos da cozinha, como a batata, o tomate, o cacau; temperos variados; tecidos e tinturas; pessoas e animais de diversas partes são trazidos à Europa no mesmo espírito de exotismo. A própria idéia de comércio, como intercâmbio de bens, circulação de mercadorias ou necessidade da criação de valores de troca, expressa bem o movimento da época. A feira de rua contém um elemento de festa popular, desordem e gritaria diante de uma profusão de mercadorias. Difícil nisto -e isto é significativo do período- devia ser a atribuição de valor a cada coisa: quanto vale um cocar indígena, que importância ele tinha em seu Contexto original? Quanto vale uma pequena estátua que representa a divindade de uma certa cultura? Como crer na fidedignidade do produto oferecido? De modo idêntico, podemos imaginar o espanto do homem ocidental ao defrontar-se com as religiões e costumes distintos pelo mundo. Duas atitudes básicas podem ter sido tomadas diante desse confronto. Uma é mais convencional e reassegura as certezas sobre si: consideraria a diferença um erro. Se o outro pensa de forma diferente da minha, ele está errado; cabe, por isso, catequizá-lo, conduzi-lo à verdade. Caso ele se recuse, justifica-se a utilização de meios, digamos, mais convincentes, dado que se trata de seu próprio bem. A chamada "conquista da América" mostrou muito bem como se processa isso e quais são suas conseqüências, com um extermínio massivo de culturas. A outra atitude parece ser mais auto-crítica e parece ter tido um lugar considerável no Renascimento. Diante do confronto com a verdade do outro, acaba-se por se colocar em questão a própria verdade, não para substituí-la, mas para tomá-la não mais como única, mas com uma dentre as possíveis. Ou ambas a verdades são válidas, ou ambas inválidas. Há um brilhante estudo de Todorov sobre este tema, em A conquista da América. Nele é analisada a questão do confrontocom o outro através do que considera ter sido, mais do que o maior genocídio já perpetrado, um acontecimento fundador da Modernidade. A tese de Todorov é a de que tanto os espanhóis quanto os nativos tinham uma absoluta incapacidade de entrar em contato com o outro enquanto tal. Cada um tomava o outro de modo auto-referente: alguns astecas tomavam Cortez como o deus e imperador Quetzalcoatl, cujo retorno estava predito; os nativos de nações dominadas violentamente pelos astecas viam tão somente a troca de um algoz mais violento por um outro erroneamente tomado como menos violento. Quanto aos espanhóis, ou tomavam os nativos como objeto desumanizado, a ser escravizado ou morto gratuitamente, ou pensavam ter encontrado na América o paraíso terrestre, ou ainda insistiam -como Colombo- na crença de que haviam de alcançado as índias, denominando os nativos de "índios". De toda a forma, os espanhóis realizaram a conquista, subjugaram os nativos de muitas etnias (e aniquilaram completamente outras), que possuíam uma população quantitativamente muito superior a de soldados espanhóis. Além disso, o imperador asteca Montezuma entregou-se aos espanhóis e parece ter entregue sua nação sem resistência. Eis uma bela passagem na qual Todorov interpreta este fato: "O encontro de Montezuma com Cortez, dos índios com os espanhóis, é, antes de mais nada, um encontro humano; e não há razão para surpresa se os especialistas da comunicação humana levam a melhor Mas essa vitória, de que somos todos originários, europeus e americanos dá ao mesmo tempo um grande golpe em nossa capacidade de nos sentirmos em harmonia com o mundo, de pertencer a uma ordem pré-estabelecida; tem por efeito recalcar profundamente a comunicação do homem com o mundo, produzir a ilusão de que toda comunicação é comunicação inter-humana; o silêncio dos deuses pesa no campo dos europeus tanto quanto no dos índios Ganhando de um lado, o europeu perdia de outro; impondo-se em toda a Terra pelo que era sua superioridade, arrasava em si mesmo a capacidade de integração no mundo. Durante os séculos seguintes sonhará com o bom selvagem; mas o selvagem já estava morto, ou assimilado, e o sonho estava condenado à esterilidade. A vitória já trazia em si o germe de sua derrota; mas Cortez não podia saber disso." (p. 93-94). A vitória dos espanhóis teria se dado por sua maior habilidade em entender o modo de pensar do outro, tirando proveito disso. Todorov insinua que este teria sido o mais importante fator da dominação do europeu sobre o mundo: ele seria capaz de dissimular e mentir. Em nossos termos, ele é capaz de criar um distanciamento entre sua ação e sua intenção, de acordo com seus interesses. Todorov chega a comparar a capacidade comunicativa de Cortez com as prescrições de Maquiavel em O príncipe, escrito na mesma época. Nesta habilidade comunicativa, neste auto distanciamento e neste uso puramente funcional da linguagem, estaria fundada a Modernidade. Temos, como em relação a Rabelais, uma posição intermediária: o europeu teria uma quase total incapacidade de entrar em contato com a alteridade, buscando dominar e assimilar o outro; por outro lado, ele parece ter sido mais capaz que outros povos para sair de seu próprio ponto de vista e procurar compreender o do outro, ainda que para dominá-lo. Todorov também indica que os europeus estariam acostumados a operar um descentramento, desde que seu centro religioso, Jerusalém, era, de fato, fora de seu continente. Na conclusão de sua obra, Todorov apresenta-nos esta formulação paradigmática sobre a questão do outro: "Pois o outro deve ser descoberto. Coisa digna de espanto, já que o homem nunca está só, e não seria o que é sem sua dimensão social. E, no entanto, é assim: para a criança que acaba de nascer, seu mundo é o mundo, e o crescimento é uma aprendizagem da exterioridade e da sociabilidade; pode-se dizer, um pouco grosseiramente, que a vida