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A BOA VIDA - Inaki Abalos

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A boa-vida 
Visita guiada às casas da modernidade 
lnaki Ábalos A boa-vida 
Visita guiada às casas da modernidade 
Tradução de Alícia Duarte Penna 
Editorial Gustavo Gili, SL 
Rosselló 87-89, 08029 Barcelona, Espanha. Tel. (+34) 93 322 81 61 
Praceta Notícias da Amadora 4-B, 2700-606 Amadora, Portugal. Tel. 21 491 09 36 
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( A presente edição foi traduzida com o incentivo da Dirección General del 
( Libro, Archivos y Bibliotecas del Ministerio de Educación, Cultura y Deporte 
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de Espana. 
Título original: La buena vida. Visita guiada a /as casas de la modernidad 
Tradução: Alícia Duarte Penna 
Revisão técnica: Lane de Castro 
Projeto gráfico: Estudi Coma 
1a edição. 3a impressão, 2012 
Nenhuma parte desta publicação, incluindo a ilustração da capa, 
pode ser reproduzida, armazenada, ou transmitida, de forma alguma, 
por meio algum, seja este eletrônico, químico, mecânico ou ótico, 
por gravação ou fotocópia, sem a prévia autorização escrita da editora. 
A editora, não se declarando nem implícita, nem expressamente, a respeito 
da exatidão das informações contidas neste livro, não se responsabiliza por 
nenhum. erro ou omissão que ele possa conter. 
© lnãki Ábalos, 2001 
~ Editorial Gustavo Gili, SL, Barcelona, 2003 
Impresso na Espanha 
ISBN: 978-84-252-1931-3 
Índice 
Prefácio 7 
A casa de Zaratustra 13 
Heidegger em seu refúgio: a casa existencialista 37 
A máquina de morar de Jacques Tati: a casa positivista 61 
Picasso em férias: a casa fenomenológica 85 
Warho/ at the Factory: das comunidades 
freudiano-marxistas ao 1oft nova-iorquino 109 
Cabanas, parasitas e nômades: a desconstrução da casa 139 
"A bigger splash": a casa do pragmatismo 165 
Epnogo 197 
Agradecimentos 202 
Referências bibliográficas 203 
Créditos fotográficos 208 
À memória do meu pai 
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A boa-vida estuda a relação entre os modos de viver, as diversas 
correntes do pensamento contemporâneo, e as formas da casa: de 
projetá-la e de habitá-la. E o faz convidando o leitor a visitar sete casas 
fantásticas, criadas no século xx, em sete jornadas ou capítulos. Dessa 
forma, pretende mostrar como a maneira mais difundida de pensar e 
projetar o espaço doméstico, e que continua ainda vigente entre os 
arquitetos, não é mais do que uma materialização de certas idéias 
arquetípicas em torno da casa e dos modos de vida que têm origem 
em uma dentre aquelas correntes, precisamente a que quase todos os 
que têm autoridade para fazê-lo concordam em assinalar como a única 
certamente esgotada, cuja validade se encerrou: a positivista. O que 
este livro busca mostrar, então, é que há outras formas de pensar e de 
viver a casa que implicam técnicas de projeto bastante distintas e que 
resultam em espaços que se afastam, em maior oy menor medida, dos 
que hoje têm prestígio entre muitos profissionais. Não se trata, pois, de 
um manual de arquitetura doméstica: não há, aqui, a pretensão de for-
necer instruções sobre o que fazer. Não tendo uma finalidade prática 
imediata, este livro objetiva, então, ser um alerta que contribua para a 
ampliação da consciência dos vínculos existentes entre os modos de 
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pensar, de ver o mundo, de viver, e as técnicas de projeto, já que estas 
não são neutras, mas, ao contrário, limitam e contêm em si mesmas o 
potencial do nosso trabalho. 
A exposição dessas idéias dá-se através de visitas guiadas a um 
pequeno grupo de habitações, reais ou imaginárias, com as quais se 
compõe um panorama do que o século xx deixou-nos como herança. 
Cada capítulo dedica-se a visitar as idealizações da casa e do âmbito 
da privacidade concebidas por diferentes correntes do pensamento 
contemporâneo. Cada visita não é sequer uma breve estada, mas 
aquele que saiba olhar e tenha fantasia suficiente será capaz de tecer 
suas próprias impressões, de tomar notas, como se diz em linguagem 
( · coloquial. Como freqüentemente ocorre nessas visitas na realidade, 
são bem-vindas a essas páginas todos os que, sem uma formação 
específica em Arquitetura, tenham interesse ou simplesmente curiosi-
\ daae em conhecer esses arquétipos, cuja pretensão é descrever um 
C século de trabalhos em torno do tema a que provavelmente os arqui-
{ tetos têm dedicado mais tempo e energia: a habitação. Procurou-se 
( 8 
utilizar uma linguagem não especializada e, sobretudo: referências que 
pertencem mais ao âmbito da cultura do que ao da disciplina propria-
mente dita. Para essas pessoas, e também para muitos arquitetos, o 
livro não será uma reflexão sobre as técnicas de projeto, mas sobre as 
formas de viver, de apropriar o espaço privado e, por extensão, o 
espaço público: uma reflexão sobre a boa-vida, sobre a cultura domés-
tica contemporânea. 
As visitas a casas, uma prática tão habitual entre arquitetos e estudan-
tes, têm, ainda, uma virtude que as faz particularmente interessantes 
como a forma discursiva a se empregar. Ao realizá-las, os arquitetos, 
em grande medida, livram-se dos preconceitos impostos por sua for-
mação. Ao visitar casas, o arquiteto torna-se usuário, passa a olhar 
através dos olhos do habitante, e assim adota uma atitude mais próxi-
ma à de uma pessoa qualquer, perdendo essa couraça que o domínio 
de uma disciplina cria, vencido pela força mesma da experiência real 
da casa, da domesticidade e da vida que ela contém. E essa é a atitu-
de, a predisposição que aqui se intentou induzir, ou provocar, através 
desta forma literária, na certeza de que só a partir da desprofissionali-
zação do olhar podemos aprender a enxergar com os nossos próprios 
olhos, e a mirar aquilo que realmente desejamos ver. 
Para tanto, é necessário realizar uma redução, uma simplificação, o 
que consiste em dar visibilidade a uma série de arquétipos, definindo-
-os por suas características mais marcantes. Assim como ocorre nas 
caricaturas - e não é outra coisa um arquétipo - que, ao realçarem 
certos traços, distanciam-se da realidade: é esta a distância que 
separa um rosto de sua caricatura. Isto significa que não há uma casa 
existencial ou fenomenológica; a realidade é, ao contrário, mais com-
plexa e cheia de matizes, e exatamente aí reside toda a sua força e a 
sua vitalidade. Não há, por exemplo, um método estritamente prag-
mático: tal pretensão levada ao extremo pode resultar num absurdo 
delirante. Os arquétipos que iremos visitar são casas imaginárias, 
construídas a partir da manipulação de distintas referências. Até 
mesmo quando se considerou inevitável introduzir obras construídas 
e, assim, dotar de alguma consistência as idéias aqui apresentadas, 
estas foram tratadas mais como fragmentos de uma colagem do que 
como exemplos completos. 
9 
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Por isso deve se advertir o leitor de que ele não encontrará nas pági-
nas que se seguem nenhuma das obras primas construídas pelos 
arquitetos modernos: a Vila Savoye, a Casa da Cascata ou a Casa 
Tugendhat nada têm a ver com um arquétipo, com algo que se possa 
fragmentar para um fim didático. É precisamente sua complexidade 
que se deve resgatar se se deseja abordá-las com um mínimo rigor. 
Como já foi dito, são outros os objetivos deste ensaio. 
Deve-se também explicitar que o número de arquétipos, bem como a 
ordem na qual aparecem neste texto não foram guiados por uma lógi-
ca acadêmica, como poderia ser se se optasse, por exemplo, por uma 
evolução cronológica ou de acordo com as dimensões de cada arqué-
tipo. Ao contrário,optou-se por reproduzir a forma com que efetiva-
mente vieram se encadeando e se tornando necessários, um a um, na 
imaginação do autor, de modo que há, sim, uma ordem - cada capítu; 
lo pressupõe os anteriores-, mas esta é tão subjetiva quanto o tom ou 
o ponto de vista com que se descrevem as casas visitadas. Por isso se 
situou a visita à casa positivista - a casa do movimento moderno, con-
tra a qual, em grande medida, os demais modelos foram construídos-
em uma posição extravagante, no terceiro capítulo. Pareceu que, ao se 
condená-la a ser uma a mais dentro de um conjunto, reforçava-se a 
hipótese da qual parte este texto, que é precisamente essa, e, além do 
mais, respeitava-se o modo de exposição escolhido: a sujeição à 
ordem da vontade ou da necessidade com a qual essas casas imagi-
nárias foram construindo a si mesmas. 
Sobre o número delas - sete - , o que implica na exclusão de tantas 
outras formas de pensamento que o século xx produziu, só se pode 
dizer que pareceu adequado: ao fim e ao cabo trata-se de um número 
associado à construção de totalidades, e será muito benéfico que 
outras idéias e atitudes consideradas interessantes recebam desenvol-
vimentos posteriores. 
As casas aqui tipificadas não compõem uma taxionomia cujo terreno 
de aplicação seja restrito exclusivamente ao âmbito da domesticidade. 
Tais arquétipos são também uma forma de pensar as relações entre 
público e privado e, através delas, o âmbito mesmo da cidade. Nesse 
sentido, não há inocência alguma nas ambições que animaram a escri-
ta deste livro, ainda que se tenha pretendido tão apenas tocar neste 
10 
tema, apontar estes vínculos e deixar seu desenvolyimento à imagi-
nação do leitor. De fato, todo o texto tem um ritmo relativamente rápi-
do -ou se se preferir, ligeiro -, na convicção de que os melhores livros 
de arquitetura são aqueles que podemos tornar nossos e desenvolver 
em direções imprevisíveis. 
