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AbAde S i c a r d Série HiStórica inStituto nacional de educação de SurdoS 2012 – Volume 4 iSBn 978-85-63240-05-7 AbAde S i c a r d Comissão editorial Rua das Laranjeiras, nº 232 – 3º andar Rio de Janeiro – RJ – brasil – CeP: 22240-003 Telefax: (0xx21) 2285-7284 / 2205-0224 e-mail: editorialines@ines.gov.br Instituto Nacional de educação de Surdos GOVeRNO dO bRASIL PReSIdeNTe dA RePÚbLICA dilma Vana Rousseff MINISTÉRIO dA edUCAÇÃO Aloizio Mercadante INSTITUTO NACIONAL de edUCAÇÃO de SURdOS Solange Maria da Rocha dePARTAMeNTO de deSeNVOLVIMeNTO HUMANO, CIeNTÍFICO e TeCNOLÓGICO Maria Inês batista barbosa Ramos COORdeNAÇÃO de PROJeTOS edUCACIONAIS e TeCNOLÓGICOS Mônica Azevedo de Carvalho Campello dIVISÃO de eSTUdOS e PeSQUISAS elaine da Rocha baptista edIÇÃO Instituto Nacional de educação de Surdos – INeS Rio de Janeiro – brasil PROGRAMAÇÃO VISUAL e dIAGRAMAÇÃO I Graficci Programação Visual TRAdUÇÃO dO FRANCÊS I Graficci Programação Visual ReVISÃO Anna Carolina Guimarães IMPReSSÃO Walprint TIRAGeM 3.000 exemplares apresentação Fundado no século XIX, na Corte, no Rio de Janeiro, o atual Instituto Nacional de educação de Surdos produziu uma série de publicações com a finalidade de atender educacionalmente alunos surdos de outras províncias do Império brasilei- ro. essas publicações compõem um importante registro da educação pública no brasil. desse modo inauguramos uma série histórica reproduzindo importantes obras raras que fazem parte do acervo de nossa biblioteca. Anualmente, serão publicadas duas obras de relevância para a pesquisa histórica. No ano de 2011, os volumes I e II correspon- dem respectivamente a Iconographia dos Signa- es dos Surdos-Mudos, de 1875, e as Atas do Con- gresso de Milão, de 1980. No ano de 2012, os volumes III e IV correspon- dem respectivamente ao Compendio Para ensino dos Surdos-Mudos, de 1881 e Abade Sicard, de 1873. Volume iii – Compendio Para o ensino dos Sur- dos-Mudos/1881 em 1881, um ano após o Congresso realizado em Milão, Tobias Leite, então diretor do Ins- tituto manda publicar, já em terceira edição, o Compendio para o ensino dos Surdos-Mudos, tradução da obra do professor Vallade Gabel, do Instituto de Surdos da França. O livro é dividido em duas partes, sendo a pri- meira teórica em forma de perguntas e respos- tas e a segunda prática em forma de lições. Uma das interrogações feitas logo no início do livro era de quais os meios que se podem empregar para ser compreendido pelo surdo-mudo. A resposta em tom diferenciado diz que com os surdos sem instrução usam-se fatos materiais, desenhos e linguagem natural dos sinais. Com os surdos ins- truídos usam-se a palavra artificial (expressão oral), o alfabeto manual e a escrita. essa obra, referência durante muitas décadas nos institutos de surdos, apresenta-se como leitura obrigatória para que possamos compreender o debate trava- do sobre a educação de surdos nos séculos XVIII e XIX. Volume iV – Abade Sicard/1873 O livro em questão é uma biografia do Aba- de Sicard, primeiro diretor do Instituto Nacional dos Surdos-Mudos de Paris, escrita por Ferdi- nand berthier, surdo, professor do mesmo Insti- tuto. Também contém duas pequenas biografias dos célebres professores surdos Jean Massieu e Laurent Clerc. Trata-se de uma importante obra que revela o esforço de berthier para deixar registrado o tra- balho de figuras importantes da educação de sur- dos da França. entramos em contato nessa narrativa com os desafios trazidos pela Revolução Francesa no co- tidiano dos cidadãos. Acusado de contrarrevolu- cionário, perseguido politicamente, Sicard quase foi executado em 1872. Foi salvo pela interferên- cia de alunos surdos que destacaram a importân- cia de seu trabalho. dentre outros registros, esse trabalho nos in- forma das presenças de Napoleão e sua esposa Josefina na apresentação teatral sobre a vida do Abbé de L’Épée e a visita do Papa Pio VII ao Ins- tituto dirigido por Sicard. Configura-se obra de relevância para que pos- samos compreender os meandros do período re- volucionário na França e suas implicações na educação de surdos. AbAde S i c a r d , CÉLebRe PROFeSSOR de SURdOS-MUdOS, SUCeSSOR IMedIATO dO AbAde de L’ÉPÉe. HISTÓRICO SObRe SUA VIdA, SeUS TRAbALHOS e SeUS SUCeSSOS; Seguido de notas biográficos sobre seus alunos surdos-mu- dos mais notáveis Jean maSSieu e laurent clerc. e de UM APÊNdICe contendo cartaS do abade Sicard ao barão de gérando, SeU AMIGO e SeU COLeGA NO INSTITUTO POR Ferdinand berthier, SURdO-MUdO, deÃO HONORáRIO dOS PROFeSSOReS dO INSTITUTO NACIONAL de SURdOS-MUdOS de PARIS, UM dOS VICe-PReSIdeNTeS dA SOCIedAde CeNTRAL de edUCAÇÃO e de ASSISTÊNCIA PARA SURdOS-MUdOS NA FRANÇA, PReSIdeNTe-FUNdAdOR dA SOCIedAde UNIVeRSAL dOS SURdOS-MUdOS, CAVALeIRO dA LeGIÃO de HONRA, MeMbRO dA SOCIedAde de eSTUdOS HISTÓRICOS (ANTIGO INSTITUTO HISTÓRICO) e dA SOCIedAde de PeSSOAS de LeTRAS. PARIS, CHARLeS dOUNIOL eT CIA, LIbRAIReS – ÉdITeURS, 29, RUe de TOURNON, 29 1873 UMA PALAVRA de eXPLICAÇÃO AOS MEUS IRMÃOS SURDOS-MUDOS, E ÀS NU- MEROSAS PESSOAS QUE SE OCUPAM DE SEU BEM-ESTAR PRESENTE E FUTURO. No dia 26 de novembro de 1854, uma festa de família nos reuniu por ocasião do 142º ani- versário de nascimento do abade de l’Épée (1). Um conviva dos mais assíduos, M. Léon Vaïse, nomeado depois diretor da Institution Nationale des Sourds-Muets de Paris, onde tinha sido por muito tempo professor, falou de sua vontade de ver o humilde biógrafo do imortal fundador des- se ensino especial, bem pouco conhecido, contar também a vida de seu sucessor imediato, o abade Sicard. ele pensava que nesta época, quando se tinha