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Autor: Prof. Alexandre Cavalcante de Queiroz Colaboradoras: Profa. Roberta Pasqualucci Ronca Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano Fundamentos de Ações Preventivas em Saúde Professor conteudista: Alexandre Cavalcante de Queiroz Graduado em Odontologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), em 1996. Especialista em Endodontia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Mestre em Ciências Biológicas (Microbiologia) pela Universidade de São Paulo (USP), em 2001. Doutor em Patologia Ambiental e Experimental pela Universidade Paulista (UNIP), em 2017. Desde 2005, é gestor do Instituto Karis, órgão que atua na promoção da saúde de forma gratuita, atendendo muitas crianças da região da zona leste da cidade de São Paulo. Atualmente, é professor titular da UNIP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Q3f Queiroz, Alexandre Cavalcante. Fundamentos de Ações Preventivas em Saúde / Alexandre Cavalcante Queiroz – São Paulo: Editora Sol, 2020. 108 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Doenças transmissíveis. 2. Processo epidêmico. 3. Indicadores de saúde. I. Título. CDU 614 U505.60 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vitor Andrade Ingrid Lourenço Sumário Fundamentos de Ações Preventivas em Saúde APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................9 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................9 Unidade I 1 HISTÓRIA NATURAL DAS DOENÇAS ......................................................................................................... 11 1.1 O conceito de saúde e doença ........................................................................................................ 11 1.2 O processo saúde-doença ................................................................................................................. 11 1.2.1 Teoria mística............................................................................................................................................ 12 1.2.2 Teoria dos miasmas ................................................................................................................................ 12 1.2.3 Teoria unicausal ....................................................................................................................................... 13 1.2.4 Teoria multicausal .................................................................................................................................. 13 1.2.5 Teoria da determinação social do processo saúde-doença ................................................... 14 2 SURGIMENTO DO MODELO DE HISTÓRIA NATURAL DAS DOENÇAS (HND) ............................ 15 2.1 O modelo de história natural da doença .................................................................................... 16 2.2 Período pré-patogênico ..................................................................................................................... 17 2.2.1 Agente ......................................................................................................................................................... 18 2.2.2 Hospedeiro ................................................................................................................................................. 18 2.2.3 Meio ............................................................................................................................................................. 18 2.3 Período patogênico ............................................................................................................................. 19 2.3.1 Período patogênico pré-clínico ......................................................................................................... 19 2.3.2 Período patogênico clínico ................................................................................................................. 20 2.4 Desfecho .................................................................................................................................................. 20 3 NÍVEIS DE PREVENÇÃO ................................................................................................................................. 20 3.1 Prevenção primária .............................................................................................................................. 21 3.1.1 Promoção da saúde................................................................................................................................ 21 3.1.2 Proteção específica ................................................................................................................................ 22 3.2 Prevenção secundária ......................................................................................................................... 22 3.2.1 Diagnóstico precoce e tratamento imediato ............................................................................... 22 3.2.2 Limitação de incapacidade ................................................................................................................. 23 3.3 Prevenção terciária .............................................................................................................................. 23 3.4 Ações de prevenção e prática médica ......................................................................................... 24 3.5 Uma nova promoção da saúde ....................................................................................................... 25 3.6 Origens da nova promoção da saúde (NPS) .............................................................................. 25 3.7 Princípios da nova promoção da saúde ...................................................................................... 26 4 EPIDEMIOLOGIA GERAL DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS ............................................................. 27 4.1 Patologia, infecção e doença ........................................................................................................... 27 4.2 Etiologia das doenças infecciosas ................................................................................................. 27 4.3 Fatores predisponentes ...................................................................................................................... 28 4.4 Desenvolvimento da doença ........................................................................................................... 28 4.4.1 Período de incubação ............................................................................................................................ 28 4.4.2 Período prodrômico ...............................................................................................................................29 4.4.3 Período de doença .................................................................................................................................. 29 4.4.4 Período de declínio ................................................................................................................................. 29 4.4.5 Período de convalescência .................................................................................................................. 29 4.5 Disseminação da infecção ................................................................................................................ 29 4.5.1 Reservatórios de infecção ................................................................................................................... 29 4.6 Transmissão de doenças .................................................................................................................... 31 4.6.1 Transmissão por contato ...................................................................................................................... 31 4.6.2 Transmissão por veículo ....................................................................................................................... 31 4.7 Vetores ...................................................................................................................................................... 32 4.8 Como os microrganismos infectam o hospedeiro .................................................................. 33 4.9 Portas de entrada ................................................................................................................................. 33 4.9.1 Membranas mucosas ............................................................................................................................. 33 4.9.2 Pele ............................................................................................................................................................... 34 4.9.3 Via parenteral ........................................................................................................................................... 34 4.9.4 As portas de entrada preferenciais .................................................................................................. 34 4.10 Portas de saída .................................................................................................................................... 35 4.11 Tipos de imunidade............................................................................................................................ 36 4.12 Conceito de imunidade ................................................................................................................... 36 4.13 Primeira linha de defesa: pele e membranas mucosas ...................................................... 