Esse texto quer, por último, responder às numerosas tentativas recen-
tes de reanimar o debate sobre a habitação baseadas no idealismo 
social e nos métodos de investigação planimétrica próprios da moder-
nidade, tentativas estas em grande medida ingênuas, presas elas 
próprias na jaula ideológica que pretendem superar. A boa-vida quer 
contribuir para dissolver a solidez dessa jaula, como um primeiro gesto 
necessário para se delinear uma perspectiva mais vinculada ao nosso 
tempo, com seus conflitos e idealizações. E pretende fazê-lo abrindo-
-se a outras disciplinas, deixando que a imaginação e a experiência 
façam o seu trabalho para conquistar ao mesmo tempo uma sabedo-
ria relativa e uma posição própria. Alejandro de la Sota, numa longa 
conversa que mantivemos antes de sua morte, fez essa recomendação 
claríssima: para desfrutar da arquitetura, é preciso viajar com a imagi-
nação, é preciso voar com a fantasia. 
Este ensaio - cujos erros podem ser atribuídos exclusivamente ao seu 
autor - pretende, assim, ser um convite a viajar com a fantasia, não 
apenas para celebrar a diversidade das casas do século xx, mas tam-
bém para estimular o prazer de projetar e de habitar intensamente: 
para impulsar o surgimento dessa casa que ainda não existe. 
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1sa cem três pátios, Mies van der Rohe, 1934 (desenho de 1939). Planta e elevação. 
14 
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Poucas casas alcançaram tamanha unanimidade entre os arquitetos 
quanto o conjunto de casas~pátio projetadas por Mies van der Rohe ao 
longo de oito anos, desde i 931 , quando contava quarenta e cinco 
anos, até 1938. Não obstante a admiração que despertam, porém, não 
há ainda hoje uma explicação coerente para as intenções e o sentido 
da pesquisa da qual resultam. Não apenas o silêncio do seu autor, mas 
muitos outros fatores, tai~ como a sua localização genérica, ou mesmo 
a ambigüidade de sua denominação -mediterrânea e historicista -, difi-
cultam a sua análise, ilmifa'ndõ-se~a críticaã exaltar a sua beleza e o 
seu interesse como tipologia residencial, ou a assinalar quer a sua óbvia 
correspondência com alguns princípios espaciais e construtivos do 
Pavilhão de Barcelona, quer a sua relação com outros modelos moder-
nos de casas-pátio. 
Esse vazio interpretativo é, sem dúvida, um estímulo para que o ponto 
de partida da nossa jornada seja a documentação gráfica que delas 
Mies van der Rohe produziu, e que, com certeza, prezava muitíssimo, 
já que um dentre estes desenhos - o que representa um agrupamento 
de várias dessas casas em um tecido urbano indeterminado - sempre 
o acompanhou, preso à parede de seu escritório. Ao revisitarmos estes 
documentos gráficos, ao reproduzirmos com nossa fantasia a expe-
riência de habitar esses espaços, somos tentados a projetá-los junto ao 
seu autor, interiorizando as suas razões e os seus objetivos. O que teria 
Mies van der Rohe pensado? Por que teria iniciado essa longa pes-
quisa sem cliente? O que estaria buscando e a que conclusões teria 
chegado com essa obsessão que produziu, como resultado mais elabo-
rado, a Casa com três pátios de 1934? 
Sabemos que aqueles foram anos complicados para Mies van der Rohe: 
sua misteriosa renúncia, em 1921, à famma que construíra, e o auge do 
nacional-socialismo obrigaram-no a questionar a sua vida particular e pro-
fissional justamente quando alcançara um grande prestígio, e se vira rode-
ado por um círculo de amizades e por referências culturais que lhe possi-
bilitavam consolidar sua criatividade (em especial, Alois Riehl, seu cliente, 
que, além de ser o autor do primeiro livro sobre a figura de Nietzsche- sig-
nificativamente intitulado Friedrich Nietzsche como artista e pensador -, 
introduziu-o em um meio de personalidades de grande influência como 
Werner Jaeger, historiador da cultura, e Heinrich Wólfflin, historiador da 
20 
arte, bem como Hans Richter, Walter Benjamin e Romano Guardini, que 
igualmente conheceria no período). Tanto Fritz Neurn'eyer, como Franz 
Schultze e Francesco Dal Co, em seus respectivos textos sobre Mies van 
- der Rohe, descrevem distintos aspectos desse período em que sua for-
mação intelectual é aperfeiçoada e sistematizada, mencionando 
Nietzsche, o grande pensador antipositivista, e Romano Guardini, teólogo, 
como as suas leituras mais intensas e frutíferas de então. Em 1927, Mies 
van der Rohe observa: "somente através do conhecimento filosófico reve-
. Iam-se a ordem correta de nossas tarefas e o valor e a dignidade de nossa 
existência", explicando assim o. valor que atribui à sua reeducação, um 
processo que em grande parte vai significar um distanciamento do positi-
vismo e, portanto, do espírito que animou todo o projeto moderno. Esse 
distanciamento, essa solitude, marcarão não apenas a sua obra singular, 
mas também a sua própria existência. 
Fixemo-nos na enorme distância que separa 
sua investigação da de seus companheiros 
modernos, aqueles que, como Hugo Haring, 
Hannes Meyer ou Ludwig Hilberseimer, esta-
vam trabalhando intensamente na idéia de 
casas-pátio, simultaneamente, e na mesma 
cidade. Nas investigações desses arquitetos 
o objetivo é obter tipologias de baixo custo, 
com uma boa orientação solar e um aprovei-
tamento racional do terreno, para famnias-tipo, das classes operária ou 
burguesa. A repetição de unidades idênticas é, em todas as propostas, 
um selo recorrente que remete claramente a um desdobramento massi-
vo desse programa. A casa passa a ser um objeto produzido em série, à 
imagem e semelhança do Ford T, o grande paradigma da industriali-
zação. Não encontraremos nada disso em Mies van der Rohe, porém. 
Sua busca é, antes, distante dos interesses do conjuntodos arquitetos 
modernos, em sua investigação sobre o Existenzminimun, parE) a otimi-
zação de tipos estandardizados de habitação. Em seu trabalho sobre as 
casas-pátio, à exceção de um primeiro esboço de casas geminadàs 
(1931), Mies van der Rohe elaborará projetos individualizados, inteira-
mente avessos à idéia de estandardização. De fato, nos raríssimos 
desenhos em que aparece mais de uma habitação, pode-se observar, 
21 
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por que fez essa longa pesquisa? qual o objetivo?
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acima de tudo, o agrupamento de unidades sempre diferentes, voluntá-
ria e manifestamente individualizadas através de mecanismos topológi-
cos- diferentes formas de implantação, diferentes proporções dos terre-
nos, diferentes profundidades e orientação -, ou métricos - maior ou 
menor área do terreno, maior ou menor área da casa -, sendo o sistema 
empregado para materializá-las o único elemento ali constante. 
Tal elemento, contudo, não pode ser reduzido a aspectos puramente 
técnicos, construtivos ou estruturais: não se trata somente do empre- · 
go do vidro e da cobertura plana, nem do uso de muros delimitando 
recintos e colaborando com as estruturas reticuladas na sustentação 
dos painéis de cobertura. O que é importante é a idéia de individualizar 
um "sistema", isto é, de operar com poucas variáveis, ligadas entre si, sistema 
para obter resultados completos e diversos, tanto construtivos, quanto 
espaciais ou estruturais. Trata-se, pois, do sistema em si, e não é difícil 
perceber aqui a influência de Hans Sedlmayr sobre Mies van der Rohe 
-a única que permanecerá intocada-, inclusive na casa mais insólita 
desta série, aquela cujos espaços internos seguem o movimento curvi-
líneo realizado por um automóvel. 
Todas as casas-pátio, porém, serão particularizadas, contrárias à idéia do 
"objeto-tipo" produzido em série: a intenção aqui é, nitidamente, sublinhar, 
antes de tudo, a sua individualidade. Se estudar-
mos as dimensões dessas casas, perceberemos 
mais uma vez que estamos frente a uma investi-
gação distinta daquela do Exístenzmínímun. Suas 
áreas construídas alcançam cerca de 200 a 300 
metros quadrados e, somando-se a dos pátios, 
tanto os principais quanto os mais íntimos, as 
áreas totais aproximam-se dos 1000 metros. Foi 
precisamente esta tipologia de pátios - alguns 
mais públicos, outros mais privativos-, que Pere Joan Ravetllat estudou, 
traçando um paralelismo entre as casas-pátio e as casas pompeianas, 
e a sua organização em torno de átrios e peristilos. 
É evidente, então, o distanciamento desta investigação de uma visão estri-
tamente funcionalista, de um modernismo ortodoxo tal como o de um 
Hannes Meyer, por exemplo. Seja ou não procedente a hipótese da inspi-
ração pompeiana, a imagem é legítima, ao menos para evidenciar esse 
22 
distanciamento, essa diferente aproximação, que implica, por sua vez, em 
diferentes premissas e diferentes objetivos - lembrem'o-nos da fasci-
nação que, desde O nascímento da tragédía (Nietzsche, 1871 ), a revisão 
da cultura grega e helenística exerce sobre muitos intelectuais alemães, 
de O. Spengler até W. Jaeger, cujo Paídeía é publicado em 1933. 
Talvez a pergunta decisiva para entender o ímpeto, a origem dessa 
investigação, e, com isso, a razão de sua longa vitalidade, deva ser 
feita não acerca de suas características físicas e materiais, mas acerca 
de sua finalidade enquanto habitação. Para quem são .essas casas? 
A quem, a que formas de vida estão destinadas? Que valores tradu-
zem-se nesse espaço privado, e também -ainda que seja apenas pela 
sujeito evidência com que este é negado - no espaço público? Quem são os 
seus sujeitos? De que noção de homem partem os projetos dessas 
casas? Que referências pressupõem? 
