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1 INDÚSTRIA CULTURAL: UM DEBATE INESGOTÁVEL. Eduardo Henrique M. L. de Scoville1 RESUMO: Este artigo apresenta uma breve análise dos aspectos fundamentais dos conceitos de indústria cultural e reprodução mecânica da arte, apresentados por T.W. Adorno, M. Horkheimer e Walter Benjamin. Também pretende abordar os limites do conceito de indústria cultural. PALAVRAS-CHAVE: T.W. Adorno; M. Horkheimer; W. Benjamin; Indústria Cultural; Reprodução Mecânica da Arte. ABSTRACT: This article presents a brief analysis of fundamental insights of concepts of cultural industry and mechanical reproduction of art as conceived by T. W. Adorno, M. Horkheimer and Walter Benjamin. It also tries to access the limits of concept of culture industry KEYWORDS: .W. Adorno; M. Horkheimer; W. Benjamin; Cultural Industry, Mechanical reproduction of art. Introdução O conceito de indústria cultural, apresentado pela primeira vez por ADORNO; HORKHEIMER (1985) em 1947 detém uma série de críticas feitas por analistas afastados da dialética hegeliana e marxista e por outros que avistam nele, um caráter determinista, como COHN (1990), que afirma que a recepção planificada não ocorre. Entretanto, no início do século XXI, onde o neoliberalismo político e econômico tornou- se praticamente dominante no Ocidente, nota-se como a indústria do entretenimento se pôs a favor do status quo. Esta constatação leva a crer que o conceito ainda se 1 Eduardo Henrique Martins Lopez de Scoville. Bacharel em Ciências Econômicas, UFPR. Mestre em Sociologia, UFPR. Doutorando em História, UFPR. Professor das cadeiras de Sociologia, Economia Política, História Econômica Geral e História do Pensamento Econômico da UNIFAE (Curitiba, Paraná). 2 apresenta como um respeitável instrumento analítico da conjuntura e da estrutura da sociedade e das relações econômicas capitalistas. Pretende-se, neste artigo, verificar o conceito de indústria cultural e salientar alguns aspectos teóricos de ADORNO; HORKHEIMER (1985) no seu célebre texto “A indústria Cultural: O Esclarecimento Como Mistificação das Massas”, extraído de “A Dialética do Esclarecimento” e “A Indústria Cultural”, publicado em 1968 individualmente por ADORNO (1978). Este último trabalho foi baseado em algumas conferências radiofônicas realizadas por Adorno e constitui uma síntese teórica geral de todos os conceitos desenvolvidos tanto no texto citado anteriormente, publicado em parceria com Horkheimer, como em “Sobre o Caráter Fetichista da Música e a Regressão da Audição”, publicado em 1938 e “Sobre a Música Popular” de 1941. O trabalho de ADORNO; HORKHEIMER (1985) foi um contra-ataque a um texto de BENJAMIN (1994) publicado em 1936. A visão de BENJAMIN (1994) acerca da relação reprodução técnica e cultura de massa era parcialmente positiva enquanto que ADORNO; HORKHEIMER (1986) consideravam que a cultura de massa não é cultura e não provém da massa. As mensagens produzidas pela indústria cultural são planejadas e visam exclusivamente o consumo. A indústria cultural frustra a arte erudita e reprime a popular. A área industrializada acaba por manipular o receptor e recria a ideologia dominante. A reprodução técnica tornou-se primordial no processo de comercialização da obra de arte, portanto a existência da industria cultural, de acordo com os argumentos dos dois filósofos frankfurtianos, somente é possível através deste processo. Posta tal constatação, deve-se abordar também as considerações feitas por BENJAMIN (1994) no trabalho “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” escrito em 1936, uma das mais relevantes e densas análises sobre a obra de arte dentro do modo de produção capitalista. Como já citado, o conceito de indústria cultural sofre inúmeras críticas, principalmente pelo caráter determinista apontado por COHN (1990). No entanto, devemos salientar que o conceito de cultura na tradição alemã é díspar em relação ao conceito inglês, francês entre outros. O conceito de cultura alemã (Kultur) aponta que a arte – música, artes plásticas, filosofia e literatura - deve ser gerada pela inquietude do 3 espírito e simultaneamente deve representar a realidade. Ela deveria expressar os valores morais, estéticos e intelectuais de uma sociedade. A arte é um processo de humanização (ELIAS, 1990, p. 23-49). Portanto, verificando o conceito de cultura alemã, as considerações de Adorno, Horkheimer e Benjamin ainda despertam um grande debate. 