Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
MARGARETE DOS SANTOS MARQUES A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente sob visão da psicanálise. PUC-SP 2006 2 3 MARGARETE DOS SANTOS MARQUES A ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: O psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente sob visão da psicanálise. Trabalho apresentado, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia Social, à Comissão Julgadora do Programa de Psicologia Social PUC-SP. 2006 PUC-SP 2006 4 O LUGAR DO PSICÓLOGO NA ESCUTA AO ABUSO SEXUAL: a Psicologia e o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente sob a óptica da psicanálise. Margarete dos Santos Marques BANCA EXAMINADORA ______________________________________________ ______________________________________________ ______________________________________________ Defendida e aprovada em ___/____/2006. 5 Dedico esse trabalho à minha mãe. 6 AGRADECIMENTOS À equipe de professores e em especial à coordenadora do Programa de Psicologia Social da PUC-SP prof.dra. Mary Jane Spink por me aceitarem como aluna. Ao prof.dr. Raul Albino Pacheco Filho pela paciência e dedicação com que me ajudou a conduzir essa dissertação. Ao CNPq por financiar essa pesquisa por meio de bolsa estudantil. À ilustre Taeco Toma Carinato por ter me ensinado a escrever. Aos amigos do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Sociedade da PUC-SP. Á Associação Gaudium et Spes representada por João Clemente de Souza por autorizar o acesso aos prontuários e por me fazer acreditar que era possível. À equipe Sentinela Cuidar Sul (2003), em especial Jaqueline e Marco Aurélio. À Cristina Sumita pela ajuda no momento mais difícil. À Graciela Haidee Barbero, pelas frutíferas discussões no grupo de estudo e fora dele. À querida amiga Maria Gorete Vasconcelos pelo carinho e cuidado no momento em que quase desisti. Às doutoras Maria Cristina Vicentin e Renata Coimbra Libório por terem aceitado não só fazer parte da banca, mas por terem se permitido ser tocadas pelo tema. Ao Instituto WCF Brasil representado por Ana Maria Drummond, Carolina P. C. Padilha Mônica Santos, Isabela Mosconi e Tatiana pelo incentivo e compreensão. À equipe do Programa Refazendo Laços de São Jose dos Campos pela confiança e respeito. À Maria Aparecida Barbirato pela possibilidade do ‘encontro.’ Ao José Carlos Garcia pelas intervenções assertivas. Ao CRAMI – ABC, em especial à Ligia Maria Caravieri, pela confiança e abertura. Ao prof dr.Rinaldo Voltoline, Afra B. Galindo e os companheiros do consultório pela amizade e acolhida de tantos anos. Ao Sidnei A. Goldberg pela escuta atenta e decisiva. Aos tios Guimarinha, Araci e Hernandes, vozes queridas da minha infância. Ao Marcelo pelos cuidados com o nosso pequeno. Às queridas sobrinhas Bruna, Mariana que mesmo distantes se fazem presentes, e em especial à doce Gabriela pelo carinho e paciência nas horas difíceis. Aos meus irmãos Eli a Alexandre pelas brincadeiras de infância. Ao meu amado pai por ter me dado a possibilidade de ser. 7 À minha amada mãe pelo exemplo de coragem e por nos ensinar que a vida sempre vale a pena. Ao meu amado filho Matheus por sua ‘infantil’ sabedoria que me ensinou a ser mãe e por seu profundo respeito à mulher que há em mim. Aos pacientes que confiaram e ainda confiam na minha escuta. Aos psicólogos que se dispuseram a contribuir com essa pesquisa e à todos aqueles que de certa forma se vêem tocados pelo tema. Espero poder, com esse trabalho, ter sido solidária a algumas das suas questões. 8 ABUSO Apareceu A suspeita da devastação, da destruição. Que ninguém viu, que surgiu no silêncio, da tarde ou da noite. Firmou-se na frente do muro Mudo. Pela saída do fundo. Na ausencia de todos. E foi devastando devagar. Foi chegando sem parar, invadindo cada canto, implodindo todo encanto, do copo agora violado. Como sobreviver à guerra quieta do ser? Salvar-se do desgosto Posto no rosto. Espelhar-se no pó, na sombra. De que? de quem? No cinza da roupa Que veste e reverte, vê-se a imagem daquele que deveria proteger Mas deixou de fazer. Imaginar-se seguindo, Andando, caminhando, para o sol, para o céu. Infinito de toda a alma. Esperança que quase espanta. Que reencanta. Luz de um abraço Acolhedor, que crê. A importante presença de Alguém que abriga. Que a acompanha a cada passo, a cada laço refeito. Mãos que afagam. Ombros que acolhem o ser desiludido, desencantado, cansado. Agora é preciso continuar vivendo. É só continuar (re) fazendo. No pós-guerra, sobreviver é mais que viver. É também esconder, silenciar o que se viveu. Superar e voltar a se encantar Após a guerra é tudo o que resta No resto de mim Sopro sem fim. Margarete S. Marques 9 SUMÁRIO • Resumo ....................................................................................................... • Abstract ....................................................................................................... • Introdução ................................................................................................... • Método ........................................................................................................ • Capítulo 1: Algumas Notas Sobre a Criança .............................................. 1.1 – A criança na psicanálise: erotismo infantil ................................... 1.2 – Menino ou menina: fases da fantasia ............................................ 1.3 – Annafreudismo, Kleinismo e os independentes ........................... 1.4 - A escola francesa ........................................................................... • Capítulo 2: Do Código de Menores ao Estatuto ......................................... 2.1 – Da premissa da situação irregular ao artigo 227 .......................... 2.2 – Da convenção da ONU ao Estatuto .............................................. 2.3 – O Estatuto: implicações ao psicólogo .......................................... 2.4 – A Proteção especial ...................................................................... • Capítulo 3: Refletindo sobre Violência, Abuso e Incesto ........................... 3.1 – Violência ...................................................................................... 3.2 – Abuso sexual ................................................................................ 3.3 – A inclusão do abuso na agenda da Organização Mundial da Saúde ..................................................................................................... 3.4 – O abuso no Brasil ......................................................................... 3.5 – Violência Doméstica .................................................................... 3.6 – Violência sexual ........................................................................... 3.7 – Escolhendo um termo ................................................................... • Capítulo 4: O Caminho da Criança na Rede de Proteção: implicações sobre o lugar do psicólogo .......................................................................... 11 12 13 21 23 29 32 35 39 42 44 47 48 51 53 54 56 57 59 61 62 64 70 10 4.1 – Relato do caso .............................................................................. 4.2 – Relato da dor ................................................................................ 4.3 – A notificação ................................................................................4.4 – A chegada ao atendimento ........................................................... 4.5 – O desenrolar das sessões com a mãe ............................................ 4.6 – O desenrolar das sessões com Ana ............................................... 4.7 – A relação da justiça com o psicólogo ........................................... 4.8 – A audiência ................................................................................... 4.9 – O lugar do psicólogo .................................................................... 4.10 – Tabu e incesto ............................................................................ 4.11 – A linguagem da ternura .............................................................. • Capítulo 5: O Psicólogo e o campo jurídico: análise das entrevistas ......... 5.1 – Contextualizando nossa análise .................................................... 5.1.1 – As questões de André ................................................................ 5.1.2 – As questões de Cláudia .............................................................. 5.1.3 – As questões de Maria ................................................................. 5.2 – Um diálogo possível ..................................................................... 5.3 – O que faz o analista ...................................................................... • Conclusão .................................................................................................... • Bibliografia ................................................................................................. • Anexos ........................................................................................................ 71 71 72 74 74 76 77 79 81 82 85 87 87 88 93 97 100 110 113 116 124 11 RESUMO MARQUES, M. S. A escuta ao abuso sexual: o psicólogo e o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente. São Paulo, 2006. Dissertação de Mestrado. Programa de Psicologia Social. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Este trabalho tem como objetivo articular, com base no referencial psicanalítico, alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às ambigüidades e contradições relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente atendendo aos casos de abuso sexual infantil. Abordamos o conceito de criança, principalmente, como ela passou a ser personagem central da cena social, carregando o ideal de um futuro promissor. Destacamos como a sociedade brasileira se mobilizou para considerar a criança como sujeito de direitos, com a promulgação do Estatuto da criança e do Adolescente. Refletimos sobre diversos conceitos de violência, abuso sexual e incesto, escutando as contradições que permeiam esse campo, devido as diferentes teorias e posicionamentos políticos e epistemológicos dos autores. E observamos a impossibilidade de consenso sobre a utilização dos termos para se nomear o fenômeno do abuso sexual infantil. Entrevistamos psicólogos que trabalham nos serviços da rede de proteção integral, a fim de investigar como concebiam e vivenciavam o tema, seus conflitos, angústias e sofrimentos, seus juízos de valor e suas formulações éticas, morais e religiosas. Assim, deparamo-nos com a demanda da justiça para que o psicólogo produza provas para respaldar a decisão judicial na aplicação da pena para o suposto abusador. Na análise das entrevistas, promovemos levantar diversas questões, para criar um movimento que não busca uma verdade absoluta, mas, ao contrário, diluir algumas questões para que se abram outras por meio de um diálogo com autores que discutem a interface entre a Psicologia/Psicanálise e o Direito. Concluímos que é preciso promover reflexões, no interior dos órgãos de classe e das universidades, a fim de que o tratamento psicoterapêutico seja tomado pelo paciente como um direito e não como um dever, e que a ética do psicólogo seja considerada durante o diálogo com o campo do Direito. 12 ABSTRACT The Listening of sexual abuse: the psychologist and the assurance of children and adolescent rights. São Paulo, 2006. This project intends to articulate, based on a psychoanalytic referential, some aspects of existence and experiences of professionals with ambiguities and contradictions related to the function of psychologists who work in the system of assurance of children and adolescents rights taking care of cases in child sexual abuse. We’ve approached the concept of child, mainly how this child became a central character in the social scene carrying the ideal of a good future. We must point out how Brazilian society has mobilized itself to consider a child as an individual with rights, through the promulgation of the Child and Adolescence Act. We’ve reflected on several concepts of violence, sexual abuse, incest, listening to contradictions that prowl this segment, due to different theories and epistemological and political positioning of authors. And observing the impossibility of a consensus in the use of terminology to name the child sexual abuse phenomena. We’ve interviewed psychologists who work in services of protection, in order to investigate how they experienced the theme, their conflicts, anguishes and pains, their values as well as ethical, moral and religious formulations. Thus we’ve faced a demand of justice for the psychologist to produce proof to support the legal decision in the conviction of the alleged abuser. In the interview’s analyses we’ve raised several questions to create a movement not in search of absolute truths, but yet, to dilute some questions so that other questions can be asked through talks with authors to discuss the interface between Psychology/Psychoanalysis and the Law. We’ve concluded that it’s necessary to promote reflections in universities and social classes so that the psychotherapeutic treatment is taken by the patient as a right and not as a duty, and that the psychologist ethics be considered in the dialogue with the law. 13 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem uma relação inerente com a experiência da pesquisadora. Isto significa que foi a ligação entre a pesquisa, o pesquisado e o pesquisador que mobilizou esta produção científica. Para justificarmos esse lugar – de pesquisadora - me apresento como: psicóloga, que atuou e ainda atua em serviços relacionados com a temática da violência sexual, que atende, escuta, acompanha e supervisiona casos de crianças e adolescentes que passaram por essa experiência. Dessa forma, a nossa experiência sempre esteve articulada com o que pretendi investigar. A experiência como coordenadora do Centro de Referência foi o embrião do problema dessa pesquisa. No ano de 2002, fui convidada a assumir a coordenação de um Centro de Referência para Crianças, Adolescentes e Famílias em Situação de Violência Sexual: como proposta e um programa do Governo Federal que repassam verbas para os municípios, que por sua vez estruturam centros de atendimento a essa problemática. Participei de todo o processo de implantação do Centro que compreendia: a criação do nome, pois os municípios não precisavam utilizar o nome Sentinela. Os Centros eram autorizados a batizar o programa com o nome que julgassem melhor; a escolha da instituição que iria ser a sede; a contratação da equipe de profissionais; o preparo da comunidade para receber o serviço por meio de cursos de sensibilização e reuniões com o conselho tutelar, com a vara da infância, com a diretoria de ensino e com a secretaria de desenvolvimento social; e, por fim, a inauguração do espaço. Ocupando o cargo de coordenadora, passei a escutar os profissionais que atuavam no atendimento. A modalidade dessa escuta não era aquela propostapor Freud (1924)1, ou seja, “atenção uniforme e suspensa em face de tudo o que se escuta”, mas uma atenção operacional aos profissionais, levando em consideração suas dificuldades no cotidiano de sua atuação. A tarefa de coordenar exigiu uma interlocução com a equipe de trabalho para que as decisões tomadas tivessem sempre como meta oferecer condições para uma boa qualidade de atendimento aos usuários do serviço. Semanalmente, a equipe técnica do programa reunia-se a fim de organizar os trabalhos e de discutir os casos que estavam sendo atendidos pelo Centro de Referência. Dessas 14 reuniões participavam psicólogos, assistentes sociais e um educador. Com o passar do tempo, fui percebendo que algo de errado estava acontecendo com os profissionais dessa equipe e supus que poderia ter ligação com suas atividades no Centro. As suposições foram despertadas com o caso de uma menina de um ano e seis meses de idade, que atendemos no Programa. Ela acabara de receber alta do hospital da região e estava em um abrigo. Havia passado por uma cirurgia de reconstituição da genitália, devido à dilaceração ocorrida por ter sofrido um abuso sexual do pai. O abrigo pediu-nos ajuda para lidar com a menina. Assim, o caso foi levado à reunião técnica, para que um dos psicólogos pudesse iniciar o atendimento. Um psicólogo do grupo dispôs-se a atender esse bebê. No dia seguinte, uma profissional da equipe – não a que iria atender a criança – relatou-me que, no caminho de volta para sua casa, começou a pensar no “bebezinho que sofreu abuso” e sentiu enjôo. Passadas algumas horas, começou a vomitar compulsivamente. Disse-me que a imagem que vinha à sua mente durante os vômitos era a de sua filhinha quando era bebê. Essa psicóloga nos concedeu uma das entrevistas deste trabalho, pois considerei importante escutar a sua história. Também escutei um outro caso que fiquei muito atenta. Um profissional relatou-nos que havia atendido um menino de seis anos que tinha sido abusado por seu padrinho. Chamou-me a atenção o fato de ela repetir por várias vezes a fala que o menino dirigiu a ela durante a entrevista de triagem: “doía muito, tia, doía muito”. Após alguns dias, a profissional procurou-me para dizer que teve, pela primeira vez, uma crise de hemorróidas. Dias depois, apareceu com o corpo empipocado e o diagnóstico médico foi de que aquele sintoma era uma espécie de urticária. Em outros momentos, escutei relatos como: “passei a olhar diferente para o meu marido, pensando se ele seria capaz de abusar de nossa filha de seis anos”. Essa profissional disse ter chegado a ficar receosa em deixar o pai sozinho com a filha. Eu conheci esse lugar estranho, quando fui intimada pelo promotor de justiça da vara criminal a prestar depoimento como testemunha de acusação do padrasto de uma criança de sete anos, atendida por mim no Centro. Esse fato me causou certo mal-estar e fez com que eu me perguntasse se o posterior desligamento da paciente da psicoterapia poderia ter relação com meu depoimento, e se ela e principalmente sua mãe também não se viram tomadas pelo mesmo mal-estar. Percebi, então, que o fato de um sujeito estar ‘mergulhado’ diariamente no discurso sobre abuso sexual pode promover alterações nas suas relações sociais, familiares, conjugais e de amizade, e até mesmo interferir na sua possibilidade de acolhimento. A escuta a essa 15 problemática pode ainda gerar fantasias na mente desses profissionais. Essa observação também foi feita por Cromberg (2001) ao supervisionar psicólogos que trabalhavam escutando crianças abusadas sexualmente. Diz: “O tratamento de tais tragédias psíquicas [...] faz violência também no psiquismo do analista [...] Contudo, esse profissional deverá promover “um ligamento de sentidos e simbolizações ao sujeito que sofreu a violência” (CROMBERG, 2001, p. 9), que vai remeter esse profissional a navegar por extratos de seu inconsciente. Essa percepção conduziu-me a orientar e sensibilizar a equipe da necessidade de entrar