Há algo que poderá esclarecer o fato de que essas casas-pátio, proje-
tadas sem que houvesse um cliente- como exercícios abstratos, por-
tanto -, não partem de um programa elaborado para a família. Não há 
famílias nestas casas: a família como base do programa foi, aqui, 
rechaçada. Quando Mies van der Rohe, em uma atitude insólita, esco-
lhe trabalhar o mais abstratamente possível com a casa, ele renuncia 
também a pensá-la para a família. Renuncia a pensar na sua casuísc 
tica convencional de programas minuciosos e complexos, nas suas 
codificações pormenorizadas de privacidade e de representatividade, 
em sua implícita rotina de pequenas exigências morais. Ele sabe que, 
se o que se deseja compreender é a natureza da vida moderna, aqui-
lo que lhe é próprio, deve-se renunciar à memória que a casa guarda 
de si mesma, ao lastro da família como a eterna reprodução do 
mesmo. Em nenhuma das casas há mais de um quarto, ou melhor, e 
mais precisamente, mais de uma cama. Mais precisamente, sim, pois 
não existe, sequer, um espaço fechado que possamos denominar 
quarto: ao invés, as casas organizam-se como um meio contínuo que 
se movimenta, dispondo seus móveis e objetos de tal forma que, em 
função do isolamento obtido através destes movimentos, não é difícil 
determinar a particularidade de cada lugar e o seu uso previsível. 
A casa do solteiro é um lugar paradigmático onde se desenvolve um 
modo de habitar organizado topologicamente, com base na continui-
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Minha casa se reproduzindo atravessando famílias domesmo, digamos assim, clã. E suas mudanças operadas. 
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dade e na conexão, e a que corresponde uma estratégia geométrica 
que se traduz no traçado das divisões, na fragmentação e na segre-
gação. O espaço contínuo é, assim, parte do "sistema", e conseqüên-
cia de uma exploração sem precedentes. Como viveria o homem 
moderno se atendesse unicamente à sua individualidade? 
Para avançarmos com maior precisão, porém, centremo-nos, já e defi-
nitivamente, naquela que é sem dúvida a casa mais elaborada de toda 
a série, o seu paradigma: a Casa com três pátios de 1934. Não deve-
mos, contudo, esquecer que essa casa não substitui as anteriores e as 
posteriores, já que a diversidade é a lei imposta à investigação de Mies 
van der Rohe frente à tirania homogeneizadora do objeto-tipo. Ainda 
assim, é nela que encontramos o produto mais bem acabado da casuís-
tica das casas-pátio. Contemplemo-la como se fosse a primeira vez que 
a víssemos, com os mesmos olhos com que olhamos qualquer outra 
casa. Comprovaremos, assim, como, apesar da já mencionada conti-
nuidade, os diferentes espaços de um programa normal ali se distin-
guem claramente. Sua distribuição é relativamente funcional, os espa-
ços são adequados, a cama tem dimensões suficientemente generosas: 
poderia se tratar da casa de um casal jovem ou sem filhos. Mas sabe-
mos que não, ou que apenas provisoriamente sim: a casa não foi pre-
vista nem sequer para o mínimo núcleo da família tradicional; na ver-
dade, não foi prevista para família alguma, ainda que embrionária. 
Se contemplamos o conjunto, com seus muros altos e seus extensos 
espaços, quase decadentes em sua grandiosidade, e imaginamos a for-
ma de habitá-lo, aos poucos reconhecemos que ele se destina a um 
único habitante. E o reconhecemos, entre outras razões, porque os 
muros não estão aí para delimitar o lote, nem para sustentar as empe-
nas da casa, nem tampouco, ou muito menos, para propiciar esse 
mecanismo de controle ambiental - iluminação, temperatura, umida-
de, ventilação- que é originariamente o pátio. Os muros estão aí para 
propiciar privacidade, para ocultar quem habita, para permitir que, 
dentro da casa, transcorra uma vida profundamente livre, à margem 
de toda moral ou tradição, à margem de toda vigilânciasocial ou poli-
cial- à margem, finalmente, desta insuportável visibilidade que a moral 
calvinista impõe a seus companheiros modernos e à sua arquitetura 
positivista. 
24 
Os muros estão aí porque o sujeito - permitamo-nos pensar que se 
trata de um homem: não é fácil imaginar que o misógino Mies van der 
Rohe pensasse em uma mulher como habitante de suas casas-pátio -
deseja fugir da publicidade, deseja isolar-se, e exercer sua individuali-
dade à revelia de qualquer comentário moral. Quer negar a possibilida-
de mesma desse comentário, quer afirmar-se, e asseverar a casa como 
o império do eu. Não é difícil distinguir, nesta decisão radical, um eco 
super-homem do "super-homem" nietzschiano, essa figura que deve reconstruir sua 
posição no mundo, esquecendo toda a sujeição a ele imposta, a tra-
dição judaico-cristã e o pensamento metafísico inaugurado por Platão. 
Um sujeito como o que Mies van der Rohe parece imaginar precisa de 
uma condição inicial de isolamento, da possibilidade de autocons-
trução à margem dos outros; deve ser capaz de se apropriar do 
mundo, de com ele manter relações baseadas em uma nova lucidez, 
instintiva e em expansão, vinculada a uma concepção revolucionária do 
tempo, a um presente contínuo de deslumbrante intensidade. 
Pensemos, por um momento, em qual teria sido o impacto. dessa ima-
gem em um Mies van der Rohe ávido por consolidar sua formação atra-
vés das leituras de Nietzsche e de seu círculo de amigos intelectuais, e 
em como esta idéia refletiria sua própria posição no mundo, sua própria 
luta pela construção plena de sua individualidade. Os muros que prote-
gem esse sujeito desejoso de isolamento aparecem, assim, estreitamen-
te ligados ao pensamento nietzschiano, ao super-homem, a Zaratustra. 
Em Nietzsche, a morte de deus e da metafísica ocidental marcam o 
princípio da idéia da afirmação, da vontade de poder, que têm no 
eterno retorno "super-homem" e na teoria do "eterno retorno" sua conclusão proposi-
tiva. Uma afirmação que deve se resolver sem leis, nem princípios 
alheios às forças vitais, em um árduo processo de autoconstrução que 
culmina com a aquisição de um espírito novo, violentamente avesso a 
toda a tradição transcendente: uma aristocrática "moral de senhores" 
frente à "moral de escravos" propugnada pela moral e pela filosofia. 
O tempo deste sujeito não é mais o escatológico e o finalista, próprios da 
tradição judaico-cristã, mas o tempo cíclico dionisíaco, o fiuir entre con-
trários de Heráclito. A idéia do eterno retorno parte da suposição de que 
a vida é reversível como uma ampulheta. Ainda que angustiante a princí-
pio, esta hipótese é, para Nietzsche, uma forma de instalar o homem no 
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Osmuros!!!
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gozo, como se tal situação o impulsionasse a compreender a intensida-
de de cada instante, exigindo-lhe um tal compromisso com o presente, 
que lhe fosse sempre desejável repetir a sua experiência .. Trata-se, então, 
da recuperação da fugacidade do devir frente à estabilidade do ser, da 
afirmação da necessidade do acaso, do tempo como devir, escamotea-
da desde Platão. O eterno retorno é, em Nietzsche, a recuperação, pelo 
homem, do perecível e do mutável, uma recuperação do presente frente 
à tirania do futuro divino ou do passado tradicional, uma volta à vida e às 
paixões contrária à domesticação da moral dos escravos. 
Observemos agora a casa projetada por Mies van der Rohe, em sua 
totalidade, além dos limites definidos por suas galerias envidraçadas. · 
Diante de nós abre-se um grande pátio ajardinado que é tanto uma 
extensão da casa, quanto uma representação da natureza. Isolado por 
muros muito altos, o que nele existe já não é a natureza em estado puro, 
mas uma representação artificial do mundo. Neste espaço, podemos 
distinguir somente algumas árvores frondosas, as quais realçam a hori-
zontalidade e a uniformidade da pradaria atravessada por um caminho 
pavimentado, que transcorre próximo e paralelamente a um dos muros 
e dá acesso à casa. O que vê este habitante? Por que elegeu esta forma 
de se relacionar com a natureza e, através dela, com o mundo? 
Inicialmente, trata-se de uma relação contemplativa: não há aí lugar para 
a horta, nem para o cultivo de fiores, nem para objetos de uso doméstico, 
fontes ou piscinas, enfim, para todo o conjunto de implementas com que 
o homem, a famnia-tipo moderna, ameaça um contato ativo com o meio 
natural. Se pudéssemos permanecer eterna-
mente sentados, contemplando essa paisagem de 
uma das poltronas Barcelona dispostas no interior 
da casa, e acelerássemos esta imagem como os 
fotogramas de um filme, assistiríamos a um espe-
táculo revelador: o da eterna sucessão do mes-
mo, o do caráter circular do tempo natural frente à 
linearidade do tempo histórico. Ao ciclo do dia 
sucede o da noite, à pradaria coberta pela neve 
sucede a chuva e a fiorescência das árvores, 
depois a queda das folhas, e assim sucessivamente, num espetáculo ite-
rativo, preparado por esta cenografia em que o céu e o jardim - a nature-
26 
natureza 
za- aparecem como uma metáfora do tempo cíclico, e a grande fachada 
envidraçada, como um excepcional diorama para a s~a contemplação. 
Qualquer outro possível sentido terá sido subtraído nessa visão. 