1 Indústria cultural A indústria cultural, segundo ADORNO (1978), é um instrumento de opressão que camufla as contradições do capitalismo apontadas por MARX (1989). Portanto, sua função é homogeneizar e estimular o indivíduo à produção. 2 O termo indústria cultural foi apresentado por ADORNO; HORKHEIMER (1985) para distinguir a cultura popular e a cultura de massa. A formulação do conceito foi decorrente de uma reflexão sobre a cultura industrializada durante o período do nazismo. ADORNO; HORKHEIMER (1985) conceberia o conceito sob o impacto da ascensão nazista na Alemanha, onde todos os ramos da indústria cultural eram totalmente dirigidos para a estruturação daquele regime. Ao se refugiar Estados Unidos, ADORNO depara-se com uma indústria cultural enrustida, onde o objetivo maior era a camuflagem das contradições sociais e produtivas do capitalismo. O papel da indústria do entretenimento norte-americana possuía, segundo ADORNO (1978), características semelhantes ao da Alemanha do período do nazismo. Na depressão da década de 1930, o cinema, setor que foi exaustivamente explorado pela ideologia dominante, teve e têm como função, planificar os sentidos, desviando as atenções da população de suas condições. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 149) 2 Cabe ressaltar que o intuito deste trabalho não é adentrar nos conceitos de mais-valia absoluta e relativa e de acumulação primitiva e de capital formulados por Marx. Na analise da criação da mais-valia na esfera da produção (valor-trabalho), da concentração de capital e da queda da taxa de lucro, verificam-se, segundo Marx, as contradições do capitalismo. Para uma leitura básica destes conceitos, ver: COGGIOLA (1998). 4 Portanto, um dos pontos fundamentais para a análise de ADORNO (1978) foi o amadurecimento da indústria cinematográfica presenciado pelo autor. Tais impactos são fundamentais para a formação de sua teoria. A rigidez das empresas americanas voltadas para a comunicação era da mesma estirpe das empresas nazi-fascistas no que diz respeito à dominação. Apesar da primeira estar intimamente ligada a esta questão, a indústria cultural americana tinha também como característica, além da afirmação do modo de produção, o consumo de massa. A realidade vista por ADORNO (1978) foi que a maior parte das entidades culturais já haviam se transformado em mercadorias, e a cultura em uma indústria. Tudo havia se transformado em produto de consumo. Assim, não há necessidade de disfarçar o caráter puramente mercadológico, pois a cultura tornou-se um negócio. O termo indústria refere-se a uma padronização da produção, portanto há uma perda de individualização do objeto de arte, sendo que a diferenciação de tais objetos ocorre de forma marginal (ADORNO, 1978, p.288). Sob o peso dos monopólios, toda a civilização é idêntica e a ossatura de seu esqueleto conceitual fabricado por este modelo começa a se revelar. Os dirigentes não se preocupam mesmo em dissimula-las; a sua violência cresce à medida que sua brutalidade se mostra à luz do dia. O cinema e o rádio não têm mais a necessidade de se passar por arte. Não passam de um negócio, aí está a sua verdade e sua ideologia, queeles usam para legitimar o lixo que produzem propositalmente. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 114) ADORNO; HORKHEIMER (1985) abandonam o termo cultura de massa para designar a indústria cultural, pois este esconde o verdadeiro interesse que seria a própria submissão e afirmação da sociedade capitalista e sua estrutura. Como a definição de massa diz respeito a uma homogeneidade, a cultura é transformada então pela lógica do capital. 3 Na verdade, ADORNO; HORKHEIMER (1986) consideram que 3 Há uma dificuldade na definição de cultura popular. De uma forma geral, a cultura popular está relacionada com o folclore de um povo, o seu cotidiano. A cultura de massa é a não folclórica, é a cultura transformada em consumo. Para uma maior discussão ver: BÓSI, 1977, p. 53 – 72. 