no processo de psicoterapia ou análise, porém nem todos se dispuseram a fazê-lo. Comuniquei à instituição sobre minha preocupação com os profissionais e sugeri a contratação de um supervisor. Os gestores, apesar de serem solidários, disseram que a verba recebida do poder público não previa gastos para esse fim, mas se dispuseram a financiar, pois reconheciam que precisavam cuidar da equipe técnica. Além das dificuldades encontradas na escuta ao abuso sexual em si, deparei-me com outra dificuldade: a relação com a instância jurídica, que por sua vez é um dos braços do sistema de garantia de direitos. O Estatuto da criança e do Adolescente (ECA) foi uma conquista da sociedade brasileira e, por meio dele, muitas ações de proteção encontram respaldo legal; o Programa Sentinela foi uma dessas ações que abriu campo de trabalho para o psicólogo e possibilidade de acolhimento e tratamento psicoterápico às crianças que vivenciaram a experiência do abuso. Entretanto, a maneira com que o sistema judiciário está fundamentado às vezes, impõe aos psicólogos uma tarefa que vai além da sua função terapêutica e é bastante difícil de ser equacionada: de produzir provas para respaldar as decisões judiciais com relação à pena a ser aplicada a um possível abusador. O abuso sexual infantil passou a ser considerado fenômeno relevante após a estruturação do conceito de criança como um ser em etapa peculiar de desenvolvimento. Esse fato somado à luta pelos direitos humanos e o surgimento do feminismo, foram os pilares de sustentação dos movimentos sociais que se mobilizaram a fim de consolidar em forma de legislação tanto os direitos da criança como as penalidades e sanções para aqueles que descumprissem as leis. Uma pesquisa feita por Pimentel (2006), que avaliou publicações sobre o abuso sexual infantil, revelou há poucos autores brasileiros trabalhando com o tema e prevalecendo uma postura: a de incentivar a mobilização da população para identificar essas situações no interior da família e denunciá-las à polícia ou autoridade competente. Revelou, também, que existe 16 um movimento bem articulado no Brasil, na cidade de São Paulo, mais especificamente na USP cuja maneira de atuação e argumentação “versavam basicamente sobre a mesma temática: critérios de classificação, exames, vigilância e punição às situação de abuso sexual infantil” (PIMENTEL, 2006, p. 44). A forma com que nossa sociedade escolheu para lidar com este fenômeno acaba expondo a família a diferentes intervenções públicas de vários profissionais. Dessa maneira o “Estado toma para si o cuidado com as crianças policiando as famílias” (PIMENTEL, 2006, p. 51). Assim, podemos inferir que o monitoramento das práticas sexuais no interior das famílias faz com que o abuso infantil esteja estritamente relacionado à sexualidade. Para o entendimento e a compreensão da nossa questão, busquei a abordagem e metodologia psicanalítica. Onde o sujeito não é resultado do desenvolvimento biológico, nem o psiquismo é originário somente das sinapses neuronais. Sua emergência se dá a partir do encontro com o Outro representante da cultura – a mãe, ou quem cuida – e, desde a mais tenra idade, é portador de um erotismo despertado por esse encontro. Contudo, o momento dessa emergência é esquecido e temos acesso a ela somente por meio das formações do inconsciente, como os sonhos, atos falhos, chistes e etc. Essa instância psíquica - o inconsciente - é atemporal, alógico, regido pelo princípio do prazer e, portanto, infantil, tanto para o adulto quanto para a criança. De acordo com Silva (2006), o autor esclarece que a sexualidade infantil nos remete à “lógica da construção da fantasia. Dessa forma, Freud substitui a compreensão da sexualidade infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional por outra que enfatiza a fantasia” (PRATES SILVA,2006, p. 56). Freud (1908) com a análise do pequeno Hans, logo se confrontou com a concepção de criança de sua época, que era vista como um ser inocente e despossuído de qualquer sexualidade. A cura de Hans se deu por meio da análise de questões ligadas ao erotismo infantil na relação com seus pais, ou seja, o complexo de Édipo. Assim, Freud sofreu as conseqüências de ter desvelado a sexualidade infantil, contrapondo-se com a concepção de criança ‘inocente’ que dominava à época, e abriu caminho para novas pesquisas sobre a infância em psicanálise. Considerando a teoria freudiana a qual, em um dado momento, pesquisou o abuso infantil incestuoso e o percurso da pesquisadora de ter trabalhado na rede de proteção atendendo estes casos, surgiu o interesse em investigar como outros psicólogos se confrontavam com a violência sexual a crianças e adolescentes e como exerciam sua prática. Quis saber como concebiam e vivenciavam o tema, incluindo seus pensamentos, suas 17 reflexões teóricas e profissionais, bem como suas concepções e opiniões pessoais, seus pontos de vista oriundos do senso comum (compartilhados por setores ou agrupamentos sociais), seus conflitos, angústias e sofrimentos, seus juízos de valor e suas formulações éticas, morais e religiosas. Delimitamos, então, nosso objetivo, nossa questão: articular, com base no referencial psicanalítico alguns aspectos das vivências e experiências dos profissionais às ambigüidades e contradições relacionadas à função do psicólogo que atua no sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente atendendo aos casos de abuso sexual infantil. Para o material dessa questão, procuramos entrevistar psicólogos, homem ou mulher, que tivessem um percurso no atendimento a crianças e adolescentes em situação de violência sexual em um serviço da rede de proteção. Deveriam ter formação em psicologia, sem a necessidade de constar em seu currículo especialização no tema violência sexual. Eles ainda poderiam ou não estar em processo de análise ou psicoterapia. Ao escutar nossos entrevistados, observamos que a maioria dos profissionais dedicam número constante de horas semanais a esse trabalho. Estão inseridos em um serviço com a missão de prestar atendimento a crianças, adolescentes e famílias em situação de violência sexual. Fazem parte de uma equipe formada por diferentes profissionais, tais como assistentes sociais, médicos, educadores e estagiários, com a proposta de interdisciplinaridade, ou seja, de discussão e acompanhamento dos casos por toda a equipe, respeitando a especificidade de cada área. As instituições nas quais eles trabalham posicionam-se diferentemente frente ao relacionamento com os vários campos do saber, em especial com o campo jurídico. A escolha de profissionais que exercem sua função em diferentes instituições foi proposital. Acreditamos que, assim, ilustraríamos as diferentes concepções que as instituições, bem como os psicólogos, podem ter com relação ao atendimento aos casos de abuso sexual. Com o auxílio do método de investigação psicanalítico, colhemos material que foi analisado, de maneira que pudéssemos mapear as tensões entre as diferentes disciplinas e campos do saber que se ocupam em trabalhar com o tema, destacando especialmente a Psicologia, a Psicanálise e o Direito. Delimitamos os pontos de tensão e pensamos em um diálogo possível entre ambos. Selecionamos algumas das questões levantadas pelos psicólogos entrevistados, priorizando aquelas que dizem respeito à interface do seu trabalho com a justiça, tais como a 18 obrigatoriedade da denúncia nos casos de suspeita de abuso sexual infantil e a sua relação com o Código de Ética do Psicólogo, que em seu artigo 9º dá ao paciente o direito ao sigilo profissional; o fornecimento de laudos, pareceres, relatórios e depoimentos que respaldam as decisões judiciais para afastamento do lar ou aplicação de pena ao suposto agressor, que na maioria das vezes é alguém com fortes laços afetivos com a criança. No desenvolvimento do trabalho, percebemos a necessidade de esclarecer melhor sobre o que entendemos pelo termo criança e o que a psicanálise define como infância. Com auxílio de Ariès (1981), descrevemos como foi se construindo historicamente esse conceito, a fim de nos afastarmos da crença de que a infância é algo natural. Para complementar, delineamos como a criança foi se consolidando como centro das atenções em algumas sociedades ocidentais, a partir de alguns fatores sociais e históricos. Acrescentamos como as instituições onde os sujeitos de nossa pesquisa trabalham seguem a doutrina da proteção integral. No capítulo 2 buscamos descrever, historicamente, o percurso trilhado pela sociedade, por meio de movimentos sociais como o feminismo, para materializar o seu ideal de proteção à criança, que culminou no Brasil, na promulgação do ECA. No capítulo 3, discorreremos sobre os termos utilizados para nomear os fenômenos: violência sexual, abuso e incesto. Consideramos a opinião de alguns autores, como Costa (2003), que acredita sabermos pouco sobre a violência devido à escassez de investimentos em pesquisa sobre o tema pelas diversas ciências, incluindo a psicanálise, e Minayo (1998), que também sustenta a idéia de que o fenômeno seja enfrentado de forma multiprofissional e seja motivo de amplo debate entre as diferentes áreas do conhecimento, em especial a psicologia social. No capítulo 4, descrevemos, detalhadamente, o caso da menina em que fui intimada a depor em juízo. E, pronunciamos os equipamentos da rede do sistema de proteção integral que a acolheram – delegacia, hospital, conselho tutelar e vara da infância. Refletimos sobre o que é esperado do trabalho do psicólogo pela área jurídica e sobre qual a função do tratamento psicológico. No quinto e último capítulos, recortamos os pontos principais levantados por nossos entrevistados e os analisamos a partir da opinião de alguns autores que se depararam com a questão. Na intenção de fomentar ainda mais a discussão, recorremos a autores que têm visões diferentes sobre a atuação do psicólogo no campo jurídico. 