Como no eterno retorno nietzschiano, o isolamento radical. deste espaço 
e de suas galerias envidraçadas remetem-nos mais uma vez a esse céle-
bre aforismo - Arquitetura para os que buscam o Conhecimento - que 
Nietzsche escreveu em A Gaia Ciência: "Chegará um dia - quiçá muito 
breve - em que se reconhecerá o que falta a nossas grandes cidades: 
lugares silenciosos, vastos e espaçosos, para a meditação. Lugares com 
largas galerias cobertas para os dias de chuva e de sol, aos quais não 
atingirá o ruído dos carros nem o pregão dos mercadores, e onde uma 
etiqueta mais sutil proibirá até ao sacerdote de orar em voz alta: edifícios 
e construções que, em seu conjunto, expressarão o que há de sublime 
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na meditação e no isolamento do mundo. Terão passado os tempos em ( 
que o monopólio da reflexão pertencia à igreja, em que a vida contem- • ( 
plativa era unicamente a vida religiosa. Tudo o que a igreja tem edificado ( 
expressa este pensamento, e eu não considero que suas construções 
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nos bastem, ainda que se subtraia delas sua finalidade religiosa. Essas 
construções falam uma linguagem demasiado patética e demasiado rígi- (. 
da, para que nós, ímpios, possamos meditar ali. Queremos traduzir a nós C. · 
mesmos em pedras e plantas, queremos passear por nós mesmos z 
enquanto circulamos por essas galerias e esses jardins." ( 
Nada poderia explicar de forma mais esclarecedora o trabalho de Mies t 
van der Rohe nas casas-pátio, o tema de sua prolongada investigação, do 
que essas galerias envidraçadas, silenciosas e espaçosas, onde podemos \ 
passear por nós mesmos, identificados com o tempo circular através da 
contemplação do ciclo natural. Esta citação corrobora a distância que 
Mies van der Rohe estabeleceu do positivismo ideológico da moderni-
dade e de suas metodologias operativas; a casa-pátio é um sofisticado 
mecanismo - uma máquina? - para esquecer a modernidade triunfante, 
a simplicidade do seu positivismo, e penetrar no abismo do indivíduo 
nietzschiano, aquele super-homem que constrói a sua vida como uma 
obra de arte, tomando como base a pura afirmação de seu eu. Mas não 
é só isso, se é que se pode utilizar aqui o vocábulo "só" com proprie-
dade. Esta investigação é, sobretudo, uma tentativa de se criar um méto-
do de projeto completo a partir de correntes do pensamento heterodoxo 
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Nietzsche: o que
 falta às nossas 
grandes cidades
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que, ensaiadas pelos expressionistas, pareciam definitivamente arrasadas 
pelo poder normativo e organizador dos arquitetos mais ortodoxos, mais 
partidários do progresso técnico-científico. Uma técnica de projeto que se 
desenvolve a partir desses percursos pelas idéias de espaço e de cidade, 
pela materialidade da cultura objetai e ornamental, e que contém, por-
tanto, um programa explícito de trabalho - um sistema de projeto -, base-
ado no sujeito nietzschiano e no seu tempo rememorativo e circular. 
Ao falarmos do sujeito miesiano, afirmávamos que ele foge da publici-
dade e deseja o isolamento. Ao dizermos "foge" estamos assinalando 
algo decisivo: ele não foge do nada, nem do bosque; ele foge da cida-
de, de urna cidade que está aí fora, próxima, contígua; ele foge do ruído cidade 
dos carros e do pregão dos mercadores. A casa, e seus muros, por-
tanto, não são apenas uma representação cosmológica, mas uma 
situação precisa: uma casa urbana. Mais ainda, a casa de um mun-
dano, de um cosmopolita. Esses muros denunciam não só o homem 
urbano que habita em seu interior, mas também a cidade buliçosa, aza-
famada, a metrópole que está detrás deles. 
Esta casa, a Casa com três pátios, não seria nunca uma casa no campo, 
fora da cidade. Basta aferir quão ridículo seria imaginá-la habitada por 
alguém calçado com sapatos rústicos. Sem dúvida, o sujeito rniesiano usa 
magníficos sapatos de couro primorosamente feitos à mão, os sapatos de 
alguém acostumado a andar por calçadas bem pavimentadas, a passear, 
a deixar a sua casa para relacionar-se nos cafés, nos teatros, nos merca-
dos e bulevares da cidade. Como o f!âneur baudelairiano, ou o b!asé de 
Georg Simmel, é um homem com vida social intensa. Como o super-
-homem de Nietzsche, não se retira do mundo como um anacoreta: seu 
ascetismo integra um processo de autoconstrução que resulta em um 
imenso gozo, o gozo de se libertar das amarras impostas pela moral, 
um gozo expansivo e contagioso que leva a uma intensa fruição do 
mundo, a um desdobramento do espírito criativo sobre os demais. 
Essa mecânica de isolamento e expansão é a base privilegiada do pro-
jeto miesiano: por isso não é difícil compreender que quem habita 
aquela casa não é nenhum defensor da vida natural, do alheamento da 
cidade, mas alguém que necessita estar próximo à ágora, aos novos 
espaços públicos da cidade burguesa. Quem a habita necessita de 
grandes espaços para o cultivo da fi/ia, para as festas e as celebrações 
28 
faustuosas, para desenvolver relações mundanas a~ mesmo tempo 
protegidas da indiscrição e abertas ao imprevisto. 
materialidade Examinemos agora os materiais que Mies van der Rohe usa nas casas-
-pátio. Trata-se de um procedimento insólito no contexto da moderni-
dade, em que se articulam, de forma coerente, os materiais mais 
avançados e os indiscutivelmente tradicionais, procedimento este, aliás, 
caràcterístico de sua obra. Fixemo-nos na lareira, em sua matéria e em 
sua posição na casa. Em primeiro lugar, deve se assinalar que a lareira 
não foi eliminada em favor da calefação, mas, ao contrário, aparece sis-
tematicamente nos desenhos, revelando, assim, sua condição de ele-
mento decisivo no "sistema" de projeto. Não obstante, nunca ocupa um 
lugar central, mas se desloca até se confundir com uma das paredes, 
ambas - lareira e parede - construídas em tijolos. Dessa forma, a larei-
ra passa a ser um acidente na paréd:: a sua verticalidade é quase eli-
minada, como se voluntariamente se evitasse toda referência possível a 
um espaço central e vertical, a qualquer tipo de representação simbó-
lica da idéia de transcendência. Relegada ao perímetro, atua como um 
móvel a mais, como um pretexto para a conversação, mas também 
como uma referência tradicional do âmbito doméstico à qual não se 
renuncia. Lareiras e paredes de tijolo manifestam vínculos com a mate-
rialidade e a evocação do passado que não podem passar desaperce-
bidos, nem deixados à margem como se não fossem relevantes. É, de 
fato, consubstanciai à casa a evocação dessas ligações com um tempo 
que pode voltar-se sobre si mesmo, contraditórias à linearidade do 
tempo moderno; ligações que nos remetem a Nietzsche novamente, e 
não, como se tem pretendido muitas vezes, a um rigor tipológico. 
Não pode haver nessas casas uma metodologia próxima à tipológica, 
nem em sua versão iluminista, nem naquela de raiz estruturalista e con-
textualista: o pátio é alheio a todo condicionante geográfico, e nada 
mais distante do método de Mies van der Rohe, da sua forma de con-
ceber e de projetar, do que essa busca de generalidade através do tipo 
ou de especificidade através do contexto, do que essa busca de um 
fundamento que se possa objetivar. Há ativação da memória, do 
tempo, por uma eleição individual de poucos e escolhidos parâmetros. 
Há subjetividade, afinidade, afirmação do particular e dessa diferença 
que implica na possibilidade da eleição. 
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O super-homem, essa forma de ser e de pensar que Nietzsche vincula 
genealogicamente ao sofista, conhece o poder da convenção, a histori-
cidade de sua própria figura: ele é o que extraiu o fundamento das leis da 
po/is e da natureza e afirmou sua pertinência ao mundo do nomos, 
da convenção, do pacto entre os homens. As tradições não são man-
datos, mas convenções cuja escolha é necessária à construção do eu, 
tal como um repertório de referências em que se mirar. Mas estas não 
são transcendentes, nem imutáveis, não ligam o homem à divindade, 
nem a verdade alguma, nem sequer a obrigações sociais. Colaboram, 
sim, para uma criação individual verossímil. 
Assim, não é por acaso que essas paredes e essa lareira são feitas de 
tijolos, esse piso, em pedra, e outros elementos- os mais próximos do 
corpo-, em couro natural: nesses momentos o "sistema" negocia com a 
materialidade do passado, fazendo com que ela reapareça no presente. 
Os materiais que Mies van der Rohe usa não são exclusivamente aque-
les próprios da época industrial- o aço, o vidro, o concreto-, mas estes 
mesmos relacionados ao tijolo, à pedra, ao couro, de tal forma que o que 
se estabelece entre eles é um diálogo. Ainda que a construção moderna 
- estrutura, vidro, cobertura plana - permita-lhe solucionar seu espaço 
contínuo e horizontal, Mies van der Rohe elege usar, nos dois gestos 
essenciais de fundar e de delimitar a casa, no piso e nos muros, a pedra 
e o tijolo, materiais que remetem a uma genealogia específica- a tradição 
hipodâmica e pompeiana -, mas que se referem também às tradições 
locais. Assim, é fácil compreender porque esses muros não são de con-
creto, ainda que o arquiteto já houvesse experimentado ele mesmo esse 
material. É um gesto preciso de ativação da memória, de subjetivação 
da modernidade, de afirmação da condição temporal da habitação, da 
necessidade de tal condição na estruturação do eu. Não se pode esque-
cer, ainda nesse sentido, as conexões que tal concepção estabelece 
com a idéia de cidade a que Mies van der Rohe remete. Ao se sentir con-
fortável em projetar em meios urbanos históricos, ao demonstrar um 
baixo grau de ansiedade pela aparente desarticulação estética de muitos 
de seus primeiros projetos, Mies van der Rohe revela algo verdadeira-
mente distinto do universo ordenado, unitário e coerente de Le Corbusier, 
pondo em evidência a sua afinidade maior com a idéia da cidade como 
uma sedimentação de camadas, o seu gosto perceptível, inclusive nas 
técnicas de representação por fotomontagens, pelo contraste e pela con-vivência com a memória da cidade. · 
imanência Mas tão importante quanto essa ativação do tempo é a sua imanência, 
a sua não transcendência, a eliminação de toda a verticalidade, e não 
apenas a compositiva. Anteriormente mencionamos a horizontalidade 
como conseqüência de um espírito mundano, que se refletiria não só 
na continuidade e na fluidez do espaço, mas também na negação da 
iluminação zenital, tão expressamente rechaçada em toda a obra de 
Mies van der Rohe, através da desvinculação de sua arquitetura 
de toda idéia de uma luminosidade densa, direcional, concentrada. 