acalmado o entusiasmo provocado pelas li- (1) Relação dos Banquetes dos Surdos-Mudos, reunidos para festejar os aniversários do abade de l’Épée, de 1834 a 1863, rela- ção publicada aos cuidados da antiga Société centrale des Sour- ds- Muets de Paris, 2 vol.,na livraria Hachette et Ce, boulevard Saint-Germain, 77. Os relatos a partir dessa época, estarão num terceiro volume. ções públicas do abade Sicard, caberia a um de seus antigos alunos, mais do que a qualquer ou- tra pessoa, designar o lugar que ele deveria ocu- par entre aqueles que haviam contribuído, sob diversos aspectos, à regeneração dessa interes- sante parte da família humana. e acrescentou que todo mundo esperava tão impaciente quanto à publicação de um volume sobre o abade Sicard. Palavras tão gentis, tão honrosas, só poderiam encorajar aquele a quem elas se endereçavam. Mas, infelizmente! eu dependia das circunstân- cias para acelerar a realização dessa tarefa. É para mim uma verdadeira alegria poder ofe- recer, enfim, esse fruto das minhas vigílias, como continuação e complemento da minha história do abade de l’Épée. Eu só fiz esboçar rapidamen- te os principais traços da vida do meu herói, me proibindo longos comentários sobre suas obras, segundo o meu mestre bébian (1), antigo censor dos estudos da Institution des Sourds-Muets de Paris, e segundo M. de Gérando (2), membro do Institut de France, administrador desse estabe- lecimento. Gostaria realmente, mas não poderia me alongar, por causa do pouco tempo que me era permitido dispor. (1) Journal de l’Instruction des Sourds- muets et des Aveu- gles,1826-1827. (2) De l’Éducation des Sourds-muets de naissance, 2 vol. 1827. Por outro lado, no decorrer do meu trabalho, eu tratei de conciliar todos os cuidados que mere- ciam uma tão bela missão com a severidade que se deve ter na apreciação de erros involuntários, sem dúvida, escapados a uma alma tão sensível. Tive o cuidado de não esquecer de acrescentar nesse quadro, o perfil dos dois notáveis alunos do abade Sicard, Jean Massieu e Laurent Clerc. eu me consideraria, amigos e surdos-mudos, recompensado pelo meu esforço, se me honras- sem reservando, para esse novo livro de família, um lugar nas suas bibliotecas ao lado daquele que eu considero, perdoem-me ousar dizê-lo aqui,como um título de glória, consagrado ao nosso primeiro apóstolo. Será um duplo prazer para um discípulo dos abades de l’Épée e Sicard ter podido reunir assim esses dois nomes venerados e oferecê-los juntos à devoção de todos aqueles que os admiram! AbAde SICARd 3 AbAde SICARd ––––––––––––– CAPÍTULO PRIMeIRO Vocação do abade Sicard. – ele é chamado a suceder o abade de l’Épée que havia fundado L’École Natio- nale des Sourds-Muets de Paris. Sicard (Roch-Ambroise-Cucurron), nascido em 20 de setembro de 1742, em Foussert, cidadezi- nha do Languedoc, terminou seus estudos em Toulouse onde foi ordenado padre. Sua rara ca- pacidade não tardou a chamar a atenção do ar- cebispo de bordeaux, Monsenhor Champion de Cicé, que o colocou à frente de uma nova escola que havia criado em 1782 para atender aos po- bres Surdos-Mudos da sua diocese, a exemplo da que havia sido fundada em 1760 pelo abade de l’Épée, em Paris, na rua dos Moulins, na ladeira Saint-Roch, para os da capital, e que foi elevada a Instituição nacional pelas leis de 21 a 29 de ju- lho de 1791. Segundo o desejo do Prelado, o diretor viria à capital em 1785, para estudar o método do ve- nerável fundador desse ensino, e, no final de um ano, retornaria a bordeaux, para aplicá-lo na sua escola. O sucesso que ele obteve na educação do jovem Massieu, que deveria aumentar sua repu- tação, lhe valeram o título de Vigário geral de Condom e de Cânone de bordeaux, bem como o de membro da Académie de la Gironde. Com a morte do abade de l’Épée, em 1789, ele se apresentou, apoiado pela opinião pública, ao concurso que iriam abrir os comissários das três academias que existiam até então, a fim de ocupar o lugar vago. dois outros eclesiásticos, os abades Massé e Salvan, haviam se retirado do concurso diante da concorrência, na qual eles re- conheciam a sua superioridade. Salvan, aluno predileto do ilustre falecido, chamado Riom em Auvergne, onde ele dirigia uma escola de surdos mudos segundo seus prin- cípios, insistiu modestamente para que seu rival fosse nomeado diretor, considerando-se feliz de poder secundá–lo nas suas funções, na qualidade de professor adjunto. AbAde SICARd6 AbAde SICARd Foi assim que se deu a sua posse, a partir do mês de abril de 1790, sob os mais felizes auspí- cios. A Assembleia Constituinte, não se limitan- do a adotar seu estabelecimento, declarou que ele seria mantido às custas do estado, favor recla- mado em vão pelo abade de l’Épée, cuja fortuna pessoal o sustentava, independentemente das li- beralidades particulares de Luís XVI. Sicard se viu, desde então, em estado de conti- nuar esta obra de benfeitoria com toda tranqui- lidade de espírito que ela exigia e de trabalhar cada vez mais no desenvolvimento do seu siste- ma de ensino. ––––––– CAPITULO II O abade Sicard é preso em virtude de seus princípios religiosos e é conduzido ao Comitê da seção do Ar- senal. ele encontra entre os detentos dois de seus subordinados. – Massieu, à frente dos alunos da Instituição, apresenta uma súplica à Assembleia Legislativa. – O relaxamento da prisão do diretor é ordenado imediatamente. de repente a tempestade vem interromper suas doces meditações. ele se queixou com o cidadão Haüy (1) de que ela havia devastado a igreja dos Surdos-Mudos. Preso no dia 26 de agosto de 1792, sob a acusação de ter dado asilo a padres ditos re- fratários, ele foi encarcerado, ainda