19 Freud (1931) contrapôs-se ao resultado dos exames periciais de um médico que utilizou a teoria do complexo de Édipo e o conceito psicanalítico de repressão para incriminar o jovem judeu Philipp Halsmann por crime de parricídio na Áustria. Citamos a posição de Lacan (1950) sobre a contribuição da psicanálise à criminologia, em que sustenta a idéia de que são as questões sociais que definem um criminoso. Caffé (2003) acredita que o trabalho da perícia psicológica psicanalítica pode auxiliar uma família em litígio a se implicar em seu sintoma. Assim, a psicanálise surge no lugar de um saber que faltou ao juiz: “Um lugar sobre outro lugar” (GUIRADO apud CAFFÉ, 2003, p. 99), pois é o direito que convida a psicanálise para os domínios de sua casa. Para essa autora, é a partir desse lugar faltante – não só para o juiz, mas também para a família que procura a justiça e seus agentes para institucionalizar o conflito no qual está mergulhada – que pode haver alguma possibilidade de interlocução entre a Psicologia, a Psicanálise e o Direito. Já Arantes (2004), baseada no filósofo da ciência Canguilhem, promove uma reflexão sobre a instrumentalização da psicologia e defende a idéia de que não é vocação dessa ciência ser apenas um instrumento da administração da sociedade. Dolke (2001), promotora de justiça de uma cidade do sul do País, tece várias críticas à forma com que o poder judiciário lida com os casos de suspeita de abuso sexual a crianças e adolescentes, principalmente no que diz respeito à inquirição das crianças no momento da audiência. Propõe um incessante diálogo com outras áreas do conhecimento, em especial com a psicologia, a fim de que sejamcriadas novas maneiras de abordagem das crianças em situação de violência sexual pelos juristas, bem como a reformulação da maioria das leis e práticas dos juristas sobre o abuso sexual infantil. Moraes (1998), psicanalista do Rio Grande do Sul, relata um caso em que foi procurada em seu consultório pela mãe de um menino de dois anos. O pedido era para que ela tomasse o menino em análise para elaborar um relatório que afirmasse que o pai havia abusado do menino, para ser entregue para o juiz. Nesse caso, refletimos sobre o quê faz um psicanalista frente a um pedido como esse. Não foi tarefa fácil concluir essa pesquisa, visto que a cada capítulo escrito se abriam mais questões a respeito desse tema que nos desperta horror, mas ao mesmo tempo curiosidade. No entanto, foi possível estabelecer uma correlação entre os dados fornecidos pelos entrevistados e a necessidade de um diálogo constante entre campos tão independentes do saber, mas que são constantemente chamados a dialogar sobre o fenômeno. 20 Concluímos que é preciso criar, inventar uma rede de proteção e cuidados também para os psicólogos. Não uma rede que promova reivindicações apenas monetárias, mas que abra espaços para a reflexão sobre a necessidade de formação permanente, da supervisão e do acesso à terapia ou à psicanálise por parte desses cuidadores. Uma rede que promova a implicação das pessoas em seu trabalho, para que este não esteja submetido à égide da instrumentalização e da submissão ao campo do Direito. 21 O MÉTODO Segundo Freud, psicanálise é o “nome de um procedimento para investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica.” Com essa frase, Freud (1923) enfatizou o caráter científico da psicanálise, destacando a existência de uma teoria, uma metodologia de investigação dos processos mentais e um método para tratamento. Freud (1896) começou a construir a teoria da sedução ao escutar suas pacientes, utilizando inicialmente o método criado por Charcot, a hipnose, e posteriormente a associação livre: “Cada vez mais me parece que o ponto essencial da histeria é que ela resulta de perversão por parte do sedutor, e mais me parece que a hereditariedade é a sedução pelo pai” (FREUD, 1996, p. 286). Mais tarde, Freud (1897) entrou em conflito com os alicerces de sua teoria da etiologia das neuroses, pois descobriu que estava incompleta, e em carta escrita a Fliess declara: “Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses] [...], veio a surpresa diante do fato de que, em todos os casos, o pai, não excluindo o meu, tinha de ser apontado como pervertido.” (FREUD, 1996, p. 309, 310). Assim, concluiu que o caminho teórico que estava percorrendo era absurdo, repensou seus conceitos e promoveu várias reformulações. Essa capacidade em promover sucessivas reelaborações, ajustes e modificações necessárias ao desenvolvimento da teoria, é característico da obra freudiana. “Essa crescente rearticulação da teoria e aperfeiçoamento dos conceitos, com uma progressiva interação com os dados da experiência, é inegavelmente a marca do trabalho de Freud.” (PACHECO FILHO, 1999, p. 19). O pai da psicanálise não desistiu das suas investigações sobre o desvelamento da psique humana e durante a continuidade da escuta a seus pacientes passou a considerar a dimensão da fantasia como instância necessária à constituição e do sujeito. Assim, a delimita que a realidade psíquica, aquela que faz parte do mundo mental do sujeito, nem sempre condiz com a realidade dos fatos. No intuito de comprovar ou refutar a nossa hipótese norteadora: a de que existem tensões fundamentais na interlocução dos campos da Psicologia e do Direito, e estas podem 22 influenciar os psicólogos que trabalham em serviços da rede de proteção integral escutando casos de abuso sexual infantil, entrevistamos alguns desses profissionais. O método psicanalítico inclui o pesquisador num processo de elaboração conceitual que nasce no interior de uma reflexão e vai se construindo pelos relatos colhidos. No caso dessa pesquisa, as informações dadas pelos sujeitos passaram pela subjetividade da pesquisadora, que a não foi desprezada, mas, sim, considerada e reelaborada, abrindo novas fendas discursivas e proporcionando um diálogo fértil e incessante. 23 Capítulo 1 ALGUMAS NOTAS SOBRE A CRIANÇA ...e a gente canta e a gente dança e a gente não se cansa de ser criança da gente brincar da nossa velha infância [...] (Arnaldo Antunes) Neste capítulo faremos alguns apontamentos sobre o que se entende do termo criança. Para isso, é essencial que façamos um pequeno recorte na história, para entendermos o surgimento desse conceito. Não devemos supor que, no mundo contemporâneo, a palavra criança tenha o mesmo sentido que o empregado em outras épocas. Dessa forma, não estaremos falando de algo da ordem da natureza, e sim de um conceito construído socialmente. Também refletiremos sobre a contribuição da psicanálise para entendermos o que vem a ser o infantil, termo que supõe a instância da fantasia de infância. Atualmente é oferecido à criança ocupar um lugar de destaque na cena social, o que não ocorria em outras épocas. Esse lugar concedido a ela vai depender da estrutura econômica, social, política, e também dos valores religiosos. Ariès, em seu livro História social da criança e da família, utiliza-se da observação de obras de arte e da historiografia para captar algumas nuances de como as sociedades antigas se relacionavam com suas crianças. Apesar dos limites de seu método, o autor consegue elucidar algumas questões essenciais que nos serão úteis para traçarmos o percurso histórico de como o sentimento da infância foi aparecendo. Esse autor desvenda que nas sociedades tradicionais, portanto, antes da industrialização, não se reservava à criança uma atenção especial. Os cuidados lhe eram atribuídos apenas durante os anos de fragilidade, tal como a um filhote de animal, não sendo dado a ela sequer um nome. Na opinião de Ariès, nessa época, o afeto no interior das famílias não era algo tão relevante. O que importava era a cooperação mútua. Assim, o grupo conservava seus bens e garantia a sobrevivência. A duração da infância era reduzida, pois, assim que a criança adquiria maturidade motora, era incluída no mundo adulto. A aprendizagem ocorria por meio da convivência com 24 os adultos, que lhe atribuíam a tarefa de auxiliá-los na produção artesanal. Quase sempre as crianças ajudantes pertenciam a outro grupo familiar. Era comum morarem por um período com outras famílias a fim de aprender boas maneiras ou um ofício. Contudo um sentimento superficial da criança – o que chamei “paparicação” – era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas só se divertiam com a criança pequena, como um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato (ARIÈS, 1981, p. 10). No entanto, o mundo dos adultos era permeado por festas, brincadeiras e jogos populares como forma de estreitar laços coletivos. Assim, era tranqüila a adaptação da criança. “A música e a dança, as representações dramáticas reuniam toda a coletividade e misturavam as idades tanto dos atores como dos espectadores” (ARIÈS, 1981, p. 104). Algo bastante relevante para o nosso trabalho é o fato de que as crianças eram facilmente incluídas às brincadeiras sexuais dos adultos. Nosdocumentos escritos pelo médico do Rei Luís XIII, há relatos de jogos entre o rei e sua ama que talvez hoje pudéssemos chamar de abuso sexual: “Luís XIII ainda não tem um ano: Ele dá gargalhadas quando sua ama sacode o pênis com a ponta dos dedos. Ele chama a pajem com um Ei! e levanta a túnica mostrando-lhes o pênis” (ARIÈS, 1981, p. 125-126). Em algumas culturas ainda se conserva o hábito de brincar com o sexo das crianças como, por exemplo, a muçulmana. Em uma passagem de um romance do judeu tunísio Alberto Memmi, há um diálogo entre um djerbiano e um menino de dois anos e meio que está no colo do seu pai1: Você quer me vender seu pintinho? Não – disse o menino com raiva [...] O menino olhou para o pai, o pai sorria, era uma brincadeira permitida. Nossos vizinhos se interessavam pela cena tradicional com uma aprovação complacente. Eu lhe dou 10 francos, propôs o djerbiano. Não, disse o menino... [...] Vou lhe dar tudo o que posso 1 Romance La Statute de Sel de 1953. 