Encontramo-nos, de novo, instalados em um mundo de perfil nitidamen-
horizontalidade te nietzschiano: a horizontalidade radical evoca a supressão mesma da 
divindade, de qualquer vínculo vertical; é a expressão do gozo da vida em 
si mesma, uma afirmação do sujeito como protagonista, devendo este 
expandir-se pela casa, definir seu ambiente a ponto de polarizar as suas 
técnicas construtivas, a ponto de apoderar-se do "sistema". 
Para tanto, Mies van der Rohe utilizará diversas estratégias. Uma será a 
reflexão da luz exploração da reflexão da luz para obter pisos e tetos com idêntica 
intensidade luminosa, tal como se pode observar no Pavilhão de 
Barcelona. Os distintos materiais do piso e do teto permitem a obtenção 
de uma tonalidade equivalente, um equilíbrio ótico - realçado nas foto-
grafias em preto e branco -, totalmente contrário à idéia da iluminação 
zenital associada aos átrios históricos, e, sobretudo, intencionalmente 
avesso à naturalidade com que a arquitetura clássica utilizava a luz 
como elemento de projeto. Mediante a reflexibilidade, Mies van der Rohe 
obtém uma luz flutuante, imaterial, que rompe com a mais óbvia dentre 
as verticalidades: a dos raios do sol. 
Uma outra estratégia, complementar, estará ligada à percepção do 
espaço e a recursos puramente compositivos. Como já observado por 
simetria horizontal Robin Evans, Mies van der Rohe substitui a simetria vertical clássica 
por uma outra, horizontal, que induz o olhar e o seu movimento a um novo 
plano de simetria. Para isso, excepcionalmente, fixará a altura do pé-direi-
to em uma dimensão próxima a 3,20 m, situando o ponto de vista em um 
plano simétrico em relação ao piso e ao teto, num elementar, mas sutilís-
simo, mecanismo compositivo que determinará uma completa reorgani-
zação visual e espacial. Tudo deverá ser planejado de acordo com este 
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da arquitetura
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mecanismo antigravitacional, que transforma o tradicional sujeito passivo 
em um sujeito ativo, permitindo-lhe construir, em sua mobilidade, através 
da experiência fenomênica, as simetrias que desde há muito organiza-
vam-se verticalmente como efeito de forças cósmicas ou transcendentes. 
Por último, Mies van der Rohe desenvolverá uma estratégia puramente 
material. À coreográfica ordenação de rebaixas, cornijas e emolduramen-
tos com que a ordem clássica celebra a justaposição de materiais e car-
gas, oporá um emolduramento invertido - a junta refundida - como o 
recurso que, associado aos anteriores, fará levitar a matéria, assim trans-
formada em algo possuidor de massa, mas não de peso. Seus muros em 
pedra ou em tijolos passarão a ser puramente uma experiência de matéria matéria em levitação · 
em levitação: não suportam cargas, nem têm peso próprio. Suas qualida-
des passarão, assim, do tectônico ao háptico: eles estão aí pela beleza do 
seu desenho, da sua caligrafia, pelá r:nemória que ativam. 
Encontramos, assim, três formas de horizontalidade. Na organização 
dos materiais, em que se substitui a junta clássica por seu inverso, o 
refundido, a linha de sombra. Na iluminação, em que, através de uma 
compensação de reflexões, obtém-se uma luminosidadeuniformemen-
te distribuída. Na geometria dos espaços, em que se trans-
forma a tradicional simetria vertical em uma simetria hori-
zontal, produzida a partir da equivalência da altura dos 
espaços ao dobro da altura dos olhos. Tudo isso está pre-
sente nos desenhos em perspectiva das casas-pátio, nos 
quais o plano de fuga é o plano da simetria, assim como 
nas fotografias do Pavilhão de Barcelona, sempre com 
fugas e tonalidades simétricas nos pisos e tetos, e também 
no caráter antigravitacional de seus materiais justapostos. 
A horizontalidade manifesta-se pela negação total e sistemática de qual-
quer ordenamento vertical. Cria uma imagem não de leveza, mas de indi-
ferença à gravidade, responsável, junto à iluminação e à simetria horizon-
tal, por este efeito emocional contraditório provocado em quem se move 
pelo Pavilhão de Barcelona. O efeito de encontrar-se em um templo, em 
um lugar de recolhimento, associado, porém, à convicção de que o que tal 
templo celebra não é divindade alguma, mas, sim, o advento do homem 
como protagonista, como agente, como sujeito. Algo que Nietzsche soube 
enunciar, mas somente Mies van der Rohe soube materializar. 
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Podemos agora perambular pelo interior da Casa c~m três pátios, e 
cultura objetai · dirigir nossa atenção à cultura objetai e ornamental empregada para 
torná-los habitáveis. Neles reina um vazio imponente, mas não abso-
luto: algumas obras de arte e poucos móveis convivem, quase sem 
solução de continuidade, com os elementos mais arquitetônicos. 
O mobiliário não se destina ao conforto convencional, nem à especiali-
zação funcional : adquire, por si, um valor artístico e arquitetônico, 
transformando-se em um outro elemento-chave do "sistema". Por isso, 
ainda que sejam poucos os móveis, é evidente que Mies van der Rohe 
não os negligencia. Mais do que isso, desenha-os com precisão. E não 
só os desenha, mas também os concebe com precisão. Assim, pro-
jeta alguns móveis, aproveitando distintas circunstâncias, e deixa de 
fazê-lo quando entende que o programa já está completo: o mundano 
não necessita de muitos pertences, nem os quer. Contudo, sabe que 
em sua casa, no espaço de sua intimidade, necessita desses poucos 
e sábios objetos, desse número reduzido de elementos eleitos que, em 
sua beleza e perfeição, acolhem-no e o ajudam a desenvolver seu pro-
jeto próprio de vida. 
Basta que nos perguntemos acerca da postura que a poltrona Barcelona 
requer, para entendermos em quem se pensava ao desenhá-la, e porque 
ela se encontra nas áreas de reunião, sempre diversas, que flutuam 
naqueles salões: é a postura do bom proseador, o justo equilíbrio entre o 
que a convenção impõe e a comodidade pede, um prodígio de elegân-
cia e mundanalidade. Ainda assim, não foi só a idéia dessa postura 
aristocrática o que prevaleceu na hora de resolver aquela peça. Há nela 
também uma aspiração de distanciar-se de uma submissão literal aos 
padrões ergonômicos funcionalistas, no que se refere não apenas à qua-
lidade que materializam, mas também aos recursos compositivos empre-
gados para tanto. Nas medidas que contêm o volume desta poltrona -
altura= 760 mm, largura= 750 mm, profundidade= 754 mm -,um cubo 
levissimamente retificado, portanto, podemos apreciar de novo unna 
distância - uma recusa, se preferirmos - da banalização positivista do 
conforto. As proporções da poltrona Barcelona são determinadas pela 
satisfação de uma outra qualidade, a aspiração à beleza e à perfeição, o 
que iguala esta peça às esplêndidas obras de arte, também poucas e 
escolhidas, que acompanham a solitude do mundano e mobíliam, sem, 
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no entanto, aquietar, a sua consciência. O móvel alcançou, em Mies van 
der Rohe, um novo estatuto: o· daquilo que é concebido, disposto e 
fruído como uma obra de arte. 
O conforto passou, de sua convencional formulação moderna- o fun-
cional - , ou da sobrecarregada imagem dointerior burguês, a ser soli-
citado como algo inerente à condição artística e à busca da perfeição. 
Um conforto espiritual, portanto, destinado a satisfazer tão-somente conforto espiritual 
àqueles que entendem sua própria existência como a construção de 
uma obra de arte, àqueles que, como Nietzsche - assim como expres-
so no título da obra de Riehl - reúnem em si mesmos as condições de 
pensador e de artista. 
Talvez já seja conveniente desvelá-lo: através desta incursão pela Casa 
com três pátios descobrimos a forma de conceber um programa com-
pleto do habitar, quase um método de projeto com o que, partindo de 
um novo sujeito, pode-se construir um "sistema". Um sistema cujos 
momentos essenciais são bem distintos dos tópicos mais conhecidos 
e divulgados - estrutura reticular, vidro, cobertura plana ... Sua relação 
com a cidade e com a natureza, sua forma de conceber o espaço e as 
técnicas para torná-lo presente, sua ternporalidade, sua materialidade, 
sua cultura objetai compõem um cúmulo de momentos decisivos nos 
quais também se resolve este sistema. Mas não havíamos tomado 
consciência ainda de até que ponto, neste complexo programa de 
construção do sujeito e da casa, Mies van der Rohe estaria realizando 
um auto-retrato, oferecendo a sua própria pessoa como projeto. 
Somente nos damos conta disso ao olhar as fotografias que o mos-
tram ora visitando as obras da Casa Tugendhat, ora sozinho em seu 
apartamento. Compreendemos, aí, a razão mesma de sua opção pela 
solitude, de seu apartamento berlinense, da importância daqueles pou-
cos livros que levou consigo aos Estados Unidos, da lareira, do quadro 
de Klee, da escultura de Picasso, do vazio, do mínimo com o que se 
fez acompanhar em sua vida: é ele mesmo que se constrói através 
deste projeto. E o faz renunciando a toda a moralidade moderna, a 
toda a convenção de seus programas e princípios, a qualquer pater-
nalismo social, entregando-se, plenamente e em suas limitações, à 
obra de arquitetura, atentando para a dureza sem mediações dessa 
entrega, um autêntico exercício de projeção do eu no espaço privado. 
