Buscar

O PAPEL DO PSICÓLOGO NA ESCUTA AO ABUSO SEXUAL

Prévia do material em texto

MARGARETE DOS SANTOS MARQUES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: 
O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da 
criança e do adolescente sob visão da psicanálise. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
PUC-SP 
2006 
 2
 3
MARGARETE DOS SANTOS MARQUES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: 
O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da 
criança e do adolescente sob visão da psicanálise. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Trabalho apresentado, como exigência parcial para 
obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, 
à Comissão Julgadora do Programa de Psicologia 
Social PUC-SP. 2006 
 
 
 
 
PUC-SP 
2006 
 4
O LUGAR DO PSICÓLOGO NA ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: a 
Psicologia e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente 
sob a óptica da psicanálise. 
 
 
 
Margarete dos Santos Marques 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
BANCA EXAMINADORA 
 
 
 
 
 
 
______________________________________________ 
 
 
 
 
 
______________________________________________ 
 
 
 
 
 
______________________________________________ 
 
 
 
 
 
 
 
 
Defendida e aprovada em ___/____/2006. 
 5
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Dedico esse trabalho à minha mãe. 
 6
AGRADECIMENTOS 
 
 
À equipe de professores e em especial à coordenadora do Programa de Psicologia Social da 
PUC-SP prof.dra. Mary Jane Spink por me aceitarem como aluna. 
Ao prof.dr. Raul Albino Pacheco Filho pela paciência e dedicação com que me ajudou a 
conduzir essa dissertação. 
Ao CNPq por financiar essa pesquisa por meio de bolsa estudantil. 
À ilustre Taeco Toma Carinato por ter me ensinado a escrever. 
Aos amigos do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade da PUC-SP. 
Á Associação Gaudium et Spes representada por João Clemente de Souza por autorizar o 
acesso aos prontuários e por me fazer acreditar que era possível. 
À equipe Sentinela Cuidar Sul (2003), em especial Jaqueline e Marco Aurélio. 
À Cristina Sumita pela ajuda no momento mais difícil. 
À Graciela Haidee Barbero, pelas frutíferas discussões no grupo de estudo e fora dele. 
À querida amiga Maria Gorete Vasconcelos pelo carinho e cuidado no momento em que 
quase desisti. 
Às doutoras Maria Cristina Vicentin e Renata Coimbra Libório por terem aceitado não só 
fazer parte da banca, mas por terem se permitido ser tocadas pelo tema. 
Ao Instituto WCF Brasil representado por Ana Maria Drummond, Carolina P. C. Padilha 
Mônica Santos, Isabela Mosconi e Tatiana pelo incentivo e compreensão. 
À equipe do Programa Refazendo Laços de São Jose dos Campos pela confiança e respeito. 
À Maria Aparecida Barbirato pela possibilidade do ‘encontro.’ 
Ao José Carlos Garcia pelas intervenções assertivas. 
Ao CRAMI – ABC, em especial à Ligia Maria Caravieri, pela confiança e abertura. 
Ao prof dr.Rinaldo Voltoline, Afra B. Galindo e os companheiros do consultório pela 
amizade e acolhida de tantos anos. 
Ao Sidnei A. Goldberg pela escuta atenta e decisiva. 
Aos tios Guimarinha, Araci e Hernandes, vozes queridas da minha infância. 
Ao Marcelo pelos cuidados com o nosso pequeno. 
Às queridas sobrinhas Bruna, Mariana que mesmo distantes se fazem presentes, e em especial 
à doce Gabriela pelo carinho e paciência nas horas difíceis. 
Aos meus irmãos Eli a Alexandre pelas brincadeiras de infância. 
Ao meu amado pai por ter me dado a possibilidade de ser. 
 7
À minha amada mãe pelo exemplo de coragem e por nos ensinar que a vida sempre vale a 
pena. 
Ao meu amado filho Matheus por sua ‘infantil’ sabedoria que me ensinou a ser mãe e por seu 
profundo respeito à mulher que há em mim. 
Aos pacientes que confiaram e ainda confiam na minha escuta. 
Aos psicólogos que se dispuseram a contribuir com essa pesquisa e à todos aqueles que de 
certa forma se vêem tocados pelo tema. Espero poder, com esse trabalho, ter sido solidária a 
algumas das suas questões. 
 8
 
ABUSO 
 
Apareceu 
A suspeita da devastação, 
da destruição. 
Que ninguém viu, que surgiu no silêncio, 
da tarde ou da noite. 
 
Firmou-se na frente do muro 
Mudo. 
Pela saída do fundo. 
Na ausencia de todos. 
E foi devastando devagar. 
 
Foi chegando sem parar, 
invadindo cada canto, 
implodindo todo encanto, 
do copo agora violado. 
 
Como sobreviver 
à guerra quieta do ser? 
Salvar-se do desgosto 
Posto no rosto. 
 
Espelhar-se no pó, 
na sombra. 
De que? 
de quem? 
 
No cinza da roupa 
Que veste e reverte, 
vê-se a imagem 
daquele que deveria proteger 
Mas deixou de fazer. 
Imaginar-se seguindo, 
Andando, caminhando, 
para o sol, para o céu. 
Infinito de toda a alma. 
 
Esperança que quase espanta. 
Que reencanta. 
Luz de um abraço 
Acolhedor, que crê. 
 
A importante presença de 
Alguém que abriga. 
Que a acompanha a cada passo, 
a cada laço refeito. 
 
Mãos que afagam. 
Ombros que acolhem 
o ser desiludido, 
desencantado, cansado. 
 
Agora é preciso continuar 
vivendo. 
É só continuar 
(re) fazendo. 
 
No pós-guerra, sobreviver 
é mais que viver. 
É também esconder, silenciar 
o que se viveu. 
 
Superar e voltar a se encantar 
Após a guerra é tudo o que resta 
No resto de mim 
Sopro sem fim. 
 
Margarete S. Marques 
 9
SUMÁRIO 
 
 
• Resumo ....................................................................................................... 
• Abstract ....................................................................................................... 
• Introdução ................................................................................................... 
• Método ........................................................................................................ 
• Capítulo 1: Algumas Notas Sobre a Criança .............................................. 
1.1 – A criança na psicanálise: erotismo infantil ................................... 
1.2 – Menino ou menina: fases da fantasia ............................................ 
1.3 – Annafreudismo, Kleinismo e os independentes ........................... 
1.4 - A escola francesa ........................................................................... 
 
• Capítulo 2: Do Código de Menores ao Estatuto ......................................... 
2.1 – Da premissa da situação irregular ao artigo 227 .......................... 
2.2 – Da convenção da ONU ao Estatuto .............................................. 
2.3 – O Estatuto: implicações ao psicólogo .......................................... 
2.4 – A Proteção especial ...................................................................... 
 
• Capítulo 3: Refletindo sobre Violência, Abuso e Incesto ........................... 
3.1 – Violência ...................................................................................... 
3.2 – Abuso sexual ................................................................................ 
3.3 – A inclusão do abuso na agenda da Organização Mundial da 
Saúde ..................................................................................................... 
3.4 – O abuso no Brasil ......................................................................... 
3.5 – Violência Doméstica .................................................................... 
3.6 – Violência sexual ........................................................................... 
3.7 – Escolhendo um termo ................................................................... 
 
• Capítulo 4: O Caminho da Criança na Rede de Proteção: implicações 
sobre o lugar do psicólogo .......................................................................... 
11
12
13
21
23
29
32
35
39
42
44
47
48
51
53
54
56
57
59
61
62
64
70
 10
4.1 – Relato do caso .............................................................................. 
4.2 – Relato da dor ................................................................................ 
4.3 – A notificação ................................................................................4.4 – A chegada ao atendimento ........................................................... 
4.5 – O desenrolar das sessões com a mãe ............................................ 
4.6 – O desenrolar das sessões com Ana ............................................... 
4.7 – A relação da justiça com o psicólogo ........................................... 
4.8 – A audiência ................................................................................... 
4.9 – O lugar do psicólogo .................................................................... 
4.10 – Tabu e incesto ............................................................................ 
4.11 – A linguagem da ternura .............................................................. 
 
• Capítulo 5: O Psicólogo e o campo jurídico: análise das entrevistas ......... 
 5.1 – Contextualizando nossa análise .................................................... 
 5.1.1 – As questões de André ................................................................ 
 5.1.2 – As questões de Cláudia .............................................................. 
5.1.3 – As questões de Maria ................................................................. 
5.2 – Um diálogo possível ..................................................................... 
5.3 – O que faz o analista ...................................................................... 
 