25 ... e mais um saco de balas! Não, não! [...] Repita pela última vez, disse fingindo raiva. Não! – Então, bruscamente, o adulto pulou em cima da criança com uma expressão terrível no rosto e a mão brutal remexendo dentro de sua braguilha. O menino se defendeu com socos. O pai ria a gargalhadas, o djerbiano e os vizinhos também (ARIÈS, 1981, p. 130). Pode nos parecer absurdo imaginar essa ausência de reserva diante da criança, mas temos de lembrar que as mudanças na estrutura social advindas com a moral religiosa e com o capitalismo ocorreram predominantemente no Ocidente. Em algumas sociedades orientais, tais transformações nem aconteceram, mantiveram suas tradições não tendo sido influenciadas, portanto, por esse sentimento de infância que o autor procura identificar. Foucault, em História da sexualidade, nos esclarece sobre as incursões e as mudanças sociais com relação à sexualidade, ressaltando que, em um determinado momento histórico, há uma drástica mudança nos comportamentos sexuais: Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa franqueza. As práticas não procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e, as coisas, sem demasiado disfarce, tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade [...] Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo, entre os risos dos adultos: os corpos “pavoneavam.” Um rápido crepúsculo se teria seguido à luz meridiana até as noites monótonas da burguesia vitoriana. A sexualidade é, então, cuidadosamente encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala [...] um único lugar de sexualidade reconhecida, mas utilitário e fecundo: o quarto dos pais (FOUCAULT, 1985, p. 9). Não se trata de dizer que nesta ou naquela época as pessoas lidavam melhor ou pior com as crianças ou mesmo com a sexualidade, mesmo porque Foucault considerou somente a 26 questão da repressão e desconsiderou a idéia de recalque2. Queremos demonstrar que nem sempre a criança ocupou um lugar central no cenário social, pelo contrário, na antiguidade ela era mera coadjuvante nas relações sociais e, quando indesejada, era facilmente eliminada. O infanticídio era prática comum, apesar de condenado e severamente punido quando desvelado. Mesmo assim, as pessoas o praticavam em segredo, camuflado sob forma de acidente, e em geral ocorria por asfixia na cama dos pais onde a criança dormia. “O fato de ajudar a natureza a fazer desaparecer criaturas tão pouco dotadas de um ser suficiente não era confessado, mas tão pouco era considerado com vergonha. Fazia parte das coisas moralmente neutras” (ARIÈS, 1981, p. 17). Ao longo do século XVI, houve um grande movimento de moralização dos homens, promovido pelas reformas católica e protestante. Esse movimento daria início a “um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização” (ARIÈS, 1981, p. 11). Surge, desse movimento, uma elite educadora preocupada em preservar a moral da criança, proibindo-lhe os jogos então classificados como maus e recomendando-lhes os jogos bons. Devemos ressaltar que o novo testamento do cristianismo trouxe uma nova visão de homem, principalmente no que diz respeito às suas franquezas e deficiências, diferentemente dos preceitos anteriores que pregavam os castigos e a exclusão dos pecadores. Um dos dogmas cristãos é a solidariedade para com os fracos e o acolhimento dos doentes, fatos que ajudaram a fortalecer essa nova religião, que se tornou oficial no início do século IV. Assim, as práticas cristãs começaram a ser controladas pelos governantes e “[...] pouco a pouco os valores de perdão e de solidariedade para com os excluídos sociais foram enfraquecidos” (LIBÓRIO e SILVA, 2005, p. 86). O domínio da moral fez com que as pessoas buscassem no cristianismo o motivo para a santificação da criança, que passa a ser vista como criatura sem nenhum pecado carnal, despojada de sentimentos impuros. Esse fato faz surgir uma época de grande repressão com relação à sexualidade. Nesse período, a criança, antes profana, passa a ser vista como sagrada. A força do laço familiar se estabelece como algo relevante, bem como a escolarização. É conveniente, então, que as crianças sejam mantidas na escola, enquanto os pais saem para trabalhar. Esse é 2 Freud (1898), em O mecanismo psíquico do esquecimento, esclarece que recalque são: “[...] fluxos de representações[...] que, a despeito da intensidade do interesse nelas depositado, deparassem com uma resistência que os impedisse de serem elaborados por uma dada instância psíquica, e portanto, de se tornarem conscientes” (1996, p. 279). 27 um momento de transição de uma sociedade rural e de produtos manufaturados destinados à auto-subsistência para uma sociedade industrializada. Assim, a cultura começa a oferecer um outro lugar social à criança. Apoiada no cristianismo e nos ideais da burguesia de um capitalismo ainda incipiente (família, estado e sociedade), nossa cultura inventa, cria a infância. A criança agora tem a responsabilidade de conservar a linhagem, a integridade e o patrimônio da família. Instaura-se a necessidade da intimidade no núcleo familiar. A família moderna retirou da vida comum não apenas as crianças, mas uma grande parte do tempo e da preocupação dos adultos. Ela correspondeu a uma necessidade de intimidade, e também de identidade: os membros da família se unem pelo sentimento, o costume e o gênero de vida. As promiscuidades impostas pela antiga sociabilidade lhes repugnam. Compreende-se que essa ascendência moral da família tenha sido originariamente um fenômeno burguês: a alta nobreza e o povo, situados nas duas extremidades da escala social, conservaram por mais tempo as boas maneiras tradicionais [...] Existe, portanto uma relação entre o sentimento da família e o sentimento de classe (ARIÈS, 1981, p. 278). Durante o surgimento do que Ariès chamou de sentimento de infância, o interesse pela produção de conhecimentos sobre a criança pelas várias áreas como a pediatria, a pedagogia e até mesmo a psicanálise provocou a consolidação de um ideal social sobre o que uma comunidade deve oferecer às suas crianças e como deve ser vivida essa etapa da vida, ou seja, a infância. O conceito de infância está para além das questões biológicas e cronológicas. Nele estão os ideais de uma sociedade, os sonhos, desejos e fantasias de uma comunidade sobre as melhores formas de ‘educar’ suas crianças. Alguns cientistassociais, desde a década de 1930, já utilizavam a expressão ‘sociologia da infância’ para se referir aos fenômenos relacionados a esta categoria, porém a análise da infância como categoria sociológica iniciou-se na década de 1990. Segundo Sarmento (2006), a sociologia desde sua origem já considerava fundamental o fato de a infância ser vista como a geração sobre a qual os adultos realizam uma ação de transmissão 28 cultural. A “consideração da infância como período de vida onde acontece a socialização constituiu-se como uma das mais importantes obras do início do pensamento sociológico: o da teoria da socialização de Emile Durkheim” (SARMENTO, 2006, p. 2). A sociologia da infância é uma nova ciência que tem contribuído para acirrar o questionamento sobre o fato de algumas ciências como a pedagogia, a psicologia ou medicina ter considerado, por determinado tempo, as crianças como ‘adultos em miniaturas’, discordando das conceituações baseadas na biologia para a definição da infância. Ela questiona também o fato de atualmente as crianças estarem confinadas ao espaço privado como asilos, creches e reformatórios ou ao cuidado da família. Procura rever a produção pericial da infância pelas ciências do indivíduo, questionando algumas intervenções que incluem a dos psicólogos. A sociologia da infância parte do pensamento sócio-histórico, o qual considera a criança como um ser autônomo e constituído sócio-historicamente. Faz um corte com o adultocentrismo, ou seja, “estudos da criança a partir dos adultos face às crianças ou da experiência do adulto face à sua própria infância” (SARMENTO, 2006, p. 20). Dessa forma, essa disciplina se contrapõe à teoria psicanalítica, a qual inclui a dimensão inconsciente da constituição do sujeito humano e o encara como um ser essencialmente dividido e completamente dependente do outro durante seu processo de constituição. Mesmo assim, não podemos deixar de acenar para a relevância deste novo campo do conhecimento científico que tenderá a desenvolver-se e a contribuir para novas teorizações para toda ciência sociológica, proclamando, segundo Sarmento (2006) “um novo paradigma da sociologia da infância e também envolver-se no processo de reconstrução da infância na sociedade” (PRONT & JAMES, Apud SARMENTO, 2006, p. 9). Já o termo criança considera aspectos biológicos do desenvolvimento corporal e aspectos temporais, ou seja, idade cronológica: “ser humano de pouca idade, menino ou menina” (FERREIRA, 2000, p. 193). Conforme a legislação brasileira criança é “pessoa de até 12 anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre 12 e 18 anos de idade. (PMSBC, 2003, p. 25).” Diferentemente da Convenção Internacional dos Direitos da Criança que considera criança pessoa menor de 18 anos, a menos que a lei do país estabeleça uma idade menor para a maior idade. 