5 cultura de massa não é nem cultura e nem provém das massas. Ela é regida pela repetição e pela novidade. Acaba por não expressar reflexão e nem “inquietude de espírito” e sim consolidar hábitos e expectativas. A cultura de massa é imediatamente legível para a grande maioria dos expectadores e leitores. O conteúdo tem que ser compreensível, sem qualquer complexidade, onde a interpretação é obrigatoriamente literal. A indústria cultural não trabalha com Kultur e sim com entretenimento. O significado de cultura para ADORNO; HORKHEIMER (1986) é exatamente o oposto. Cultura é a não aceitação, é questionamento, é a reflexão. Assim, a indústria cultural jamais promoveria algo que não estivesse de acordo com o modo de produção, ou seja, um produto que promovesse a reflexão. Sendo assim, os meios de comunicação não trabalham com a imaginação, pois “pensar” significa não obedecer e sim buscar respostas. No lugar da cultura foi posta a necessidade de consumo criada pelo sistema capitalista. A cultura de massa não representa nenhuma manifestação de identidade, mas sim um produto, logo fator de reprodução capitalista. A cultura retornaria ao domínio de uma elite, paradoxalmente em relação às promessas da era das luzes. O conhecimento e a arte estariam confinados, tornando-se inacessíveis, portanto, a tomada de consciência não ocorreria, pois a cultura massificada esconderia as contradições e as diferenças sociais. Assim, ADORNO; HORKHEIMER (1985) apontam para a necessidade de desmascarar o papel da indústria cultural como um instrumento democratizante do conhecimento. 4 Outra característica é a despreocupação com a integridade de uma forma artística autêntica, pois há o interesse pelo efeito que o produto proporciona. Visa-se a criação de diversões que promovam uma fuga temporária das pressões cotidianas e da monotonia. O produto desta indústria reforçaria a convicção de que a negatividade do cotidiano é uma “fatalidade inquestionável”. As pessoas são obrigadas a conviver com esta ”fatalidade”, e com isso, buscam na diversão uma forma de se esquivarem da mecanização do cotidiano. Essa diversão isenta de esforços intelectuais, tanto de caráter intimista quanto de consciência coletiva, atuam como estimulante à reprodução. 4 Esta condição determina, segundo BENJAMIN (1995 b), o surgimento da barbárie. 6 O indivíduo, em seu momento de lazer, somente tem acesso á reproduções do próprio trabalho e, portanto, acaba por identificar-se com elas. A diversão é o prolongamento do trabalho (...) é procurada por quem quer escapar ao processo mecanizado do trabalho (...) mas a mecanização atingiu um tal poderio sobre a pessoa (...) que ela determina (...) a fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não pode perceber outra coisa se não as cópias que reproduzem o próprio processo de trabalho. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128) A indústria cultural padroniza e unifica para o modo de produção capitalista de forma a integrar o indivíduo à produção e ao consumo. Assim, torna-se possível o controle tanto das crenças como dos impulsos individuais. A indústria cultural homogeneíza para a atual ordem social e produtiva. Segundo ADORNO (1978, p. 288), “é uma integração deliberada, a partir do alto, de seus consumidores.” As atividades culturais são dirigidas e controladas, pois houve um processo de concentração econômica e administrativa (ADORNO, 1978, p. 289). A produção e o consumo determinam o processo de integração do indivíduo na sociedade, pois há um controle total em relação à vontade de consumir que simultaneamente legitima a dominação. Uma subserviência voluntária. O desejo de consumo seria renovado pelo progresso técnico e científico e por fim haveria um total planejamento racionalizado da sociedade (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.130). Em todos os ramos da indústria cultural é atribuído à arte características que adicionam uma qualidade que promove um produto adaptado ao consumo das massas. A indústria assimila uma arte ou manifestação popular e atribui características que garantam o seu consumo e mantenha consolidada a dominação. Segundo ADORNO (1978), esta indústria especula com a consciência e a inconsciência das pessoas e, estas constituem um elemento de cálculo para a produção. A indústria cultural parece sondar as camadas sociais e delas retirar as tendências e manifestações culturais que, ao adentrarem no processo produtivo, são destituídas de suas características 7 autênticas através de atributos inseridos pela grande indústria. Estes atributos promovem o consumo de massa. A comercialização de seus produtos é feita segundo as posses das camadas sociais, o que determina uma planificação da produção. Segundo ADORNO (1978, p. 289), "as mercadorias culturais da indústria se orientam segundo o princípio de sua comercialização e não segundo seu próprio conteúdo e sua figuração adequada.” A dedicação por parte da indústria aos ganhos do produto é visível. Mas além dos ganhos, a