37 4.13.1 Fatores físicos ........................................................................................................................................ 37 4.13.2 Fatores químicos ................................................................................................................................... 39 4.14 Segunda linha de defesa ................................................................................................................ 40 4.14.1 Elementos constituintes do sangue ............................................................................................. 40 4.14.2 O sistema linfático ............................................................................................................................... 42 4.14.3 Fagócitos .................................................................................................................................................. 43 4.14.4 Inflamação .............................................................................................................................................. 43 4.14.5 Febre .......................................................................................................................................................... 44 4.15 Imunidade adaptativa ...................................................................................................................... 45 4.15.1 Natureza dupla do sistema imune adaptativo ......................................................................... 46 4.16 Antígenos .............................................................................................................................................. 48 4.17 Anticorpos ............................................................................................................................................ 48 4.18 Tipos de imunidade adaptativa .................................................................................................... 48 Unidade II 5 PROCESSO EPIDÊMICO E PREVENÇÃO DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS ................................ 55 5.1 Processo epidêmico ............................................................................................................................. 55 5.2 Variações temporais dos fenômenos epidemiológicos ......................................................... 55 5.3 Variações temporais que ocorrem em intervalos curtos de tempo ................................. 55 5.3.1 Endemias e epidemias ........................................................................................................................... 56 5.4 Detecção de epidemias ...................................................................................................................... 58 5.5 Prevenção das doenças transmissíveis ........................................................................................ 59 5.5.1 Medidas de proteção individual ....................................................................................................... 60 5.5.2 Imunização ativa (vacinação) ............................................................................................................ 60 5.5.3 Imunização passiva ................................................................................................................................ 60 5.5.4 Quimioprofilaxia ...................................................................................................................................... 60 5.5.5 Medidas de barreira química ou física ........................................................................................... 61 5.5.6 Diagnóstico precoce e tratamento .................................................................................................. 61 5.5.7 Medidas de intervenção no ambiente ............................................................................................ 61 5.5.8 Vigilância .................................................................................................................................................... 61 6 FONTES DE DADOS DEMOGRÁFICOS E DE MORBIDADE: INDICADORES DE SAÚDE............ 63 6.1 Dados de registro contínuo .............................................................................................................. 63 6.2 Censo populacional e sua evolução no Brasil .......................................................................... 64 6.3 Sistemas de informação em saúde ............................................................................................... 65 6.3.1 Dados ........................................................................................................................................................... 65 6.4 Definição de indicador ....................................................................................................................... 66 6.5 Morbidade: importância no diagnóstico de saúde da coletividade ................................ 66 6.6 Obtenção de dados de morbidade ................................................................................................ 67 6.6.1 Análisedos indicadores de morbidade: fontes de dados ....................................................... 68 6.7 Acesso e qualidade das estatísticas de saúde ........................................................................... 70 6.8 Indicadores de morbidade ................................................................................................................ 70 6.8.1 Incidência ................................................................................................................................................... 70 6.8.2 Prevalência ................................................................................................................................................ 71 6.8.3 Expectativa de vida ................................................................................................................................ 72 6.8.4 Taxa de fecundidade .............................................................................................................................. 73 6.9 Indicadores de mortalidade ............................................................................................................. 74 6.9.1 Mortalidade geral ................................................................................................................................... 75 6.9.2 Mortalidade por causas ........................................................................................................................ 75 6.9.3 Mortalidade infantil ............................................................................................................................... 76 6.9.4 Mortalidade materna ............................................................................................................................ 76 7 REGISTRO DE EVENTOS VITAIS E CLASSIFICAÇÃO INTERNACIONAL DE DOENÇAS ......................................................................................................................................................... 77 7.1 Nascimentos ........................................................................................................................................... 77 7.2 Óbitos ........................................................................................................................................................ 79 7.3 Classificação Internacional das Doenças: importância nas taxas de mortalidade .............................................................................................................................................. 81 7.3.1 Mortalidade específica por causa .................................................................................................... 81 7.3.2 Coeficiente de mortalidade geral ..................................................................................................... 81 8 PRINCIPAIS ÍNDICES, PROPORÇÕES E COEFICIENTES RELACIONADOS AO NÍVEL DE SAÚDE DA POPULAÇÃO (GLOBAIS E ESPECÍFICOS) .................................................... 82 8.1 Situação de saúde no mundo ......................................................................................................... 82 8.2 Indicadores de desenvolvimento social....................................................................................... 83 8.2.1 Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) .................................................................................. 83 8.2.2 Relatório de Desenvolvimento Humano (RDH) .......................................................................... 84 8.2.3 Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) no Brasil ..................................... 84 8.3 Esperança de vida ................................................................................................................................. 87 8.4 Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) .................................................................. 88 8.5 Violência no campo da saúde ......................................................................................................... 92 8.5.1 Mortalidade: o impacto fatal da violência ................................................................................... 