29 1.1 A criança na psicanálise: erotismo infantil Em sua clínica, Freud nunca atendeu diretamente crianças. Sua teoria sobre a sexualidade infantil foi fundamentada por meio da escuta de pessoas adultas. Entretanto, por volta do ano de 1909, recebeu a queixa, por parte de uma pessoa conhecida, de que o filho tinha adoecido psiquicamente. Assim, Freud aceitou intervir no sintoma do menino a partir do atendimento ao pai de Hans. “Só porque a autoridade de um pai e a de um médico se uniram numa só pessoa, e porque nela se combinavam o carinho afetivo com o interesse científico, é que se pôde, nesse único exemplo, aplicar o método [...]” (FREUD, 1986 [1909] p. 15). Não vamos nos ater ao sintoma do pequeno Hans, vamos citar a fase em que seu desenvolvimento estava indo bem. Vamos nos debruçar no material exposto pelo pai durante as sessões de análise em que conta fatos do cotidiano da vida do filho, a fim de ilustrar as hipóteses criadas por uma criança sobre a sexualidade. Os pais de Hans usavam somente a coerção necessária, deixando o menino livre para se desenvolver. A criança se tornara um menino alegre e vivaz. Assim como era esperado, por volta dos três anos de idade inicia sua investigação com a pergunta à mãe: Hans: - Mãe, você também tem pipi? Mãe: - Claro. Por quê? Hans: - Nada, eu só estava pensando (FREUD, 1986, p. 16). Nessa fase sempre fazia perguntas sobre a questão do pipi. Quando viu ordenharem uma vaca disse ‘olha, está saindo leite do pipi dela’ e durante uma visita no zoológico disse em frente à jaula de um animal ‘vi o pipi do leão’ e um dia disse ao pai que o achava que o pipi dele era tão grande quanto o de um cavalo. Aos três anos, sua mãe o viu tocar com a mão no pênis. Ameaçando-o disse: Mãe: - Se fizer isso de novo vou chamar o Dr. A para cortar fora seu pipi. Aí com o que você vai fazer pipi? Hans: - Com meu traseiro (FREUD, 1986, p. 17) Com três anos e nove meses, pergunta ao pai se ele também tem pipi e o pai responde que sim. Não satisfeito, Hans pronuncia: ‘Mas eu nunca vi quando você tirava a roupa.’ 30 Fica claro, portanto, que a investigação da criança é incessante, sua curiosidade em resolver essa primeira dúvida da existência humana é o que lhe movimenta para prosseguir. Hans ainda acha que a mãe é onipotente e sente-se seguro mantendo essa fantasia. Porém, com a chegada de uma irmãzinha, cai doente e em seu delírio febril ouviram-no dizer: “Mas eu não quero uma irmãzinha” (FREUD, 1986, p. 20). Com a chegada do novo bebê, percebe que a mãe vai amar também a outra criança e o adoecimento advém do medo de perder o amor da mãe, essa completude mãe-bebê é ameaçada. Contudo, prossegue suas investigações. Hans tem três anos e nove meses e ao observar o banho da irmã, diz: “o pipi dela ainda é bem pequenininho, quando ela crescer vai ficar bem maior” (FREUD 1986, p. 20). Nessa época, os pais de Hans permitiam que o menino eventualmente dormisse na cama com eles. Isso “[...] era para Hans, uma fonte de sentimentos eróticos, do mesmo modo que para qualquer outra criança” (FREUD, 1986, p. 25). Aos quatro anos conta seu primeiro sonho ao pai. Este envolvia a figura de Mariedl, uma moça de quatorze anos ligada à família. Dias depois diz ao pai “quero que Mariedl venha dormir comigo.” Quando lhe foi dito que não podia, pediu para dormir com a menina na casa dela e, quando negado também esse pedido, “Hans, com efeito, pegou suas roupas e se dirigiu para a escada, para ir dormir com Mariedl” (FREUD, 1986, p. 25). Apesar da pouca idade, Hans tomou uma atitude de um verdadeiro homem frente ao impedimento de sua mãe. Dias depois, passa a esperar todas as tardes uma linda menina de 8 anos que ia ao restaurante com os pais. A mãe nota que o menino ficava inquieto com a ida da menina ao restaurante, então: Não desejando deixar Hans naquele estado extenuado ao qual fora levado por sua paixão pela menina, providenciei que se conhecessem e convidei a menina para vir vê-lo no jardim depois que ele tivesse terminado sua sesta, à tarde. Hans estava tão excitado com a expectativa da vinda da menina, que pela primeira vez não conseguiu dormir de tarde e ficou se revirando na cama, inquieto. Quando sua mãe perguntou “Por que você não está dormindo? Você está pensando na menina?”, ele disse “Sim”, como uma expressão de felicidade. E quando chegou em casa, vindo do restaurante, disse para todo o mundo de casa: “Sabe, a minha menina vem ver-me hoje” (FREUD, 1986, p. 26). 31 Em uma manhã dos seus quatro anos e três meses, a mãe de Hans, após dar-lhe o banho diário, seca-o e aplica-lhe talco em volta de seu pênis e toma cuidado para não toca-lo, o menino diz: Hans: - Por que é que você não põe o seu dedo aí? Mãe: - Por que isso seria porcaria. Hans: - Que é isso? Porcaria? Por quê? Mãe: - Porque não é correto. Hans rindo disse:- Mas é muito divertido! (FREUD, 1986, p. 26) (grifo nosso). Aos quatro anos e meio, Hans se refere ao órgão sexual de sua irmã dizendo alegremente que ‘seu pipi é bonito.’ “Essa é a primeira vez que ele reconhece a diferença entre os genitais masculinos e femininos em vez de negar sua existência” (FREUD, 1986, p. 28). No relato dessa experiência fica evidente a posição contrária da psicanálise frente às idéias de que a criança é um ser sacralizado e desprovido de sexualidade como a época vitoriana insistia em divulgar. Muito pelo contrário, o caso do pequeno Hans mostra que a sexualidade está desde sempre fazendo seus efeitos no sujeito humano. Demonstra, também, que a criança interpela o adulto na busca dos prazeres oferecidos por algumas zonas de seu corpo. Os pais de Hans encararam a situação com tranqüilidade e impuseram os limites necessários aos impulsos do menino. O autor também revelou a importância de observar diretamente crianças sem o intermédio dos adultos para abstrair “em primeira mão e em todo o frescor da vida, os impulsos e desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos dentre seus próprios escombros” (FREUD 1986, p.16). Encoraja outros colegas a pesquisar sobre a vida sexual das crianças “cuja existência, via de regra, tem sido argutamente desprezada ou deliberadamente negada” (FREUD 1986, p.16). Seu incentivo ao desenvolvimento de pesquisas sobre a o erotismo infantil foi frutífero. Outros psicanalistas prosseguiram as pesquisas com crianças e revelaram que a intervenção analítica precoce, incluindo ou não os pais, poderia ajudar e muito, a remissão de sintomas em crianças pequenas. 32 1.2 Menino e menina: fases da fantasia Uma das grandes contribuições da psicanálise para o entendimento do que é o infantil, está no fato de considerar que a diferença de anatomia entre os sexos é fundamental para a primeira etapa da constituição psíquica do bebê humano. Apesar de ir se afastando gradativamente das questões biológicas e incluindo a dimensão da linguagem para a explicação dos sintomas humanos, no primeiro momento da estruturação psíquica, o que a criança vai fazer com a questão anatômica, dito de outro modo, que posicionamentos irá tomar a partir da descoberta dessa diferença, é essencial. Ao contrário do movimento incipiente de liberação das mulheres, Freud coloca que “não devemos nos permitir ser desviados de tais conclusões pelas negociações dos feministas, que estão ansiosos por nos forçar a encarar os dois sexos como completamente iguais em posição e valor” (FREUD, 1986 [1925] p. 286). Esta foi uma das falas freudianas que fez com que o movimento feminista passasse a considerá-lo machista e a discordar de suas idéias. Entretanto, no mesmo texto, o autor demonstra uma posição imparcial do ponto de vista ideológico, reforçando sua posição de cientista e investigador dizendo: [...] concordamos de boa vontade que a maioria dos homens está muito aquém do ideal masculino e que todos os indivíduos humanos, em resultado de sua posição bissexual e da herança cruzada, combinam entre si características tanto masculinas quanto femininas de maneira que a masculinidade e a feminilidade puras permanecem sendo construções teóricas de conteúdos incertos (FREUD, 1986, p. 286). Freud, por meio de sua escuta clínica, observou que a menina, quando descobre que seus órgãos genitais são insatisfatórios, ou seja, que ela não tem pênis, começa a demonstrar ciúmes de outras crianças porque passa a crer que sua mãe gosta mais dessa outra criança do que dela. “A criança preferida pela mãe se torna o primeiro objeto da fantasia de espancamento [...] Depois transforma o pai em seu objeto de amor e a mãe torna-se objeto de seu ciúme. A menina transforma-se em uma pequena mulher” (FREUD, 1986 [1925] p. 286) (grifo nosso). Essa fantasia ocorre no período entre 3 e 5 anos de idade. O autor se intrigou com a freqüência com que as pessoas que procuravam um tratamento analítico relatavam lembranças de espancamento na infância. Sua surpresa advinha 33 do fato de que aqueles que descreviam tais cenas não haviam sido educados com atitudes violentas. Assim, prosseguiu com suas investigações. Descobriu que a fantasia é formada por três fases, tanto para o menino quando para a menina. Contudo, para sua surpresa, não há uma analogia completa entre elas. Percebeu que a forma com que as fases da fantasia apareciam no processo de rememoração de pacientes