humana está contida entre dois extremos, aquele onde o eu invade o mundo e aquele onde o mundo acaba absorvendo o eu, na forma de cadáver ou de cinzas. E, como a descoberta do outro tem vários graus, desde o outro como objeto, confundido com o mundo que o cerca, até o outro como sujeito, igual ao eu, mas diferente dele, com infinitas nuanças intermediárias, pode-se muito bem passar a vida toda sem nunca chegar à descoberta plena do outro (supondo-se que ela possa ser plena). Cada um de nós deve recomeçá- la, por sua vez; as experiências anteriores não nos dispensam disso. Mas podem ensinar quais são os efeitos do desconhecimento, (p. 243). Se voltamos agora à imagem da feira e do comércio, veremos que aqui impera o convívio com uma inédita diversidade de coisas. Essa festa, no entanto, traz o problemas, referido antes, de atribuição de um valor justo a cada coisa. As coisas estão fora de seus contextos, onde talvez possuíssem um valor justo, mas nesse encontro fortuito da feira já não se pode pensar em seu valor original. Ainda nesse sentido, pense-se na reação das pessoas diante do relato dos viajantes sobre as coisas incríveis que viram. Uma vez mais, a credulidade das pessoas seria abalada. Como distinguir relatos confiáveis de outros mentirosos ou fantasiosos? A descrição de um tamanduá parecerá tão absurda ou possível quanto a de um dragão do mar; os relatos sobre cidades feitas de ouro (o Eldorado) tocarão nas fantasias sobre o paraíso reencontrado nessas terras distantes e selvagens (onde, em se plantando, tudo dá...). PINTURA - Bosch e Arcimboldo Referimo-nos, na parte anterior, a artistas como da Vinci e Michelangelo. Nesta, o pintor que nos ocorre é Bosch. Ele nasceu em 1450, quase no mesmo ano que Leonardo da Vinci (1452), mas, enquanto da Vinci parece estar em casa no Renascimento, Bosch parece sofrer mais os efeitos da fragmentação. Seus biógrafos informam-nos que Bosch nasceu justamente diante de uma feira, mas ele não se sentia em casa. Parece que seu mundo de valores era medieval e que, ao abrir suas janelas, lhe parecia estar assistindo o apocalipse, o caos. Assim, curiosamente, ele acaba expressando melhor que seus contemporâneos a fragmentação do século. Suas pinturas mostram corpos dilacerados, em combinações alucinadas. Com frequência, ele é tomado como um pré- surrealista, mas ele provavelmente acreditava ser um hiper-realista, mostrando a degradação dos tempos, o fim do mundo da ordem. Há outro pintor que trabalha a fragmentação, mas -talvez por ter nascido já no século XVI, quase 80 anos depois de Bosch-sem o mesmo tom apocalíptico. Ele é Arcimboldo, com suas composições de retratos utilizando fragmentos de coisas. Sua série mais conhecida é a das quatro estações, onde constrói expressões humanas combinando elementos típicos de cada época. O efeito é grotesco, mas divertido e instigante e parecerá uma ilustração perfeita para um tipo de música a que nos referiremos na próxima parte, chamado "Las Ensaiadas". Enfim, justamente da crise no final da Idade Média, resulta essa falta de critérios absolutos, que gera uma crescente insegurança. Numa citação de Montaigne, um dos mais importantes pensadores do século XVI, encontramos uma articulação do que temos dito: "Em verdade o homem é de natureza muito pouco definida, estranhamente desigual e diverso. Dificilmente o julgaríamos de maneira decidida e uniforme."11 MÚSICA - A POLIFONIA A polifonia é um tipo de música típica do Renascimento. Assim como o canto gregoriano expressava bem o espírito medieval, a polifonia encarna seu tempo. O termo significa "muitas vozes" e é justamente como se o coro em uníssono do gregoriano se tivesse estilhaçado: cada voz canta uma melodia diferente, por vezes também uma letra diferente. Podem ser quatro ou muitas mais vozes, gerando um efeito ruidoso, quase já nãomusical. No entanto, elas convivem. Através do século XVI, vai aumentando a capacidade dos compositores de harmonizá-las. Há uma peça de especial interesse dentro do que temos trabalhado. Ela se chama Voulez ouyr les cris de Paris? ("Querem ouvir os gritos de Paris?"), de Clément Janequin12. Nela, cinco cantores perguntam-nos, por um minuto, se queremos ouvir os gritos de Paris. Suas vozes são um pouco defasadas entre si, mas tudo é compreensível. Após a introdução, há um breve silêncio è então começamos a ouvir uma gritaria onomatopaica que se passa numa feira, com vários vendedores chamando a atenção para o seu produto. Eventualmente, as vozes unem-se por instantes em torno de um tema para, em seguida, se dispersarem de novo. Adiante, outro tema surge e, novamente, desagrega-se, como numa rapsódia. Tudo é muito engraçado e carnavalesco (é inevitável pensarmos na situação da gravação em um estúdio moderno, em que músicos educados na rigidez de conservatórios grasnem, gritem e, é claro, desafinem, com a leitura rigorosa da partitura). O centro da produção polifônica é a Espanha que, por ter sofrido a invasão muçulmana, traz em sua cultura muitos elementos assimilados. Há músicas de uma extrema melancolia, lamentando a perda da felicidade e da ordem pelas viagens e guerras13. Em anexo, está o começo de um dos livros mais debochados do século XVI. Nele podemos reconhecer, desde a referência constante no Renascimento à cultura clássica grega, até o tom irreverente e visceral do mundo menos idealizado e mais próximo da experiência imediata dos prazeres do corpo. Trata-se de um mundo de exageros, deboche e excessos, habitado por gigantes. TEXTO ANEXO - François Rabelais GARGÂNTUA E PANTAGRUEL "AO LEITOR Antes mesmo de ler, leitor amigo, Despojai-vos de toda má vontade. Não escandalizeis, peço, comigo: Aqui não há nem mal nem falsidade. Se o mérito é pequeno, na verdade, outro intuito não tive, no entretanto, A não ser rir, e fazer rir portanto, Mesmo das