93 9 APRESENTAÇÃO O propósito deste livro-texto é destacar os fundamentos de ações preventivas em saúde. O termo prevenir significa antecipar-se a um evento ou mesmo evitá-lo. A prevenção em saúde pública é a ação antecipada, tendo como objetivo interceptar ou anular a evolução de uma doença. O fisioterapeuta não deve ser o profissional que atua exclusivamente no momento em que a doença ou a disfunção já se estabeleceram. É indiscutível que o fisioterapeuta possui um importante papel no campo da reabilitação física, principalmente quando atua em conjunto com outras profissões do campo da saúde, agindo de forma interdisciplinar. Com a solidificação do conhecimento científico e a expansão do perfil profissional, o fisioterapeuta continua a ampliar seu mercado de trabalho, estando presente tanto nos cenários já tradicionais (hospitais e clínicas) como em outros cenários (centros hípicos, indústrias, escolas, entidades filantrópicas, centros universitários, centros de pesquisa, empresas comerciais). INTRODUÇÃO Este livro destina-se a servir como instrumento de aprendizagem para os estudantes a respeito das ações preventivas em saúde de modo atrativo e didático. O material exposto tem por objetivo apresentar de forma clara e concisa os conceitos mais relevantes da saúde. Assim, o estudante deverá estar apto a reconhecer os mecanismos de fiscalização e controle da qualidade relacionados à saúde e os desvios do estado de saúde, reconhecer e interpretar a evolução das doenças e elaborar um plano preventivo, além de ter um procedimento terapêutico. Inicialmente, serão estudados a história natural da doença (período pré-patogênico e patogênico) e os níveis de prevenção (primária, secundária e terciária). Também serão acentuados itens como epidemiologia geral das doenças transmissíveis; características dos agentes infecciosos e suas relações com o hospedeiro; fontes de infecção/infestação; portas de entrada e vias de eliminação; ainda serão estudados os conceitos e os tipos de imunidade. Depois, o foco será o processo epidêmico: endemia, epidemia e pandemia. Serão ilustrados os seguintes elementos: aspectos diferenciais dos níveis de intervenção; prevenção das doenças transmissíveis; medidas referentes à fonte de infecção, às vias de transmissão e ao hospedeiro; levantamentos, fontes de dados demográficos e de morbidade; importância no diagnóstico de saúde da coletividade; indicadores de saúde; registros dos eventos vitais (nascimentos e óbitos): documentos e fluxos; classificação internacional de doenças. Por fim, serão vistos os principais índices, as proporções e os coeficientes relacionados ao nível de saúde da população (globais e específicos). 11 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE Unidade I 1 HISTÓRIA NATURAL DAS DOENÇAS 1.1 O conceito de saúde e doença A conceituação de saúde e doença é complexa. Muitas foram as tentativas para defini-las, por isso em cada período histórico é possível encontrar as mais diferentes interpretações. A saúde já foi considerada uma espécie de silêncio orgânico, ou seja, do ponto de vista fisiológico existe um estado de harmonia e equilíbrio funcional em que os diversos sistemas e aparelhos não apresentam sinal de irregularidade. Essa é uma forma de conceber a questão de um ponto de vista apenas individual e clínico, que deixa de lado as dimensões mental e social. Além disso, é óbvio que não é possível considerar saudável uma pessoa que esteja com uma infecção ou com qualquer doença em estágio subclínico. O conceito de saúde no dicionário é “o estado do indivíduo cujas funções orgânicas, físicas e mentais se acham em situação normal”. Contudo, vêm à tona as seguintes questões: o que é uma situação normal? Qual é a linha divisória entre a normalidade e a anormalidade,entre a sanidade e a insanidade? Outra maneira de conceituar saúde foi apresentada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948: “Saúde é um completo estado de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças” (SEGRE; FERRAZ, 1997, p. 539). Esse conceito tem o mérito de incluir as dimensões mental e social, mas do ponto de vista prático é pouco operacional. O que é um completo estado de bem-estar? Como avaliar esse estado? É muito difícil definir o que é saúde e estabelecer os limites, definindo onde começa a enfermidade. Saúde e enfermidade são dois estados entre os quais o indivíduo flutua por toda a sua vida, são duas condições estreitamente ligadas por conexões recíprocas. 1.2 O processo saúde-doença A visão de mundo é um sistema de pontos de vista sobre a realidade que leva o homem a elaborar uma atitude diante dessa realidade. As diferentes visões de mundo nada mais são do que diferentes compreensões e, consequentemente, ações do homem. As teorias que interpretam o processo saúde-doença são meramente as diferentes formas de pensar do ser humano em relação aos fatos sociais, sejam eles determinados pelo desenvolvimento das forças produtivas, das relações de produção, das relações de poder, ou seja, tudo aquilo relacionado ao trabalho e à organização da sociedade. 12 Unidade I 1.2.1 Teoria mística Na sociedade primitiva, o pensamento do homem estava sob domínio das representações religiosas/mitológicas, que relacionava a organização da sociedade, a ordem da vida social e o destino dos indivíduos a forças sobrenaturais. A interpretação do processo saúde-doença era igualmente associada à ação das forças sobrenaturais, assim, as medidas assistenciais vigentes vinculavam-se a práticas de caráter mágico/religioso. Essa forma de interpretação dos fatos sociais se manteve até que surgiu a necessidade de outro tipo de conhecimento para ajudar nas transformações sociais. Desenvolveu-se então a ciência positivista, que trouxe a interpretação racional dos fenômenos, cujo avanço cooperou com o desenvolvimento das ciências naturais e da tecnologia. As concepções acerca do mundo e da saúde-doença foram modificadas e as explicações passaram a utilizar a interpretação dos fenômenos do ponto de vista químico/físico/mecânico. Observação A principal característica da ciência positivista é que qualquer manifestação ou fenômeno só pode ser considerado verdadeiro se passível de comprovação. 1.2.2 Teoria dos miasmas Durante a Idade Média, prevaleceu a teoria dos miasmas, que considerava que a doença era causada por certos odores venenosos, gases ou resíduos nocivos, que se originavam na atmosfera ou a partir do solo. Essas substâncias seriam posteriormente arrastadas pelo vento até um indivíduo, que acabaria por adoecer. No início do século XIX, no Rio de Janeiro, alguns médicos acreditavam que as epidemias eram provocadas pelos navios estrangeiros, que traziam doenças como cólera, febre amarela e varíola. Concluíram que as enfermidades eram causadas por miasmas, pelo ar corrompido, que, vindo do mar, dos respectivos navios, pairava sobre a cidade. O termo “malária” tem origem em mala aria (maus ares): acreditava-se que essa doença era causada pela presença de “mau ar”, pois as populações que mais adoeciam de malária moravam nas zonas pantanosas, que produziam gases. O conceito miasmático foi responsável por medidas de saúde pública que são aplicadas atualmente, tais como o enterro dos mortos, o aterro de excrementos humanos e a coleta de lixo. Obviamente, hoje estudos demonstram que essas medidas sanitárias são necessárias para combater inúmeras doenças e manter a qualidade da vida da população, ao evitar a contaminação do solo e da água, assim como manter a limpeza das cidades com o recolhimento do lixo, que, se acumulado, pode servir de alimento e moradia para roedores e outros animais e insetos. 13 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE 1.2.3 Teoria unicausal A necessidade do desenvolvimento das forças de trabalho para maior produção determinou a busca de novas explicações para a causalidade das doenças. A descoberta dos microrganismos, ou seja, dos agentes causadores das doenças, principalmente que causam as doenças transmissíveis, passou a explicar o surgimento delas. Foi chamada de “bacteriológica” devido à descoberta de bactérias, vírus, fungos, entre outros microrganismos, o que levou a comunidade científica a estabelecer esses agentes como causa única do adoecimento. A partir dessa teoria, fundamentada no idealismo, o homem é considerado apenas como ser biológico, que possui um funcionamento mecânico de seus órgãos, cujos processos químicos/físicos/biológicos podem se desequilibrar. No fim do século XIX, o advento da bacteriologia foi crítico para a epidemiologia e para as discussões no aspecto social. As pesquisas voltaram-se para essa teoria, diminuindo muito o interesse pelos problemas sociais. A concepção unicausal demonstrou de imediato suas limitações, pois manter a qualidade de vida, e, portanto, as pessoas saudáveis, era imprescindível para que os trabalhadores tivessem condições plenas de desempenhar seu papel no trabalho. Os diagnósticos e os tratamentos se tornaram mais sofisticados, o modelo centrado no atendimento médico passou a ser sinônimo de acesso à saúde, mas nunca foi acessível a todos, e seu custo sempre foi elevado. Além disso, os movimentos organizados da sociedade apontavam para outras causas das doenças, e não apenas para o agente etiológico. Esses fatores levaram à elaboração da teoria multicausal. 1.2.4 Teoria multicausal A teoria da multicausalidade ou multicausal se consolidou na década de 1960 e tentou substituir o olhar unicausal, considerado inconsistente. Essa nova teoria relaciona as doenças a diversas causas, a diversos fatores, que, se controlados por meio de medidas simples e acessíveis a toda a população, podem diminuir a propagação das doenças. Esse novo olhar atribui não só aos fatores biológicos a responsabilidade pelas doenças, mas também à organização social, ressaltando que as doenças ocorrem por uma somatória de causas, e não apenas pela ação de um agente etiológico. O modelo de intervenção implementado a partir dessa teoria busca respostas práticas aos problemas, mas ainda não às verdadeiras causas, pois não pretende fazer modificações estruturais e profundas que interfiram no sistema, na organização da sociedade; de fato, apenas executa ações de intervenção para as diferentes causas, sem alterar as desigualdades sociais da população. Tanto a teoria unicausal quanto a multicausal se demonstraram insuficientes para explicar o comportamento das doenças nas sociedades estratificadas em diferentes classes ou outros grupos sociais. Essa divisão de classes sociais leva a diferentes condições de vida e condena os indivíduos de alguns grupos a condições de vida cada vez mais precárias. 