mulheres e homens eram diferentes. Para a menina, na primeira fase, lembra-se de uma cena de espancamento em que a criança é conhecida, um irmão, irmã ou coleguinha, e a identidade do espancador é obscura. Logo a seguir reconhece o pai como aquele que bate na criança. Na segunda fase, a pessoa que bate continua sendo o pai, mas a criança que apanha torna-se aquela que produz a fantasia. “Estou sendo espancada pelo meu pai” (FREUD, 1986 [1919] p.201). Freud ressalta que essa segunda fase é inconsciente e resultado de uma construção em análise e que provavelmente não aconteceu na realidade. Na terceira e última fase, a pessoa que espanca volta a se tornar desconhecida, “às vezes o pai é substituído por um professor [...] e a criança que relata volta a assistir a cena” (FREUD, 1986 p. 201). Essa cena retrata invariavelmente imagens de meninos desconhecidos que estão sendo espancados. Quanto à menina fantasiar meninos sendo espancados, isso se deve a uma certa raiva do pai por tê-la separado de sua mãe e se identifica com a figura masculina. Assim, as meninas deixam de lado sua feminilidade querendo ser meninos, por isso fantasiam que eles estão apanhando. A provável função da fantasia da primeira fase (consciente) é a de gratificar o ciúme e o egoísmo da criança: ‘papai só ama a mim e não a outra criança’, pois está batendo nela. Contém, assim, certa dose de sadismo. Logo depois, surge uma fantasia de conteúdos masoquistas (inconsciente) provocados pelo sentimento de culpa – ‘não, ele não ama você porque está batendo em você’ – ainda com a função de realizar o amor incestuoso, pois podemos pensar que ato de ‘bater’ substitui a relação genital. Na última fase (consciente), já sob o efeito do componente repressivo, a fantasia (re) encobre a segunda lembrança, obscurecendo a identidade dos personagens. No caso dos meninos, a primeira fase é rememorada com a mãe espancando uma criança qualquer. Na segunda fase, o menino que produz a fantasia passa a ser a criança espancada pela mãe, porém esse fato é lembrado conscientemente pelo menino. Na terceira fase, a figura do menino se mantém como sofrendo espancamento, “embora logo tenha substituído a própria mãe pela mãe dos colegas ou outras mulheres” (FREUD, 1986, p. 205). Na lembrança dos meninos, o que está recalcado é um estágio anterior ao da primeira cena 34 que se constitui no seguinte: ‘Estou sendo espancado pelo meu pai.’ Na menina essa lembrança corresponde ao segundo estágio. Então, no menino, a fantasia de estar sendo espancado pela mãe toma o lugar da terceira fase da menina quando ‘meninos estranhos estão sendo surrados.’ O que permanece inconsciente e só é rememorado num processo de análise é o espancamento pelo pai que simboliza ‘sou amado pelo meu pai.’ A fantasia de espancamento do menino deriva de uma atitude passiva em relação ao pai, tal como na menina. Ele modifica a figura do sexo de quem bate, colocando a mãe no lugar do pai e mantém sua própria figura. A pessoa que está batendo e a que está apanhando são de sexos opostos. O que é recalcado é sua homossexualidade. Assim, sente-se como uma mulher em suas fantasias conscientes e “dota as mulheres que o espancam de atributos e características masculinas” (FREUD, 1986 p. 214). Para a psicanálise, a conseqüência psíquica da diferença anatômica entre os sexos é a determinação da construção da feminilidade, em que a castraçãofoi executada, e masculinidade, em que a castração foi apenas ameaçada, levando em consideração a singularidade de cada sujeito no atravessamento dessa fase da vida psíquica. Mesmo assim, “em ambos os sexos, a fantasia masoquista de ser espancado pelo pai, ainda que não a fantasia de ser amado por ele, continua a viver no inconsciente depois que ocorreu a repressão” (FREUD, 1986, p. 214). O autor ainda ressalta a importância da segunda fase da fantasia nas meninas que, mesmo inconscientes, podem interferir diretamente do cotidiano de suas vidas, pois, [...] pessoas que abrigam fantasiam dessa espécie desenvolvem uma sensibilidade e uma irritabilidade especial contra quem quer que possam incluir na categoria de ‘pai.’ São facilmente ofendidas por uma pessoa assim e, desse modo (para sua própria tristeza), efetuam a realização da situação imaginada de serem espancadas pelo pai (FREUD, 1986, p. 210). Prates Silva nos esclarece que a sexualidade infantil “deve nos remeter necessariamente à lógica da construção da fantasia. Dessa forma, Freud substitui a compreensão da sexualidade infantil a partir de uma visão desenvolvimentista ou educacional por outra que enfatiza a fantasia” (PRATES SILVA, 2006, p. 56). Para a psicanálise, a angústia da castração faz com que o sujeito se defenda, se inicie na linguagem e construa suas primeiras hipóteses infantis. Porém, o que constrói fica no 35 âmbito do conhecimento, pois é um desdobramento fantasioso do desejo incestuoso. Assim, nenhum saber transmitido aplacará a solidão e a certeza de sua concepção: só há um sexo e a mãe não é castrada. “Esta luta irreal, esta mentira de todos os dias irriga o verde paraíso da infância” (POMMIER, 1998, p. 30). Logo, a amnésia infantil apagará da consciência as angústias advindas do fracasso das teorias sexuais infantis. Este é o fim da fase de latência, dando lugar à neurose infantil adulta. 1.3 Annafreudismo, Kleinismo e os independentes Anna Freud nasceu em Viena, em 1895. Foi a sexta e última filha de Sigmund e Martha Freud. Tornou-se professora primária e seu primeiro contato com o movimento psicanalítico ocorreu em 1913 por meio de Ernest Jones, em uma viagem a Londres. Interessou-se pelo campo da psicanálise com crianças a partir dos incentivos por parte de Freud aos colegas para desenvolverem pesquisas nessa área. Em 1922, apresentou seu primeiro trabalho à Wiener Psychoanalytiche Vereinigung (WPV): ‘Fantasias e devaneios diurnos de uma criança espancada’, e em 1927 publica sua principal obra: ‘O tratamento psicanalítico das crianças.’ Suas concepções seguiam o caminho do pai que, após a análise do pequeno Hans, considerava que a criança era frágil demais para ser submetida ao verdadeiro processo de análise. Defendia o princípio de tratamento sob a responsabilidade da família e dos parentes, e a tutela das instituições educativas. Segundo ela, na criança, havia uma “falta de maturidade do supereu. Nesse campo, a abordagem analítica deveria ser integrada à ação educativa” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 259). Em 1926, afirma que “as crianças não se mostram inclinadas a exercitar a associação livre e, assim sendo, nos obrigam a procurar um substitutivo deste instrumento” (ANNA FREUD, apud. SILVA, 2006 p. 82). Segundo a autora, por serem seres imaturos e dependentes, não são capazes de contar a própria história, por isso o analista deve buscar as informações com os pais. Assim, lidava com os pais da realidade, como fez Freud na análise do pequeno Hans. Sua vocação para educadora fez com que abrisse uma escola especial, que depois passou a ser freqüentada por crianças, filhos de pais simpatizantes à psicanálise e, em 1937, fundou um pensionato para crianças pobres ‘Jacson Nursey’, inspirado no abrigo de Maria 36 Montessori. Criou o ‘Kindersoeminar’, seminário de crianças que formava terapeutas capazes de aplicar os princípios da psicanálise à educação, fomentando a invenção de uma pedagogia psicanalítica. Dessa forma, o analista deveria exercer o duplo papel de analisar e educar. Segundo Roudinesco, a ausência de teorização sobre os laços do filho com a mãe era o ponto fraco da doutrina annafreudiana. “Aos olhos de Anna, só contava a relação com o pai. Daí a prioridade dada à pedagogia do eu, em detrimento da exploração inconsciente” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 259). Entretanto, seu pensamento foi bem aceito nos Estados Unidos, principalmente pela importância que dava aos mecanismos de defesa, o que marcou o surgimento do ‘annafreudismo.’ Ana Freud faleceu em Londres em 1982. Melanie Klein, nascida em Viena em 1882, filha de pai judeu polonês, foi primeiramente analisada por Ferenczi e posteriormente por Karl Abrahan. Relata a presença de uma mãe bastante tirana que, na juventude, foi marcada por uma série de lutos: morte de dois irmãos e desaparecimento do pai doente, quando tinha 18 anos. A psicanalista contribuiu ao alavancar as pesquisas psicanalíticas com crianças, contrapondo-se às teorias de Anna Freud. Em 1919, Klein entrou para a Sociedade de Psicanálise de Budapeste, após se encantar com a apresentação de Freud no V Congresso Internacional Psychoanalytical Association (IPA), que aconteceu nesta cidade, considerada por ele como “o centro do movimento psicanalítico da época” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 431). Na apresentação do seu trabalho, intitulado “Linhas de progresso da terapêutica analítica”, Freud resume o que consiste o método psicanalítico. Aponta para a importância de sua disseminação entre as classes mais pobres e constata que há poucos psicanalistas para atender a tantos espalhados pelo mundo que precisam de ajuda. Diz: Os senhores sabem que as nossas atividades terapêuticas não têm um alcance muito vasto. Somos apenas um pequeno grupo e, mesmo trabalhando muito, cada um pode dedicar-se, num ano, somente a um pequeno número de pacientes. Comparada à enorme quantidade de miséria neurótica que existe no mundo [...] (FREUD, 1986 [1919] p. 180). Assim, Klein passou a dedicar-se ao progresso dessa ciência e em abril de 1924 apresenta suas idéias no VIII congresso da IPA em Saltzburgo, com o apoio de Ernest Jones e seu analista Karl Abrahan. Em dezembro do mesmo ano, a psicanalista vai a Viena para falar sobre seu trabalho na Winer Psychoanalytische Vereinigung (WPV) e confronta-se com Anna 37 Freud. “O debate estava então aberto, e trataria do que devia ser a psicanálise de crianças: uma forma nova e aperfeiçoada de pedagogia (posição definida por Anna Freud) ou a oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento (como queria Melanie Klein)?” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 432). Em 1926, Klein estabeleceu-se em Londres e, apoiada por Jones, tenta, sem êxito o apoio de Freud. Assim, desenvolve a escola inglesa de psicanálise em contraposição com a escola vienense. Defendia que a análise poderia ser aplicada a qualquer criança, enquanto Anna acreditava que essa só era possível quando a neurose da criança se manifestasse com o mal- estar parental. Klein valoriza a relação da criança com a mãe e modifica a teoria freudiana freudiana sobre “o lugar do pai, sobre o complexo de Édipo e sobre a gênese da neurose e da sexualidade numa elucidação da relação arcaica com a mãe, numa evidenciação do ódio primitivo (inveja) próprio da relação de objeto” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 434). A psicanalista acreditava ainda que a transferência na análise de crianças só era possível quando separada da sua vida familiar, com o mínimo de contato do analista com seus pais. Diz: “constitui sempre parte da minha técnica não exercer influência educativa ou moral, mas unicamente o procedimento psicanalítico, o qual, sucintamente, consiste em compreender a mente do paciente e em comunicar-lhe o que se passa nela” (KLEIN, apud PRATES SILVA, 2006 p. 88). Inovou o campocriando a técnica com brinquedos, atribuindo-lhe importância fundamental no tratamento de crianças. Para a autora, o deslocamento das brincadeiras infantis no processo de análise corresponderia à associação livre que o adulto expressa verbalmente. Klein incluiu também no campo da psicanálise o tratamento das psicoses. No atendimento de Dick, uma criança autista de quatro anos, percebeu que ele apresentava sintomas jamais encontrados: “não expressava nenhuma emoção, nenhum apego, e não se interessava pelos brinquedos. [...] A história desse caso se tornaria célebre” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 433). Essa análise atravessou toda a adolescência do menino que consegui redimir muitos de seus sintomas. Devido a sua constituição como um sistema próprio de pensamento, a criação de novos conceitos, efetivação de uma prática original em análise e uma formação didática diferente do freudismo clássico, a teoria de Klein provocou uma ruptura da Brytish Psychoanalytical Society (BPS) em três tendências, somente oficializada em 1946: 38 Annafreudismo, Kleinismo e os independentes. Essa última contou com a colaboração de Donald Woods Winnicott. A psicanalista faleceu em Londres em 1970. Winnicott nasceu em Plymouth, em abril de 1896, terceiro filho,e único menino do Sr. Frederick Winnicott, rico comerciante e político da cidade. Formou-se em pediatria e fundou a psicanálise de crianças na Grã-Bretanha antes da chegada de Melanie Klein em Londres. Não se posicionou nem a favor do annafreudismo, nem do kleinismo. Auxiliou Jones no acolhimento de Klein logo que ela chegou à Inglaterra e sempre expressou grande admiração pela psicanalista, que foi sua supervisora e analista de sua segunda esposa, porém não cedeu a nenhuma das suas exigências. Assim, mantendo-se independente das brigas e cisões ocasionadas pela diferença de posição das colegas, elaborou uma teoria original sobre a relação de objeto, do self (si) e do brincar. Segundo o autor, era o bom funcionamento do laço entre a mãe que permitiria à criança organizar seu eu de maneira sadia e estável, estando atribuída à psicose o fracasso dessa relação. O ambiente que circunda a criança é fundamental para sua estruturação psíquica. Construiu conceitos e desenvolveu técnicas como o da mãe devotada comum, a mãe suficientemente boa, o jogo da espátula ou do rabisco, o falso (self) e o verdadeiro e o objeto transicional. O conceito de objeto transicional despertou interesse na comunidade analítica em geral, inclusive em Lacan. Continha a idéia de que, no psiquismo humano, havia uma área intermediária entre a realidade interna e a externa, ocupada por imagens que tendem a se expandir por todo o campo cultural, e está associado à idéia de mãe suficientemente boa que, segundo o autor, inicia se adaptando a quase todas as necessidade do bebê, e com o passar do tempo e o desenvolvimento do bebê, “adapta-se cada vez menos, de modo gradativo, segundo a crescente capacidade de o bebê lidar com o fracasso dela” (WINNICOTT, apud PRATES SILVA, 2006 p. 93). Segundo Silva (2006), “Winnicott fez questão de diferenciar o ‘objeto transicional’ do ‘objeto interno’ kleiniano, já que o primeiro supõe o contrário do segundo, a idéia de uma indistinção entre interno e externo” (p. 92). Acreditava que a criança poderia ser atendida pelos próprios pais quando esses tivessem condições emocionais de sustentar o tratamento, porém quando tratada pelo psicanalista, deveria ser deixada livre entre os brinquedos, e o ato de brincar poderia ser considerado como associação livre, concordando assim com a tese kleiniana. Contudo, o brincar, para o pediatra deveria ser incentivado sempre, pois demonstrava a capacidade criativa de todo ser humano em qualquer idade. 39 O psicanalista carregava, ainda, uma ausência de ortodoxia aos preceitos da BPS, não respeitando, por exemplo, o tempo de sessão de uma hora. Em determinado momento, chegou a denunciar a hipocrisia das duas chefes da escola inglesa em carta escrita em 1954: [...] é de importância vital para a sociedade [a BPS], que ambas destruam seus grupos em seu aspecto oficial [...] Não tenho razões para pensar que viverei mais tempo que as srs., mas ter de lidar com agrupamentos rígidos, que com a sua, morte se tornariam automaticamente instituições de Estado, é uma perspectiva que me apavora (WINNICOTT, apud ROUDINESCO & PLON, 1998. p. 785). Segundo Roudinesco, Winnicott foi transgressor em sua prática, rigoroso em sua doutrina e sempre apoiou os rebeldes e os dissidentes. Na ocasião de sua morte em 1971, Pontallis escreveu na revista ‘L’Arc e a Nouvelle Revue de Psychanalyse’, a qual lhe prestou homenagem: “Talvez não haja nenhum seguidor. E é melhor assim. Com mestres, a psicanálise pode sobreviver durante algum tempo. Sem juízes nem mestres, ela tem a possibilidade de viver indefinidamente” (PONTALIS, apud ROUDINESCO & PLON, 1998, p. 785). 1.4 A escola francesa Dolto e Mannoni são duas das representantes da psicanálise inspirada na teoria lacaniana. Influenciadas pela teoria da primazia do significante de Lacan, ambas priorizavam os desenhos e a fala da criança e não tanto a utilização de brinquedos. A diferença da escola inglesa está na inclusão dos pais no tratamento de forma bastante ativa. Françoise Dolto considerava que a criança é sujeita de si mesma desde a mais tenra idade. Ao fazer isso, ela as retirava do status social de infantes, etimologicamente os que não têm direito à palavra. Descobriu que uma palavra dirigida a um recém-nascido que ainda não fala pode ter efeitos terapêuticos. Foi por isso que sempre sugeriu aos pais que falassem com a criança de tudo o que lhes dissesse respeito, ‘falar a verdade’, desde o seu nascimento. Porque o pior para um ser humano é o que fica privado de sentido: o que não passou pela linguagem. Acreditava que as crianças são tomadas pelo discurso dos pais e respondem sintomaticamente por esses discurso. Assim, para a autora o trabalho do analista deve 40 caminhar “no sentido de falar com as crianças – ainda que bem pequenas – sobre os aspectos que normalmente ficam na ordem do ‘não-dito’ para que elas possam ter acesso à possibilidade de simbolizar os capítulos censurados da história familiar” (PRATES SILVA, 2006, p. 100). Talvez devido a sua formação em pediatria se dedicou a trabalhos profiláticos em programas de rádio na década de 1970, em Paris, os quais respondia dúvidas dos pais em relação ao relacionamento com seus filhos. Em sua obra descreve o desenvolvimento da criança como uma série de "castrações": umbilical com o nascimento, oral com o desmame, anal quando começa a andar e aprender a usar o banheiro. A cada vez, a criança deve separar-se de um mundo para se abrir a um mundo novo. Cada uma dessas castrações é uma espécie de provação da qual a criança sai mais crescida e humanizada. A responsabilidade dos pais é ajudá-la a superá-las com sucesso. Dolto era a favor do diálogo, sempre, não somente entre os membros da família, mas também com as instâncias jurídicas quando os pais estavam em litígio. Possui um uma opinião curiosa sobre o relacionamento das crianças com os juizes da vara de infância. Diz: “A partir dos oito anos, toda criança deveria poder comunicar-se com o juiz todas as vezes que o desejasse. [...] O nome do juiz de menores deveria ser afixado em todas as escolas” (DOLTO, 1991, p. 130). Maud Mannoni, interlocutora de Dolto e Lacan, também priorizava a palavra ao brinquedo na análise de crianças e incluía a família no tratamento. Considera que o jogo da criança deveria ser tomado como um texto a ser decifrado. Trabalhou com crianças autistas, psicóticas e portadoras de lesões orgânicas. Discutiu a relevância do diagnóstico orgânico da doença já que o que importa para a constituição do sujeito é o lugar que ele ocupa no desejo e na fantasia dos pais. Ressalta
Compartilhar