que tenha abraçado francamente os princípios da Revo- lução. ele tinha mesmo se apressado em fa- zer o juramento cívico à Liberdade e à Igual- dade, imediatamente após a promulgação do (1) ver a nota A no fim do volume. decreto da Assembleia Legislativa de agosto de 1792, e ele o havia confirmado por um dom patri- ótico de 200 libras, ainda que ele tenha recusado um novo juramento que parecia contrário às suas opiniões religiosas. Permita-nos aqui tentar resumir, tão categori- camente quanto possível, os principais incidentes de um drama onde Sicard foi, ao mesmo tempo, testemunha ocular e vítima, nos dias sangrentos de setembro. O infeliz professor vai dar sua aula no seu es- tabelecimento, então situado no antigo seminá- rio dos Celestins, quando Mercier, carpinteiro da vizinhança, se apresenta no seu gabinete, segui- do de um oficial municipal e de um punhado de pessoas do povo. explicando-lhe que estava preso em nome da Comuna, arrancaram de suas mãos sua obra intitulada: La Religion chrétienne médi- tée dans le véritable esprit de ses maximes, sob o pretexto de que o título era contrarrevolucionário do início ao fim. Contudo, Mercier lhe permitiu carregar seu breviário, não sem antes realizar um exame minucioso do livro. Foi somente mais tarde que, reunindo os pe- dacinhos de papel que serviam de marcadores do livro, tentaram, ainda que em vão, descobrir uma única palavra contrarrevolucionária. AbAde SICARd 9 Como resultado de uma busca feita e dos se- los afixados, ele é levado ao Comitê da seção do Arsenal, depois deixado sob a vigilância de al- guns guardas nacionais, esperando que viessem buscá-lo, para ser conduzido ao Comitê de exe- cução. ele prefere caminhar a pé até a prefeitura a usar o carro que lhe ofereceram, para evitar o dis- sabor de se ver escoltado pelas forças armadas. Com esses contratempos, um dos homens que o acompanhava, tendo escutado pronunciar seu nome, levanta os olhos e as mãos para o céu gri- tando: “Que! É você, cidadão, que levam em pri- são, você, o amigo da humanidade, pai bem mais que professor dos pobres surdos-mudos! de que o acusam? Qual é seu crime? Ah! permita-me ir ad- mirar seus trabalhos, logo que o devolverem à sua atual família adotiva, cuja prisão deve desolar.” Antes de entrar no depósito, ele passa pela sala de registros, onde seu nome não causa me- nos surpresa aos patriotas da escolta. depois, fizeram-no subir numa grande sala, que servia de sótão para guardar forragem, que já estava lotada. AbAde SICARd10 Nesse momento, o padre de Saint-Jean en Grève se joga nos braços do recém-chegado, que encontra ainda, entre os detentos, alguns amigos e vários conhecidos. dividia o leito de palha do respeitável sacer- dote, quando lhe trazem dois prisioneiros caros ao seu coração: um deles, o abade Laurent, se acreditamos em Sicard ou o abade Laborde, se nossa referência é Massieu, professor-adjunto da escola Nacional; o outro, um supervisor secular chamado Labranche. “eis-me então, associado à vossa perseguição, como eu era aos vossos princípios, meu caro mes- tre! Como me sinto feliz, grita o abade Laurent, de ter sido julgado digno de ser perseguido por uma causa tão bela!” Na manhã seguinte, se apresentaram à prisão de seu diretor, os alunos tendo Massieu à frente, portando um projeto de petição à Assembleia Le- gislativa assim concebido: “Cidadão presidente, “Tiraram dos surdos-mudos seu professor, seu mantenedor e seu pai. Trancaram-no numa pri- são como ladrão, como criminoso. entretanto, ele não matou, ele não roubou, ele não é um cidadão marginal. Toda sua vida passa a nos educar, a nos AbAde SICARd 11 fazer amar a virtude e a pátria. ele é bom, justo e puro. Nós te pedimos a sua liberdade. devolva-o às suas crianças pois nós somos seus filhos; ele nos ama como se fosse nosso pai. Foi ele quem nos ensinou tudo o que nós sabemos; sem ele, nós seríamos como animais. desde que ele nos foi le- vado, estamos tristes e infelizes. devolva-o e nós seremos felizes!” Massieu leva a súplica ao balcão da Assem- bleia. Como a leitura provocou unânimes aplau- sos, a Assembleia ordena ao Ministro do Interior a lhe prestar contas o mais cedo possível dos mo- tivos da prisão do professor dos Surdos-Mudos. Um jovem chamado duhamel, que se reuniu à delegação da escola, pede, no meio de novos aplausos, para tornar-se prisioneiro no seu lugar. –––– AbAde SICARd12 CAPÍTULO III O abade Sicard sonha em fundar no exterior uma es- cola de surdos-mudos. – Seu nome é riscado da listafatal, mas seus acusadores se empenham em fazê-lo perecer. – Ele é colocado em um fiacre com infelizes que vão ser executados. Uma distração dos carras- cos o salva. – ele entra na sala do Comitê da seção do Quatre-Nations. entretanto, chegamos ao dois de setembro sem conseguir o resultado esperado. baseado num discurso que Manuel, então pro- curador da Comuna, tinha endereçado aos prisio- neiros, cada um fazia projetos para o futuro do estabelecimento. O abade Sicard tinha resolvido, se fosse condenado à deportação, retirar-se para uma das capitais da europa, onde o esperavam para fundar uma escola para seus filhos adotivos. O oficial de serviço, de início, não quis liberar a carta que nosso professor acabara de escrever com esse objetivo a um de seus amigos, e justi- ficou sua recusa porque não era permitido a um francês levar para o estrangeiro qualquer desco- berta . “Ah! diz o abade, se você soubesse o que signi- fica essa descoberta; é a arte de ensinar aos po- bres surdos-mudos. – Se é só isso, responde o oficial, sua carta pode seguir e você pode partir.” Na véspera desse dia sangrento, os comissários se apresentaram para