aflições que nos consomem. Muito mais vale o riso do que o pranto. Ride, amigo, que rir é próprio do homem." (p. 31). "PRÓLOGO DO AUTOR - Bebedores ilustres e preciosíssimos bexiguentos (pois a Vós, não a outros se dedica o meu engenho): Alcebíades, no diálogo de Platão intitulado O Banquete, louvando o seu preceptor Sócrates (sem controvérsia, príncipe dos filósofos), entre outras coisas disse ser ele semelhante aos "silenos". Silenos, para os antigos eram caixinhas, tais como as que hoje vemos nas vendas dos boticários, tendo pintadas umas figuras alegres e frívolas, como harpias, sátiros, gansos ajaezados, lebres chifradas, patos com cangalhas, bodes voadores, veados atrelados e outras figuras semelhantes, nascidas da imaginação, próprias para provocar o riso como fazia Sileno, mestre do excelente Baco. Dentro delas, porém, guardavam-se drogas valiosas como o bálsamo, a âmbar- cinzento, o amorno, o almíscar, jóias e outras preciosidades. Tal se dizia ser Sócrates, porque, quem o visse por fora, e estimando apenas a aparência exterior, não lhe daria mínimo valor tanto ele era feio de corpo e ridículo em sua aparência, com nariz pontudo, olhos de boi, cara de bobo, simples em* seus modos, rústico em suas vestes, parco de riquezas, infeliz com as mulheres, inapto para todos os ofícios da república, sempre rindo, sempre tomando seus tragos, por causa disso, sempre brincalhão, sempre dissimulando o seu divino saber. Quem abrisse aquela caixa, porém, lá dentro encontraria um bálsamo celeste e inapreciável um entendimento mais que humano, virtudes maravilhosas, coragem invencível sobriedade sem igual, contentamento certo, segurança perfeita, incrível desprendimento com relação a tudo que os humanos tanto prezam, tudo aquilo que tanto cobiçam e em prol do quê correm, trabalham, navegam e batalham. Se não acreditais, por que não fareis o mesmo com estas novas e divertidas crônicas? Eis que, ditando-as, não pensei senão em vós, que porventura bebeis como eu bebo. Porque, na composição deste livro senhoril, não perdi, e jamais empreguei um outro tempo, do que aquele que gasto para tomar a minha refeição corporal, a saber, bebendo e comendo. São estas as horas mais adequadas para escrever sobre essas altas matérias e ciências profundas, como bem fez saber Homero, paradigma de todos os filólogos, e Ênio, pai dos poetas latinos, assim como testemunha Horácio, embora um grosseirão tenha dito que os seus "Odres" cheiravam mais a vinho do que a azeite. Coisa idêntica disse um bufão dos meus livros; mas merda para ele! O odor de vinho, ó, como é mais saboroso, mais agradável, mais atraente que o do azeite! E sinto-me muito mais lisonjeado, quando se diz que gasto mais vinho do que azeite, do que ficou Demóstenes quando dele disseram que gastava mais azeite do que vinho. Para mim, só me sinto honrado e jubiloso por ter fama de ser um bom copo e um bom companheiro: graças a isso sou bem recebido em todos os bons grupos de pantagruelistas. (...) E agora diverti-vos, meus queridos, e lede alegremente, para satisfação do corpo e benefício dos rins. Mas escutai, sem vergonhas e que a úlcera vos corroa: tratai de beber por mim, que eu começarei, sem mais demora." (p. 33-36) * Vemos, com Rabelais, a valorização do riso e de toda forma de prazer corporal, em confronto com a tendência nascente (e que dominará o século XVII) de só respeitar a seriedade, a contenção e a mente. Talvez convenha lembrar exatamente neste momento, como Umberto Eco deixa claro, no eixo de seu romance "O Nome da Rosa", o risco que a visão ortodoxa considerava haver no riso, também no final da Baixa Idade Média. Na tentativa de conter o riso - o prazer -, observamos o esforço em obter o auto-controle. Ao mesmo tempo, vemos a valorização renascentista da cultura greco-romana. Questões para discussão 1. Qual é a importância da feira de rua no universo do Renascimento? 2. Que tipo de reação foi gerada pelo confronto com outras culturas? 3. Por quê no Renascimento o homem perdeu suas certezas? 5 OS PROCEDIMENTOS DE CONTENÇÃO DO EU Acompanhamos, nesta parte, algumas das medidas tomadas para o restabelecimento de referências para a colocação do homem no mundo. Elas estarão voltadas ao próprio eu, na figura do auto-controle. A nova valorização do ser humano e a imposição de que ele construa sua existência e descubra valores segundo os quais viver, aliada a toda a dispersão e fragmentação do mundo, que apontamos acima, levarão à tentativa de criação de mecanismos para o domínio e formação do eu. É na formação destes procedimentos -"modos de ser"- que poderemos começar a reconhecer os rumos que levarão à Psicologia. Citando uma vez mais Figueiredo: "(...) tão importantes ou até mais importantes do que a abertura de espaços de liberdade individual, com se vê acontecendo ao longo do processo de desintegração das 'civilizações fechadas', são as tentativas de circunscrever estes espaços. Assim sendo, as experiências subjetivas no sentido moderno do termo e que vieram a se converter em objeto de um saber e de uma intervenção psicológicos devem a sua emergência tanto às vivências de diversidade e ruptura como às tentativas de ordenação e costura, ou seja, a todas as praticas reformistas que implicavam uma subjetividade individualizada e uma tensão sustentada entre áreas ou dimensões de liberdade e áreas ou dimen- sões de submissão. (...) Como se vê, o 'indivíduo', ao contrário do que o termo sugere, nasce da dispersão e traz uma cisão interior inscrita em sua natureza. Impõe-se ao homem, a partir de agora, escolher o seu caminho. Essa escolha implica em uma construção da identidade, e i odos os exemplos mostram-nos como isso exige um esforço brutal, quase sobre-humano;o homem deve dominar a dispersão que o mundo é. O carnaval de Rabelais será contido, o corpo e suas funções