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Essa prática, porém, não se esgota em absoluto no jogo .da projeção, em 
seus aspectos autobiográficos. O que há aí de verdadeiramente revela-
método dor é a fecundidade do método, as possibilidades, nesse projeto, de uma 
reubiquação dos objetivos da casa. O interesse, para uma teoria do pro-
jeto, da reflexão sobre o sujeito- produto da projeção pessoal, mas tam-
bém das elaborações próprias da filosofia antropológica -, de um ques-
tionamento da dicotomia público/privado em relação às práticas sociais 
desse sujeito, de um enfrentamento dos vínculos do espaço com o 
tempo, com a memória, com a subjetividade e a técnica- com os sabe-
res positivos, com a cultura material de uma época. 
Se queremos modificar nossa forma de pensar e de projetar casas, 
critérios parece imprescindível modificar, em primeiro lugar, os critérios taxionô-
taxionômicos micos existentes, procedendo a uma distinta ordenação da experiên" 
cia, priorizando os aspectos relativos à construçãO d_os diferentes sujei-
tos com os quais se relaciona o espaço privado - e quiçá o espaço 
público-, permitindo uma redescrição da casa, do espaço privado, dos 
múltiplos e confusos ideais que se associam a ele, identificando cate-
gorias, léxicos e saberes operativos. Durante esse tempo em que "habi-
tamos" esta casa, pudemos observar como a filiação convencional à 
ortodoxia moderna deu lugar a uma outra, inteiramente alheia ao posi-
tivismo moderno. Nietzsche habita a casa tanto quanto o próprio Mies 
van der Rohe, ambos encarnados em Zaratustra, e sua presença única 
terá transformado completamente os modos de pensá-la, de construí-
-la, e de habitá-la. "Somente através do conhecimento filosófico reve-
lam-se a ordem correta de nossas tarefas e o valor e a dignidade de 
nossa existência", escreve Mies van der Rohe, neste estilo aforístico 
-devedor do de Nietzsche- que caracteriza seus breves artigos. Com 
isso, Mies van der Rohe opõe-se frontalmente ao método científico 
positivista - concebido ele mesmo como uma "superação" histórica da 
filosofia- e devolve à subjetividade, ao pensamento filosófico, um papel 
crucial no projeto da casa, um papel que o século, em seu transcurso 
árduo e imprevisível, veio implacavelmente resgatando, fazendo surgir 
e emergir formas de pensar e de habitar a casa que têm investido dire-
tamente contra o objetivismo cientificista moderno. 
As casas que visitaremos neste texto - a casa fenomenológica, a casa 
do pragmatismo e a do pós-humanismo, a do freudiano-marxismo con-
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testador e tantas outras experiências a que, com maior ou menor acui-
dade, pudemos assistir - têm constituído a si mesmas como uma crí-
tica ao desdém positivista pela subjetividade como matéria criativa, 
manifestando, assim, seu débito manifesto para com Nietzsche, e tam-
bém Mies van der Rohe. Este, com certeza, soube detectar as carên-
cias do projeto moderno, bem como os modos através dos quais a 
arquitetura deveria pensar a si mesma se quisesse escapar ao restri-
tivo marco que a ela se impôs. Pouco, ou muito pouco, de seu esforço 
foi compreendido até recentemente por uma crítica cegada pelo feitiço 
de um momento internacional aparentemente unidirecional, uma crítica 
apanhada ela mesma no universo ideológico que pretendia historiar e, 
portanto, incapaz de alcançar um distanciamento objetivo mínimo. 
As recentes revisões da figura de Mies van der Rohe destacam quan-
ta riqueza deste século tem sido velada e desfigurada por esta miopia 
crítica e historiográfica. O mesmo encontraremos se nos remetermos à 
maneira com que a casa tem sido estudada na modernidade, aos 
manuais modernos sobre a casa, à maneira com que gerações inteiras 
de arquitetos têm sido treinadas nessa ficção de ter que resolver uns 
problemas objetivos. 
O fato de, neste texto, visitarmos inicialmente a casa-pátio de Mies van 
der Rohe não é um mero acidente, mas um ponto de partida para 
aprendermos a esquecer essa concepção da casa, adotando, em seu 
lugar, uma outra predisposição. Seu testemunho permitir-nos-á identi-
ficar os momentos-chave, as perguntas que deveremos nos fazer se 
quisermos avançar de maneira proveitosa. É através dele que se reve-
lou útil esta taxionomia, uma classificação que indaga o pensamento 
contemporâneo sobre suas idealizações da casa e reduz a casa posi-
tivista a uma entre muitas opções, enquadrada dentro da pluralidade 
radical do século. 
Heidegger em seu refúgio: a casa exist~ncialista 
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A cabana de Heidegger em Todtnauberg, na Floresta Negra. 
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"Sobre a vertente de um extenso vale rodeado por montanhas, na 
porção sul da Floresta Negra, a uma altitude de 1150 metros, ergue-se 
uma pequena cabana de esqui. Suas medidas em planta são 6 por 7 
metros. O telhado, baixo e inclinado, cobre três cômodos: a cozinha, 
que também é sala de estar, um quarto e um estúdio. Salpicados ao 
longo da estreita base do vale e sobre a encosta íngreme, dispõem-se 
as casas dos lavradores, com suas grandes cobertas suspensas. Mais 
acima da encosta, os pastos e os prados dão lugar aos bosques, com 
seus abetos escuros - valorosos e alinhados. E, acima de todas as 
coisas ali, abre-se um céu claro de verão, e, em sua radiante expan-
são, dois falcões planam descrevendo amplos círculos." Com este 
parágrafo, Heidegger inicia seu texto "Porque vivo nas províncias", uma 
argumentação contra a vida inautêntica e desenraizada das cidades, 
escritasemanas depois de sua desvinculação do partido nazista, e, 
portanto, não tão inocente quanto o seu tom- mais próprio de Heidi, do 
que de Heidegger - incita-nos a pensar. Será esta pequena cabana a 
casa que visitaremos agora, na certeza de que seu atento estudo não 
será insubstancial. 
Habitar, para Heidegger, não é um ato simples, nem insubstancial. Seu 
pensamento existencial está estreitamente vinculado, especialmente a 
partir da "Carta sobre o humanismo", escrita em 1947, ao tema meta-
fórico da casa, que se apodera de seu próprio sistema filosófico até 
com ele identificar-se: "A linguagem é a casa do Ser. Em seu lugar, o 
homem habita". A casa seNirá ao desenvolvimento de uma retórica 
arquitetônica capaz de deslocar a linguagem da filosofia, num procedi-
mento que levará a filosofia a ser um pensamento sobre a habitação. 
Este pensamento, originalmente vinculado tanto à fenomenologia de 
Husserl quanto ao niilismo de Nietzsche, terá partido de um empenho 
em retornar às perguntas primeiras, em perguntar-se sobre o sentido 
do ser, do "ser-aí" (Oaseín), como objeto primeiro e essencial da filoso-
fia. Para Heidegger, esta questão ontológica não pode ser resolvida 
sem que se reconheça que, ao redor deste sujeito existencial, gravita 
tudo aquilo que lhe é familiar, os utensnios e a casa como a materiali-
zação de uma vida que se desenvolve através de um tempo existen-
cial, não cronológico - passado, presente e futuro experimentados a 
partir da própria subjetividade. O sujeito permanece, assim, atravessa-
44 
do por este tempo existencial e este marco familiar .e utilitário que o ( . 
definem. Mas está aí, em um mundo que nem sempre é solícito, frente 
ao qual sente uma certa angústia que o impulsiona a compreendê-lo, 
para nele se projetar. A casa deste sujeito que se interroga sobre si 
mesmo é, assim, algo mais que um marco neutro: nela habita quem 
pensa a si mesmo, e este pensamento, por sua vez, é que habita a 
casa. A casa, a construção da habitação, não é tanto uma metáfora, 
mas o sujeito mesmo da filosofia existencial. Nela se pode exercer o 
autêntico habitar, a plenitude do ser. A casa, contudo, não é um marco 
inocente, imune ao reflexo de nossos conflitos, é o lugar do íntimo tanto 
quanto do inóspito, um espaço de alienação que vela ou esconde um 
desarraigamento, uma incapacidade para o pleno exercício do ser-aí. 
Não apenas na modernidade, mas nela de forma especialmente inten-
sa, ~ste desarraigamento, esta inautenticidade do marco existencial 
exacerbou-se à medida em que se desenvolvia nossa capacidade de 
ação mediante o avanço do conhecimento e o uso abusivo de nossa 
técnica. Repensar o ser, retornar às origens da filosofia; · repensar a 
casa, voltar a interpretar seu sentido existencial: trata-se, então, de um 
único trabalho, de uma mesma tarefa, com o que necessariamente se 
confronta a alienação tecnológica moderna. 
Este discurso- em grande medida uma argumentação contra a moder-
na banalização do pensamento sobre a casa e seus habitantes- exer-
cerá uma influência decisiva nas revisões da modernidade que surgem 
no final dos anos sessenta, a ponto de se tornar obrigatório, para a 
compreensão de nosso tempo, demorarmo-nos em uma visita detida e 
minuciosa a esta cabana. Situada em Todtnauberg, na Floresta Negra, 
foi cedida a Heidegger pela Universidade de Friburgo como um dos 
benefícios do cargo de reitor que ocupara em 1933, na mesma época 
em que Mies van der Rohe trabalhava intensamente nas casas-pátio. 
Somente através deste pequeno refúgio poderemos reconhecer, em 
toda a sua complexidade, a presença da casa existencial. 