• Conclusão .................................................................................................... 
• Bibliografia ................................................................................................. 
• Anexos ........................................................................................................ 
71
71
72
74
74
76
77
79
81
82
85
87
87
88
93
97
100
110
113
116
124
 11
RESUMO 
 
 
MARQUES, M. S. A escuta ao abuso sexual: o psicólogo e o sistema de garantia de 
direitos da criança e do adolescente. São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado. Programa 
de Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 
 
Este trabalho tem como objetivo articular, com base no referencial psicanalítico, 
alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às ambigüidades e contradições 
relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de garantia de direitos da criança e do 
adolescente atendendo aos casos de abuso sexual infantil. 
Abordamos o conceito de criança, principalmente, como ela passou a ser personagem 
central da cena social, carregando o ideal de um futuro promissor. Destacamos como a 
sociedade brasileira se mobilizou para considerar a criança como sujeito de direitos, com a 
promulgação do Estatuto da criança e do Adolescente. 
Refletimos sobre diversos conceitos de violência, abuso sexual e incesto, escutando as 
contradições que permeiam esse campo, devido as diferentes teorias e posicionamentos 
políticos e epistemológicos dos autores. E observamos a impossibilidade de consenso sobre a 
utilização dos termos para se nomear o fenômeno do abuso sexual infantil. 
Entrevistamos psicólogos que trabalham nos serviços da rede de proteção integral, a 
fim de investigar como concebiam e vivenciavam o tema, seus conflitos, angústias e 
sofrimentos, seus juízos de valor e suas formulações éticas, morais e religiosas. Assim, 
deparamo-nos com a demanda da justiça para que o psicólogo produza provas para respaldar a 
decisão judicial na aplicação da pena para o suposto abusador. 
Na análise das entrevistas, promovemos levantar diversas questões, para criar um 
movimento que não busca uma verdade absoluta, mas, ao contrário, diluir algumas questões 
para que se abram outras por meio de um diálogo com autores que discutem a interface entre a 
Psicologia/Psicanálise e o Direito. 
Concluímos que é preciso promover reflexões, no interior dos órgãos de classe e das 
universidades, a fim de que o tratamento psicoterapêutico seja tomado pelo paciente como um 
direito e não como um dever, e que a ética do psicólogo seja considerada durante o diálogo 
com o campo do Direito. 
 12
ABSTRACT 
 
 
The Listening of sexual abuse: the psychologist and the assurance of children and adolescent 
rights. São Paulo, 2006. 
 
 
This project intends to articulate, based on a psychoanalytic referential, some aspects 
of existence and experiences of professionals with ambiguities and contradictions related to 
the function of psychologists who work in the system of assurance of children and adolescents 
rights taking care of cases in child sexual abuse. 
 
We’ve approached the concept of child, mainly how this child became a central 
character in the social scene carrying the ideal of a good future. We must point out how 
Brazilian society has mobilized itself to consider a child as an individual with rights, through 
the promulgation of the Child and Adolescence Act. 
 
We’ve reflected on several concepts of violence, sexual abuse, incest, listening to 
contradictions that prowl this segment, due to different theories and epistemological and 
political positioning of authors. And observing the impossibility of a consensus in the use of 
terminology to name the child sexual abuse phenomena. 
 
We’ve interviewed psychologists who work in services of protection, in order to 
investigate how they experienced the theme, their conflicts, anguishes and pains, their values 
as well as ethical, moral and religious formulations. Thus we’ve faced a demand of justice for 
the psychologist to produce proof to support the legal decision in the conviction of the alleged 
abuser. 
 
In the interview’s analyses we’ve raised several questions to create a movement not in 
search of absolute truths, but yet, to dilute some questions so that other questions can be asked 
through talks with authors to discuss the interface between Psychology/Psychoanalysis and 
the Law. 
 
We’ve concluded that it’s necessary to promote reflections in universities and social 
classes so that the psychotherapeutic treatment is taken by the patient as a right and not as a 
duty, and that the psychologist ethics be considered in the dialogue with the law. 
 13
INTRODUÇÃO 
 