serão calados em favor da coesão e da ordem do sujeito. Durante a Idade Média, era relativamente difícil explicar como era possível ser responsabilizado por pecar: se a pessoa não era livre e apenas cumpria os planos de Deus, como responsabiliza-la? No Renascimento, a questão pode ser equacionada de outra forma: Deus fez o homem livre para que ele possa ser julgado; ele pode escolher um bom caminho e ser recompensado por isso, mas pode ser desviado dele por tentações e dispersões -e o mundo renascentista as oferece em quantidade- e, então, ser responsabilizado e punido por isso. A questão passa a ser: o que eu devo ser? Como devo me formar? Em termos mais psicológicos, como construir uma identidade? Há vários exemplos de modos de constituição de identidade no Renascimento. Talvez o mais conhecido seja o de Dom Quixote de La Mancha, personagem de Cervantes, que se identifica com o ideal do cavaleiro andante medieval e procura afirmar-se. A evocação deste exemplo já sugere que a afirmação de uma identidade coesa pode assemelhar-se à alucinação, na medida em que ela deve impor-se sobre o mundo, ele próprio em frangalhos. Passemos agora a um exemplo concreto de procedimento vislumbrado no século XVI para a constituição de uma identidade coesa, que consiga não se deixar levar pela dispersão. O pensamento religioso, adaptando-se aos tempos como sempre, produzirá, sobretudo através de Santo Inácio de Loyola, procedimentos para a afirmação da identidade sobre a dispersão do sujeito, guiando-o de volta a Deus. Santo Inácio converteu-se à religião já adulto. Ele havia sido militar, e uma das características mais marcantes que impôs a seu sistema foi a disciplina. Tendo fundado a Companhia de Jesus, imprimiu um traço distintivo dos jesuítas até hoje, sua iniciativa prática e pregação militante. Santo Inácio parte do mundo renascentista, reconhecendo a liberdade humana, mas constata a perdição do homem e buscará mostrar-lhe o caminho do reencontro com a ordem. Seu procedimento, propriamente humanista, faz escola até hoje: o homem é livre para ser o que é e parece estar perdido; ele precisa e pode, portanto, dirigir sua livre vontade ao caminho correto para se encontrar. O que ele precisa é de um manual de instruções, uma técnica para dirigir sua ação. Em Os Exercícios Espirituais, são propostos uma série de procedimentos, com a duração de 28 dias, cujo cumprimento rigoroso deverá levar o praticante à iluminação. Uma vez mais, vale a pena reproduzir alguns trechos da obra: TEXTO ANEXO - Santo Ignácio de Loyola EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS "I ° Anotação. Por esta expressão, Exercícios Espirituais, entende-se qualquer modo de examinar a consciência, meditar, contemplar, orar vocal ou mentalmente, e outras atividades espirituais, de que adiante falaremos. Porque; assim como passear, caminhar e correr são exercícios corporais, também se chamam exercícios espirituais os diferentes modos de a pessoa se preparar e dispor para tirar de si todas as afeições desordenadas, e, tendo-as afastado, procurar e encontrar a vontade de Deus, na disposição da sua vida para o bem da mesma pessoa." (p. 11-2). "5a Anotação. Muito aproveita ao exercitante entrar neles com grande ânimo e liberalidade para com seu Criador e Senhor, oferecendo-lhe todo o seu querer e liberdade, para que sua divina majestade se sirva de sua pessoa e de tudo quanto possui, conforme a sua santíssima Vontade." (p. 15). "EXERCÍCIOS ESPIRITUAIS PARA O HOMEM SE VENCER A SI MESMO E ORDENAR A PRÓPRIA VIDA, SEM SE DETERMINAR POR NENHUMA AFEIÇÃO DESORDENADA" (p. 27). PRINCÍPIO E FUNDAMENTO O homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma. E as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a alcançar o fim para que é criado. Donde se segue que há de usar delas tanto quanto o ajudem a atingir o seu fim, e há de privar-se delas tanto quanto dele o afastem. Pelo que é necessário tornar- nos indiferentes a respeito de todas as coisas criadas em tudo aquilo que depende da escolha do nosso livre-arbítrio, e não lhe é proibido. De tal maneira que, de nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que breve, e assim por diante em tudo o mais, desejando e escolhendo apenas o que mais nos conduz ao fim para que somos criados." (p. 28). "REGRAS PARA SENTIR VERDADEIRAMENTE COMO SE DEVE NA IGREJA MILITANTE Ia regra. Renunciando a todo juízo próprio, devemos estar dispostos e prontos a obedecer em tudo à verdadeira esposa de Cristo Nosso Senhor, isto é, à santa Igreja hierárquica, nossa mãe." (p. 188) "9a regra. Louvar finalmente todos os preceitos da santa Igreja, e estar disposto para procurar razões em sua defesa, e nunca para os criticar." "13a regra. Para em tudo acertar, devemos estar sempre dispostos a crer que o que nos parece branco é negro, se assim o determina a Igreja hierárquica; persuadidos de que entre Cristo Nosso Senhor -o esposo- e a Igreja -sua Esposa- não ha senão um mesmo Espírito, que nos governa e dirige para a salvação das nossas almas. Porque é pelo mesmo Espírito e mesmo Senhor, autor dos dez mandamentos, que se dirige e governa a santa Igreja, nossa Mãe." "15a regra. Habitualmente não devemos falar muito de predestinação. Mas se em alguma ocasião se falar disso, faça-se de maneira que os simples fiéis não caiam em algum erro. Algumas vezes isso acontece, quando concluem: "Seja está determinado que me vou condenar ou salvar, não são as minhas ações boas ou más que hão de mudar esta determinação". E com este raciocínio tornam-se negligentes e descuidam as obras que conduzem à salvação e ao proveito espiritual das suas almas." (p. 192) "17a regra. Igualmente não devemos insistir tanto na graça a ponto de se produzir o veneno que nega a liberdade. Pode-se com certeza falar da fé e da graça, mediante o auxílio 