14 Unidade I Buscando uma explicação profunda e relacionada às diferentes condições de vida das diferentes populações, surgiu a teoria da determinação social do processo saúde-doença. 1.2.5 Teoria da determinação social do processo saúde-doença A denominação dessa teoria já diz que a saúde-doença se determina socialmente. Baseada no realismo, essa teoria interpreta o fenômeno saúde-doença com duplo caráter: biológico e social, tendo em vista que a natureza humana, além de seu componente biológico, é determinada pela forma de viver nas sociedades. As formas de produção (de trabalho) e as formas de reprodução social (de viver) são essenciais para definir a qualidade de vida das populações, nos diferentes grupos sociais, segundo as diferentes condições econômicas de cada um. Cada grupo social (representado por categorias como classe social, gênero, raça/etnia ou geração) apresenta condições consideradas negativas (riscos de adoecer ou morrer) ou consideradas positivas (possibilidades de sobrevivência). Essas condições são consequências das formas que,no decorrer da história, foram sendo adotadas pela sociedade para conduzir a sua vida social. Essa teoria permite compreender como cada sociedade cria um determinado padrão de desgaste ou potencialidades conforme o consumo e o gasto de energia dos indivíduos no processo de reprodução social. O desgaste relacionado ao trabalho corresponde ao número de horas de trabalho, ao estresse que este gera, entre outros; quanto ao desgaste advindo da forma de viver, estão todas as ações necessárias para ser incluído socialmente, para fazer parte de um determinado grupo. As potencialidades estão relacionadas a todos os fatores que favorecem o desenvolvimento dessas atividades, como morar perto do trabalho, gostar do que faz e ter um grupo para socialização. O processo saúde-doença manifesta-se por meio de diferentes fenômenos cuja frequência e intensidade variam no tempo e no espaço e elas podem ser expressas nos níveis: individual; grupo social; e estrutura social. O nível individual do processo saúde-doença pode variar segundo a frequência e a intensidade com que ocorre entre pessoas e pequenos grupos, que se diferenciam entre si por características individuais, tais como: sexo, idade, religião, escolaridade, renda etc. No nível dos grupos sociais (classes sociais, gêneros, raças/etnias ou gerações) que compartilham das condições de vida e de trabalho, as manifestações se apresentam segundo perfis de morbimortalidade, ou seja, perfis de adoecimento e mortalidade peculiares de cada grupo. Cada grupo expressa diferentes motivos e formas de adoecer e de morrer, que são consequência dos desgastes a que são submetidos para desenvolver o trabalho e para viver em sociedade. No nível referente à estrutura social, o processo saúde-doença manifesta-se através de perfis de morbimortalidade, peculiares de uma dada sociedade ou formação social em relação às demais. Os grupos sociais menos favorecidos economicamente apresentam diferentes formas de adoecer e morrer em relação aos mais abastados. 15 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE Assim, o perfil epidemiológico passa a ser analisado não apenas por números de mortes e doentes, e sim por um conjunto de formas de viver e trabalhar que levam as pessoas a diferentes condições de qualidade de vida, portanto, de saúde. Observação A saúde pública e a epidemiologia são indissociáveis; esta orienta a atuação em saúde pública, que intervém para evitar doenças, prolongar a vida e desenvolver a saúde física e mental. A epidemiologia busca a observação exata, a interpretação correta, a explicação racional e a sistematização científica dos eventos de saúde-doença no âmbito coletivo. 2 SURGIMENTO DO MODELO DE HISTÓRIA NATURAL DAS DOENÇAS (HND) John E. Gordon, professor de medicina preventiva e epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, introduziu o conceito de tríade ecológica, ressaltando as mútuas e dinâmicas interações entre os aspectos causais das doenças. Depois, ele classificou analiticamente esses aspectos em fatores relativos a hospedeiro, agente e meio. De um lado, as investigações sobre as constituições epidêmicas demonstravam que os agentes infecciosos, privilegiados na explicação de fenômenos epidêmicos desde o advento da bacteriologia, nos anos 1870, eram elementos necessários, mas não suficientes para explicar o comportamento epidemiológico das doenças. De outro lado, indicavam a importância de integrar diversas áreas de saber para produzir um conhecimento mais efetivo sobre as características de incidência, prevalência, distribuição e morbidade e mortalidade. Edwin Gurney Clark, professor de epidemiologia da Faculdade de Medicina da Universidade de Columbia, e Hugh Rodney Leavell, seu parceiro intelectual, da Faculdade de Saúde Pública de Harvard, propuseram, em 1953, o modelo de HND que se tornaria a referência definitiva no assunto. Leavell e Clark defendiam, em primeiro lugar, a superação dos limites disciplinares entre clínica médica e saúde pública e entre medidas curativas e preventivas. A perspectiva da prevenção, segundo esses autores, devia estar presente em todos os momentos em que fosse possível algum tipo de intervenção que evitasse o adoecimento ou suas consequências, compondo diferentes níveis de prevenção (NP), desde transformações de condições ambientais e sociais que predispusessem ao surgimento das doenças até a redução de seus piores efeitos sobre aqueles que já tivessem adoecido. Para sustentar essas posições, adotaram a tese da multicausalidade das doenças. Segundo essa tese, o conhecimento e a intervenção sobre os determinantes das doenças exigem uma construção interdisciplinar, com contribuições das ciências biomédicas e das ciências humanas, sob a mediação do método epidemiológico e das técnicas de análise estatística. No Brasil, o conceito de Leavell e Clark sobre HND/NP chegou nos anos 1970, por meio de seminários organizados pela Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS). 16 Unidade I Um passo decisivo para sua difusão foi a publicação do livro-texto de Leavell e Clark em português, em tradução de Cecília Donnangelo, Moisés Goldbaum e Uraci Ramos, professores do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP. Nessa época, o Brasil, como a América Latina de modo geral, vivia a saúde pública marcada por forte politização, com a resistência às ditaduras militares, o combate às desigualdades sociais e de saúde e sob a forte influência das ideias da medicina social. Nesse contexto, o modelo de HND/NP foi objeto de severas críticas. O conceito passou a ser questionado quanto às limitações no modo como a multicausalidade e os determinantes sociais e políticos eram (mal) incorporados ao modelo, a começar pela expressão HND. É possível falar de história “natural” dos processos saúde-doença? O próprio modelo não quer justamente apontar o fato de que as doenças não são fenômenos naturais? O modo como os grupamentos humanos organizam socialmente sua vida não altera o que seria um curso natural, já que as diferentes formas de organização social estão implicadas na determinação de quem, como, quando e quanto adoece? De outro lado, a ocorrência e a evolução desses processos não dependem também das formas como essas sociedades interferem tecnicamente sobre o adoecimento, ao desenvolverem e utilizarem saberes e instrumentos para preveni-los e tratá-los? Ainda em relação à multicausalidade, é possível tratar aspectos como virulência de um agente infeccioso e nível socioeconômico dos hospedeiros, por exemplo, como fatores com mesmo peso no modelo causal? É possível definir um modelo de HND válido para qualquer tempo e lugar? Apesar de seus limites, o modelo de HND/NP, com adaptações e aperfeiçoamentos, acabou por ser definitivamente incorporado à medicina e à saúde pública no mundo e no Brasil, e tem sido amplamente utilizado para a sistematização de conhecimentos, para a organização de ações preventivas em programas e serviços de saúde e para o ensino das relações entre epidemiologia, prevenção e promoção da saúde na formação de profissionais em diferentes áreas do campo da saúde. 