São três as principais motivações que Heidegger nos fornece para apren-
der a habitar e a possuir espiritualmente esta casa: em primeiro lugar, a 
conhecida palestra em que se desenrola uma sistemática investigação 
etimológica sobre o significado do vocábulo bauen (construir); em segun-
do lugar, uma imagem heurística surpreendente, a de uma ponte, descri-
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ta, na mesma conferência, com o intuito de nos ajudar a interpretar o sig-
nificado de sua idéia sobre um habitar autêntico; em terceiro lugar, uma 
reportagem gráfica que nos permite conhecer não apenas a casa da 
Floresta Negra, como também a maneira com que Heidegger ali se ins-
talou e habitou. São esses três momentos, portanto, que compõem os 
principais passos do percurso que vamos iniciar. Mas Heidegger não 
está sozinho nesse trajeto da crítica existencial ao projeto moderno. 
Simultaneamente, um influente arquiteto berlinense nega-se a seguir os 
dogmas da modernidade-, seja em sua versão expressionista, seja-em 
sua versão sach/ích, e a entender a tradição como algo meramente rea-
cionário. Heinrich Tessenow - significativamente recuperado pela crítica 
profissional, nos anos setenta, como uma referência crucial contra os 
epígonos modernos - desenvolveu um corpo teórico completo, num 
grande paralelismo ao propugnado por Heidegger, em vários. tratados 
cuja singeleza também amiúde confundiu-se com inocência. 
Não há inocência alguma no fato de que seja uma investigação etimo-
lógica, a origem, o que Heidegger utilize para desenvolver sua argu-
mentação na conferência "Construir-habitar-pensar", proferida no investigação 
Darmstadter Gesprach, em 1951, aos arquitetos que estavam destina- etimológica 
dos a reconstruir as cidades alemãs no pós-guerra. Frente ao utilitaris-
mo e ao tempo finalista moderno - uma concepção de mundo que se 
apóia na fé em um futuro de progresso que daria sentido às ações pre-
sentes -, Martin Heidegger contrapõe uma crítica "radical": uma volta 
às raízes, à origem. É necessário, primeiro, interrogar-se sobre o senti-
do de nossas ações. O que ou quanto construir não é tão importante 
quanto saber porque construir, qual o significado original desta ação. 
O que legitima e dá consistência ao pensamento de Heidegger é este 
retorno: somente através dele poderemos transformar um mero alojar-
-se em um autêntico habitar, e é propositadamente que se utilizam aqui 
os vocábulos "mero" e "autêntico", sempre presentes em sua crítica às 
conseqüências do uso indiscriminado e irrefletido da técnica moderna. 
Bauen, construir, confunde-se, originalmente, com habitar: 
"Prestemos atenção ao que a língua, através da palavra - bauen - , diz, 
e perceberemos três aspectos: 
1 . Construir é propriamente habitar. 
2. Habitar é a maneira como os mortais estão sobre a terra. 
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a ponte de 
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3. Construir, enquanto habitar, é empregado no senti9o de construir, 
cuidar, cultivar, e no sentido de construir, erigir edificações. 
( ... ) O caráter fundamental do habitar é este cuidar." 
Assim, "cuidar" seria o caráter fundamental do habitar: "os mortais habi-
tam na medida em que salvam a terra( ... ) salvar não é apenas livrar algo 
do perigo, salvar significa propriamente franquear a algo a penetração 
em sua própria essência. Salvar a terra é mais do que explorá-la, ou até 
arruiná-la. Salvara terra não é apoderar-se da terra, não é transformá-la 
em nossa súdita, o que está a um passo da exploração sem limites." 
Arruinar a terra seria precisamente o que a ilimitada capacidade técnica 
herdada da Segunda Guerra Mundial poderia fazer- e já o havia feito na 
zona militar-, caso não se considerassem outros valores que não os de 
um positivismo cego. O cuidado aplicado à ação de construir é coadju-
vante de um habitar no qual o "ser" pode se desenvolver. Mas isto im-
plica, antes de tudo, uma consistência temporal, uma preeminência da 
dimensão temporal sobre a espacial:é o tempo -um tempo longo, que 
vem de origens remotas, e se estende no cuidado com a terra- que nos 
permite aceder a um habitar autêntico. 
Assim, pois, esta investigação etimológica adverte-nos contra a técni-
ca moderna, exigindo-nos uma relação atenta com a natureza, e opõe 
ao tempo finalista um tempo "radical", no qual a memória substitui, 
como valor, o progresso, invertendo, por assim dizer, a flecha do 
tempo. Uma argumentàção que, sem dúvida, vem penetrando na 
sociedade contemporânea, especialmente nos setores mais sensíveis 
às questões ambientais, mas também naqueles para os quais a pre-
servação e a incorporação, ao nosso tempo, da memória de nossos 
antepassados- os monumentos - é um programa de trabalho, uma 
forma de entender o significado mesmo da arquitetura, outro dos dis-
cursos contundentes da pós-modernidade. 
A partir desta perspectiva, a imagem teórica que o filósofo propõe deste 
construir identificado ao habitar não é um espaço fechado, mas, sur-
preendentemente, uma construção de caráter transicional: uma ponte. 
A velha ponte de Heidelberg servirá a Heidegger para explicar como a 
esta inversão do valor do tempo corresponde também uma modificação 
radical da noção de espaço, já que o que caracteriza a ponte não é 
tanto a sua espacialidade, mas a sua capacidade de definir um lugar 
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através do estabelecimento de ligações de ordem não apenas material, 
mas também espiritual - é significativo, por exemplo, que as pontes 
tenham sido sempre, tradicionalmente, consagradas a uma santa ou a 
um santo. Terra e céu, divinos e mortais unem-se através da ponte, 
compondo a quaternidade na qual habita o ser existencial. quaternidade 
"A terra é a diligente portadora, a florescente frutífera, que se estende 
pelas pedras e pelas águas, ascendendo o que cresce e o que é animal. 
Se dizemos terra, pensamos imediatamente nas outras três, mas não 
consideramos a unidade dos quatro. O céu é a curvilínea marcha do sol, 
o mutante giro da lua, o viageiro brilho das estrelas, as estações do ano 
e seus solstícios, o alvorecer e o crepúsculo do dia, a obscuridade e a 
claridade da noite, a fertilidade e a esterilidade do clima, a marcha das 
nuvens e o azulado abismo do éter. Se dizemos céu, pensamos ime-
giatamente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos qua-
tro. Os divinos são os mensageiros que fornecem as pistas da divinda-
de. Através de sua obra sagrada, o deus surge em sua presença, ou se 
encobre em sua ocultação. Se nomeamos os divinos, pensamos ime-
diatamente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos qua-
tro. Os mortais são os homens. Denominam-se mortais, porque podem 
morrer. Morrer significa ser capaz da morte enquanto morte. Só o 
homem morre continuamente, ainda que permaneça sobre a terra, sob 
o céu, ante os divinos. Se nomeamos os mortais, pensamos imediata-
mente nas outras três, mas não consideramos a unidade dos quatro. 
A esta unidade chamamos quaternidade. Os mortais estão na quater-
nidade enquanto habitam. O traço fundamental do habitar é o cuidar. 
Os mortais habitam à medida em que cuidam da quaternidade em sua 
essência. Assim, o cuidar habitando é quádruplo." 
O espaço, tal como o entendem os modernos, não é mais do que 
extensão matemática e algébrica, a res extensa cartesiana, que não é 
propriamente o objeto, nem a atividade de construir, nem a de habitar. 
A construção de lugares ergue-se no caráter próprio do ser existencial, 
lugares como a ponte através da qual se vincula o destino dos mortais 
ao da terra e do céu. 
Mediante esta decisiva palestra - que tiveram que ouvir, seguramente 
atônitos, arquitetos prontos a explorar todo o potencial do movimento 
moderno, justamente quando a situação histórica tornava quase inevi-
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lugar, memória, 
natureza 
( 
tável seu desenvolvimento em larga escala -, Heidegger introduziu um 
deslocamento de interesses e um léxico que lentamente viria a ter uma ( · 
grande repercussão. O "Espaço-Tempo" de Siegfried Giedion, enuncia-
do em 1 941 , foi totalmente posto em dúvida: inverteu-se o tempo e a ( 
memória ocupou o lugar do futuro, o espaço já não servia para grande ( 
coisa. Seriam estes lugares da quaternidade a devolver ao homem con- C 
temporâneo a dignidade que a técnica contraposta à natureza eliminou. (_ 
Lugar, Memória e Natureza contrapunham-se frontalmente a Espaço, C . 
Tempo e Técnica, pela primeira vez de urna forma completamente arti-
culada, num giro que abarcaria praticamente todas as mudanças de 
valor que se sucederam no panorama arquitetônico desde o final dos 
anos sessenta até hoje. 