15 Santo Inácio antecipa de forma espantosa alguns dos mais importantes pensadores do século XVII: Descartes e Hobbes. Mais perto de nós, antecipa também as Psicologias humanistas ou de auto-ajuda e ainda alguns cultos religiosos e procedimentos de Marketing. neste sentimento de vazio e cria a demanda por nos formarmos ■ . Mitinuamente. Assim, a liberdade humana é reconhecida apenas para sei lhe atribuir a causa da perdição humana. Curiosamente, a salvação implica justamente em abrir mão de forma absoluta dessa liberdade, transferindo-a à autoridade religiosa com toda a boa-vontade e determinação. A submissão do sujeito deve ser absoluta, esse é o preço a pagar pelo repouso numa certeza sem conflitos. Exige-se disciplina, dedicação e, sobretudo, que se abra mão da própria experiência imediata em favor da palavra da Igreja. Se, ao fim dos 28 dias, a iluminação não chegou, isso não se deve a uma falha do método, mas certamente à pouca fé e à fraqueza da vontade do exercitante15. E bastante visível o quanto parte daqui a inspiração de um gênero literário de bastante sucesso no final do século XX, chamado "Psicologia de auto-ajuda". A crença na liberdade humana absoluta, que diz que podemos atingir quaisquer que sejam nossos objetivos, envolve um forte sentimento de culpa: se somos o que fazemos de nós, esta infelicidade na qual nos encontramos foi produzida por nós, nós a merecemos. A premissa do título de um livro como "Só é gordo quem quer", poderia ser derivada em "só é pobre quem quer", ou "Só é brasileiro quem quer", etc. A única determinação reconhecida para nosso ser é a própria vontade; todas as determinações históricas, sociais, genéticas, etc, são simplesmente negadas. A cada época, a falta de sentido de nossa existência mostra-se preza fácil das"autoridades de plantão" a nos oferecer generosamente seu manual de como viver. Mais importante do que esta produção, é a percepção de como a Modernidade parece implicar MÚSICA - UMA POLIFONIA MAIS COMPORTADA Uma vez mais, a música nos auxiliará na exemplificação de iiMI conceito. No final do século XVI, a polifonia parece I i adativamente tornar-se mais bem comportada. As vozes múltiplas io sendo harmonizadas e não se tem mais a impressão de ruído: elas simplesmente são disciplinadas, dispostas de tal forma que ( omponham um todo equilibrado. Estamos a um passo da "fuga" (estilo próprio ao século XVII). Mesmo as letras parecem mais t (importadas, evocando a contra-reforma. Não será possível retornar .10 universo do canto gregoriano, mas será possível buscar ordem dentro da diversidade, como vimos através de Santo Inácio. Eis uma curiosa letra, composta por Mateo Flecha, El Viejo, mim gênero que tem o evocativo nome de Las Ensaiadas: EL FUEGO - Mateo Flecha, El Viejo Corred, corred, pecadores! No os tardeis a traer luego agua al fuego, agua al fuego! Fuego, fuego, fuego! Este fuego que se enciende es el maldito peccado, que al que no halla ocupado siempre para sí lo prende. Qualquier que de Dios pretende salvacíon, procure luego agua al fuego, agua al fuego. Fuego, fuego, fuego! Venid presto, peccadores, a matar aqueste fuego; Haced penitencia luego de todos vuestros errores. Reclamen essas campanas dentro en vuestros coraçones. Dandán, dandán, dandán... Poné en Dios Ias aficiones, todas Ias gentes humanas. Dandán, dandán, dandán... Llamad essos aguadores, luego, luego, sin tardar! Y ayúdennos a matar este fuego. No os tardeis en traer luego dentro de vuestra conciencia mil cargos de penitencia de buen' agua, y ansí mataréis la fragua de vuestros maios deseos, y los enemigos feos huyrán. El fuego" e "La Negrina", extraídas de "Las Ensaiadas, Sony Music, 1991". Ambas são ainda polifonias, compostas de vários fragmentos temáticos e mesmo de vários idiomas, mas pode se notar, especialmente na segunda, o quanto as vozes já estão harmonizadas, submetidas a uma composição rigorosa. Ouça também o início da "Missa Papae Marcelli", de Palestrina, extraída de "Baroque. Palestrina e Monteverdi, EMI Classics, 1995". A expressão 'salada' é especialmente própria para definir a polifonia, neste caso. Mesmo já se tratando de uma música mais contida, não faltam misturas de temas musicais, idiomas -aparentemente, trata-se de uma coleção de trechos de canções unidos ao gosto do compositor. Já mais ao final do século, encontramos uma música propriamente equilibrada e muito bonita, um dos melhores frutos da religião, a música sacra. Tomemos agora outro exemplo bem mais cruel e naturalista de procedimento de afirmação do sujeito: O Príncipe, obra de Maquiavel do começo do século XVI. Trata-se de uma série de prescrições sobre como bem governar. Em nosso contexto -isto poderia se traduzir assim: que tipo de sujeito um príncipe deve ser? Como deverá ser seu "eu"?. Seu princípio é o de que o mundo (figurado pela figura do povo é volúvel -voltando-se para aquilo que representar seu interesse mais imediato-, sem memória, egoísta e, enfim, mau. A grande preocupação de Maquiavel é a fragmentação da Itália e a sua invasão por bárbaros. É necessária a imposição de um sujeito forte. O (•overnante não tem outra opção que se afirmar à força, criar alianças mais pelo temor do que pelo amor, como única forma de estabelecer uma unidade à dispersão. O valor primeiro de tudo será a obtenção e manutenção do poder centralizado. Para tanto, não há que se ter vergonha por fazer qualquer coisa neste sentido, mesmo matar a quem quer que represente uma ameaça ao"poder. O princípio ético é II da afirmação do poder. Maquiavel foi tomado como imoral e desumano (de seu nome deriva o adjetivo 'maquiavélico', que atualmente significa ardiloso, maldoso). No entanto, se inserimos o discurso de Machiavel nesse mtexto de crise da fé em um poder transcendente e entendemos o medo da dissolução, talvez torne-se mais