 
O presente trabalho tem uma relação inerente com a experiência da pesquisadora. Isto 
significa que foi a ligação entre a pesquisa, o pesquisado e o pesquisador que mobilizou esta 
produção científica. 
Para justificarmos esse lugar – de pesquisadora - me apresento como: psicóloga, que 
atuou e ainda atua em serviços relacionados com a temática da violência sexual, que atende, 
escuta, acompanha e supervisiona casos de crianças e adolescentes que passaram por essa 
experiência. Dessa forma, a nossa experiência sempre esteve articulada com o que pretendi 
investigar. 
A experiência como coordenadora do Centro de Referência foi o embrião do 
problema dessa pesquisa. No ano de 2002, fui convidada a assumir a coordenação de 
um Centro de Referência para Crianças, Adolescentes e Famílias em Situação de 
Violência Sexual: como proposta e um programa do Governo Federal que repassam verbas 
para os municípios, que por sua vez estruturam centros de atendimento a essa 
problemática. 
Participei de todo o processo de implantação do Centro que compreendia: a criação do 
nome, pois os municípios não precisavam utilizar o nome Sentinela. Os Centros eram 
autorizados a batizar o programa com o nome que julgassem melhor; a escolha da instituição 
que iria ser a sede; a contratação da equipe de profissionais; o preparo da comunidade para 
receber o serviço por meio de cursos de sensibilização e reuniões com o conselho tutelar, com 
a vara da infância, com a diretoria de ensino e com a secretaria de desenvolvimento social; e, 
por fim, a inauguração do espaço. 
Ocupando o cargo de coordenadora, passei a escutar os profissionais que atuavam no 
atendimento. A modalidade dessa escuta não era aquela propostapor Freud (1924)1, ou seja, 
“atenção uniforme e suspensa em face de tudo o que se escuta”, mas uma atenção operacional 
aos profissionais, levando em consideração suas dificuldades no cotidiano de sua atuação. A 
tarefa de coordenar exigiu uma interlocução com a equipe de trabalho para que as decisões 
tomadas tivessem sempre como meta oferecer condições para uma boa qualidade de 
atendimento aos usuários do serviço. 
Semanalmente, a equipe técnica do programa reunia-se a fim de organizar os trabalhos 
e de discutir os casos que estavam sendo atendidos pelo Centro de Referência. Dessas 
 14
reuniões participavam psicólogos, assistentes sociais e um educador. Com o passar do tempo, 
fui percebendo que algo de errado estava acontecendo com os profissionais dessa equipe e 
supus que poderia ter ligação com suas atividades no Centro. 
As suposições foram despertadas com o caso de uma menina de um ano e seis meses 
de idade, que atendemos no Programa. Ela acabara de receber alta do hospital da região e 
estava em um abrigo. Havia passado por uma cirurgia de reconstituição da genitália, devido à 
dilaceração ocorrida por ter sofrido um abuso sexual do pai. O abrigo pediu-nos ajuda para 
lidar com a menina. Assim, o caso foi levado à reunião técnica, para que um dos psicólogos 
pudesse iniciar o atendimento. Um psicólogo do grupo dispôs-se a atender esse bebê. No dia 
seguinte, uma profissional da equipe – não a que iria atender a criança – relatou-me que, no 
caminho de volta para sua casa, começou a pensar no “bebezinho que sofreu abuso” e sentiu 
enjôo. Passadas algumas horas, começou a vomitar compulsivamente. Disse-me que a 
imagem que vinha à sua mente durante os vômitos era a de sua filhinha quando era bebê. Essa 
psicóloga nos concedeu uma das entrevistas deste trabalho, pois considerei importante escutar 
a sua história. 
Também escutei um outro caso que fiquei muito atenta. Um profissional relatou-nos 
que havia atendido um menino de seis anos que tinha sido abusado por seu padrinho. 
Chamou-me a atenção o fato de ela repetir por várias vezes a fala que o menino dirigiu a ela 
durante a entrevista de triagem: “doía muito, tia, doía muito”. Após alguns dias, a profissional 
procurou-me para dizer que teve, pela primeira vez, uma crise de hemorróidas. Dias depois, 
apareceu com o corpo empipocado e o diagnóstico médico foi de que aquele sintoma era uma 
espécie de urticária. 
Em outros momentos, escutei relatos como: “passei a olhar diferente para o meu 
marido, pensando se ele seria capaz de abusar de nossa filha de seis anos”. Essa profissional 
disse ter chegado a ficar receosa em deixar o pai sozinho com a filha. 
Eu conheci esse lugar estranho, quando fui intimada pelo promotor de justiça da vara 
criminal a prestar depoimento como testemunha de acusação do padrasto de uma criança de 
sete anos, atendida por mim no Centro. Esse fato me causou certo mal-estar e fez com que eu 
me perguntasse se o posterior desligamento da paciente da psicoterapia poderia ter relação 
com meu depoimento, e se ela e principalmente sua mãe também não se viram tomadas pelo 
mesmo mal-estar. 
Percebi, então, que o fato de um sujeito estar ‘mergulhado’ diariamente no discurso 
sobre abuso sexual pode promover alterações nas suas relações sociais, familiares, conjugais e 
de amizade, e até mesmo interferir na sua possibilidade de acolhimento. A escuta a essa 
 15
problemática pode ainda gerar fantasias na mente desses profissionais. Essa observação 
também foi feita por Cromberg (2001) ao supervisionar psicólogos que trabalhavam 
escutando crianças abusadas sexualmente. Diz: “O tratamento de tais tragédias psíquicas [...] 
faz violência também no psiquismo do analista [...] Contudo, esse profissional deverá 
promover “um ligamento de sentidos e simbolizações ao sujeito que sofreu a violência” 
(CROMBERG, 2001, p. 9), que vai remeter esse profissional a navegar por extratos de seu 
inconsciente. 
Essa percepção conduziu-me a orientar e sensibilizar a equipe da necessidade de entrar 
no processo de psicoterapia ou análise, porém nem todos se dispuseram a fazê-lo. Comuniquei 
à instituição sobre minha preocupação com os profissionais e sugeri a contratação de um 
supervisor. Os gestores, apesar de serem solidários, disseram que a verba recebida do poder 
público não previa gastos para esse fim, mas se dispuseram a financiar, pois reconheciam que 
precisavam cuidar da equipe técnica. 
Além das dificuldades encontradas na escuta ao abuso sexual em si, deparei-me com 
outra dificuldade: a relação com a instância jurídica, que por sua vez é um dos braços do 
sistema de garantia de direitos. 
O Estatuto da criança e do Adolescente (ECA) foi uma conquista da sociedade 
brasileira e, por meio dele, muitas ações de proteção encontram respaldo legal; o Programa 
Sentinela foi uma dessas ações que abriu campo de trabalho para o psicólogo e possibilidade 
de acolhimento e tratamento psicoterápico às crianças que vivenciaram a experiência do 
abuso. Entretanto, a maneira com que o sistema judiciário está fundamentado às vezes, impõe 
aos psicólogos uma tarefa que vai além da sua função terapêutica e é bastante difícil de ser 
equacionada: de produzir provas para respaldar as decisões judiciais com relação à pena a ser 
aplicada a um possível abusador. 
O abuso sexual infantil passou a ser considerado fenômeno relevante após a 
estruturação do conceito de criança como um ser em etapa peculiar de desenvolvimento. Esse 
fato somado à luta pelos direitos humanos e o surgimento do feminismo, foram os pilares de 
sustentação dos movimentos sociais que se mobilizaram a fim de consolidar em forma de 
legislação tanto os direitos da criança como as penalidades e sanções para aqueles que 
descumprissem as leis. 
Uma pesquisa feita por Pimentel (2006), que avaliou publicações sobre o abuso sexual 
infantil, revelou há poucos autores brasileiros trabalhando com o tema e prevalecendo uma 
postura: a de incentivar a mobilização da população para identificar essas situações no interior 
da família e denunciá-las à polícia ou autoridade competente. Revelou, também, que existe 
 16
um movimento bem articulado no Brasil, na cidade de São Paulo, mais especificamente na 
USP cuja maneira de atuação e argumentação “versavam basicamente sobre a mesma 
temática: critérios de classificação, exames, vigilância e punição às situação de abuso sexual 
infantil” (PIMENTEL, 2006, p. 44). 
A forma com que nossa sociedade escolheu para lidar com este fenômeno 
acaba expondo a família a diferentes intervenções públicas de vários profissionais. Dessa 
maneira o “Estado toma para si o cuidado com as crianças policiando as famílias” 
(PIMENTEL, 2006, p. 51). Assim, podemos inferir que o monitoramento das práticas sexuais 
no interior das famílias faz com que o abuso infantil esteja estritamente relacionado à 
sexualidade. 
Para o entendimento e a compreensão da nossa questão, busquei a abordagem e 
metodologia psicanalítica. Onde o sujeito não é resultado do desenvolvimento biológico, nem 
o psiquismo é originário somente das sinapses neuronais. Sua emergência se dá a partir do 
encontro com o Outro representante da cultura – a mãe, ou quem cuida – e, desde a mais tenra 
idade, é portador de um erotismo despertado por esse encontro. Contudo, o momento dessa 
emergência é esquecido e temos acesso a ela somente por meio das formações do 
inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e etc. Essa instância psíquica - o 
inconsciente - é atemporal, alógico, regido pelo princípio do prazer e, portanto, infantil, tanto 
para o adulto quanto para a criança. 
De acordo com Silva (2006), o autor esclarece que a sexualidade infantil nos remete à 
“lógica da construção da fantasia. Dessa forma, Freud substitui a compreensão da sexualidade 
infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional por outra que enfatiza a 
fantasia” (PRATES SILVA,2006, p. 56). Freud (1908) com a análise do pequeno Hans, logo 
se confrontou com a concepção de criança de sua época, que era vista como um ser inocente e 
despossuído de qualquer sexualidade. A cura de Hans se deu por meio da análise de questões 
ligadas ao erotismo infantil na relação com seus pais, ou seja, o complexo de Édipo. Assim, 
Freud sofreu as conseqüências de ter desvelado a sexualidade infantil, contrapondo-se com a 
concepção de criança ‘inocente’ que dominava à época, e abriu caminho para novas pesquisas 
sobre a infância em psicanálise. 
Considerando a teoria freudiana a qual, em um dado momento, pesquisou o abuso 
infantil incestuoso e o percurso da pesquisadora de ter trabalhado na rede de proteção 
atendendo estes casos, surgiu o interesse em investigar como outros psicólogos se 
confrontavam com a violência sexual a crianças e adolescentes e como exerciam sua prática. 
Quis saber como concebiam e vivenciavam o tema, incluindo seus pensamentos, suas 
 17
reflexões teóricas e profissionais, bem como suas concepções e opiniões pessoais, seus pontos 
de vista oriundos do senso comum (compartilhados por setores ou agrupamentos sociais), 
seus conflitos, angústias e sofrimentos, seus juízos de valor e suas formulações éticas, morais 
e religiosas. 
Delimitamos, então, nosso objetivo, nossa questão: articular, com base no 
referencial psicanalítico alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às 
ambigüidades e contradições relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de 
garantia de direitos da criança e do adolescente atendendo aos casos de abuso sexual 
infantil. 
Para o material dessa questão, procuramos entrevistar psicólogos, homem ou mulher, 
que tivessem um percurso no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência 
sexual em um serviço da rede de proteção. Deveriam ter formação em psicologia, sem a 
necessidade de constar em seu currículo especialização no tema violência sexual. Eles ainda 
poderiam ou não estar em processo de análise ou psicoterapia. 
Ao escutar nossos entrevistados, observamos que a maioria dos profissionais dedicam 
número constante de horas semanais a esse trabalho. Estão inseridos em um serviço com a 
missão de prestar atendimento a crianças, adolescentes e famílias em situação de violência 
sexual. Fazem parte de uma equipe formada por diferentes profissionais, tais como assistentes 
sociais, médicos, educadores e estagiários, com a proposta de interdisciplinaridade, ou seja, de 
discussão e acompanhamento dos casos por toda a equipe, respeitando a especificidade de 
cada área. 
As instituições nas quais eles trabalham posicionam-se diferentemente frente ao 
relacionamento com os vários campos do saber, em especial com o campo jurídico. A 
escolha de profissionais que exercem sua função em diferentes instituições foi 
proposital. Acreditamos que, assim, ilustraríamos as diferentes concepções que as instituições, 
bem como os psicólogos, podem ter com relação ao atendimento aos casos de abuso 
sexual. 
Com o auxílio do método de investigação psicanalítico, colhemos material que foi 
analisado, de maneira que pudéssemos mapear as tensões entre as diferentes disciplinas e 
campos do saber que se ocupam em trabalhar com o tema, destacando especialmente a 
Psicologia, a Psicanálise e o Direito. Delimitamos os pontos de tensão e pensamos em um 
diálogo possível entre ambos. 
Selecionamos algumas das questões levantadas pelos psicólogos entrevistados, 
priorizando aquelas que dizem respeito à interface do seu trabalho com a justiça, tais como a 
 18
obrigatoriedade da denúncia nos casos de suspeita de abuso sexual infantil e a sua relação 
com o Código de Ética do Psicólogo, que em seu artigo 9º dá ao paciente o direito ao sigilo 
profissional; o fornecimento de laudos, pareceres, relatórios e depoimentos que respaldam as 
decisões judiciais para afastamento do lar ou aplicação de pena ao suposto agressor, que na 
maioria das vezes é alguém com fortes laços afetivos com a criança. 
No desenvolvimento do trabalho, percebemos a necessidade de esclarecer melhor 
sobre o que entendemos pelo termo criança e o que a psicanálise define como infância. Com 
auxílio de Ariès (1981), descrevemos como foi se construindo historicamente esse conceito, a 
fim de nos afastarmos da crença de que a infância é algo natural. Para complementar, 
delineamos como a criança foi se consolidando como centro das atenções em algumas 
sociedades ocidentais, a partir de alguns fatores sociais e históricos. 
Acrescentamos como as instituições onde os sujeitos de nossa pesquisa trabalham 
seguem a doutrina da proteção integral. No capítulo 2 buscamos descrever, historicamente, o 
percurso trilhado pela sociedade, por meio de movimentos sociais como o feminismo, para 
materializar o seu ideal de proteção à criança, que culminou no Brasil, na promulgação do 
ECA. 
No capítulo 3, discorreremos sobre os termos utilizados para nomear os fenômenos: 
violência sexual, abuso e incesto. Consideramos a opinião de alguns autores, como Costa 
(2003), que acredita sabermos pouco sobre a violência devido à escassez de investimentos em 
pesquisa sobre o tema pelas diversas ciências, incluindo a psicanálise, e Minayo (1998), que 
também sustenta a idéia de que o fenômeno seja enfrentado de forma multiprofissional e seja 
motivo de amplo debate entre as diferentes áreas do conhecimento, em especial a psicologia 
social. 
No capítulo 4, descrevemos, detalhadamente, o caso da menina em que fui intimada a 
depor em juízo. E, pronunciamos os equipamentos da rede do sistema de proteção integral que 
a acolheram – delegacia, hospital, conselho tutelar e vara da infância. Refletimos sobre o que 
é esperado do trabalho do psicólogo pela área jurídica e sobre qual a função do tratamento 
psicológico. 
No quinto e último capítulos, recortamos os pontos principais levantados por nossos 
entrevistados e os analisamos a partir da opinião de alguns autores que se depararam com a 
questão. Na intenção de fomentar ainda mais a discussão, recorremos a autores que têm visões 
diferentes sobre a atuação do psicólogo no campo jurídico. 
 19
Freud (1931) contrapôs-se ao resultado dos exames periciais de um médico que 
utilizou a teoria do complexo de Édipo e o conceito psicanalítico de repressão para incriminar 
o jovem judeu Philipp Halsmann por crime de parricídio na Áustria. 
Citamos a posição de Lacan (1950) sobre a contribuição da psicanálise à criminologia, 
em que sustenta a idéia de que são as questões sociais que definem um criminoso. 
Caffé (2003) acredita que o trabalho da perícia psicológica psicanalítica pode 
auxiliar uma família em litígio a se implicar em seu sintoma. Assim, a psicanálise surge no 
lugar de um saber que faltou ao juiz: “Um lugar sobre outro lugar” (GUIRADO apud 
CAFFÉ, 2003, p. 99), pois é o direito que convida a psicanálise para os domínios de sua casa. 
Para essa autora, é a partir desse lugar faltante – não só para o juiz, mas também para a 
família que procura a justiça e seus agentes para institucionalizar o conflito no qual está 
mergulhada – que pode haver alguma possibilidade de interlocução entre a Psicologia, a 
Psicanálise e o Direito. 
Já Arantes (2004), baseada no filósofo da ciência Canguilhem, promove uma reflexão 
sobre a instrumentalização da psicologia e defende a idéia de que não é vocação dessa ciência 
ser apenas um instrumento da administração da sociedade. 
Dolke (2001), promotora de justiça de uma cidade do sul do País, tece várias críticas à 
forma com que o poder judiciário lida com os casos de suspeita de abuso sexual a crianças e 
adolescentes, principalmente no que diz respeito à inquirição das crianças no momento da 
audiência. Propõe um incessante diálogo com outras áreas do conhecimento, em especial com 
a psicologia, a fim de que sejamcriadas novas maneiras de abordagem das crianças em 
situação de violência sexual pelos juristas, bem como a reformulação da maioria das leis e 
práticas dos juristas sobre o abuso sexual infantil. 
Moraes (1998), psicanalista do Rio Grande do Sul, relata um caso em que foi 
procurada em seu consultório pela mãe de um menino de dois anos. O pedido era para que ela 
tomasse o menino em análise para elaborar um relatório que afirmasse que o pai havia 
abusado do menino, para ser entregue para o juiz. Nesse caso, refletimos sobre o quê faz um 
psicanalista frente a um pedido como esse. 
Não foi tarefa fácil concluir essa pesquisa, visto que a cada capítulo escrito se abriam 
mais questões a respeito desse tema que nos desperta horror, mas ao mesmo tempo 
curiosidade. No entanto, foi possível estabelecer uma correlação entre os dados fornecidos 
pelos entrevistados e a necessidade de um diálogo constante entre campos tão independentes 
do saber, mas que são constantemente chamados a dialogar sobre o fenômeno. 
 20
Concluímos que é preciso criar, inventar uma rede de proteção e cuidados também 
para os psicólogos. Não uma rede que promova reivindicações apenas monetárias, mas que 
abra espaços para a reflexão sobre a necessidade de formação permanente, da supervisão e do 
acesso à terapia ou à psicanálise por parte desses cuidadores. Uma rede que promova a 
implicação das pessoas em seu trabalho, para que este não esteja submetido à égide da 
instrumentalização e da submissão ao campo do Direito. 
 21
O MÉTODO 
 