2.1 O modelo de história natural da doença Compreendido o sentido geral do conceito de HND/NP, é importante entender como o seu modelo teórico está estruturado e como fundamenta ações como as exemplificadas no início deste capítulo. Para isso, um primeiro aspecto a ser considerado é que se trata de um esquema conceitual, isto é, uma sistematização simplificada de um conjunto de elementos e suas relações em interações dinâmicas. Como todo esquema, o modelo HND/NP é uma representação superficial da complexidade real dos fenômenos, mas que tem a vantagem de orientar uma propedêutica especificamente voltada para identificar oportunidades e ações de prevenção, seja no plano individual, seja no de coletividades. Deve ficar claro que, na sistematização do modelo a ser apresentado, o foco não será apenas a reprodução do modo como o formularamseus primeiros propositores. Para simplificar o andamento da discussão, os aperfeiçoamentos, as complementações e os meios que foram sendo incorporados ao modelo, sem modificá-lo substancialmente, serão incluídos nessa sistematização. É possível observar que no desenvolvimento do conceito de HND/NP há um conjunto fundamental de concepções que conformaram o modelo (quadro a seguir) e o sustentam até hoje. Tomando essas concepções como pressupostos, o esquema HND/NP permite distinguir analiticamente dois períodos envolvidos na gênese e no desenvolvimento dos adoecimentos: o período pré-patogênico, referente aos determinantes que potencializam o surgimento da doença, e o período patogênico, que diz respeito às evoluções possíveis da doença em curso. No período pré-patogênico, distinguem-se três grupos de 17 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE fatores determinantes: fatores relativos ao agente, ao hospedeiro e ao meio. No período patogênico, distinguem-se quatro fases de evolução: • A patogenia inicial ou período de alterações pré-clínicas. • A patologia precoce, após a doença transpor o horizonte clínico, isto é, após o aparecimento de sintomas e/ou sinais perceptíveis à observação comum. • A doença avançada, quando a síndrome e as alterações morfofuncionais mais características da doença já estão totalmente instaladas. • O desfecho, isto é, o modo como o processo de adoecimento se resolve ou estabiliza. Quadro 1 – Fundamentos do modelo de história natural da doença e níveis de prevenção 1) O adoecimento é um processo, isto é, as doenças constituem um conjunto dinâmico de fenômenos e interações que estão sempre se modificando no tempo e no espaço 2) Os processos de adoecimento são determinados por um conjunto amplo de aspectos que envolvem fenômenos de natureza diversa – biológica, ambiental, cultural, econômica, política, psicológica, emocional etc. 3) A interação entre diferentes disciplinas é indispensável para o conhecimento e a intervenção sobre o comportamento epidemiológico e a evolução clínica das doenças 4) A qualquer momento dos processos de adoecimento, desde antes de acontecerem – mas já diante das condições que os determinam – até em fases adiantadas da patogenia, é possível e desejável algum tipo de intervenção preventiva Fonte: Ayres (2016, p. 40). 2.2 Período pré-patogênico Ao estudar a HND de uma doença, a primeira tarefa é buscar identificar os vários aspectos que podem estar relacionados à sua ocorrência, isto é, à sua determinação – agente(s) etiológico(s), condições predisponentes, facilitadoras, protetoras etc. Esse componente do modelo refere-se ao momento em que ainda não há doença instalada em indivíduos e populações, mas há condições para que ela venha a ocorrer e que, portanto, devem ser controladas. Para identifcar essas condições, algumas disciplinas podem contribuir. Entre a diversidade de conhecimento, o papel essencial é atribuído à epidemiologia, já que as técnicas de investigação epidemiológica permitem identificar a associação entre os inúmeros eventos de interesse para a saúde, examinando a possibilidade de essas associações terem um sentido causal. Assim, dada uma doença cuja HND se busca conhecer, é a epidemiologia, fundamentalmente, que vai identificar, entre os aspectos estudados pelas diversas disciplinas, aqueles que, por critérios probabilísticos, lógicos e segundo a plausibilidade frente ao conjunto dos conhecimentos disponíveis, podem ser considerados efetivamente relacionados à determinação e à evolução da doença. Como dito anteriormente, os vários aspectos causalmente relacionados à doença no modelo de HND/NP estão organizados, para fins propedêuticos, em três grupos: agente, hospedeiro e meio. Na 18 Unidade I prática, esses fatores se confundem e estão mutuamente relacionados. Algumas vezes, um dado agente só se torna agressor por causa do modo como o hospedeiro reage a ele – vale lembrar, por exemplo, dos portadores assintomáticos; outras vezes, um fator atribuído ao hospedeiro pode ser, na verdade, mais bem explicado se for analisado o meio em que ele vive, por exemplo, um comportamento alimentar que produz distúrbios nutricionais pode ser interpretado como um estilo pessoal que, na verdade, pode obedecer a fortes coerções culturais ou limitações econômicas do meio social em que o indivíduo vive; ou ainda a situação em que o hospedeiro age sobre seu meio, gerando o agente que será seu agressor – como no caso da transformação do ambiente nas grandes cidades com a emissão de poluentes aéreos que aumentam a morbidade e a mortalidade por doenças respiratórias e cardiovasculares. 2.2.1 Agente Esse grupo de fatores refere-se aos elementos externos ao organismo humano que, ao interagirem com ele, podem provocar algum dano ou alteração. O termo, que nas primeiras formulações de história natural referia-se basicamente a agentes infecciosos, passou progressivamente a indicar um espectro mais amplo de fatores – substâncias químicas, toxinas, radiação, temperaturas extremas, alterações na qualidade do ar, acidentes, violência etc. 2.2.2 Hospedeiro Esse segundo grupo refere-se a aspectos relacionados à suscetibilidade dos indivíduos humanos aos agentes agressores. Refere-se a aspectos como herança genética, traços congênitos, sexo, idade, estado nutricional, condicionamento físico, atividade de trabalho, atividades de lazer, vida sexual, características pessoais de sociabilidade, padrão alimentar, uso de tabaco, álcool ou outras substâncias químicas (psicoativas, farmacológicas), práticas de autocuidado, grau de instrução, características cognitivo-intelectuais, características psicoemocionais, história patológica pregressa, estado de saúde atual etc. Esse amplo conjunto de aspectos, na totalidade que conformam em cada indivíduo e no grau e modo como se distribuem em termos familiares, comunitários e populacionais, são vitais para o conhecimento de quanto, como e quando determinados fatores identificados como agentes agressores podem provocar dano ou perturbação da saúde. 2.2.3 Meio Esse grupo diz respeito ao ambiente que põe em contato os agentes agressores e seus potenciais hospedeiros. Nas primeiras formulações da HND, mais próximas à noção de constituição epidêmica, esse grupo de fatores se referia fundamentalmente a aspectos ambientais em um sentido mais restrito, seja como um conjunto bem definido de condições climáticas, topográficas e socioestruturais (tipo de ocupação do espaço urbano e domiciliar, composição e dinâmica demográfica e familiar, condições médico-sanitárias da população), seja como veículo de transmissão de um agente infeccioso (água, ar, alimentos, vetores). A partir das contribuições da medicina social, passou-se a admitir um sentido mais abrangente de meio, incorporando-se às análises aspectos como desenvolvimento econômico, padrões culturais (valores e normas sociais), modo de vida (urbano, rural), condições de trabalho, alimentação etc. 19 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE O conhecimento dos aspectos relativos a agente, hospedeiro e meio é, como pode ser visto, fundamental para a prevenção. Quanto mais bem conhecidos, maior a chance de intervirem positivamente, evitando a ocorrência de agravos e favorecendo modos de vida mais saudáveis. Contudo, as oportunidades de prevenção não se encerram aí, portanto, a necessidade de saberes interdisciplinares também não se esgota no período pré-patogênico. Mesmo nas populações e nos indivíduos já afetados por algum dano ou alteração à saúde, um conhecimento acurado sobre os processos patológicos e suas possibilidades de evolução e desfecho podem favorecer uma intervenção que restabeleça da melhor forma possível a saúde ou reduza seus danos individuais e coletivos. Por isso, o modelo de HND define um segundo componente de sistematização do período patogênico. 2.3 Período patogênico Como o nome indica, esse componente do esquema produz e relaciona conhecimentos sobre umprocesso patogênico em toda sua extensão e dimensões, desde as primeiras alterações funcionais e morfológicas até seus possíveis desfechos. Nessa perspectiva, o modelo de HND distingue dois subcomponentes. No primeiro, já existe algum tipo de alteração patológica em curso, mas ainda sem expressão clínica (período patogênico precoce). No segundo, a doença já é perceptível pelo indivíduo afetado, com sinais e sintomas que caracterizam um quadro clínico (patologia precoce). Divide esses dois períodos o chamado “horizonte clínico”, que, uma vez ultrapassado, muda substantivamente o modo como o processo patológico é experimentado pelas pessoas e trabalhado nas práticas de saúde. 2.3.1 Período patogênico pré-clínico Esse subcomponente relaciona-se às alterações celulares, teciduais e funcionais que ocorrem nos indivíduos afetados por uma doença antes de se produzirem sinais ou sintomas observáveis. Antes de ultrapassar o horizonte clínico, um processo patogênico instalado já conduz a uma nova condição as relações entre um organismo individual e suas interações com o meio, com outros indivíduos, com agentes de outras doenças. Do ponto de vista da evolução clínica do caso individual, ele é de suma importância, pois os eventos ocorridos nesse momento podem determinar diferentes condições de reação, reversão, adaptação e recuperação no processo de adoecimento, com repercussões sobre o grau de comprometimento morfofuncional do organismo, sobre o sofrimento físico e mental do doente e seus circundantes, sobre custos de diferentes ordens com o tratamento e/ou reabilitação, isto é, sobre o prognóstico. Do ponto de vista epidemiológico, o conhecimento dessa etapa da HND é fundamental. Processos patogênicos precoces são períodos nos quais pode ocorrer a transmissão de agentes infecciosos sem que se saiba, retardando a interrupção da cadeia de transmissão. Em algumas doenças conhecidas, parte dos indivíduos acometidos evolui dessa fase de patogenia precoce para uma resolução do problema sem ultrapassar o horizonte clínico, isto é, progride espontaneamente para a remissão ou o controle total da doença. Entre os inúmeros exemplos, tem-se a grande maioria dos que entram em contato com o bacilo da tuberculose e desenvolvem apenas alterações patogênicas locais, contendo o agente com uma reação tecidual que impede a progressão da doença. É possível também que haja uma série de reações patogênicas a agentes até desconhecidos, pelo fato de não produzirem sinais e sintomas. Grande parte das doenças que se conhece, contudo, levam certo contingente de pessoas acometidas a apresentarem alterações patológicas que ultrapassam o horizonte clínico, com cursos mais ou menos típicos, representados no segundo componente do período patogênico. 