indústria tem que atribuir elementos que promovam a alienação e a efemeridade. A conciliação entre lucro e efeito fez do produto de consumo de massa um importante instrumento de dominação que embarca também o próprio produtor. Com isso, as “criações espirituais”, como ADORNO; HORKHEIMER (1985) prefere definir, estão fadadas ao desaparecimento. O produtor referido passa a ser considerado como um elemento chave para a indústria. Ele passa a adequar a sua arte e a racionaliza, segundo o modo de produção capitalista. Ou seja, ele incorpora características que propiciam o consumo de massa. Tornando-se uma mercadoria consumida em larga escala a obra proporcionaria lucros tanto para a indústria fonográfica, através da venda de seu produto, quanto para o produtor, que alcança os ganhos desejados pelos direitos autorais. “Toda a práxis da indústria cultural transfere, sem mais, a motivação do lucro às criações espirituais. A partir do momento em que essas asseguram a vida de seus produtores, elas já estão contaminadas por essa motivação.” (ADORNO, 1978, p. 290) Com a reprodução, o papel do produtor se intensifica, pois os ganhos se tornam ainda maiores. No caso da música, o papel da reprodução é extremamente visível. O ato “sagrado” de ouvir um concerto ao vivo e o prazer proporcionado por isto, é substituído através da execução mecânica. O produtor vê possibilidades de lucros cada vez maiores através da reprodução de sua obra e a “criação espiritual” acaba por ser transformada em mercadoria. Não importa mais o que se faz e sim o que se ganha. Por fim, o produtor massifica a sua obra, adicionando atributos que permitam concomitantemente resultar em consumo e alienação (ADORNO, 1978, p. 291). 8 O conteúdo massificado da música foi amplamente teorizado por ADORNO (1996). Muitos criticam os aspectos elitistas impressos neste, principalmente na questão da recepção.Mas a contribuição de ADORNO (1996) é inegável e a contemporaneidade de vários aspectos de suas análises é visível. ADORNO (1996) abandona a questão do gosto musical como o verdadeiro objeto de análise da música de massa. O gosto se reduziu, na visão de ADORNO (1996), ao mero reconhecimento da música de sucesso. O reconhecimento da massa no que é familiar, segundo ADORNO (1996), é a essência da audição. As fórmulas de sucesso populares são repetidas no mesmo padrão. Ou seja, se um determinado padrão tornou-se um êxito comercial, esta fórmula será repetida de forma que o consumo ocorra de forma pacífica. A música padronizada exemplifica a padronização de todos os objetos da indústria cultural. ADORNO (1996) justifica esta padronização pelo fato de que as necessidades se tornaram iguais. Como citado anteriormente, a obra contém características que permitam o “ócio” intelectual, assim, ocorre uma pacificação social e o aniquilamento da “música séria”. O comportamento valorativo é quase impossível para um indivíduo cercado de música padronizada. Para o indivíduo, gostar de música é reconhecer se ela é um sucesso reconhecido pelos outros. O comportamento valorativo tornou-se uma ficção para quem se vê cercado de mercadorias padronizadas. Tal indivíduo não consegue subtrair-se ao jugo da opinião pública, nem tampouco pode decidir com liberdade quanto ao que lhe é apresentado, uma vez que tudo o que se lhe oferece é idêntico ou semelhante que a predileção, na realidade, se prende apenas ao detalhe biográfico, ou mesmo na situação concreta em que é ouvida. (ADORNO, 1996, p. 66) A “música séria”, apontada por ADORNO (1996), é descartada com facilidade do gosto popular, através de rótulos que promovem antecipadamente a objeção por parte do ouvinte. E, por fim, o entretenimento da música desaparece, assim como o 9 comportamento valorativo. A música acaba por contribuir para o emudecimento dos homens (ADORNO, 1996, p. 68). 