tomar os nomes daqueles que seriam colocados em liberdade. O abade Lau- rent foi o primeiro a pedir que o inscrevessem na lista. Sicard se adianta e dá seu nome. Seria bom para ele, se ele tivesse tido a ideia de acrescentar seu título. então ele foi riscado. O supervisor La- branche recebeu o mesmo tratamento . Logo que nosso célebre professor se achou so- zinho na prisão, com este empregado e Martin de Marivaux, antigo advogado no Parlamento de Paris, na noite do 1º a 2, chegam novos deten- tos, que tomam o lugar dos que tinham acabado de ser transferidos à abadia Saint-Germain-des- -Prés. Os acusadores do abade Sicard, fazendo todos os esforços para anular o efeito do decreto salva- dor da Assembleia, persistem em dizer “que ele é AbAde SICARd14 a ralé da tirania, que ele mantém uma correspon- dência com os tiranos coligados, e que é preciso se apressar em destituí-lo e de substituí-lo pelo sábio e modesto Salvan.” O momento da carnificina se aproxima. Sicard vai se juntar aos seus companheiros, que foram conduzidos na noite anterior à prisão. enviaram seis fiacres; eles esperavam vinte e quatro pri- sioneiros. Marivaux, tendo subido primeiro, sen- tou-se no segundo lugar, um outro, no terceiro. Labranche ocupa o quarto, dois outros sobem em seguida. ei-los, seis no primeiro veículo. Os ou- tros preencheram os cinco últimos. As viaturas seguem no meio das imprecações de uma população cegamente furiosa, que quer fazer justiça com aqueles que ela chama de seus inimigos. Os soldados que os escoltam, atormen- tam por sua vez, com injúrias, os infelizes que levam, dando golpes de sabre e espada em vários deles. Os companheiros do professor dos Surdos- -Mudos se jogam generosamente diante dos gol- pes que lhes são destinados. Chega-se pela Pont-Neuf, à rua dauphine, e pela avenida bucy à Abbaye, cujo pátio é in- vadido pela cruel curiosidade da multidão. Os perseguidores recebem a ordem de começar pela primeira viatura. Os infelizes que aí se achavam AbAde SICARd 15 procuravam escapar, mas três são imolados; um é retirado por um golpe de sabre (1). Os degoladores se jogam sobre a segunda via- tura, imaginando que não havia mais ninguém na primeira. Recuperando de um estupor, do qual ninguém mais parecia poder tirá-lo, o abade Sicard se pre- cipita a nos braços dos membros do Comitê. “Ah! cidadãos, diz, salvem um infeliz!” Sua prece é rejeitada. ele estaria perdido se, felizmente, um deles não o tivesse reconhecido. “Ah! gritou ele, é Sicard! Como você está aí? Nós o salvaremos, assim que pudermos.” então ele entra na sala do Comitê da seção do Quatro-Nações onde ele estava em seguran- ça com o único de seus camaradas que se salvou. Mas ele foi traído por uma mulher que correu para denunciá-lo aos degoladores. (1) Ver no fim do volume na nota B uma carta do abade Si- card ao cidadão dubois, prefeito de polícia, para o governador em favor de um aluno surdo-mudo, o Sr. brylot que, pela lei de deportação, foi salvo do perigo que ameaçava sua vida durante os dias de setembro. AbAde SICARd16 CAPÍTULO IV Novamente ele é salvo. Um cidadão, Monnot, relojoei- ro, apressou-se em defendê-lo contra o ódio dos car- rascos. – O discurso do diretor é coberto de aplausos. – Sua carta ao presidente da Assembleia Legislati- va contém um testemunho de seu reconhecimento ao seu libertador. Os fanáticos chamam os dois prisioneiros. Mostrando seu relógio: Pegue-o, diz o abade Si- card a um dos comissários, entregue-o ao primei- ro surdo-mudo que vier perguntar por mim. ele estava certo que o relógio cairia nas mãos de Massieu, de quem ele já tinha tido prova de grande fidelidade. O comissário que, de início, havia se recusa- do a receber essa espécie de testamento de mor- te, crendo que o perigo não fosse tão iminente, não cedeu às suas novas instâncias a não ser no momento em que começaram a empurrar a porta. O abade Sicard, não tendo mais nada a dei- xar aos seus amigos, se ajoelha e se oferece em holocausto ao árbitro soberano das consciências. Findando seu sacrifício, ele se levanta e abraça seu último companheiro. “Abracemo-nos, morramos juntos, lhe disse, a porta vai se abrir, nossos carrascos estão lá, nós só temos cinco minutos para viver.” A porta se abre. Com efeito, um prisioneiro que escapara é imolado ao lado do abade Sicard, cujo sangue vai jorrar; logo uma espada se volta para o seu peito, quando um incidente providencial modifica tudo. enquanto um relojoeiro da rua dos Petits-Au- gustins, o cidadão Monnot, membro do Comitê civil da sessão do Quatre-Nations, janta na casa de um de seus amigos, escuta um tiro do canhão de alarme. Informado por seu filho do massacre que acontecia nas prisões, ele corre ao seu posto e entra no Comitê, correndo grande perigo. Com o nome do abade Sicard, ele se informa do hábito que ele veste, e procura-o entre as vítimas. “É você, pergunta-lhe, que se chama Sicard? – Sim, sou eu. AbAde SICARd18 – bem! esconda-se atrás de mim, respondo pela sua vida.” entretanto, uns vinte matadores reclamam aos gritos, a cabeça do professor. O generoso re- lojoeiro o protege usando o próprio corpo como escudo. “Veja, diz ele àquele que se preparava para matá-lo. eis o peito que é preciso atravessar para chegar ao dele. É o abade Sicard, um dos homens mais úteis ao país, professor e pai dos surdos- -mudos!” – “Tanto faz, é um aristocrata. – “bem ! vocês passarão todos sobre meu corpo antes de chegar ao dele. bata!” e o corajoso cidadão descobre seu peito. A arma cai das mãos do matador. O abade Sicard, cujo sangue frio e tranquili- dade de alma não abandonam jamais, sobe numa cruzada da sala do Comitê, que dava para o pátio interno repleto