20 Unidade I 2.3.2 Período patogênico clínico Abrangendo as fases que Leavell e Clark chamavam de “lesões precoces” e “doença avançada”, esse momento do esquema busca identificar a síndrome característica de uma doença, com os sinais e os sintomas mais frequentes e seus possíveis desdobramentos clínicos. Os conhecimentos epidemiológicos, clínicos, fisiopatológicos e imunológicos continuam concorrendo aqui para formar um quadro que permita reconhecer melhor e intervir mais rapidamente sobre as diversas doenças, suas variantes, suas respostas às diferentes formas de intervenção terapêutica. Como visto no início deste capítulo, a simples presença de determinado conjunto de sinais e sintomas pode levar à hipótese diagnóstica de uma doença que tenha sua história natural bem conhecida. Em algumas situações de prática, nas quais não se disponha de exames complementares, a síndrome característica de uma doença pode ser a única ferramenta em mãos para o diagnóstico. 2.4 Desfecho Toda as doenças caminham para algum desfecho. Como visto, ela pode evoluir das primeiras reações orgânicas diretamente para remissão ou controle. Uma segunda situação possível é que, mesmo havendo a evolução para um quadro sintomático, um processo patogênico caminhe para a remissão completa. Vale lembrar, por exemplo, da quantidade de vezes que um indivíduo fica resfriado ao longo da vida, com completa recuperação. Outras possibilidades de desfecho podem ocorrer no curso de uma doença. Evoluir para remissão, deixando sequelas; evoluir para a cronificação; nesse caso, não há remissão ou controle total da doença, mas ela segue como uma condição disfuncional que pode exigir cuidados para o resto da vida. Por fim, há o desfecho indesejado: o óbito. Conhecer a letalidade de uma doença, as condições de sua ocorrência e a frequência e características de sua distribuição populacional é também tarefa de relevância prática no conhecimento da HND. Observação Cura é o estado de eliminação do agente infeccioso do hospedeiro por uma resposta imune bem-sucedida ou pela terapia antimicrobiana. Geralmente, a cura implica eliminação tanto de infecção como de doença, porém, em algumas situações, um hospedeiro pode se curar da doença, mas ter infecção persistente. 3 NÍVEIS DE PREVENÇÃO Leavell e Clark articularam ao modelo de HND a sistematização das diferentes formas de prevenção que se abrem a cada momento da evolução de uma doença. Tais pesquisadores agruparam as ações de prevenção segundo três fases, correspondentes a cada um dos períodos de evolução da doença definidos no modelo de HND, conforme representado na figura a seguir. Essas três fases da prevenção – primária, secundária e terciária – admitem ainda subdivisões, a partir das quais definem-se cinco níveis de prevenção. 21 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE Período pré-patogênico Prevenção primária Período patogênico Desfecho Prevenção secundária Prevenção terciária Morte Cronificação Sequela Cura Meio Agente Hospedeiro Doença avançada Horizonte clínico Patogenia precoce Figura 1 – Esquema gráfico do modelo teórico de história natural da doença e níveis de prevenção 3.1 Prevenção primária A prevenção primária refere-se a ações relacionadas aos determinantes de adoecimentos ou agravos que incidem sobre indivíduos e comunidades de modo a impedir os processos patogênicos antes que eles ocorram. Refere-se, portanto, ao período pré-patogênico do modelo da HND, e diz respeito a ações voltadas à intervenção sobre os agentes patógenos e seus vetores, sobre os hospedeiros, ou indivíduos e comunidades, e sobre o meio que os expõe a esses patógenos. A prevenção primária subdivide-se, por sua vez, em dois níveis: a promoção da saúde e a proteção específica. Os limites entre esses dois níveis, como aliás entre os diversos componentes do modelo de HND/NP, são relativamente arbitrários. 3.1.1 Promoção da saúde Esse primeiro nível de prevenção refere-se a ações que incidem sobre melhorias gerais nas condições de vida de indivíduos, famílias e comunidades, beneficiando a saúde e a qualidade de vida de modo geral, dificultando um grande número de processos patogênicos. Saneamento básico, com distribuição de água potável e esgoto sanitário, disposição e coleta de lixo adequadas, boas condições de moradia, nutrição, trabalho e transporte, acesso a serviços, informações e insumos em educação, saúde, lazer e cultura, controle da qualidade do ar e de outras fontes de poluição ambiental, regulação dos espaços públicos em relação à segurança quanto a acidentes e violências, promoção e proteção dos direitos humanos são exemplos de ações de promoção da saúde que, ao longo do tempo, foram sendo incorporadas às práticas de prevenção. 22 Unidade I 3.1.2 Proteção específica Esse nível de prevenção se refere a ações que incidem no período pré-patogênico, isto é, ações que querem se antecipar à instalação dos processos patogênicos. A diferença é que, aqui, as ações são dirigidas a grupos específicos de processos saúde-doença. As ações de proteção específica também podem ser dirigidas ao agente, ao hospedeiro ou ao meio. O exemplo clássico de ação preventiva para proteção específicaé a vacinação, que imuniza os suscetíveis contra um agente infeccioso, reduzindo as chances de os indivíduos serem infectados, adoecerem ou desenvolverem formas graves da doença ao entrarem em contato com esse agente. Algumas vacinas são recomendadas rotineiramente e outras podem ser necessárias apenas para grupos específicos, como a vacina de febre amarela, indicada para quem vive em área endêmica ou viajará para essa região, ou situações específicas, como campanhas de vacinação para conter surtos ou epidemias de doença meningocócica. Outra ação de proteção específica voltada para agentes infecciosos é a quimioprofilaxia, como a prescrição de isoniazida a alguns contactantes de pacientes com tuberculose pulmonar, ou rifampicina para os contactantes de doença meningocócica, ou de AZT para recém-nascidos de mães infectadas pelo HIV etc. Outras medidas relevantes de proteção específica são: combate aos criadouros domiciliares do Aedes aegypti para o controle da dengue; controle biológico das larvas dos anopheles (mosquitos-pregos) para a prevenção da malária; fluoração da água para o combate à cárie dentária; adição de iodo ao sal para combate do bócio endêmico; distribuição de preservativos para a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis; fornecimento de material de injeção descartável a usuários de drogas para reduzir a transmissão de aids e hepatites; controle de bancos de sangue para prevenir doenças transmitidas por sangue e hemoderivados; medidas ergonômicas no ambiente de trabalho para reduzir a ocorrência de acidentes; obrigatoriedade do uso do cinto de segurança para redução de morbidade e mortalidade em acidentes de trânsito; adoção de legislação punitiva específica para coibir a violência doméstica etc. 3.2 Prevenção secundária A prevenção secundária atua já no período patogênico, isto é, nas situações em que o processo saúde-doença já está instaurado. Ela visa, fundamentalmente, a dois objetivos. Um deles é propiciar a melhor evolução clínica para os indivíduos afetados, conduzindo ao máximo o processo para os melhores desfechos, de preferência evitando a transposição do horizonte clínico ou, pelo menos, minimizando a sintomatologia. O outro é interromper ou reduzir a disseminação do problema a outros indivíduos. Para alcancar esses objetivos, são definidos também dois níveis de prevenção de fase secundária. 3.2.1 Diagnóstico precoce e tratamento imediato As medidas de diagnóstico precoce e tratamento imediato, como o próprio nome indica, devem detectar o mais rapidamente possível processos patogênicos já instalados. Assim, mesmo antes de um agravo em curso cruzar o horizonte clínico, já é possível, em muitos casos, diagnosticá-lo e adotar medidas protetoras para os indivíduos afetados e para terceiros. 23 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE Exemplos de ações de diagnóstico precoce são os rastreamentos ou screenings. Nesse sentido, vale lembrar a busca ativa e a realização de exame bacterioscópico de escarro nos chamados sintomáticos respiratórios – indivíduos que tossem há mais de três semanas sem outra razão conhecida – visando diagnosticar precocemente a tuberculose pulmonar. Essa medida favorece não apenas a evolução clínica do indivíduo infectado precocemente diagnosticado e tratado como também sua comunidade, seja pela redução do número de pacientes bacilíferos no ambiente, seja pela possibilidade de localização e avaliação dos contactantes domiciliares dos doentes, entre os quais há significativa probabilidade de encontrar outros infectados em fase inicial e indivíduos altamente suscetíveis à infecção. Por isso, deve-se lembrar que a busca ativa de outros casos ou suscetíveis a partir de um diagnóstico de doença infecciosa é também uma relevante medida de prevenção secundária. Há ainda diversos rastreamentos além daqueles vinculados à vigilância epidemiológica de doenças infecciosas, que, com maior ou menor grau de evidência, demonstram beneficiar a prevenção de agravos entre indivíduos e comunidades, como o exame de papanicolaou entre mulheres sexualmente ativas, a mamografia e o exame físico das mamas em mulheres acima de 50 anos ou de alto risco (história prévia ou familiar próxima), dosagem de glicemia e colesterol em indivíduos obesos ou com história de risco aumentado para doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2, aferição da pressão arterial em adultos etc. É preciso lembrar que esse nível de prevenção é extremamente importante para a saúde pública. Embora, em termos ideais, o período pré-patogênico constitua o melhor momento para a prevenção, o fato é que ações de prevenção primária são, muitas vezes, de uma amplitude e natureza tais que implicam investimentos caros e retornos de longo prazo. Nessas situações, a prevenção secundária pode assumir um caráter estratégico, permitindo focalizar locais e pessoas mais suscetíveis, o que favorece a efetividade das ações de saúde enquanto não se logra realizar os controles mais radicais, relacionados à prevenção primária. 