2 A reprodução da arte No célebre trabalho “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, BENJAMIN (1994) expõe que a arte ao ser difundida através de sua reprodução permitirá uma maior difusão da cultura por todas as classes sociais e com isso proporcionará o surgimento de um novo tipo de arte que romperia com os conceitos tradicionais. Segundo BENJAMIN (1994), a estrutura já está modificada e não poderíamos voltar para trás. Portanto, a “nova arte” seria inevitável, pois a reprodução técnica já alterou inclusive o conceito tradicional de arte. A visão de BENJAMIN (1994) a cerca do papel do cinema demonstrava um otimismo não verificado pelos demais frankfurtianos em relação à reprodução e a cultura de massa. O público poderia ser extremamente conservador em relação a um quadro de Klee ou a uma obra de Kafka. No entanto, era receptivo e progressista a um filme de Chaplin. O público do cinema, segundo Benjamin, poderia unir distração e crítica.5 Ou seja, poderia ser capaz de unir o entretenimento com o exame desta 5 Os conceitos de BENJAMIN (1994), nitidamente provindos dos prognósticos de MARX (1989), demonstram-se consistentes, principalmente no que se refere à transitoriedade da percepção das massas (BENJAMIN, 1994, p. 165). A partir desta constatação, o autor adentra pioneiramente na percepção do que é “modernidade”. O caráter pioneiro de BENJAMIN (1994) na questão da “modernidade” é visível principalmente no desaparecimento da tradição cultural na sociedade capitalista, na conjugação “tempo” e “espaço” vindo do conceito de “aura”, nas mudanças estéticas e na concepção do indivíduo desamparado e sem crença. É a figura do flaneur, o que foi marginalizado dentro da ascensão do capitalismo e que é relegado dentro de uma modernidade que assistiu o nascimento dos sistemas totalitários. O flaneur não se engaja em nenhuma atividade produtiva. Seu andar é lento, ele não tem objetivo, não chegou ao mercado, fez da ociosidade uma arte - seu ócio é o tempo que leva no labirinto, antes de chegar ao mercado, onde ele reluta em chegar, perdendo-se na cidade que conhece tão bem. “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo do seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente” 10 distração. “A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os domínios da arte e constitui o sintoma de transformações profundas nas estruturas perceptivas, tem no cinema o seu cenário privilegiado.” (BENJAMIN, 1994, p. 194) Assim, a arte cinematográfica possui a capacidade de estimular uma recepção mais crítica. O cinema, segundo o autor, é capaz de mostrar características que dominam nossas vidas e que antes não eram possíveis de serem vistas. A arte sempre estimula nossas sensibilidades para conseguirmos visualizar novas possibilidades e para enfrentarmos novos desafios. Este estímulo provém exatamente da expansão do mundo de objetos que podemos observar. Portanto, através da reprodução a difusão da cultura por todas as classes sociais promoveria uma “desparticularização” da obra e com isso perderia a sua função “parasitária” como define o autor. A reprodução permitiu que a obra perdesse o seu valor de culto ou “ritualidade” e o seu valor agora é medido pelo alcance proporcionado. Ou seja, o seu valor será verificado pelo grau de exposição. A reprodução da arte inseriu a cultura dentro do processo de desenvolvimento capitalista e, por muitas vezes, o ajudou a afirmar-se, escondendo as suas contradições internas. No decorrer deste século, demonstrou-se que o processo de reprodução é inerente à grande indústria, adotando todas as características do modo de produção vigente. Como já mencionamos, para ADORNO (1978) é impossível o surgimento de uma arte autêntica que não esteja relacionada com a reflexão. A arte, agora transformada em produto de consumo, irá atender ás exigências do mercado e às suas atribuições ideológicas. Com isso o valor de uso da arte transformou-se em valor de troca. Toda a mercadoria é resultado de um processo de alienação, onde se escondem todas as contradições do capitalismo e contém em si o valor de troca, que é à base do sistema capitalista. Segundo ORTIZ (1986, p. 55), a crítica de ADORNO (1978) em relação às considerações de BENJAMIN (1994) recai na concepção da dialética. “Em sua crítica, Adorno dirá que Benjamin esquece o lado dialético da questão: subestima a arte tradicional no que ela tem de negadora da sociedade real, e supervaloriza a dimensão crítica de uma cultura massificada.” (BENJAMIN, 1994, p. 169). Para maiores detalhes sobre a figura do flaneur, ver: ARENDT (1987, p.133- 176) e BENJAMIN (1995b, p.33-101). 