 
Segundo Freud, psicanálise é o “nome de um procedimento para investigação de 
processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, um método (baseado 
nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações 
psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova 
disciplina científica.” Com essa frase, Freud (1923) enfatizou o caráter científico da 
psicanálise, destacando a existência de uma teoria, uma metodologia de investigação dos 
processos mentais e um método para tratamento. 
Freud (1896) começou a construir a teoria da sedução ao escutar suas pacientes, 
utilizando inicialmente o método criado por Charcot, a hipnose, e posteriormente a associação 
livre: “Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de 
perversão por parte do sedutor, e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai” 
(FREUD, 1996, p. 286). 
Mais tarde, Freud (1897) entrou em conflito com os alicerces de sua teoria da etiologia 
das neuroses, pois descobriu que estava incompleta, e em carta escrita a Fliess declara: “Não 
acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses] [...], veio a surpresa diante do fato de 
que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido.” 
(FREUD, 1996, p. 309, 310). 
Assim, concluiu que o caminho teórico que estava percorrendo era absurdo, repensou 
seus conceitos e promoveu várias reformulações. Essa capacidade em promover sucessivas 
reelaborações, ajustes e modificações necessárias ao desenvolvimento da teoria, é 
característico da obra freudiana. “Essa crescente rearticulação da teoria e aperfeiçoamento dos 
conceitos, com uma progressiva interação com os dados da experiência, é inegavelmente a 
marca do trabalho de Freud.” (PACHECO FILHO, 1999, p. 19). 
O pai da psicanálise não desistiu das suas investigações sobre o desvelamento da 
psique humana e durante a continuidade da escuta a seus pacientes passou a considerar a 
dimensão da fantasia como instância necessária à constituição e do sujeito. Assim, a delimita 
que a realidade psíquica, aquela que faz parte do mundo mental do sujeito, nem sempre 
condiz com a realidade dos fatos. 
No intuito de comprovar ou refutar a nossa hipótese norteadora: a de que existem 
tensões fundamentais na interlocução dos campos da Psicologia e do Direito, e estas podem 
 22
influenciar os psicólogos que trabalham em serviços da rede de proteção integral escutando 
casos de abuso sexual infantil, entrevistamos alguns desses profissionais. 
O método psicanalítico inclui o pesquisador num processo de elaboração conceitual 
que nasce no interior de uma reflexão e vai se construindo pelos relatos colhidos. No caso 
dessa pesquisa, as informações dadas pelos sujeitos passaram pela subjetividade da 
pesquisadora, que a não foi desprezada, mas, sim, considerada e reelaborada, abrindo novas 
fendas discursivas e proporcionando um diálogo fértil e incessante. 
 23
Capítulo 1 
 
 
ALGUMAS NOTAS SOBRE A CRIANÇA 
 
...e a gente canta 
e a gente dança 
e a gente não se cansa 
de ser criança 
da gente brincar 
da nossa velha infância [...] 
 
(Arnaldo Antunes) 
 
 Neste capítulo faremos alguns apontamentos sobre o que se entende do termo criança. 
Para isso, é essencial que façamos um pequeno recorte na história, para entendermos o 
surgimento desse conceito. Não devemos supor que, no mundo contemporâneo, a palavra 
criança tenha o mesmo sentido que o empregado em outras épocas. Dessa forma, não 
estaremos falando de algo da ordem da natureza, e sim de um conceito construído 
socialmente. Também refletiremos sobre a contribuição da psicanálise para entendermos o 
que vem a ser o infantil, termo que supõe a instância da fantasia de infância. 
 Atualmente é oferecido à criança ocupar um lugar de destaque na cena social, o que 
não ocorria em outras épocas. Esse lugar concedido a ela vai depender da estrutura 
econômica, social, política, e também dos valores religiosos. 
 Ariès, em seu livro História social da criança e da família, utiliza-se da observação de 
obras de arte e da historiografia para captar algumas nuances de como as sociedades antigas 
se relacionavam com suas crianças. Apesar dos limites de seu método, o autor consegue 
elucidar algumas questões essenciais que nos serão úteis para traçarmos o percurso histórico 
de como o sentimento da infância foi aparecendo. 
 Esse autor desvenda que nas sociedades tradicionais, portanto, antes da 
industrialização, não se reservava à criança uma atenção especial. Os cuidados lhe eram 
atribuídos apenas durante os anos de fragilidade, tal como a um filhote de animal, não sendo 
dado a ela sequer um nome. Na opinião de Ariès, nessa época, o afeto no interior das famílias 
não era algo tão relevante. O que importava era a cooperação mútua. Assim, o grupo 
conservava seus bens e garantia a sobrevivência. 
 A duração da infância era reduzida, pois, assim que a criança adquiria maturidade 
motora, era incluída no mundo adulto. A aprendizagem ocorria por meio da convivência com 
 24
os adultos, que lhe atribuíam a tarefa de auxiliá-los na produção artesanal. Quase sempre as 
crianças ajudantes pertenciam a outro grupo familiar. Era comum morarem por um período 
com outras famílias a fim de aprender boas maneiras ou um ofício. 
 
Contudo um sentimento superficial da criança – o que chamei 
“paparicação” – era reservado à criancinha em seus primeiros anos de 
vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas só se 
divertiam com a criança pequena, como um animalzinho, um macaquinho 
impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns 
podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois 
uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma 
espécie de anonimato (ARIÈS, 1981, p. 10). 
 
No entanto, o mundo dos adultos era permeado por festas, brincadeiras e jogos 
populares como forma de estreitar laços coletivos. Assim, era tranqüila a adaptação da 
criança. “A música e a dança, as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e 
misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores” (ARIÈS, 1981, p. 104). 
Algo bastante relevante para o nosso trabalho é o fato de que as crianças eram 
facilmente incluídas às brincadeiras sexuais dos adultos. Nosdocumentos escritos pelo 
médico do Rei Luís XIII, há relatos de jogos entre o rei e sua ama que talvez hoje pudéssemos 
chamar de abuso sexual: “Luís XIII ainda não tem um ano: Ele dá gargalhadas quando sua 
ama sacode o pênis com a ponta dos dedos. Ele chama a pajem com um Ei! e levanta a túnica 
mostrando-lhes o pênis” (ARIÈS, 1981, p. 125-126). 
Em algumas culturas ainda se conserva o hábito de brincar com o sexo das crianças 
como, por exemplo, a muçulmana. Em uma passagem de um romance do judeu tunísio 
Alberto Memmi, há um diálogo entre um djerbiano e um menino de dois anos e meio que está 
no colo do seu pai1: 
 
 Você quer me vender seu pintinho?  Não – disse o menino com 
raiva [...] O menino olhou para o pai, o pai sorria, era uma brincadeira 
permitida. Nossos vizinhos se interessavam pela cena tradicional com 
uma aprovação complacente.  Eu lhe dou 10 francos, propôs o 
djerbiano.  Não, disse o menino... [...]  Vou lhe dar tudo o que posso 
 
1 Romance La Statute de Sel de 1953. 
 25
... e mais um saco de balas!  Não, não! [...]  Repita pela última vez, 
disse fingindo raiva.  Não! – Então, bruscamente, o adulto pulou em 
cima da criança com uma expressão terrível no rosto e a mão brutal 
remexendo dentro de sua braguilha. O menino se defendeu com socos. O 
pai ria a gargalhadas, o djerbiano e os vizinhos também (ARIÈS, 1981, p. 
130). 
 