3.2.2 Limitação de incapacidade Esse nível de prevenção refere-se às medidas aplicadas aos casos que já ultrapassaram o horizonte clínico, encontrando-se o processo de adoecimento plenamente instalado. O impacto das ações de prevenção nesse nível tende a ser menor, mas nem por isso menos relevante. Aqui o objetivo é cuidar dos casos com os mais eficazes e adequados recursos para que o curso clínico possa tender, o máximo possível, para a cura total ou com poucas sequelas, ou reduzir e retardar ao máximo as complicações clínicas, nos casos de condições crônicas (como hipertensão, diabetes mellitus, entre outros) ou cronificadas com recurso a suportes terapêuticos (como a aids ou algumas doenças autoimunes). Dessa forma, um cuidado integral, acessível, de alta qualidade técnica, sensível às necessidades e condições físicas, emocionais e sociais dos indivíduos, famílias e comunidades torna-se um instrumento de relevância incontestável, demonstrando a estreita relação entre assistência à saúde e prevenção. 3.3 Prevenção terciária Esse quinto nível de prevenção refere-se, finalmente, ao momento em que o processo saúde-doença alcançou um fim ou uma forma estável de longo prazo, a cura com sequelas ou a cronificação, as quais também necessitam de cuidados preventivos específicos. Nesse plano, o objetivo é conseguir que 24 Unidade I as limitações impostas pela condição provocada pelo adoecimento ou agravo prejudiquem o mínimo possível o cotidiano e a qualidade de vida das pessoas, famílias e comunidades afetadas. O alcance desse objetivo requer esforços que podem passar por medidas de reabilitação física, como no caso de restrições funcionais, sequelas neuromotoras ou necessidade de uso de próteses; apoios de caráter psicoemocional, como em mutilações físicas, alterações psicomotoras ou dificuldades emocionais que interfiram na autoimagem, na identidade, no equilíbrio mental ou na sociabilidade dos afetados; até apoio de alcance social, como readaptação no trabalho, apoio previdenciário, ajustes no ambiente doméstico, suporte jurídico contra ações discriminatórias etc. Em relação às condições crônicas, destaca-se em particular a questão da difícil manutenção da adesão às ações de cuidado de longo prazo, assim como o desafio da acessibilidade e integração dos diferentes recursos necessários ao cuidado continuado e integral. Como se vê, qualidade de vida é a expressão-chave, e interdisciplinaridade e intersetorialidade são os meios indispensáveis para que se alcance esse ideal. 3.4 Ações de prevenção e prática médica Como já foram acentuados exemplos de ações preventivas com o modelo de HND/NP, agora será feita uma referência às diferentes situações de práticas em que ações dessa natureza podem ser desenvolvidas. Se for considerado o caráter das ações de prevenção, será quase intuitivo compreender que as unidades básicas de saúde devem constituir o espaço privilegiado para seu desenvolvimento. Esse privilégiose deve a uma série de características da atenção básica: • O fato de a unidade básica constituir-se na instância de serviços de saúde mais próxima do contexto em que vivem os indivíduos em suas famílias e comunidades. • Configurar-se como instância responsável pelo acompanhamento do nascimento e desenvolvimento das pessoas, desde a atenção pré-natal, os cuidados de higiene infantil, as ações de cuidado à saúde da mulher, do adolescente, do idoso etc. • Basear-se no contato direto e continuado dos profissionais de saúde com as famílias e a comunidade. • Permitir maior integração cotidiana entre ações de cuidado e prevenção articuladas de modo interdisciplinar e intersetorial, como saúde, educação, bem-estar social, cultura, justiça etc. A chamada atenção primária à saúde constitui-se em uma área na qual a prevenção de agravos é um dos principais objetivos e um espaço de ricas oportunidades, o que, como visto a partir da discussão do modelo de HND/NP, não prescinde de cuidadosa assistência médica, muito ao contrário, guarda na integração com esta uma sinergia fundamental. 25 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE 3.5 Uma nova promoção da saúde O movimento histórico de desenvolvimento dos conceitos e práticas da medicina preventiva e da saúde pública foi apontando, ao longo do tempo, novas necessidades de conceitos e práticas. A reconstrução, em pleno curso, do antigo conceito de promoção da saúde é um dos mais expressivos exemplos desse processo. Como visto, por promoção da saúde entende-se, segundo o modelo de Leavell e Clark, o primeiro nível de prevenção, o mais abrangente e não específico da fase primária. A partir da década de 1970, contudo, promoção da saúde passou a ser também a expressão utilizada como o norte de um importante movimento de ideias e ações com vistas à renovação das práticas de saúde. Em sua nova acepção, a promoção da saúde guardou estreita relação com os aspectos relacionados ao nível de prevenção do modelo HND/NP, mas introduziu mudanças significativas. Primeiro porque expandiu o alcance das ações originariamente associadas a esse nível e depois porque buscou modificar os próprios fundamentos e métodos dessas ações. É o que será examinado a seguir. 3.6 Origens da nova promoção da saúde (NPS) O marco formal do início do movimento de construção da nova promoção da saúde é o documento chamado Informe Lalonde, de 1974. Esse relatório consistia em um profundo questionamento do modelo de atenção à saúde vigente do Canadá, país extremamente dispendioso e pouco eficaz na melhoria das condições de saúde do povo. As principais conclusões do informe eram que as ações de saúde estavam excessivamente centradas na prática hospitalar e nos determinantes biológicos do adoecimento e que maior atenção deveria ser dada ao meio ambiente e aos estilos de vida, priorizando práticas de intervenção voltadas para esses aspectos. Pouco tempo depois, em 1978, a OMS e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) organizaram a 1a Conferência sobre Cuidados Primários em Saúde, na cidade de Alma-Ata. Na Declaração de Alma-Ata, essa orientação na direção do fortalecimento das práticas de prevenção e atenção primária, especialmente no que se refere ao nível da promoção da saúde, foi reforçada pelas recomendações feitas para as políticas de saúde dos países signatários. Essas recomendações priorizavam oito itens: • Educação dirigida aos problemas de saúde prevalentes e métodos para sua prevenção e controle. • Promoção do suprimento de alimentos e nutrição adequada. • Abastecimento de água e saneamento básico apropriados. • Atenção materno-infantil, incluindo o planejamento familiar. • Imunização contra as principais doenças infecciosas. • Prevenção e controle de doenças endêmicas. 26 Unidade I • Tratamento apropriado de doenças comuns e acidentes. • Distribuição de medicamentos básicos. O impulso decisivo para a consolidação das propostas da NPS veio das Conferências Internacionais sobre Promoção da Saúde – Ottawa, 1986; Adelaide, 1988; Sundsvall, 1991; Jacarta, 1997; México, 2000; Bangkok, 2006. Ao longo dessas conferências, que reuniram técnicos, gestores, políticos e ativistas, foram sendo consolidados os conceitos e as estratégias para uma efetiva mudança de paradigma na orientação das práticas de saúde e melhoria das condições de saúde das populações em todo o mundo, especialmente entre as nações mais pobres. Em cada uma dessas conferências, o debate de ideias e experiências dos diversos países participantes, seus sucessos e seus fracassos, seus avanços e suas dificuldades foram, pouco a pouco, constituindo uma série de princípios e métodos que têm conferido novo sentido às práticas de saúde, sobretudo no campo da prevenção. 