compreensível a radicalidade e a urgência de seus preceitos. Abaixo, seguem-se trechos de O príncipe. TEXTO ANEXO - Nicoló Machiavelli O PRÍNCIPE "(...) é que os homens, com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz com que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam porque, pela própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a situação." (p. 11) "E quem conquista, querendo conservá-los [o poder e o domínio] deve adotar duas medidas: a primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a outra, aquela de não alterar nem as suas leis nem os impostos; por tal forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o território conquistado passa a constituir um corpo todo com o principado antigo." (P-13) "E que, em verdade, não existe modo seguro para conservar tais conquistas, senão a destruição. E quem se torne senhor de uma cidade acostumada a viver livre e não a destrua, espere ser destruído por ela, porque a mesma sempre encontra, para apoio de sua rebelião, o nome da liberdade e o de suas antigas instituições, jamais esquecidas seja pelo decurso do tempo, seja por benefícios recebidos. Por quanto se faça e proveja, se não se dissolvem ou desagregam os habitantes, eles não esquecem aquele nome nem aquelas instituições, e logo, a cada incidente, a eles recorrem como fez Pisa cem anos após estar submetida aos florentinos." (p. 30). "Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento, nem tomar qualquer outra coisa por fazer senão a guerra e a sua organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu Estado." (p. 85) "Resta ver agora quais devam ser os modos e o proceder de um príncipe para com os súditos e os amigos e, porque sei que muitos já escreveram a respeito, duvido não ser considerado presunçoso escrevendo ainda sobre o mesmo assunto, máxime quando irei disputar essa matéria à orientação já por outros dada aos príncipes. Mas, sendo minha intenção escrever algo de útil para quem por tal se interesse, pareceu-me mais conveniente ir em busca da verdade extraída dos fatos e não à imaginação dos mesmos, pois muitos conceberam repúblicas e principados jamais vistos ou conhecidos como tendo realmente existido. Em verdade, há tanta diferença de como se vive e como se deveria viver, que aquele que abandone o que faz por aquilo que se deveria fazer aprenderá antes o caminho de sua ruína do que o de sua preservação, eis que um homem que queira em todas as suas palavras fazer profissão de bondade, perder-se-á em meio a tantos que não são bons. Donde é necessário, a um príncipe que queira se manter, aprender a poder não ser bom e usar ou não da bondade, segundo a necessidade." (p. 89-90) "Um príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos e leais (...)." (P-95) "Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra; mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores, tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem, são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de ti; quando estase avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído de outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com elas não se pode contar e, no momento oportuno; não se torna possível utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona." (p. 96) "Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália conheça depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que tem sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas justas (...)" (p. 146) Sem dúvida, por mais que possa parecer estranho, há uma -crie de pontos em comum entre este procedimento e o prescrito por Santo Inácio. Ainda que um afirme o valor do humano e o outro o retorno a Deus, ambos crêem na necessidade da afirmação do sujeito .ilravés de procedimentos radicais e estreitos. Mas com Maquiavel, i stamos diante de um mundo sem ideal, no qual a imposição do sujeito se faz necessária por uma concepção naturalista e egoísta do homem: não há apenas o elogio do homem como no Renascimento. É disso que trataremos na próxima parte. Acrescento ainda uma diferença essencial entre os dois: Santo Inácio pensa que seu procedimento é acessível a todos, enquanto que Maquiavel, ao menos nessa obra, refere-se a afirmação de um único sujeito, em detrimento dos demais. Ele trata da constituição do Estado, como Hobbes, no século seguinte, a quem antecipa. Questões para discussão 1. Como se relaciona a crença na liberdade do homem e a tentativa de submetê- lo a uma ordem disciplinar rígida no século XVI? 2. Quais são as semelhanças entre Santo Inácio de Loyola e Maquiavel? 3. Quais poderiam ser as relações entre os 'Exercícios Espirituais' e as atuais terapias de auto-ajuda? 6 A POSIÇÃO DE CRÍTICA À APARÊNCIA Nesta parte, procuramos mostrar que a tendência à glorificação do eu não é absoluta. Alguns pensadores já começam a denunciar como ilusórias suas pretensões cada vez maiores. A Modernidade contém tanto procedimentos para a construção do eu quanto para a sua desconstrução. Ainda no século XVI -que possui uma riqueza aparentemente infinita-, podemos identificar ainda outra postura quanto ao valor do ser humano. Há uma série de autores que criticam a pretensão do homem em ser tão ideal e que apontam, como já o íizera Maquiavel, para uma eventual maldade e vaidade humanas. Esta posição possui relações complexas com o humanismo. Em um certo sentido, afirma-o, em outro, arrasa-o. À primeira vista, pode parecer que esta vertente estaria excluída da Modernidade, mas veremos que esta última precisa de lais procedimentos. Ao menos alguns pesquisadores, como Harold Bloom, reconhecem justamente em alguns destes autores -sobretudo Shakespeare- os fundamentos mais expressivos da Modernidade. Dentre os temas que temos trabalhado, podemos retomar dois. Em primeiro lugar, o que acabamos