11 Perceptivelmente, ADORNO (1978) está se referindo ao papel da “técnica” e seus efeitos. Para o autor, o conceito de “técnica” guarda dentro de si a racionalidade instrumental e esta permitiu o aprimoramento da técnica. Com isso, a técnica é a própria racionalidade da dominação. Ela é um processo que homogeneíza a obra de arte e, através da produção em série, faz com que a obra perca a sua relação com a realidade social. Assim a obra de arte massificada acaba por carregar um conteúdo ideologizado que é fruto da racionalidade técnica. No entanto, BENJAMIN (1994) não concede à reprodução da arte uma visão totalmente positiva. Ao contrário do que ADORNO (1978) propôs, BENJAMIN (1994) compreendeu que a reprodução pôs de lado a autenticidade, a criatividade,o gênio e a forma, sendo que, de modo descontrolado, conduz ao que o autor definiu como meio de elaboração de dados no sentido fascista (BENJAMIN, 1994, p. 168). As observações feitas por BENJAMIN acerca da autenticidade e da criatividade vão além das formulações de ADORNO (1978). BENJAMIN (1994) considera o caráter subjetivo da arte de maneira mais concreta e a insere na reprodução capitalista analisada por MARX (1986). Além disso, é visível para o autor que a reprodução promoveria uma “estetização da política” e poderia também gerar uma banalização da obra se não houvesse o surgimento de novas expressões artísticas (BENJAMIN, 1994, p. 195). Para compreendermos melhor esta questão torna-se necessário verificar o conceito de “aura” e o seu desaparecimento como fenômeno da modernidade. A obra sempre foi reprodutível, no entanto, a reprodução técnica representa um novo processo. A importância do talento humano para a reprodução é eliminada sendo que a técnica a substitui de forma mais eficaz e perfeita. Segundo BENJAMIN (1994, p. 167), “a reprodução técnica do som iniciou-se no fim do século passado. Com ela, a reprodução técnica atingiu tal padrão de qualidade que ela não somente podia transformar em seus objetos a totalidade das obras de arte tradicionais, submetendo-as a transformações profundas, como conquistar para si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.” Há uma perda na obra, mesmo na reprodução mais perfeita. A perda refere-se ao que o autor definiu como “o aqui e agora da obra de arte”. Ou seja, a perda de uma 12 existência única, do “todo”. Esse “todo” é o que constitui a autenticidade da obra, sua visão e compreensão mais completa e isso escapa da reprodutibilidade técnica (BENJAMIN, 1994, p. 167). A obra original preserva a sua autenticidade. E a autenticidade, como afirma o autor, “é a quitenssência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem, através da reprodução, também o testemunho se perde.” (BENJAMIN, 1994. P.168) A reprodução, no entanto, possui algumas características apontadas pelo autor: a reprodução tem maior autonomia, pois ela pode ajustar o seu ângulo de observação, acentuando certos aspectos; ela pode fixar arbitrariamente uma situação impossível ao original. Assim, BENJAMIN (1994) conclui que o conteúdo total pode ficar intacto ou mesmo, não observável. A reprodução pode também fixar certos pontos que impedem ou simplificam a compreensão total da obra. Assim, é destruída a “aura”. Segundo o autor, a “aura” é uma figura singular, a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela possa parecer. Ele exemplifica como um galho que projeta sua sombra sobre nós. “Neste momento estaríamos assimilando o galho através de sua sombra. Retirar o objeto do seu invólucro, destruir a sua aura, é a característica de uma forma de percepção cuja capacidade de captar o semelhante no mundo é tão aguda, que graças à reprodução ela consegue captá-lo até no fenômeno único.” (BENJAMIN, 1994, p. 171) A emancipação da obra que, através da reprodução técnica, perde a sua função ritual; ritualidade esta definida como uma característica “teológica”, constitui outro ponto de reflexão (BENJAMIN, 1994, p. 173). A obra passa a ser produzida a partir de uma obra criada para ser reproduzida. Neste ponto, BENJAMIN (1994) atinge o ápice de sua análise, onde a “contemporaneidade” de suas considerações se tornam visíveis. A eliminação da “aura” e da autenticidade projeta na obra de arte o caráter de um objeto, este destituído das “virtudes” anteriormente citadas. Portanto, desaparece a referência original da obra e suas funções críticas. A função social da obra se transforma em uma função política e, com isso, prevê-se uma difusão maciça com uma 13 criação para a coletividade. Ressalta o autor que esta difusão atinge todos os ramos produtivos e políticos da sociedade. Ela não só atende determinados fins políticos como também os aspectos econômicos que passam a ser dominantes. BENJAMIN (1994), ao contrário de ADORNO (1978), releva a questão da percepção do público. Enquanto ADORNO (1978) verificava que a reprodução técnica determinou uma padronização do produto, BENJAMIN (1994) permitiu que o receptor, no caso, o espectador, pudesse ter uma noção crítica do produto massificado. Ambos autores visualizaram o caráter repressivo que a produção em massa poderia assumir. BENJAMIN (1994) jamais descartaria este fator. A obra de arte quando entra no processo de produção através da reprodutibilidade técnica, pode perder a sua compreensão total perante as massas através da distorção de seus significados promovida pela indústria. No entanto, o receptor não é um ser totalmente passivo. 