3.7 Princípios da nova promoção da saúde Sistematiza-se no quadro a seguir o resultado obtido até os dias de hoje em sete princípios para essa prática. Quadro 2 Concepção holística de saúde A saúde é entendida como bem-estar físico, mental, social e espiritual, dizendo respeito não a grupos de riscos, mas à população como um todo, e não apenas a questões médicas, mas a necessidades relacionadas ao dia a dia dessas populações Intersetorialidade Para responder às necessidades de saúde em sua concepção holística, é necessária a articulação de diferentes setores de atividade social, envolvendo ações de legislação, tributação e controle fiscal, educação, habitação, serviço social, cuidados primários em saúde, trabalho, alimentação, lazer, agricultura, transporte, planejamento urbano etc. Isso leva as propostas da NPS a identificar no compromisso e envolvimento governamental um papel central. Há aqui já algum contraste com o sentido predominantemente centrado no setor saúde da promoção da saúde no modelo clássico de HND Empoderamento Neologismo que busca traduzir o termo inglês empowerment; trata-se da ideia de que é preciso que os indivíduos tenham efetivo poder para transformar as diversas situações sociais que restringem ou ameaçam sua saúde, o que remete a questões como direitos de cidadania, apoio jurídico, autoestima, suporte social etc. Participação social De modo articulado ao empoderamento dos diversos sujeitos sociais, espera-se que a definição de prioridades para a promoção da saúde e dos meios mais adequados para alcançá-las sejam frutos de discussões e ações coletivamente construídas. Isso requer a produção e a circulação democrática das informações e o desenvolvimento de canais acessíveis e efetivos de participação política. Essa forte politização é, talvez, o ponto de maior distância em relação ao modelo de HND/NP, no qual predomina uma leitura mais técnica e individual dos problemas e de sua solução, não obstante haver já referência à necessidade de ação por meio da organização social e estatal nos trabalhos de Leavell e Clark Equidade Desde a Carta de Ottawa, esse é um princípio fundamental da NPS. Refere-se à ideia de que a efetividade de um acesso universal à saúde depende de estratégias que contemplem as especificidades dos diferentes grupos sociais, as condições desiguais das quais são constituídas suas necessidades de saúde e suas possibilidades de cuidado. Também nesse aspecto observam-se mudanças substantivas em relação à promoção da saúde tradicional. De fato, foi só a partir da década de 1990 que se fortaleceu a noção de que objetivos e métodos para a boa saúde não são universais, mas implicam, inclusive, políticas assentadas em desigualdades para que se possa alcançar a equidade em termos de distribuição da saúde 27 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE Ações multiestratégicas Esse ponto está bem próximo das propostas de interdisciplinaridade e intersetorialidade que também orientam o modelo de Leavell e Clark, isto é, assumir a necessidade de que diferentes conhecimentos e ações de várias naturezas sejam chamados a contribuir para as melhores formas de interferir nos processos de saúde-doença. A diferença reside no aspecto estratégico,isto é, o elenco das disciplinas a serem envolvidas e o papel de cada uma delas nessa tarefa não estão dados a priori, mas dependem dos processos políticos concretos em que se busca construir equitativamente respostas para as necessidades de saúde social e historicamente configuradas em cada contexto de prática Sustentabilidade Diz respeito, de um lado, à necessidade de que as políticas de promoção de saúde estejam sinergicamente articuladas com o princípio de desenvolvimento econômico sustentado, isto é, um desenvolvimento produtivo que não consuma de modo predatório os recursos naturais e socioculturais das populações. De outro lado, aponta para a garantia de continuidade e efetividade dessas políticas, requerendo esforços para captação duradoura de recursos materiais e construção de legitimidade e governabilidade dessas propostas. Esses são aspectos bastante contemporâneos na promoção da saúde 4 EPIDEMIOLOGIA GERAL DAS DOENÇAS TRANSMISSÍVEIS 4.1 Patologia, infecção e doença Patologia é o estudo científico das doenças, e a palavra deriva do grego pathos (sofrimento) e logos (ciência). A patologia interessa-se primeiro pela causa, ou etiologia, de uma doença. Em segundo lugar, ela lida com a patogênese, a maneira pela qual uma doença se desenvolve. Por fim, a patologia analisa as mudanças estruturais e funcionais decorrentes de uma doença e seus efeitos no organismo. Embora os termos infecção e doença sejam muitas vezes utilizados como sinônimos, eles apresentam diferenças em seus significados. Infecção consiste na invasão ou colonização do corpo por microrganismos patogênicos; a doença ocorre quando uma infecção leva à alteração no estado de saúde. A doença é um estado anormal, no qual parte ou todo o organismo encontra-se incapaz de realizar as suas funções normais. Uma infecção pode existir na ausência de doença detectável. Por exemplo, o corpo pode estar infectado pelo vírus que causa a aids sem que haja a manifestação de qualquer sintoma da doença. A presença de um tipo particular de microrganismo em uma parte do corpo onde ele normalmente não é encontrado também é chamada de infecção e pode acarretar o surgimento de doença. Por exemplo, embora grandes quantidades de E. coli normalmente estejam presentes no intestino saudável, sua infecção do trato urinário, geralmente, leva à doença. 4.2 Etiologia das doenças infecciosas Algumas doenças, como a pólio e a tuberculose, têm uma etiologia claramente definida. Contudo, outras doenças têm uma etiologia não totalmente compreendida, como a relação entre determinados vírus e câncer. A doença de Alzheimer, por exemplo, tem sua etiologia desconhecida. Obviamente, nem todas as doenças são causadas por microrganismos. A hemofilia é uma doença hereditária (genética), e a osteoartrite é degenerativa. Existem ainda várias outras categorias de doenças, mas discutiremos apenas as doenças infecciosas, ou seja, aquelas causadas por microrganismos. 28 Unidade I 4.3 Fatores predisponentes Alguns fatores predisponentes também afetam a ocorrência de uma doença. Um fator predisponente é aquele que torna o corpo mais suscetível a uma doença e pode alterar seu curso. O sexo algumas vezes é um fator predisponente. As mulheres, por exemplo, apresentam maior incidência de infecções urinárias e depressão do que os homens. Por outro lado, os homens denotam maiores taxas de ocorrência de pneumonia e meningite. Outros aspectos de origem genética podem desempenhar um papel semelhante. A anemia falciforme, por exemplo, é uma forma grave e muitas vezes fatal de anemia que ocorre quando os genes responsáveis pela doença são herdados de ambos os pais. Indivíduos que carreiam apenas um gene da anemia falciforme apresentam uma condição denominada traço falciforme e são considerados normais, a não ser que sejam realizados testes especiais para afirmar o contrário. No entanto, esses indivíduos são resistentes à forma mais grave da malária. Nesses casos, a possibilidade de que indivíduos possam herdar uma doença potencialmente letal em uma população é contrabalanceada pela proteção contra malária entre os portadores do gene para o traço falciforme. É claro que, em países onde a malária não está presente, o traço falciforme é uma condição inteiramente negativa. As condições climáticas parecem ter algum efeito na incidência de doenças infecciosas. Em regiões temperadas, a incidência de doenças respiratórias aumenta durante o inverno. Esse aumento pode estar relacionado ao fato de que, quando as pessoas permanecem em ambientes fechados, o contato íntimo entre elas facilita a disseminação dos patógenos respiratórios. Outros fatores predisponentes incluem nutrição inadequada, fadiga, idade, meio ambiente, hábitos, estilo de vida, ocupação, doenças preexistentes e quimioterapia. Normalmente, é difícil saber a importância relativa exata dos vários fatores predisponentes. Observação Depressão, lúpus eritematoso sistêmico e artrite reumatoide são doenças com maior incidência nas mulheres, já infarto do miocárdio, enfisema pulmonar e câncer de pulmão são mais incidentes em homens. 4.4 Desenvolvimento da doença Uma vez que o microrganismo supera as defesas do hospedeiro, o desenvolvimento da doença tem uma sequência, que tende a ser similar, independentemente de a doença ser aguda ou crônica. 4.4.1 Período de incubação O período de incubação consiste no intervalo entre a infecção inicial e o surgimento dos primeiros sinais ou sintomas. Em algumas doenças, o período de incubação é sempre o mesmo; em outras, ele pode variar consideravelmente. O tempo de incubação depende do microrganismo específico que está envolvido, de sua virulência (grau de patogenicidade), do número de microrganismos infectantes e da resistência do hospedeiro. 29 FUNDAMENTOS DE AÇÕES PREVENTIVAS EM SAÚDE 4.4.2 Período prodrômico O período prodrômico consiste em um período de tempo relativamente curto que se segue ao período de incubação de algumas doenças. Ele é caracterizado pelo surgimento de sintomas precoces e leves de doença, como dores generalizadas e indisposição geral. 4.4.3 Período de doença Durante o período de doença, o quadro da doença é mais grave. O paciente exibe sinais e sintomas claros, como febre, calafrios, dores musculares (mialgia), sensibilidade à luz (fotofobia), dor de garganta (faringite), edema dos linfonodos (linfadenopatia) e distúrbios gastrintestinais. Nessa fase, o número de leucócitos pode aumentar ou diminuir. Em geral, as respostas imunes e outros mecanismos de defesa do paciente destroem o patógeno, o que demarca o fim do período de doença. Quando a doença não é controlada (ou tratada) com sucesso, o paciente vai a óbito. 4.4.4 Período de declínio Durante o período de declínio, os sinais e os sintomas diminuem de intensidade. A febre diminui, assim como a sensação de indisposição. Nessa fase, que pode durar de menos de 24 horas a vários dias, o paciente encontra-se vulnerável a infecções secundárias. 4.4.5 Período de convalescência No período de convalescência, a pessoa restaura a sua força e o corpo retorna ao estado anterior à doença. Segue a recuperação. Durante o período de doença, as pessoas podem atuar como reservatórios do patógeno, podendo disseminar rapidamente a infecção para outras pessoas. Entretanto, elas podem transmitir infecções durante os períodos de incubação e convalescência. Esse fato é especialmente verdadeiro nos casos de doenças como a cólera e a febre tifoide, em que os pacientes convalescentes podem carrear os microrganismos patogênicos por meses ou até anos. 4.5 Disseminação da infecção A seguir, serão examinadas as fontes de patógenos e como eles são transmitidos. 4.5.1 Reservatórios de infecção Para que uma doença se perpetue, é necessária a existência de uma fonte contínua do organismo causador da doença. Essa fonte pode ser um organismo vivo ou um objeto inanimado que fornece ao patógeno condições adequadas de sobrevivência e multiplicação,
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