Pode nos parecer absurdo imaginar essa ausência de reserva diante da criança, mas 
temos de lembrar que as mudanças na estrutura social advindas com a moral religiosa e com o 
capitalismo ocorreram predominantemente no Ocidente. Em algumas sociedades orientais, 
tais transformações nem aconteceram, mantiveram suas tradições não tendo sido 
influenciadas, portanto, por esse sentimento de infância que o autor procura identificar. 
Foucault, em História da sexualidade, nos esclarece sobre as incursões e as mudanças sociais 
com relação à sexualidade, ressaltando que, em um determinado momento histórico, há uma 
drástica mudança nos comportamentos sexuais: 
 
Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. 
As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem 
reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce, tinha-se com o 
ilícito uma tolerante familiaridade [...] Gestos diretos, discursos sem 
vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente 
misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre 
os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam.” Um rápido crepúsculo se 
teria seguido à luz meridiana até as noites monótonas da burguesia 
vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se 
para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, 
inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se 
cala [...] um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e 
fecundo: o quarto dos pais (FOUCAULT, 1985, p. 9). 
 
Não se trata de dizer que nesta ou naquela época as pessoas lidavam melhor ou pior 
com as crianças ou mesmo com a sexualidade, mesmo porque Foucault considerou somente a 
 26
questão da repressão e desconsiderou a idéia de recalque2. Queremos demonstrar que nem 
sempre a criança ocupou um lugar central no cenário social, pelo contrário, na antiguidade ela 
era mera coadjuvante nas relações sociais e, quando indesejada, era facilmente eliminada. O 
infanticídio era prática comum, apesar de condenado e severamente punido quando desvelado. 
Mesmo assim, as pessoas o praticavam em segredo, camuflado sob forma de acidente, e em 
geral ocorria por asfixia na cama dos pais onde a criança dormia. “O fato de ajudar a natureza 
a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas 
tão pouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras” 
(ARIÈS, 1981, p. 17). 
Ao longo do século XVI, houve um grande movimento de moralização dos homens, 
promovido pelas reformas católica e protestante. Esse movimento daria início a “um longo 
processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que 
se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização” (ARIÈS, 1981, p. 11). 
Surge, desse movimento, uma elite educadora preocupada em preservar a moral da criança, 
proibindo-lhe os jogos então classificados como maus e recomendando-lhes os jogos bons. 
Devemos ressaltar que o novo testamento do cristianismo trouxe uma nova visão de 
homem, principalmente no que diz respeito às suas franquezas e deficiências, diferentemente 
dos preceitos anteriores que pregavam os castigos e a exclusão dos pecadores. Um dos 
dogmas cristãos é a solidariedade para com os fracos e o acolhimento dos doentes, fatos que 
ajudaram a fortalecer essa nova religião, que se tornou oficial no início do século IV. Assim, 
as práticas cristãs começaram a ser controladas pelos governantes e “[...] pouco a pouco os 
valores de perdão e de solidariedade para com os excluídos sociais foram enfraquecidos” 
(LIBÓRIO e SILVA, 2005, p. 86). 
O domínio da moral fez com que as pessoas buscassem no cristianismo o motivo para 
a santificação da criança, que passa a ser vista como criatura sem nenhum pecado carnal, 
despojada de sentimentos impuros. Esse fato faz surgir uma época de grande repressão com 
relação à sexualidade. 
Nesse período, a criança, antes profana, passa a ser vista como sagrada. A força do 
laço familiar se estabelece como algo relevante, bem como a escolarização. É conveniente, 
então, que as crianças sejam mantidas na escola, enquanto os pais saem para trabalhar. Esse é 
 
2 Freud (1898), em O mecanismo psíquico do esquecimento, esclarece que recalque são: “[...] fluxos de 
representações[...] que, a despeito da intensidade do interesse nelas depositado, deparassem com uma resistência 
que os impedisse de serem elaborados por uma dada instância psíquica, e portanto, de se tornarem conscientes” 
(1996, p. 279). 
 27
um momento de transição de uma sociedade rural e de produtos manufaturados destinados à 
auto-subsistência para uma sociedade industrializada. 
Assim, a cultura começa a oferecer um outro lugar social à criança. Apoiada no 
cristianismo e nos ideais da burguesia de um capitalismo ainda incipiente (família, estado e 
sociedade), nossa cultura inventa, cria a infância. A criança agora tem a responsabilidade de 
conservar a linhagem, a integridade e o patrimônio da família. Instaura-se a necessidade da 
intimidade no núcleo familiar. 
 
A família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças, mas 
uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos. Ela 
correspondeu a uma necessidade de intimidade, e também de identidade: 
os membros da família se unem pelo sentimento, o costume e o gênero de 
vida. As promiscuidades impostas pela antiga sociabilidade lhes 
repugnam. Compreende-se que essa ascendência moral da família tenha 
sido originariamente um fenômeno burguês: a alta nobreza e o povo, 
situados nas duas extremidades da escala social, conservaram por mais 
tempo as boas maneiras tradicionais [...] Existe, portanto uma relação 
entre o sentimento da família e o sentimento de classe (ARIÈS, 1981, p. 
278). 
 
Durante o surgimento do que Ariès chamou de sentimento de infância, o interesse pela 
produção de conhecimentos sobre a criança pelas várias áreas como a pediatria, a pedagogia e 
até mesmo a psicanálise provocou a consolidação de um ideal social sobre o que uma 
comunidade deve oferecer às suas crianças e como deve ser vivida essa etapa da vida, ou seja, 
a infância. 
O conceito de infância está para além das questões biológicas e cronológicas. Nele 
estão os ideais de uma sociedade, os sonhos, desejos e fantasias de uma comunidade sobre as 
melhores formas de ‘educar’ suas crianças. 
Alguns cientistassociais, desde a década de 1930, já utilizavam a expressão 
‘sociologia da infância’ para se referir aos fenômenos relacionados a esta categoria, porém a 
análise da infância como categoria sociológica iniciou-se na década de 1990. Segundo 
Sarmento (2006), a sociologia desde sua origem já considerava fundamental o fato de a 
infância ser vista como a geração sobre a qual os adultos realizam uma ação de transmissão 
 
 
 28
cultural. A “consideração da infância como período de vida onde acontece a socialização 
constituiu-se como uma das mais importantes obras do início do pensamento sociológico: o 
da teoria da socialização de Emile Durkheim” (SARMENTO, 2006, p. 2). 
A sociologia da infância é uma nova ciência que tem contribuído para acirrar o 
questionamento sobre o fato de algumas ciências como a pedagogia, a psicologia ou medicina 
ter considerado, por determinado tempo, as crianças como ‘adultos em miniaturas’, 
discordando das conceituações baseadas na biologia para a definição da infância. 
Ela questiona também o fato de atualmente as crianças estarem confinadas ao espaço 
privado como asilos, creches e reformatórios ou ao cuidado da família. Procura rever a 
produção pericial da infância pelas ciências do indivíduo, questionando algumas intervenções 
que incluem a dos psicólogos. 
A sociologia da infância parte do pensamento sócio-histórico, o qual considera a 
criança como um ser autônomo e constituído sócio-historicamente. Faz um corte com o 
adultocentrismo, ou seja, “estudos da criança a partir dos adultos face às crianças ou da 
experiência do adulto face à sua própria infância” (SARMENTO, 2006, p. 20). 
Dessa forma, essa disciplina se contrapõe à teoria psicanalítica, a qual inclui a 
dimensão inconsciente da constituição do sujeito humano e o encara como um ser 
essencialmente dividido e completamente dependente do outro durante seu processo de 
constituição. 
Mesmo assim, não podemos deixar de acenar para a relevância deste novo campo do 
conhecimento científico que tenderá a desenvolver-se e a contribuir para novas teorizações 
para toda ciência sociológica, proclamando, segundo Sarmento (2006) “um novo paradigma 
da sociologia da infância e também envolver-se no processo de reconstrução da infância na 
sociedade” (PRONT & JAMES, Apud SARMENTO, 2006, p. 9). 
Já o termo criança considera aspectos biológicos do desenvolvimento corporal e 
aspectos temporais, ou seja, idade cronológica: “ser humano de pouca idade, menino ou 
menina” (FERREIRA, 2000, p. 193). Conforme a legislação brasileira criança é “pessoa de 
até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. (PMSBC, 
2003, p. 25).” Diferentemente da Convenção Internacional dos Direitos da Criança que 
considera criança pessoa menor de 18 anos, a menos que a lei do país estabeleça uma idade 
menor para a maior idade. 
 29
1.1 A criança na psicanálise: erotismo infantil 
 
Em sua clínica, Freud nunca atendeu diretamente crianças. Sua teoria sobre a 
sexualidade infantil foi fundamentada por meio da escuta de pessoas adultas. Entretanto, por 
volta do ano de 1909, recebeu a queixa, por parte de uma pessoa conhecida, de que o filho 
tinha adoecido psiquicamente. Assim, Freud aceitou intervir no sintoma do menino a partir do 
atendimento ao pai de Hans. “Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniram 
numa só pessoa, e porque nela se combinavam o carinho afetivo com o interesse científico, é 
que se pôde, nesse único exemplo, aplicar o método [...]” (FREUD, 1986 [1909] p. 15). 
Não vamos nos ater ao sintoma do pequeno Hans, vamos citar a fase em que seu 
desenvolvimento estava indo bem. Vamos nos debruçar no material exposto pelo pai durante 
as sessões de análise em que conta fatos do cotidiano da vida do filho, a fim de ilustrar as 
hipóteses criadas por uma criança sobre a sexualidade. 
Os pais de Hans usavam somente a coerção necessária, deixando o menino livre para 
se desenvolver. A criança se tornara um menino alegre e vivaz. Assim como era esperado, por 
volta dos três anos de idade inicia sua investigação com a pergunta à mãe: 
 
Hans: - Mãe, você também tem pipi? 
Mãe: - Claro. Por quê? 
Hans: - Nada, eu só estava pensando (FREUD, 1986, p. 16). 
 