3 A limitação do conceito de adorno Para COHN (1990, p.6), ADORNO (1978) cai em uma teoria determinista onde não ocorrem reações isoladas, e o que ele definiu como “consciência reificada".6 determina que a consciência do indivíduo é um mero reflexo das condições sociais vigentes. A consciência, ainda segundo COHN (1990, p. 7), não é um mero reflexo destas condições, apesar de não ser concebida isoladamente destas. O conceito adorniano de cultura (o protesto perene do particular frente à generalidade) omite relações isoladas e auto-suficientes. Historicamente, os períodos transitórios de estabilidade para os períodos de mudanças promoveram relações em que o “velho” ainda não desapareceu e o “novo” ainda não se consolidou. Nestas condições, nem todas as atividades se relacionam ou se reproduzem conforme os padrões 6 Que consiste na conjugação entre a articulação que furta a consciência e a incapacidade de reflexão através da subordinação, segundo COHN (1990,. p.7). 14 determinados. São momentos históricos não consolidados, mas não completamente desvinculados do processo de formação total. COHN (1990) aponta para o fato de que as definições de ADORNO (1978) estão presas a um sistema fechado onde todas as relações são recíprocas. No conceito de indústria cultural, ocorrem determinações que generalizam a produção e distribuição sendo que a cultura perde totalmente sua autonomia. No entanto, não se deve supor que a cultura seja totalmente subordinada à indústria. Para além de reconhecer as implicações da impossibilidade de pensar-se a cultura sem considerar as determinações da produção econômica, trata-se de examinar como se realiza, nas condições próprias do capitalismo, a circunstância de que a supremacia da lógica econômica do mercado sobre as determinações culturais afetam ambos os termos da unidade ao se umbricarem no interior do próprio processo cultural (COHN, 1990, p. 11). O autor desvincula o termo cultura de indústria, sendo que uma afeta diretamente a outra tanto no processo de formação cultural como o da própria produção capitalista. Outro ponto relevante apontado por COHN (1990), é de que a própria obra de arte, que se encontra nos produtos da indústria cultural, apresenta-se em inúmeros níveis de efeito. Não há uma tendência por parte dos que dominam a indústria cultural em operar com vistas a um mercado indiferenciado, e sim estratificado. Esse mercado estratificado impõe limites ao planejamento dos efeitos, pois os consumidores reagem diferentemente. Portanto, não há diferenças superficiais de consumo, o que há é uma especificidade deste. Considerações Finais A definição de ADORNO; HORKHEIMER (1985) é válida para a produção dirigida ao consumo em massa. Apesar das limitações apontadas por COHN (1990), ela é pertinente no que diz respeito a esse tipo de consumo. Estaslimitações ligam-se à 15 possibilidade de ADORNO (1978) ignorar fatos como a resistência ao consumo e a arte não massificada, que subsistem em meio à demanda do consumo de massa. Apesar de constituir uma produção paralela, ligada a pequenos nichos, ela foge, em parte, dos conceitos adornianos. Essas “resistências” descomprovam a definição de ADORNO (1978) que tem sua validade apenas à produção ligada a uma estrutura totalmente planificada e com relações recíprocas e horizontais e sem a formação de “nichos culturais”, apontados por COHN (1990). Destarte, COHN (1990) apresenta uma situação onde ocorre uma não aceitação, por parte de um pequeno número de pessoas das imposições culturais e das distorções. Como já descrito, a indústria cultural procura unificar a sociedade para a ideologia e para o modo de produção vigente. A indústria cultural na medida do possível procura homogeneizar a sociedade na ideologia da ordem existente. O surgimento da reprodução técnica permitiu que a arte se estabelecesse como instrumento da política, na visão de BENJAMIN (1994), e possuir um caráter repressivo como enfoca ADORNO (1978). No entanto, lhe escapa o controle total. A proposta de ADORNO (1978) é