de uma turba desenfreada e, pe- dindo um minuto de silêncio, bradou assim: “Meus amigos, este que lhes fala é inocente; vocês o deixariam morrer sem escutá-lo? – Você estava, gritavam eles, com os outros que acabamos de massacrar; então você é tão cul- pado quanto eles. AbAde SICARd 19 – escutem um instante, continua, e se depois de me ter escutado, vocês decidirem pela minha morte, eu não suplicarei mais: minha vida é de vocês. Conheçam antes quem sou, o que eu faço, e depois decidam por minha sorte. “eu sou o abade Sicard (exclamação de vários espectadores); eu ensino aos surdos-mudos de nascença, e como o número desses desafortuna- dos é maior entre os pobres que entre os ricos, eu sou mais útil a vocês do que aos ricos.” então uma voz se eleva da multidão, à qual responde com eco imenso. “É preciso salvar o abade Sicard, gritam de to- das as partes; é um homem honesto demais para fazê-lo perecer. Sua vida inteira é consagrada a grandes obras; ele não tem tempo para ser um conspirador.” Com essas palavras, os carrascos abraçam o professor nos seus braçosensanguentados, e o protegem de seus instrumentos de morte, pro- pondo-lhe reconduzi-lo em triunfo para sua casa. Mas ele persiste em não aceitar tal ovação, pre- ferindo dever sua vida e sua liberdade a um jul- gamento legal de uma autoridade competente. dessa forma, ele é levado ao Comitê onde ele re- encontra seu libertador. AbAde SICARd20 Tendo sabido seu nome e endereço, ele escreve no dia 2 de setembro de 1792 da Abadia Saint – Germain a Hérault de Séchelles, presidente da Assembleia Legislativa, a seguinte carta: “Cidadão presidente, “A Assembleia Nacional não foi informada sem sofrimento do massacre de cidadãos que, detidos durante dias na delegacia da prefeitura, foram transferidos à da abadia Saint-Germain des-Prés. eu me empenho em fazer ouvir a frágil voz do meu reconhecimento em favor do corajoso cidadão a quem eu devo a vida. É Monnot, relojo- eiro da rua dos Petits-Augustins. “dezessete infelizes tinham acabado de ser de- capitados sob meus olhos; a força pública não os tinha podido salvar. eu ia perecer como eles; esse bravo cidadão colocou-se diante de mim, desco- briu seu peito e disse: “Vejam, concidadãos o peito que será preciso atravessar antes de chegar ao desse bom cida- dão: vocês não o conhecem, meus amigos! Vocês irão respeitá-lo, amá-lo, cair aos pés desse ho- mem sensível e bom quando souberem seu nome; é o sucessor do abade de l’Épée, o abade Sicard.” AbAde SICARd 21 “O povo não se acalmava. Persistia em acre- ditar que queriam se servir de meu nome para salvar a vida de um traidor. eu próprio ousei avançar, e, subindo num estrado, falar ao povo, tendo apenas por defesa a coragem da inocência e minha firme confiança nesse povo desnorteado. “eu disse meu nome e minha posição social. Prevaleci-me da proteção especial da Assembleia Nacional em favor do professor de surdos-mudos e dos chefes do estabelecimento. Aplausos reite- rados sucederam aos gritos de raiva. Fui colocado pelo próprio povo sob a proteção da lei, e acolhi- do como um benfeitor da humanidade por todos os comissários da seção do Quatre-Nations, que deve sentir-se orgulhosa de ter cidadãos como Monnot em seu seio. “Permiti-me, cidadão presidente, confiar à Assembleia Nacional o testemunho de meu re- conhecimento, para dar a uma ação tão genero- sa a maior publicidade possível. Uma nação, na qual cidadãos como esse a quem eu devo a vida, não são raros, deve ser invencível. Narrar seme- lhantes atos de heroísmo é cumprir um dever. Senti-los, sem poder exprimir a admiração que AbAde SICARd22 provocam e não esquecê-los jamais é o estado de minha alma mais feliz de viver com semelhantes concidadãos que de ter escapado à morte. “eu sou, etc...” essa carta, levada ao presidente por um dos zeladores da Abadia, foi lida publicamente e se- guida da declaração solene (1) de que Monnot era digno da pátria por ter salvo o professor dos Surdos-Mudos. durante esses fatos, o abade Sicard estava sentado perto da mesa do Comitê sobre a qual co- locaram joias, carteiras, lenços ensanguentados, achados nos bolsos dos prisioneiros que tinham sido massacrados sob suas janelas. Um dos tigres, as mangas arregaçadas, arma- do de um sabre fumegante de sangue, entra no recinto onde os membros deliberavam, sem pare- cer escutar os clamores das vítimas e grita: “eu venho pedir pelos nossos bravos irmãos de armas, que degolam todos esses aristocratas de pés calçados. Nossos bravos irmãos têm pés des- calços e partem amanhã para a fronteira.” (1) ver no fim do livro a nota C. AbAde SICARd 23 Os membros se olham e respondem ao mesmo tempo: “Nada mais justo; concedido!” A esse pedido sucede um outro relativo ao vi- nho que era necessário aos bravos irmãos que trabalham muito tempo na corte. Eles ficam can- sados, diz um outro, seus lábios ficam secos. “Li- berado um bom para 24 potes de vinho.” Alguns minutos depois, o mesmo homem vem renovar o mesmo pedido. “Concedido igualmente um outro bom!” ––––– AbAde SICARd24 CAPÍTULO V Novos perigos que corre o abade Sicard. Uma pousada lhe é oferecida perto da sala do Comitê. – dois pri- sioneiros propõem fazer de seus corpos uma escada para colocá-lo em segurança. – ele é exaustivamente perseguido por seus inimigos. ele solicita a assistên- cia de um deputado, que pede a um de seus colegas mais influentes, para informar à Câmara do recente perigo que o ameaça. escreve ainda ao presidente Hérault de Séchelles, à M. Laffon de Ladébat, seu amigo particular, e à Mme d’entremeuse. – M. Pas- toret, deputado, ao pedido da filha mais velha dessa senhora, Mlle Éléonore, corre ao Comitê de