de tratar acima, a formação do "eu". Montaigne, a quem já citamos acima, diante da instabilidade e insegurança de tudo, acaba por fazer renascer um outro dos movimentos do pensamento grego: o ceticismo. Não podendo confiar ou acreditar em nada, Montaigne se retira da vida social, isola-se e passa a escrever durante anos, e até o fim de sua vida, sua famosa obra Ensaios. Não se trata apenas de um livro, mas da própria Formação do sujeito Montaigne. Ele descreve a si e às suas experiências, copia e cita textos de seus autores favoritos e afirma que escreveu o livro apenas para si e para os amigos. A escrita será um momento de interiorização, de digestão de experiências. O ceticismo toma ao menos dois aspectos no período. Um deles é chamado de "fideísmo". Ele implica em numa crítica ao valor crescente atribuído ao homem, mostrando sua insignificância; mas esta diminuição do homem teria o sentido de fazê-lo voltar novamente a Deus. Assim, de um lado, o homem é insignificante diante de Deus e, de outro, segundo alguns dos fideístas, a razão humana é inferior à fé. Mas também, há propriamente um ceticismo que não se contenta em mudar o centro de lugar (do Homem de volta para Deus) -qualquer possibilidade de crença em alguma referência absoluta parecerá insustentável. Embora Montaigne se declare católico, sua obra leva-nos a crer que ele se filia ao segundo grupo. O eu não é para ele uma referência a priori, como o será para Descartes, mas sim algo inconstante e sempre inacabado. Ele se forma continuamente num processo reflexivo. Trata-se da introspecção, daquela conversa proveitosa consigo mesmo, que Bloom reconhece como o cânone ocidental (aquilo que caracterizaria a Modernidade ocidental). É como se, a partir de então, Montaigne já não fizesse mais parte do mundo; ele se torna -ou pensa como se fosse- um ponto de vista alheio, do qual é possível realizar a crítica do mundo, nele não se incluindo propriamente. Em um certo sentido, este é um dos pontos mais altos de autonomia a que poderia aspirar o "eu" 11. Montaigne vive a diversidade e busca afirmar-se enquanto ser particular, como se pode ver na citação abaixo: "Não cometo esse erro tão comum de julgar os outros por mim. Acredito de bom grado que o que está nos outros possa divergir essencialmente daquilo que está em mim. Não obrigo ninguém a agir como ajo e concebo mil e uma maneiras diferentes de viver; e, contrariamente ao que ocorre em geral, espantam-me bem menos as diferenças entre nós do que as semelhanças. Não imponho a outrem nem meu modo de vida nem meus princípios; encaro-o tal qual é, sem estabelecer comparações. (...) pela imaginação ponho-me muito bem em sua pele e os estimo e honro tanto mais quanto divergem de mim. Aspiro particularmente a que julguem cada qual como é, sem estabelecer paralelos com modelos tirados do comum. Minha fraqueza não altera absolutamente o apreço em que deva ter quem possui força e vigor. "Há pessoas que só aconselhariam aquilo que imaginam poder imitar". Embora me arraste ao nível do solo, não deixo de perceber nas nuvens, por mais alto que se elevem, certas almas que se distinguem pelo heroísmo. Já é muito para mim ter o julgamento justo, ainda que não o acompanhem minhas ações, e manter ao menos assim incorruptível essa qualidade. Já é muito ter boa vontade, mesmo quando as pernas fraquejam." Desse ponto, teria surgido propriamente o que chamamos hoje de mundo interno ou privacidade; o universo de nossos pensamentos, fantasias, projetos, 'encanações' e auto-tormentos. O segundo ponto que retomamos é aquele de que no Renascimento há um elogio ao ser humano. Neste segundo aspecto, estamos agora longe do humanismo; elogiam-se outras coisas. Esta vertente crítica a qual Montaigne pertence, quase sempre é marcada por procedimentos que nos são muito caros, o que faz com que a leitura de alguns deles nos pareça altamente atual. As obras são marcadas quase sempre pela melancolia e pelo humor irônico, altamente crítico. Um dos mais deliciosos textos do período é O elogio da loucura, de Erasmo de Rotterdam.Nele, o autor, que é ligado à Igreja, tinha a intenção de fazer um apelo por reformas na burocratização e hipocrisia da Igreja. Mas o que ele atinge é muito mais. O texto acaba por arrasar qualquer idealismo sobre a bondade humana e seu amor pelos demais. Se não conhecêssemos o autor, nós o imaginaríamos como o primeiro ateu confesso. Em anexo, i rechos de Erasmo. TEXTO ANEXO - Erasmo de Rotterdam ELOGIO DA LOUCURA "Embora os homens costumem ferir a minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais. A prova incontestável do que afirmo está em que não sei que súbita e desusada alegria brilhou no rosto de todos ao aparecer eu diante deste numerosíssimo auditório." (p. 7). "Pois bem, quem desejaria sacrificar-se ao laço matrimonial, se antes, como costumam fazer em geral os filósofos, refletisse bem nos incômodos que acompanham essa condição? Qual é a mulher que se submeteria ao dever conjugai, se todas conhecessem ou tivessem em mente as perigosas dores do parto e as penas da educação? Se, portanto, deveis a vida ao matrimônio e o matrimônio à Irreflexão, que é uma das minhas sequazes, avaliai quanto me deveis. Alem disso, uma mulher que já passou uma vez pelos espinhos do insolúvel laço, e que anseia por tornar a passar por eles, nãó o fará, talvez em virtude da assistência da ninfa Esquecimento, minha cara companheira?" (p. 16). "Coragem, vamos! Dissimular, enganar, fingir, fechar os olhos aos defeitos dos amigos, ao ponto de apreciar e admirar grandes vícios como grandes virtudes, não será, acaso, avizinhar-se da loucura? Beijar, num transporte, uma verruga da amiga, ou sentir com prazer o fedor do seu nariz, e pretender um pai que o filho zarolho tenha dois olhos de Vênus, não será isso uma verdadeira