Nessa fase sempre fazia perguntas sobre a questão do pipi. Quando viu ordenharem 
uma vaca disse ‘olha, está saindo leite do pipi dela’ e durante uma visita no zoológico disse 
em frente à jaula de um animal ‘vi o pipi do leão’ e um dia disse ao pai que o achava que o 
pipi dele era tão grande quanto o de um cavalo. 
Aos três anos, sua mãe o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçando-o disse: 
 
Mãe: - Se fizer isso de novo vou chamar o Dr. A para cortar fora seu pipi. 
Aí com o que você vai fazer pipi? 
Hans: - Com meu traseiro (FREUD, 1986, p. 17) 
 
Com três anos e nove meses, pergunta ao pai se ele também tem pipi e o pai responde 
que sim. Não satisfeito, Hans pronuncia: ‘Mas eu nunca vi quando você tirava a roupa.’ 
 30
Fica claro, portanto, que a investigação da criança é incessante, sua curiosidade em 
resolver essa primeira dúvida da existência humana é o que lhe movimenta para prosseguir. 
Hans ainda acha que a mãe é onipotente e sente-se seguro mantendo essa fantasia. Porém, 
com a chegada de uma irmãzinha, cai doente e em seu delírio febril ouviram-no dizer: “Mas 
eu não quero uma irmãzinha” (FREUD, 1986, p. 20). 
Com a chegada do novo bebê, percebe que a mãe vai amar também a outra criança e o 
adoecimento advém do medo de perder o amor da mãe, essa completude mãe-bebê é 
ameaçada. Contudo, prossegue suas investigações. 
Hans tem três anos e nove meses e ao observar o banho da irmã, diz: “o pipi dela ainda 
é bem pequenininho, quando ela crescer vai ficar bem maior” (FREUD 1986, p. 20). 
Nessa época, os pais de Hans permitiam que o menino eventualmente dormisse na 
cama com eles. Isso “[...] era para Hans, uma fonte de sentimentos eróticos, do mesmo modo 
que para qualquer outra criança” (FREUD, 1986, p. 25). 
Aos quatro anos conta seu primeiro sonho ao pai. Este envolvia a figura de Mariedl, 
uma moça de quatorze anos ligada à família. Dias depois diz ao pai “quero que Mariedl venha 
dormir comigo.” Quando lhe foi dito que não podia, pediu para dormir com a menina na casa 
dela e, quando negado também esse pedido, “Hans, com efeito, pegou suas roupas e se dirigiu 
para a escada, para ir dormir com Mariedl” (FREUD, 1986, p. 25). 
Apesar da pouca idade, Hans tomou uma atitude de um verdadeiro homem frente ao 
impedimento de sua mãe. Dias depois, passa a esperar todas as tardes uma linda menina de 8 
anos que ia ao restaurante com os pais. A mãe nota que o menino ficava inquieto com a ida da 
menina ao restaurante, então: 
 
Não desejando deixar Hans naquele estado extenuado ao qual fora levado 
por sua paixão pela menina, providenciei que se conhecessem e convidei 
a menina para vir vê-lo no jardim depois que ele tivesse terminado sua 
sesta, à tarde. Hans estava tão excitado com a expectativa da vinda da 
menina, que pela primeira vez não conseguiu dormir de tarde e ficou se 
revirando na cama, inquieto. Quando sua mãe perguntou “Por que você 
não está dormindo? Você está pensando na menina?”, ele disse “Sim”, 
como uma expressão de felicidade. E quando chegou em casa, vindo do 
restaurante, disse para todo o mundo de casa: “Sabe, a minha menina vem 
ver-me hoje” (FREUD, 1986, p. 26). 
 
 31
Em uma manhã dos seus quatro anos e três meses, a mãe de Hans, após dar-lhe o 
banho diário, seca-o e aplica-lhe talco em volta de seu pênis e toma cuidado para não toca-lo, 
o menino diz: 
 
Hans: - Por que é que você não põe o seu dedo aí? 
Mãe: - Por que isso seria porcaria. 
Hans: - Que é isso? Porcaria? Por quê? 
Mãe: - Porque não é correto. 
Hans rindo disse:- Mas é muito divertido! (FREUD, 1986, p. 26) (grifo 
nosso). 
 
 Aos quatro anos e meio, Hans se refere ao órgão sexual de sua irmã dizendo 
alegremente que ‘seu pipi é bonito.’ “Essa é a primeira vez que ele reconhece a diferença 
entre os genitais masculinos e femininos em vez de negar sua existência” (FREUD, 1986, p. 
28). 
No relato dessa experiência fica evidente a posição contrária da psicanálise frente às 
idéias de que a criança é um ser sacralizado e desprovido de sexualidade como a época 
vitoriana insistia em divulgar. Muito pelo contrário, o caso do pequeno Hans mostra que a 
sexualidade está desde sempre fazendo seus efeitos no sujeito humano. Demonstra, também, 
que a criança interpela o adulto na busca dos prazeres oferecidos por algumas zonas de seu 
corpo. Os pais de Hans encararam a situação com tranqüilidade e impuseram os limites 
necessários aos impulsos do menino. 
O autor também revelou a importância de observar diretamente crianças sem o 
intermédio dos adultos para abstrair “em primeira mão e em todo o frescor da vida, os 
impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus 
próprios escombros” (FREUD 1986, p.16). Encoraja outros colegas a pesquisar sobre a vida 
sexual das crianças “cuja existência, via de regra, tem sido argutamente desprezada ou 
deliberadamente negada” (FREUD 1986, p.16). 
Seu incentivo ao desenvolvimento de pesquisas sobre a o erotismo infantil foi 
frutífero. Outros psicanalistas prosseguiram as pesquisas com crianças e revelaram que a 
intervenção analítica precoce, incluindo ou não os pais, poderia ajudar e muito, a remissão de 
sintomas em crianças pequenas. 
 
 
 32
1.2 Menino e menina: fases da fantasia 
 
Uma das grandes contribuições da psicanálise para o entendimento do que é o infantil, 
está no fato de considerar que a diferença de anatomia entre os sexos é fundamental para a 
primeira etapa da constituição psíquica do bebê humano. Apesar de ir se afastando 
gradativamente das questões biológicas e incluindo a dimensão da linguagem para a 
explicação dos sintomas humanos, no primeiro momento da estruturação psíquica, o que a 
criança vai fazer com a questão anatômica, dito de outro modo, que posicionamentos irá 
tomar a partir da descoberta dessa diferença, é essencial. 
Ao contrário do movimento incipiente de liberação das mulheres, Freud coloca que 
“não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negociações dos feministas, 
que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em 
posição e valor” (FREUD, 1986 [1925] p. 286). 
Esta foi uma das falas freudianas que fez com que o movimento feminista passasse a 
considerá-lo machista e a discordar de suas idéias. Entretanto, no mesmo texto, o autor 
demonstra uma posição imparcial do ponto de vista ideológico, reforçando sua posição de 
cientista e investigador dizendo: 
 
[...] concordamos de boa vontade que a maioria dos homens está muito 
aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos, em 
resultado de sua posição bissexual e da herança cruzada, combinam entre 
si características tanto masculinas quanto femininas de maneira que a 
masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções 
teóricas de conteúdos incertos (FREUD, 1986, p. 286). 
 