instru- ção. – Sai um segundo decreto em favor do professor. enquanto isso, outros perigos ameaçam o aba- de Sicard. ele solicita ao Comitê a permissão de se retirar, estando já muito avançada a noite. O zelador lhe oferece abrigo em sua casa. ele prefe- re ir para o violon, que é contiguo à sala do Comi- tê. essa escolha o salva, pois dois outros infelizes pereceram ao aceitarem a primeira proposta. Quantos gritos dilacerantes de novas vítimas, quantos hurros tenebrosos de canibais nosso pro- fessor escuta durante o tempo que passa na pri- são! Quantos golpes de sabre! Quantas danças abomináveis em volta de cadáveres, entre aplau- sos frenéticos dos espectadores e dos gritos mil vezes repetidos de: Viva a nação! Apenas o dia amanhecia com essas cenas de terror, os algozes, não achando mais de que se servir para saciar sua raiva, se lembraram que o violon mantinha alguns prisioneiros. Vieram bater na pequena porta que dava para o pátio. O abade Sicard sentindo-se perdido, bate suave- mente na porta que comunica com a sala do Co- mitê, mas lhe responderam, rudemente, que não tinham a chave daquela porta e o abandonam a seu aflitivo destino, bem como seus dois compa- nheiros. esses propõem fazer uma escada com o próprio corpo para atingir um piso mais alto, que oferece um meio seguro imediato de salvação, e eles insistem para que ele se salve, por ser nesta terra mais útil que eles. Nosso professor se recusa de início, a se apro- veitar de uma vantagem que não beneficiasse seus companheiros de infortúnio, resolvido a vi- ver ou a morrer com eles. Nesse ímpeto de devo- ção, eles lhe mostram ainda mais claramente o AbAde SICARd26 deplorável abandono no qual mergulhariam seus pobres surdos-mudos... Não podendo mais resis- tir a tão urgentes argumentos, ele sobe a contra gosto nos ombros do primeiro e depois sobre os do segundo. Mas, no momento em que a porta vai ceder aos esforços deles, os gritos habituais de: Viva a nação! e o canto da Carmagnole lhes ati- ram novas vítimas, que trazem ao pátio já cober- to de cadáveres. O abade Sicard, logo que desce de sua escada viva, percebe novos rios de sangue correr à sua vol- ta e escuta interrogarem sobre esse teatro de car- nificina, infelizes com a fronte serena e resignada. “Ora! Que se confessem esses celerados! res- pondem a uma só voz, os algozes; eles darão tem- po para os curiosos do bairro se levantarem e virem nos ver fazer justiça contra esses patifes. enquanto isso, nós desocuparemos o pátio. Vá buscar as charretes! enviemos à prisão todos es- ses aristocratas, eles infectariam a casa.” A arena dessa carnificina humana tinha ban- cos para os cidadãos e para os cidadãos sem culo- tes. eles haviam encaminhado ao Comitê o de- sejo de contemplar os cadáveres à vontade. era também colocado um lampião sobre as cabeças AbAde SICARd 27 de cada vítima para que os assistentes pudessem gozar dessa execrável iluminação. Nosso professor atesta ainda ter visto com seus próprios olhos, mulheres do bairro de Abbaye se juntarem em volta do leito que preparavam para os condenados e deitar nele como em um espetáculo. Os companheiros que ele acabara de reencon- trar e aos quais ele gostaria de dirigir uma pa- lavra, haviam ficado completamente loucos. Um deles, mostrando-lhe uma faca, lhe pedia a morte como uma graça;outro, despindo-se, tentava se enforcar com seu lenço e suas ligas, mas não con- seguia. A porta da prisão se abre. Jogam uma nova vítima que, até então, escapando por milagre a essa hecatombe humana, informa aos cativos o fim glorioso do venerável sacerdote de Saint- -Jean-en-Grève que recusou o juramento cívico declarando aos seus juízes que, como eles, ele estava sujeito às leis do país do qual eles se pre- tendiam os únicos ministros, mas que o acha- riam inarredável sobre tudo o que dizia respeito à religião. entretanto, os inimigos do abade Sicard, com- pondo a seção do Arsenal, furiosos de ver essa AbAde SICARd28 presa lhes escapar, fazem chegar à Comuna um novo mandato de prisão condenando-o à morte, que ia ser executado quando, felizmente, o can- saço e o desejo de comer alguma coisa forçam o carrasco a remarcar o suplício para quatro horas. Um charreteiro, interrogado sobre o motivo que lhe faria adiar o transporte de um cadáver que ele já devia ter carregado: “Vocês devem, diz ele, me dar o do abade às quatro horas, eu levarei tudo junto.” escutando essa proposta, Sicard consegue uma folha de papel e escreve a um deputado, seu amigo íntimo, na terça-feira do dia 4 de setem- bro, o seguinte: “Ah! meu caro, que vou me tornar, depois de ter escapado à morte, se você não vier me salvar a vida, abrindo as portas dessa prisão, na qual canibais cometem a todo instante novos massa- cres? Prisioneiro há sete dias, há três noites que eu escuto de minha janela pedirem minha cabe- ça aos gritos, e ameaçarem de quebrar as frágeis venezianas que me separam deles, se os comis- sários da seção de l’Abbaye, que não sabem mais como fazer para conservar minha frágil existên- cia, me abandonarem à sua ira. esses honoráveis AbAde SICARd 29 patriotas me aconselham a ir me refugiar no seio da Assembleia Nacional, acompanhado de dois deputados, para não ser massacrado ao sair. “Ah! Grande Deus! Afinal o que fiz para ser tratado assim? No momento em que eu escre- vo, cortam a cabeça de um padre, e conduzem dois outros que vão ter a mesma sorte. Que fize- mos para acabar assim? Pois certamente não se- rei poupado. em que sou um mau cidadão? Sou mesmo um cidadão inútil? Cabe à França intei- ra responder. A esta hora, um de meus alunos está morto de desgosto. eu mesmo sucumbo sob o peso de tantas inquietações. Qual