Teria Heidegger proposto algum modelo, implícito ou explícito, àqueles 
arquitetos? Diante do imenso programa de trabalho que tinham em suas 
mentes, Heidegger convidou-os a observar atentamente a minúscula 
cabana, onde terminara de escrever em 1926 Ser e tempo, e assim lhes 
falou: "Pensemos por um momento em uma casa de camp0 na Floresta 
Negra, que um habitar, embora rural, construiu há dois séculos. A casa 
foi erguida num esforço de instalar univocamente, nas coisas, terra e 
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céu, divinos e mortais. E foi situada na vertente da montanha que está ( 
protegida do vento, entre as pradarias, próxima à fonte. Desejou-se para 
ela um telhado com um grande beiral, que, com sua adequada incli-
nação, sustém o peso da neve e, avançando até embaixo, protege a 
habitação contra as tormentas das longas noites de inverno. Não se 
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negligenciou o nicho para a imagem do nosso Senhor, detrás da mesa 
comunitária, arranjaram-se os lugares sagrados para os momentos do ( 
nascimento e da 'árvore da morte', que é como se chama ali o ataúde, ( 
e, assim, sob o telhado, às distintas idades da vida imprimiu-se, de 
antemão, o lacre da sua passagem pelo tempo. Um ofício, surgido ele 
próprio do habitar, e que necessita, além disso, de seus instrumentos e < 
andaimes enquanto coisas, construiu a casa de campo." ( 
Temos agora o privilégio de vê-lo habitar esta casa junto à sua mulher C 
Elfridge, na reportagem fotográfica realizada por Digne Meller Marcovicz ( 
anos depois, em 1968 - curiosamente um mês depois dos aconteci- ( 
mentos revolucionários em Paris. Podemos ver Heidegger ali, de braços 
cruzados, cravando em nós o seu olhar enquanto sua atenciosa espo- ( 
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sa prepara uma sopa. Ao olharmos para ele, vemo-nos obrigados a nos 
perguntar quem é o sujeito que habita a casa existencial. A quem, afinal, 
esta concepção doméstica privilegia? Podemos vê-lo também à porta 
da cabana, carregando um balde de água, ou saindo para um passeio 
pelos arredores. E sentado à mesa, de novo atenciosamente servido por 
sua esposa, embora, numa atitude clássica de pensador, olhe para 
ela distraidamente. Enquanto o contemplamos, entendemos que quem 
sustenta estas concepções de tempo e de espaço não é outro, não 
pode ser outro, senão aquele que detém a autoridade, aquele cuja 
existência constitui-se como um diálogo com a quaternidade, a figura 
mesma do filósofo transrnutada na figura da autoridade paterna. Mark 
Wigley o descreveu com tanta precisão, que sua descrição poderia ser 
a legenda de urna foto: "o domínio da filosofia é o domínio da casa, a 
autoridade patriarcal que torna o outro um escravo dentro da casa, um 
servente doméstico, o servo da dornesticidade." 
Quem habita a casa é aquele que domina a linguagem, aquele que cons-
trói seu pensamento através dela. Porém, além de qualquer outro argu-
mento, do intento radical de Heidegger de superar a metafísica, há em sua 
concepção doméstica uma nostalgia desse sujeito centrado e dominante 
que constrói a casa ao habitá-la, do mesmo modo que o filósofoconstrói, 
com o seu pensamento, a casa. O sujeito da casa existencial não é outro 
senão aquele que herda a propriedade e os bens de seus pais, e os admi-
nistra com prudência para transmiti-los a seus filhos -que se constitui, 
portanto, como uma "ponte". Esta submissão do sujeito à quaternidade, 
à terra e ao céu, em um completo esquema vertical- em que se fixa a 
existência enraizando-a, e em um lugar-, expressa com nitidez a posição 
de quem tradicionalmente detém a autoridade, o pater fami/ias . 
Ou, mais exatamente, expressa a nostalgia pela consistência que 
outorgavam, ao habitar, essas relações - não nos esqueçamos, no 
caso da cabana de Heidegger, de que se trata de um imóvel cedido, e 
não herdado, de uma casa de campo, e não de uma residência fixa, 
e de que ninguém ali trabalha na terra, apenas passeia por ela. 
A casa de Heidegger é a manifestação dos conflitos existenciais com 
o tempo, aquilo que, simplificando, denominamos nostalgia, o produto 
de uma idealização da densidade e da solidez do passado frente à 
banalidade do presente. 
50 
autoridade paterna ~ 
esquema vertical 
nostalgia da 
consistência 
a noite de inverno, 
a tempestade 
de neve 
violência: relação 
com a natureza e 
com a cidade 
o autêntico 
É precisamente esta nostalgia por uma forma de instal~ção no mundo, 
gradativamente eliminada pelo século, o que ativa todo o poder de evo-
cação da casa existencial. O refúgio do mundo, e do público, tanto 
quanto das forças da natureza: " ... na profundidade de uma noite de 
inverno, quando uma selvagem, estrepitosa e raivosa tempestade 
de neve envolve a cabana, escurecendo e encobrindo tudo: este é o 
tempo perfeito para a filosofia." A noite de inverno, a forte tempestade 
de neve, simbolizam o momento culminante da relação entre o habi-
tante existencial e a natureza, momento em que a casa aparece, em 
todo o seu esplendor, como refúgio, como abrigo protetor. São tam-
bém metáfora da relação desta casa com a natureza artificial que é a 
grande cidade, das nítidas fronteiras entre o público e o privado que 
estão na base da concepção deste espaço doméstico. 
A relação com a natureza, assim como aquela mantida com o público, 
estará marcada pela violência. E será esta violência a nos remeter à 
figura central do pai, da autoridade. Na casa existencial será permanente 
a presença latente de um esquema hierárquico autoritário, de·um habitar 
totalmente voltado à proteção do exterior e à primazia do pai. É ele quem 
constrói a casa no tempo, é ele quem desenvolve o programa do "cuida-
do" a que Heidegger se refere. É, portanto, razoável estabelecer uma 
correspondência entre este eixo hierárquico e autoritário e a organização 
espacial da casa em torno de um espaço central. "A casa da fumaça": 
assim Yago Bonet denominou esta tipologia, a casa em torno da lareira 
ou de um espaço central dominante, o hall, próprio das construções tra-
dicionais do norte da Europa, e que cumpre a função tanto de lugar de 
reunião da família, como de centro das reuniões sociais, evidenciando seu 
caráter vertical e hierarquizado. Poder-se-ia descrever a casa existencial, 
portanto, como uma casa centrada e vertical, habitada por alguém anco-
rado firmemente ao lugar, por uma família estável, hierárquica e autoritá-
ria, como uma casa que protege de um meio externo agressivo, inautên-
tico, e que se liga, no tempo e na memória, a um sujeito que se define 
integralmente, por assim dizer, por sua origem e por sua linhagem. 
A casa é o lugar do autêntico, é o refúgio que protege do exterior, da 
inclemência do tempo e dos agentes naturais, mas também do munda-
no e do superficial, dessa exterioridade sempre concebida como nociva. 
A menção da casa nos primeiros escritos pós-guerra de Heidegger, e 
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o tom literário ingênuo neles adotado, são algumas das chaves para a 
·compreensão do exterior como ameaça, da vinculação do tema do 
habitar e da casa ao seu intento pessoal de se eximir de qualquer par-
ticipação no nazismo. Explicam também, com clareza, as implicações 
desta violência no âmbito público na violência no âmbito privado, 
a associação sistemática da casa existencial à autoridade paterna, e a 
sua conformação espacial centrada, transcendente, vertical. A violên-
cia da natureza reproduz-se nos âmbitos público e privado, marcando público e privado 
o pulso do habitar existencial. A casa é, assim, a fuga da ágora, do 
fórum, do público (e do partido nazista). É o lugar do "autêntico", onde 
a penetração das manifestações da exterioridade supõe uma dilace-
ração, um obscurecimento da autenticidade. 
O autêntico contrapõe-se, assim, a duas manifestações da exteriorida-
de: as tecnologias industriais e os meios de comunicação. Não só a 
natureza é arruinada por nossa depredação tecnológica: a introdução 
do mundo da opinião- o rádio, a televisão, o jornal- no interior da casa 
configura uma violência ao habitar, uma regressão do habitar ao alojar-
-se, uma ruptura daquele cuidado da quaternidade. E também determi-
na a irrupção de uma crise no esquema vertical implícito ao sujeito hei-
deggeriano. "A toda hora, em todos os dias, eles estão presos ao rádio 
e à televisão. Semana após semana, os filmes os transportam a insóli-
tos, embora freqüentemente vulgares, estados de imaginação e lhes 
dão a ilusão de um mundo que não é o mundo. As revistas ilustradas 
estão por toda parte. Tudo o que as técnicas modernas de comuni-
cação estimulam, isolam e conduzem, tudo isso está muito mais ime-
diatamente próximo do homem de hoje do que os campos ao redor de 
sua granja, mais próximo do que o céu sobre a terra, mais próximo do 
que as nuanças do dia e da noite, mais próximo do que as convenções 
e os costumes de seu povo, do que a tradição do seu próprio mundo." 
O habitar existencial ergue-se contra a cidade moderna e seus imple-
mentas técnicos, contra aquilo que leva tanto ao aniquilamento da 
natureza, quanto ao esquecimento da tradição: a casa é uma proteção 
contra a banalidade do cosmopolitismo, e, na medida em que seja 
capaz de lutar contra ele, cumprirá seus objetivos existenciais. 
Talvez seja a hora de voltarmos a H. Tessenow, a seu tratado Trabalho 
artesanal e cidade pequena, publicado em 1919, e a seu discurso de 
52 
ingresso na Academia de Artes de Dresden, publicado em 1921 sob o 
título O pais situado no centro. Ambos dedicaram-se a combater a 
Grosstadt e a exaltar a figura do pequeno artesão médio, sua casa 
modesta, com jardim, horta e oficina, sua pequena cidade - nem vila, 
nem metrópole, mas uma cidade média -, sua posição central -
Alemanha- no plano da Europa ... Sem dúvida, um precedente impor-
tante do pensamento de Heidegger frente à modernidade. Importante 
tanto para a articulação do discurso sobre uma vida autêntica, "um saber 
verdadeiro", no terreno estritamente disciplinar, quanto pela influência 
deste arquiteto no meio profissional (lembremo-nos que, ainda que sua 
influência, como no caso de Heidegger, não tenha se restringido aos cír-
culos nacional-socialistas, estes fizeram uso de suas idéias, corno é o 
caso de, por exemplo, Albert Speer, discípulo confesso de Tessenow). 
No pensamento de Tessenow, a Grosstadt aparece como a origem de 
todos os males, já que, desde a industrialização acelerada até o aban-
dono das virtudes próprias da classe média ou pequeno burguesa, a 
grande cidade encerrara em si todas as condições que haviam condu-
zido ao desastre da guerra. 
Stadtfeindlichkeit Assim como em Heidegger, encontramos, aqui, uma Stadtfeindlichkeit 
(aversão à cidade) que se projeta sobre a Grosstadt, entendida como 
expressão pura da irracionalidade de um desenvolvimento tecnológico 
cego. Em contraposição a ela, Tessenow exalta a figura do modesto 
artesão - essa modéstia que é expressão de um saber, de uma vida 
autêntica. "Tornaram-se

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