Freud, por meio de sua escuta clínica, observou que a menina, quando descobre que 
seus órgãos genitais são insatisfatórios, ou seja, que ela não tem pênis, começa a demonstrar 
ciúmes de outras crianças porque passa a crer que sua mãe gosta mais dessa outra criança do 
que dela. “A criança preferida pela mãe se torna o primeiro objeto da fantasia de 
espancamento [...] Depois transforma o pai em seu objeto de amor e a mãe torna-se objeto de 
seu ciúme. A menina transforma-se em uma pequena mulher” (FREUD, 1986 [1925] p. 286) 
(grifo nosso). Essa fantasia ocorre no período entre 3 e 5 anos de idade. 
O autor se intrigou com a freqüência com que as pessoas que procuravam um 
tratamento analítico relatavam lembranças de espancamento na infância. Sua surpresa advinha 
 33
do fato de que aqueles que descreviam tais cenas não haviam sido educados com atitudes 
violentas. Assim, prosseguiu com suas investigações. 
Descobriu que a fantasia é formada por três fases, tanto para o menino quando para a 
menina. Contudo, para sua surpresa, não há uma analogia completa entre elas. Percebeu que a 
forma com que as fases da fantasia apareciam no processo de rememoração de pacientes 
mulheres e homens eram diferentes. 
Para a menina, na primeira fase, lembra-se de uma cena de espancamento em que a 
criança é conhecida, um irmão, irmã ou coleguinha, e a identidade do espancador é obscura. 
Logo a seguir reconhece o pai como aquele que bate na criança. Na segunda fase, a pessoa 
que bate continua sendo o pai, mas a criança que apanha torna-se aquela que produz a 
fantasia. “Estou sendo espancada pelo meu pai” (FREUD, 1986 [1919] p.201). Freud ressalta 
que essa segunda fase é inconsciente e resultado de uma construção em análise e que 
provavelmente não aconteceu na realidade. Na terceira e última fase, a pessoa que espanca 
volta a se tornar desconhecida, “às vezes o pai é substituído por um professor [...] e a criança 
que relata volta a assistir a cena” (FREUD, 1986 p. 201). Essa cena retrata invariavelmente 
imagens de meninos desconhecidos que estão sendo espancados. 
Quanto à menina fantasiar meninos sendo espancados, isso se deve a uma certa raiva 
do pai por tê-la separado de sua mãe e se identifica com a figura masculina. Assim, as 
meninas deixam de lado sua feminilidade querendo ser meninos, por isso fantasiam que eles 
estão apanhando. 
A provável função da fantasia da primeira fase (consciente) é a de gratificar o ciúme e 
o egoísmo da criança: ‘papai só ama a mim e não a outra criança’, pois está batendo nela. 
Contém, assim, certa dose de sadismo. Logo depois, surge uma fantasia de conteúdos 
masoquistas (inconsciente) provocados pelo sentimento de culpa – ‘não, ele não ama você 
porque está batendo em você’ – ainda com a função de realizar o amor incestuoso, pois 
podemos pensar que ato de ‘bater’ substitui a relação genital. Na última fase (consciente), já 
sob o efeito do componente repressivo, a fantasia (re) encobre a segunda lembrança, 
obscurecendo a identidade dos personagens. 
No caso dos meninos, a primeira fase é rememorada com a mãe espancando uma 
criança qualquer. Na segunda fase, o menino que produz a fantasia passa a ser a criança 
espancada pela mãe, porém esse fato é lembrado conscientemente pelo menino. Na terceira 
fase, a figura do menino se mantém como sofrendo espancamento, “embora logo tenha 
substituído a própria mãe pela mãe dos colegas ou outras mulheres” (FREUD, 1986, p. 205). 
Na lembrança dos meninos, o que está recalcado é um estágio anterior ao da primeira cena 
 34
que se constitui no seguinte: ‘Estou sendo espancado pelo meu pai.’ Na menina essa 
lembrança corresponde ao segundo estágio. 
Então, no menino, a fantasia de estar sendo espancado pela mãe toma o lugar da 
terceira fase da menina quando ‘meninos estranhos estão sendo surrados.’ O que permanece 
inconsciente e só é rememorado num processo de análise é o espancamento pelo pai que 
simboliza ‘sou amado pelo meu pai.’ 
A fantasia de espancamento do menino deriva de uma atitude passiva em relação ao 
pai, tal como na menina. Ele modifica a figura do sexo de quem bate, colocando a mãe no 
lugar do pai e mantém sua própria figura. A pessoa que está batendo e a que está apanhando 
são de sexos opostos. O que é recalcado é sua homossexualidade. Assim, sente-se como uma 
mulher em suas fantasias conscientes e “dota as mulheres que o espancam de atributos e 
características masculinas” (FREUD, 1986 p. 214). 
Para a psicanálise, a conseqüência psíquica da diferença anatômica entre os sexos é a 
determinação da construção da feminilidade, em que a castraçãofoi executada, e 
masculinidade, em que a castração foi apenas ameaçada, levando em consideração a 
singularidade de cada sujeito no atravessamento dessa fase da vida psíquica. Mesmo assim, 
“em ambos os sexos, a fantasia masoquista de ser espancado pelo pai, ainda que não a fantasia 
de ser amado por ele, continua a viver no inconsciente depois que ocorreu a repressão” 
(FREUD, 1986, p. 214). 
O autor ainda ressalta a importância da segunda fase da fantasia nas meninas que, 
mesmo inconscientes, podem interferir diretamente do cotidiano de suas vidas, pois, 
 
[...] pessoas que abrigam fantasiam dessa espécie desenvolvem uma 
sensibilidade e uma irritabilidade especial contra quem quer que possam 
incluir na categoria de ‘pai.’ São facilmente ofendidas por uma pessoa 
assim e, desse modo (para sua própria tristeza), efetuam a realização da 
situação imaginada de serem espancadas pelo pai (FREUD, 1986, p. 210). 
 
Prates Silva nos esclarece que a sexualidade infantil “deve nos remeter 
necessariamente à lógica da construção da fantasia. Dessa forma, Freud substitui a 
compreensão da sexualidade infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional 
por outra que enfatiza a fantasia” (PRATES SILVA, 2006, p. 56). 
Para a psicanálise, a angústia da castração faz com que o sujeito se defenda, se inicie 
na linguagem e construa suas primeiras hipóteses infantis. Porém, o que constrói fica no 
 35
âmbito do conhecimento, pois é um desdobramento fantasioso do desejo incestuoso. Assim, 
nenhum saber transmitido aplacará a solidão e a certeza de sua concepção: só há um sexo e a 
mãe não é castrada. “Esta luta irreal, esta mentira de todos os dias irriga o verde paraíso da 
infância” (POMMIER, 1998, p. 30). 
Logo, a amnésia infantil apagará da consciência as angústias advindas do fracasso das 
teorias sexuais infantis. Este é o fim da fase de latência, dando lugar à neurose infantil adulta. 
 
 
1.3 Annafreudismo, Kleinismo e os independentes 
 
Anna Freud nasceu em Viena, em 1895. Foi a sexta e última filha de Sigmund e 
Martha Freud. Tornou-se professora primária e seu primeiro contato com o movimento 
psicanalítico ocorreu em 1913 por meio de Ernest Jones, em uma viagem a Londres. 
Interessou-se pelo campo da psicanálise com crianças a partir dos incentivos por parte de 
Freud aos colegas para desenvolverem pesquisas nessa área. 
Em 1922, apresentou seu primeiro trabalho à Wiener Psychoanalytiche Vereinigung 
(WPV): ‘Fantasias e devaneios diurnos de uma criança espancada’, e em 1927 publica sua 
principal obra: ‘O tratamento psicanalítico das crianças.’ 
Suas concepções seguiam o caminho do pai que, após a análise do pequeno Hans, 
considerava que a criança era frágil demais para ser submetida ao verdadeiro processo de 
análise. Defendia o princípio de tratamento sob a responsabilidade da família e dos parentes, e 
a tutela das instituições educativas. 
Segundo ela, na criança, havia uma “falta de maturidade do supereu. Nesse campo, a 
abordagem analítica deveria ser integrada à ação educativa” (ROUDINESCO & PLON, 1998, 
p. 259). 
Em 1926, afirma que “as crianças não se mostram inclinadas a exercitar a associação 
livre e, assim sendo, nos obrigam a procurar um substitutivo deste instrumento” (ANNA 
FREUD, apud. SILVA, 2006 p. 82). Segundo a autora, por serem seres imaturos e 
dependentes, não são capazes de contar a própria história, por isso o analista deve buscar as 
informações com os pais. Assim, lidava com os pais da realidade, como fez Freud na análise 
do pequeno Hans. 
Sua vocação para educadora fez com que abrisse uma escola especial, que depois 
passou a ser freqüentada por crianças, filhos de pais simpatizantes à psicanálise e, em 1937, 
fundou um pensionato para crianças pobres ‘Jacson Nursey’, inspirado no abrigo de Maria 
 36
Montessori. Criou o ‘Kindersoeminar’, seminário de crianças que formava terapeutas capazes 
de aplicar os princípios da psicanálise à educação, fomentando a invenção de uma pedagogia 
psicanalítica. Dessa forma, o analista deveria exercer o duplo papel de analisar e educar. 
Segundo Roudinesco, a ausência de teorização sobre os laços do filho com a mãe era o 
ponto fraco da doutrina annafreudiana. “Aos olhos de Anna, só contava a relação com o pai. 
Daí a prioridade dada à pedagogia do eu, em detrimento da exploração inconsciente” 
(ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 259). Entretanto, seu pensamento foi bem aceito nos 
Estados Unidos, principalmente pela importância que dava aos mecanismos de defesa, o que 
marcou o surgimento do ‘annafreudismo.’ Ana Freud faleceu em Londres em 1982. 
Melanie Klein, nascida em Viena em 1882, filha de pai judeu polonês, foi 
primeiramente analisada por Ferenczi e posteriormente por Karl Abrahan. Relata a presença 
de uma mãe bastante tirana que, na juventude, foi marcada por uma série de lutos: morte de 
dois irmãos e desaparecimento do pai doente, quando tinha 18 anos. A psicanalista contribuiu 
ao alavancar as pesquisas psicanalíticas com crianças, contrapondo-se às teorias de Anna 
Freud. 
Em 1919, Klein entrou para a Sociedade de Psicanálise de Budapeste, após se encantar 
com a apresentação de Freud no V Congresso Internacional Psychoanalytical Association 
(IPA), que aconteceu nesta cidade, considerada por ele como “o centro do movimento 
psicanalítico da época” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 431). 
Na apresentação do seu trabalho, intitulado “Linhas de progresso da terapêutica 
analítica”, Freud resume o que consiste o método psicanalítico. Aponta para a importância de 
sua disseminação entre as classes mais pobres e constata que há poucos psicanalistas para 
atender a tantos espalhados pelo mundo que precisam de ajuda. Diz: 
 
Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm um 
alcance muito vasto. Somos apenas um pequeno grupo e, mesmo 
trabalhando muito, cada um pode dedicar-se, num ano, somente a um 
pequeno número de pacientes. Comparada à enorme quantidade de 
miséria neurótica que existe no mundo [...] (FREUD, 1986 [1919] p. 180). 
 