é meu crime? Há sete dias que estou aqui e ainda não me inter- rogaram. Não estarei vivo amanhã se você não vier, nessa manhã mesmo, em meu socorro. Não peço a liberdade, eu peço para viver para minhas pobres crianças. Que a Assembleia Nacional me constitua prisioneiro numa de suas salas. Que ela apresse o relatório de meu processo. eh! bom deus! é um processo tão importante? Tenho tem- po para ser um mau cidadão? “Que horror me transferir em pleno dia, às três horas, num dia de festa, no momento em que o canhão de alarme soa, e quando os soldados AbAde SICARd30 d’Avignon e de Marseille me denunciam à popu- lação, quando eles poderiam me defender de sua ira, através da Pont – Neuf e todas as ruas que conduzem à Abbaye? “Venha, meu caro, venha praticar uma boa ação! Venha salvar um desafortunado, usando sua inviolabilidade e a de um outro de seus co- legas que talvez encontre algum prazer em com- partilhar com você esta boa ação! Posso contar que você chegará a tempo? Meus carrascos estão aqui, cobertos de sangue; eles rangem os dentes e pedem minha cabeça. “Adeus meu caro compatriota! Ignoro se você achará vivo à Abbaye o professor desafortunado dos pobres surdos-mudos.” O amigo, a quem a carta foi entregue pediu a um de seus colegas mais influentes para comuni- car à Câmara depois de ter rasurado e suprimido as passagens sublinhadas. essa Assembleia ordenou imediatamente à Comuna colocar Sicard em liberdade. Mas esse decreto não obteve sucesso. A hora fatal ia soar. Ignorando se a carta ha- via chegado a seu destino, ele pega uma folha de papel, corta-a em três, e escreve três bilhetes, um ao presidente Hérault de Séchelles, um a Laffon AbAde SICARd 31 de Ladébat, seu antigo colega das academias de bordeux, e seu amigo particular, membro da As- sembleia Constituinte, um dos mais honoráveis cidadãos, ligado à religião reformada, um outro à Mme d’entremeuse, mãe de duas pessoas que o tinham tido por primeiro professor. esses três bilhetes eram a última esperança des- te infeliz invocando a amizade e o reconhecimento. O bilhete destinado ao presidente, é remetido a um honesto e compadecido oficial de justiça, que corre à sua casa (a Assembleia estava fechada). Hérault de Séchelles se dirige imediatamente ao Comitê de instrução. Laffon de Ladébat, por sua vez, se apresenta na casa de Chabot, membro da Assembleia Legislativa, e lhe pede pela vida de seu amigo, pintando com as mais vivas cores a aflitiva situação em que ele se encontrava, e tra- tando de fazê-lo compreender que não havia mais um minuto a perder para salvá-lo. Mme d’entremeuse não estava em casa. Sua filha mais velha, Éléonore (1) recebe o bilhete, dá (1) Ela ia chegar ao fim, depois de ter sofrido mais de um ano com dores inexplicáveis, quando, para grande satisfação de nos- so professor, ela foi salva, graças a uma longa viagem que sua terna mãe organizou. AbAde SICARd32 uma olhada nele e desmaia; mas o perigo que cor- re seu professor, seu pai, lhe faz retomar o âni- mo; ela voa até a casa de Pastoret, de quem esse infeliz é conhecido, tentou se esforçar em mover os lábios para proferir uma palavra, sua língua estava congelada de pavor. Pastoret pega o papel, lê, larga seu jantar, e reencontra no Comitê de instrução, do qual ele é membro, o presidente e o secretário Romme, que já haviam chamado. esses cidadãos, tendo juntos discutido, ordenam uma segunda vez à Comuna a voar para socorrer o desafortunado. AbAde SICARd 33 CAPÍTULO VI O abade Sicard vai ao balcão da Assembleia apresen- tar seus agradecimentos aos membros. – ele recebe as desculpas de um dos comissários, que assiste à retirada dos selos judiciais, depois de ter contribu- ído ele próprio ao seu encarceramento. – esse últi- mo o desaconselha a regressar à escola. – Massieu o visita no seu retiro. – Comunicação da portaria da Assembleia Geral de 1 de setembro de 1792 . – Pro- testo do abade Salvan. entretanto a Comuna, que logo passou à or- dem do dia a recepção do decreto do qual ele ti- nha falado, vai confirmar esta rigorosa sentença, mas, por felicidade, abriga no seu seio um borde- lais, chamado Guiraut, que pede para ser encar- regado da execução do decreto. É o que teria sido feito do abade Sicard se uma tempestade que caiu às quatro horas, horário fixado para o suplício, não tivesse atrapalhado o sacrifício e dispersado a multidão. Foi somente bem mais tarde, às 7h, que as portas da prisão se abriram para o conde- nado. Um oficial municipal vem pegá-lo pelo bra- ço e levá-lo à Assembleia Nacional entre uma fila dupla de homens ferozes, que mantêm respeito à sua faixa sacerdotal. Chabot, por sua vez, ceden- do à voz eloquente que o implora, sobe à tribuna da igreja de Abbaye, empenhado em reverter a seu favor aqueles que pedem a cabeça dele. Sicard entra numa viatura com um oficial mu- nicipal e seu primeiro libertador Monnot. Logo que ele chega ao balcão, os deputados se precipi- tam nos seus braços; lágrimas correm de todos os olhos durante o seu improviso. “Jamais, brada ele ao terminar, uma única palavra injuriosa à causa da liberdade saiu da minha pena... Não, aquele que jurou, de todo coração, submissão a todas as vossas leis, aque- le que jurou morrer por elas, não devia esperar ser tratado como um inimigo da liberdade. Pais da pátria, ensinai à europa que vós sabeis tão bem reparar os erros do novo regime, que mes- mo aqueles que são suas vítimas, são forçados a amá-lo e defendê-lo.” Uma vez fora desse lugar de angústias, ele pede comissários para procederem à retirada dos lacres que, no dia de suaprisão, foram colocados em seu apartamento. Aqueles que já tinham sido nomeados se jun- AbAde SICARd 35 