loucura? Bradem, pois, quanto quiserem, ser uma grande loucura, e acrescentarei que essa loucura é a única que cria e conserva a amizade." (p. 29). "O que dissemos da amizade também pensamos e com mais razão dizemos do matrimônio. Trata-se (como deveis estar fartos de saber) de um laço que só pode ser dissolvido pela morte. Deuses eternos! Quantos divórcios não se verificariam, ou coisas ainda piores do que o divórcio, se a união do homem com a mulher não se apoiasse, não fosse alimentada pela adulação, pelas carícias, pela complacência, pela volúpia, pela simulação, em suma, por todas as minhas sequazes e auxiliares? Ah! como seriam poucos os matrimônios, se o noivo prudentemente investigasse a vida e os segredos de sua futura cara-metade, que lhe parece o retrato da discrição, da pudicícia e da simplicidade! Ainda menos numerosos seriam os matrimônios duráveis, se os maridos, por interesse, por complacência ou por burrice, não ignorassem a vida secreta de suas esposas. Costuma-se achar isso uma loucura, e com razão; mas é justamente essa loucura que torna o esposo querido da mulher, e a mulher, do esposo, mantendo a paz doméstica e a unidade da família. Corneia-se um marido? Toda a gente ri e o chama de corno, enquanto o bom homem, todo atencioso, fica a consolar a cara metade, e enxugar com seus ternos beijos as lágrimas fingidas da mulher adúltera. Pois não é melhor ser enganado dessa forma do que roer-se de bílis, fazer barulho, pôr tudo de pernas para o ar, ficar furioso, abandonando-se a um ciúme funesto e inútil? Afinal de contas, nenhuma sociedade, nenhuma união grata e durável poderia existir na vida, sem a minha intervenção: o povo não suportaria por muito tempo o príncipe, nem o patrão o servo, nem a patroa a criada, nem o professor o aluno, nem o amigo o amigo, nem o marido a mulher, nem o hospedeiro o hóspede, nem o senhorio o inquilino, etc, se não se enganassem reciprocamente, não se adulassem, não fossem prudentemente cúmplices, temperando tudo com um grãozinho de loucura." (p. 30-31). "Quando se reflete atentamente sobre o gênero humano, e quando se observam como de uma alta torre (justamente a maneira pela qual Júpiter costuma proceder, segundo dizem os poetas) todas as calamidades a que está sujeita a vida dos mortais, não se pode deixar de ficar vivamente comovido. Santo Deus! Que é, afinal, a vida humana? Como é miserável, como é sórdido o nascimento! Como é penosa a educação! A quantos males está exposta a infância! Como sua a juventude! Como é grave a velhice! Como é dura a necessidade da morte! Percorramo sejam a pobreza, a prisão, a infâmia, a desonra, os tormentos, a inveja, as traições, as injúrias, os conflitos, as fraudes, etc? Eu não saberia dizer-vos que delito teria o homem cometido para merecer tão grande quantidade de males, nem que deus furioso o teria constrangido a nascer em tão horrível vale de misérias." (p. 47). "As vezes, é um louco que se ri de outro louco, divertindo-se ambos mutuamente. Também não é raro ver-se um mais louco rir-se muito de outro menos do que ele. Mas na minha opinião o homem é tanto mais feliz quanto mais numerosas são as suas modalidades de loucura, contanto que não saia da espécie que nos é peculiar e que é tão espalhada que eu não saberia dizer se haverá, em todo o gênero humano, um indivíduo que seja sempre sábio e não tenha também a sua modalidade. Se alguém, ao ver uma abóbora, a tomasse por uma mulher, dir-se-ia ser o pobrezinho um louco. A razão disso é que semelhante perturbação raras vezes costuma aparecer entre nós. Mas quando um marido imbecil adora a mulher, julgando-a mais fiel do que Penélope, mesmo que ela lhe faça crescer na cabeça um bosque de chifres, e intimamente se felicita, bendizendo enormemente o seu destino e dando graças a Deus por o ter unido a semelhante Lucrécia -ninguém acha que se trate de loucura, porque isso, hoje em dia, é a coisa mais natural deste mundo." (p.63). Através do humor, Erasmo opera uma implacável desconstrução de todo um sistema de valores tomados como óbvios. Trata-se do desvelamento e desnaturalização de costumes tomados como naturais. Este tipo de discurso produz uma espécie de ruído de fundo constante à tentativa de afirmação de qualquer idéia de verdade. Já que falamos de Erasmo, além de O elogio da Loucura -uma das obras mais arrasadoras de valores e desveladora de hipocrisias sociais e que garante ao autor um lugar de destaque na vertente crítica-, é oportuno dizer que ele também pertence a outra tradição literária: a dos autores de manuais de boas maneiras. Estes manuais dizem respeito justamente à questão do controle do corpo. Em O processo civilizador, de Elias, e na História da vida privada, de Aries & Duby, encontramos análises de A civilidade pueril e de outras obras de Erasmo que, a um só tempo, nos mostram como o corpo passa a ser progressivamente alvo de auto-controle e observação, e revelam o quanto este processo foi longe e nos compreende. É impossível não rirmos diante das recomendações sobre como lidar com nossa glutonice e eventual necessidade de arrotar, urinar ou soltar gazes (em casos urgentes, estes últimos devem ser encobertos com uma tosse -boa dica...). Estamos de volta ao grotesco e nos parece inimaginável hoje que os próprios termos sejam incluídos num manual. Já no século XVIII, estas expressões desapareceram. Nosso riso à leitura destes velhos manuais nos mostram o quanto o princípio que os rege foi eficaz e age em nós; as normas que nos indicam que as funções corporais devem ser ocultas são absolutamente automatizadas e, por que não dizer, inconscientes. Creio que será interessante agora evocar como Elias trabalha o conceito de 'civilização'. A civilização expressa-se em um conjunto extenso de formas de expressão com
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