pertinente à produção massificada. As suas considerações acerca da aceitação por parte da maioria das pessoas das formulas padronizadas impostas pela indústria e a forma como é desvinculada a identidade cultural mostram-se verdadeiras e atuais. No entanto se eliminarmos o comportamento valorativo ele também está eliminando o papel do receptor. O mesmo ocorre se considerarmos que todo o imaginário social é unificado e padronizado assim como as suas relações simbólicas. Cabe ao produtor e ao receptor fazer esta distinção. Neste ponto, BENJAMIN (1994) deixa um campo aberto para a questão da expressão da arte, devido ao caráter de prognóstico que ele mesmo assume. As alterações são possíveis devido ao fato de que a percepção das massas se altera com os anos. O conceito de arte já foi alterado devido à reprodução técnica. BENJAMIN (1994) está correto ao afirmar que não podemos mais retroceder. A reprodução está presente e ela faz parte da obra. A difusão da obra permitiu que milhares de pessoas pudessem ter acesso a ela. Assim o papel do produtor e do receptor se alterou e não há como retornar. 16 ADORNO (1978) ainda vislumbrava o papel da música executada ao vivo e a possibilidade de todos admirarem as notas dissonantes de Schoenberg. A música ainda é executada em concertos e Schoenberg é reconhecido até os tempos atuais devido ao processo de reprodução de suas obras. A obra sobrevive de acordo com o seu caráter estético, que depende do produtor, e da sensibilidade de alguns receptores em absorver o conteúdo. O produtor que adapta a sua obra ao consumo de massa existe e provavelmente é regra. No entanto existem outros que não estão preocupados exclusivamente com o que se ganha. Quando MARX (1989) argumentou que a partir do momento em que a cantora é contratada para dar concertos, ela se torna um trabalhador produtivo, pois gera capital, ela não foge de uma realidade incontestável. Mas o papel do produtor não pode ser eliminado. Se o produtor está inserido na padronização da indústria e atende os seus objetivos, ele massifica a sua arte. No entanto, sempre há os que não atendem às pressões mercadológicas, mesmo sendo trabalhadores produtivos. A obra de arte pode se vincular ou não à produção de massa. O que pode haver é uma estratificação no mercado. A sobrevivência no mercado não é restrita única e exclusivamente no consumo de massa. Existem áreas de atuação, promovidas por uma série de receptores que não estão dispostos a consumir o produto massificado, que podem garantir a existência do produtor independente. Estes “nichos”, recorrendo a COHN (1990), não estão desvinculados do modo de produção capitalista, no entanto eles comprovam que ADORNO (1978) não observou a possibilidade da sobrevivência simultânea da “alta cultura” com a “cultura de massa”. Mas elas não são postas juntas e não significam a mesma coisa. Elas acabam por ser direcionadas, mesmo sendo mercadorias. A comunicação de massa pode garantir a difusão da obra ideologizada, mas não reprime por completo a que não atende aos preceitos do modo de produção vigente. A falta de difusão pode relegar a obra a uma pequena audiência, mas ela sempre existirá, por mais restrita que esta audiência seja. O problema é que o interesse pela arte que busca uma maior independência em relação ao modo de produção é cada vez menor, devido à atuação dos medias. Assim, podemos afirmar que as 17 considerações de ADORNO (1978) podem ser plenamente direcionadas para a análise do consumo de massa totalmente planificado. Referências Bibliográficas ADORNO, T.W. “A indústria cultural.” In: COHN, Gabriel (Org.), Comunicação e indústria cultural, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. _____________. “O fetichismo da música e a regressão da audição.” In: Os pensadores, São Paulo:Ed. Nova Cultural, 1996. ADORNO, T.W. e HORKHEIMER M. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:Ed. Jorge Zahar, 1986. ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo:Ed. Companhia das Letras, 1987. p.133-176. ASSOUN, Paul-Laurent. A Escola de Frankfurt. São Paulo:Ed. Àtica,1991. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política, Obras Escolhidas Vol. I. São Paulo:Ed. Brasiliense, 1994. _______________. 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Bertrand Brasil, 1989. ORTIZ, Renato. “A escola de Frankfurt e a questão da cultura”. Revista Brasileira Ciências Sociais, junho,nº 01, 1986. p. 43-65.
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