Assim, Klein passou a dedicar-se ao progresso dessa ciência e em abril de 1924 
apresenta suas idéias no VIII congresso da IPA em Saltzburgo, com o apoio de Ernest Jones e 
seu analista Karl Abrahan. Em dezembro do mesmo ano, a psicanalista vai a Viena para falar 
sobre seu trabalho na Winer Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e confronta-se com Anna 
 37
Freud. “O debate estava então aberto, e trataria do que devia ser a psicanálise de crianças: 
uma forma nova e aperfeiçoada de pedagogia (posição definida por Anna Freud) ou a 
oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento 
(como queria Melanie Klein)?” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 432). 
Em 1926, Klein estabeleceu-se em Londres e, apoiada por Jones, tenta, sem êxito o 
apoio de Freud. Assim, desenvolve a escola inglesa de psicanálise em contraposição com a 
escola vienense. 
Defendia que a análise poderia ser aplicada a qualquer criança, enquanto Anna 
acreditava que essa só era possível quando a neurose da criança se manifestasse com o mal-
estar parental. 
Klein valoriza a relação da criança com a mãe e modifica a teoria freudiana freudiana 
sobre “o lugar do pai, sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da 
sexualidade numa elucidação da relação arcaica com a mãe, numa evidenciação do ódio 
primitivo (inveja) próprio da relação de objeto” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 434). 
A psicanalista acreditava ainda que a transferência na análise de crianças só era 
possível quando separada da sua vida familiar, com o mínimo de contato do analista com seus 
pais. Diz: “constitui sempre parte da minha técnica não exercer influência educativa ou moral, 
mas unicamente o procedimento psicanalítico, o qual, sucintamente, consiste em compreender 
a mente do paciente e em comunicar-lhe o que se passa nela” (KLEIN, apud PRATES 
SILVA, 2006 p. 88). 
Inovou o campocriando a técnica com brinquedos, atribuindo-lhe importância 
fundamental no tratamento de crianças. Para a autora, o deslocamento das brincadeiras 
infantis no processo de análise corresponderia à associação livre que o adulto expressa 
verbalmente. 
Klein incluiu também no campo da psicanálise o tratamento das psicoses. No 
atendimento de Dick, uma criança autista de quatro anos, percebeu que ele apresentava 
sintomas jamais encontrados: “não expressava nenhuma emoção, nenhum apego, e não se 
interessava pelos brinquedos. [...] A história desse caso se tornaria célebre” (ROUDINESCO 
& PLON, 1998, p. 433). Essa análise atravessou toda a adolescência do menino que consegui 
redimir muitos de seus sintomas. 
Devido a sua constituição como um sistema próprio de pensamento, a criação de 
novos conceitos, efetivação de uma prática original em análise e uma formação didática 
diferente do freudismo clássico, a teoria de Klein provocou uma ruptura da Brytish 
Psychoanalytical Society (BPS) em três tendências, somente oficializada em 1946: 
 38
Annafreudismo, Kleinismo e os independentes. Essa última contou com a colaboração de 
Donald Woods Winnicott. A psicanalista faleceu em Londres em 1970. 
Winnicott nasceu em Plymouth, em abril de 1896, terceiro filho,e único menino do Sr. 
Frederick Winnicott, rico comerciante e político da cidade. Formou-se em pediatria e fundou 
a psicanálise de crianças na Grã-Bretanha antes da chegada de Melanie Klein em Londres. 
Não se posicionou nem a favor do annafreudismo, nem do kleinismo. Auxiliou Jones no 
acolhimento de Klein logo que ela chegou à Inglaterra e sempre expressou grande admiração 
pela psicanalista, que foi sua supervisora e analista de sua segunda esposa, porém não cedeu a 
nenhuma das suas exigências. Assim, mantendo-se independente das brigas e cisões 
ocasionadas pela diferença de posição das colegas, elaborou uma teoria original sobre a 
relação de objeto, do self (si) e do brincar. 
Segundo o autor, era o bom funcionamento do laço entre a mãe que permitiria à 
criança organizar seu eu de maneira sadia e estável, estando atribuída à psicose o fracasso 
dessa relação. O ambiente que circunda a criança é fundamental para sua estruturação 
psíquica. Construiu conceitos e desenvolveu técnicas como o da mãe devotada comum, a mãe 
suficientemente boa, o jogo da espátula ou do rabisco, o falso (self) e o verdadeiro e o objeto 
transicional. 
O conceito de objeto transicional despertou interesse na comunidade analítica em 
geral, inclusive em Lacan. Continha a idéia de que, no psiquismo humano, havia uma área 
intermediária entre a realidade interna e a externa, ocupada por imagens que tendem a se 
expandir por todo o campo cultural, e está associado à idéia de mãe suficientemente boa que, 
segundo o autor, inicia se adaptando a quase todas as necessidade do bebê, e com o passar do 
tempo e o desenvolvimento do bebê, “adapta-se cada vez menos, de modo gradativo, segundo 
a crescente capacidade de o bebê lidar com o fracasso dela” (WINNICOTT, apud PRATES 
SILVA, 2006 p. 93). 
Segundo Silva (2006), “Winnicott fez questão de diferenciar o ‘objeto transicional’ do 
‘objeto interno’ kleiniano, já que o primeiro supõe o contrário do segundo, a idéia de uma 
indistinção entre interno e externo” (p. 92). 
Acreditava que a criança poderia ser atendida pelos próprios pais quando esses 
tivessem condições emocionais de sustentar o tratamento, porém quando tratada pelo 
psicanalista, deveria ser deixada livre entre os brinquedos, e o ato de brincar poderia ser 
considerado como associação livre, concordando assim com a tese kleiniana. Contudo, o 
brincar, para o pediatra deveria ser incentivado sempre, pois demonstrava a capacidade 
criativa de todo ser humano em qualquer idade. 
 39
O psicanalista carregava, ainda, uma ausência de ortodoxia aos preceitos da BPS, não 
respeitando, por exemplo, o tempo de sessão de uma hora. Em determinado momento, chegou 
a denunciar a hipocrisia das duas chefes da escola inglesa em carta escrita em 1954: 
 
[...] é de importância vital para a sociedade [a BPS], que ambas destruam 
seus grupos em seu aspecto oficial [...] Não tenho razões para pensar que 
viverei mais tempo que as srs., mas ter de lidar com agrupamentos 
rígidos, que com a sua, morte se tornariam automaticamente instituições 
de Estado, é uma perspectiva que me apavora (WINNICOTT, apud 
ROUDINESCO & PLON, 1998. p. 785). 
 
Segundo Roudinesco, Winnicott foi transgressor em sua prática, rigoroso em sua 
doutrina e sempre apoiou os rebeldes e os dissidentes. Na ocasião de sua morte em 1971, 
Pontallis escreveu na revista ‘L’Arc e a Nouvelle Revue de Psychanalyse’, a qual lhe prestou 
homenagem: “Talvez não haja nenhum seguidor. E é melhor assim. Com mestres, a 
psicanálise pode sobreviver durante algum tempo. Sem juízes nem mestres, ela tem a 
possibilidade de viver indefinidamente” (PONTALIS, apud ROUDINESCO & PLON, 1998, 
p. 785). 
 
 
1.4 A escola francesa 
 
Dolto e Mannoni são duas das representantes da psicanálise inspirada na teoria 
lacaniana. Influenciadas pela teoria da primazia do significante de Lacan, ambas priorizavam 
os desenhos e a fala da criança e não tanto a utilização de brinquedos. A diferença da escola 
inglesa está na inclusão dos pais no tratamento de forma bastante ativa. 
Françoise Dolto considerava que a criança é sujeita de si mesma desde a mais tenra 
idade. Ao fazer isso, ela as retirava do status social de infantes, etimologicamente os que não 
têm direito à palavra. Descobriu que uma palavra dirigida a um recém-nascido que ainda não 
fala pode ter efeitos terapêuticos. Foi por isso que sempre sugeriu aos pais que falassem com a 
criança de tudo o que lhes dissesse respeito, ‘falar a verdade’, desde o seu nascimento. Porque 
o pior para um ser humano é o que fica privado de sentido: o que não passou pela linguagem. 
Acreditava que as crianças são tomadas pelo discurso dos pais e respondem 
sintomaticamente por esses discurso. Assim, para a autora o trabalho do analista deve 
 40
caminhar “no sentido de falar com as crianças – ainda que bem pequenas – sobre os aspectos 
que normalmente ficam na ordem do ‘não-dito’ para que elas possam ter acesso à 
possibilidade de simbolizar os capítulos censurados da história familiar” (PRATES SILVA, 
2006, p. 100). 
Talvez devido a sua formação em pediatria se dedicou a trabalhos profiláticos em 
programas de rádio na década de 1970, em Paris, os quais respondia dúvidas dos pais em 
relação ao relacionamento com seus filhos. 
Em sua obra descreve o desenvolvimento da criança como uma série de "castrações": 
umbilical com o nascimento, oral com o desmame, anal quando começa a andar e aprender a 
usar o banheiro. A cada vez, a criança deve separar-se de um mundo para se abrir a um 
mundo novo. Cada uma dessas castrações é uma espécie de provação da qual a criança sai 
mais crescida e humanizada. A responsabilidade dos pais é ajudá-la a superá-las com sucesso. 
Dolto era a favor do diálogo, sempre, não somente entre os membros da família, mas 
também com as instâncias jurídicas quando os pais estavam em litígio. Possui um uma 
opinião curiosa sobre o relacionamento das crianças com os juizes da vara de infância. Diz: 
“A partir dos oito anos, toda criança deveria poder comunicar-se com o juiz todas as vezes 
que o desejasse. [...] O nome do juiz de menores deveria ser afixado em todas as escolas” 
(DOLTO, 1991, p. 130). 
Maud Mannoni, interlocutora de Dolto e Lacan, também priorizava a palavra ao 
brinquedo na análise de crianças e incluía a família no tratamento. Considera que o jogo da 
criança deveria ser tomado como um texto a ser decifrado. Trabalhou com crianças autistas, 
psicóticas e portadoras de lesões orgânicas. Discutiu a relevância do diagnóstico orgânico da 
doença já que o que importa para a constituição do sujeito é o lugar que ele ocupa no desejo e 
na fantasia dos pais. 
Ressalta

Continue navegando