taram a dois outros da seção, dos quais um é pre- cisamente aquele que levou à Comuna e à prisão de Abbaye a portaria ministerial que pedia o ma- chado revolucionário sobre a cabeça do nosso pro- fessor. este homem, tendo assistido várias vezes as suas lições, lhe dedicava o mais vivo interesse e a maior estima. ele ainda não tinha revisto o abade, e se joga ao seu pescoço confessando-lhe, confuso, que ele tinha sido cúmplice de seus assassinos, que ele não tinha considerado que o homem, que ele ti- nha em conta, havia sido envolvido no massacre geral, mas que ele não tinha tido a coragem de resistir à fúria implacável que fomentava de toda parte contra os padres. “Não se conceberia, brada o honorável eclesiás- tico, como, com alguma honestidade no coração, este homem pode aceitar uma missão tão infame, se não se soubesse que frequentemente a fraque- za causa tanto mal quanto a maldade, e que ela não é menos cruel.” Feita a retirada dos lacres, Sicard se gabava de ser, enfim, devolvido aos seus alunos, mas o novo comissário lhe aconselhou a não se reinte- grar imediatamente ao seu domicílio, observan- do que seus inimigos não o perdoariam assim tão facilmente, ter se livrado das suas perseguições. AbAde SICARd36 escutando tão caridoso aviso, ele decide se retirar a uma seção afastada, na casa do senhor Lacombe, relojoeiro, que, durante sua prisão, o tinha corajosamente procurado por toda parte, arriscando sua vida, e que, depois, não cessava de lhe prodigar, com sua digna esposa, de todas as consolações das quais sua alma partida tinha tanta necessidade. É lá que o diretor recebe a primeira visita do surdo-mudo Massieu, que ele instituiu seu legatário herdeiro sucessor no mo- mento de sofrer o golpe fatal. Imaginemos que sentimentos transbordaram da alma tão ingênua do aluno revendo seu caro mestre. Até então ele tinha recusado todo ali- mento, e não havia experimentado um instante de sono, tanto estava inquieto por sua vida. Um dia a mais e ele morreria de dor e de fome. Pouco depois, o honesto comissário levou ao abade Sicard, assim como lhe havia prometido, uma cópia do mandato de prisão; ei-la: Assembleia-geral de 1 de setembro de 1792. Sobre as representações feitas por diversos membros, 1º Que o cidadão Sicard, professor de surdos e mudos (1), preso como padre sem juramento, está pronto (1) ver na nota d a diferença entre as palavras surdos e mu- dos e surdos-mudos. AbAde SICARd 37 para ser solto, atendendo à utilidade que se pre- tende que ele tenha na sua instituição; 2º Que sua soltura seria muito mais perigosa, pois possui a arte duvidosa de esconder seu inci- vismo sob fachadas patrióticas e de servir à causa dos tiranos perseguindo surdamente seus conci- dadãos que se voltam no sentido da revolução; A Assembleia decidiu formular os mandatos seguintes: 1º Que a lei seja executada em toda sua exten- são com relação a Sicard; 2º Que ele seja substituído pelo sábio e modes- to Salvan, segundo professor de surdos-mudos (herdeiro, como vários outros, do sublime méto- do inventado pelo imortal de l’Épée), padre jura- mentado e agregado pela Assembleia Nacional; 3º Enfim, que sejam enviadas cópias do pre- sente mandato de prisão ao poder executivo, ao Comitê de fiscalização, ao Conselho da Comuna, e ao escritório da prisão pelos cidadãos Pelez e Pernot, comissários nomeados para este fim. Assinado: Boulu, presidente riVière, secretário. AbAde SICARd38 O célebre professor coloca o mandato de prisão às vistas do abade Salvan, que reagiu contra o que ele pretendia que fosse um ultraje à sua hon- ra. Às queixas que o abade Sicard fez ao que era veementemente suspeito de ter redigido aquela peça, o culpado teve a imprudência de responder por negações; mas a cada vez, ele era menos con- vincente. Com efeito, tinham achado a minuta, inteiramente escrita por sua mão, entre outros papéis do Comitê revolucionário da seção. Sua criminosa intenção chegara até a combinar com um punhado de seus cúmplices, outros manda- tos, em nome da Assembleia inteira, cada vez que a sessão era aberta. –––– AbAde SICARd 39 CAPÍTULO VII Logo após sua reinstalação definitiva, o abade Sicard é nomeado para diversos empregos importantes. Mas sua colaboração a uma folha político-religiosa ofende o diretório executivo. – Condenado à depor- tação, ele acha refúgio no subúrbio Saint – Marceau. Seus protestos inúteis ao governo. – Segunda repre- sentação do drama do Abbé de l’Épée, por bouilly, ao qual assistem o general bonaparte e sua esposa Josefina. – Súplica de Collin d’Harleville em favor do abade Sicard. – O público assume fato e causa por ele. – Sua soltura. Foi apenas em 1796 que o respeitável diretor pôde retomar tranquilamente posse de seu esta- belecimento modelo. ele já ocupava uma cadeira de professor na escola normal superior, fundada pela Convenção Nacional no dia 9 brumário ano III (novembro 1795) no anfiteatro do Jardin des Plantes. ele era professor no Liceu Nacional e, além disso, cooperava no Magasin encyclopédique. Seus primeiros colegas, na escola normal, foram Lagrange, Laplace, Monge, Haüy, dau- benton, berthollet, Volney, Garat, bernadin de Saint-Pierre, La Harpe, etc. Não poderia debutar melhor. Do anfiteatro do Jardin des Plantes, a Esco- la normal, reorganizada em 1808, foi transferi- da para a rua dos Correios, depois ao colégio do Plessis, à rua Saint-Jacques, e enfim rua d’Ulm. O abade Sicard foi igualmente admitido, por ocasião da criação do Institut de France, a fazer parte, com Garat, da seção de gramática geral, na mesma época em que o diretório nomeava, na seção de poesia Chénier e Lebrun. Mais tarde, quando veio o mandato consular de reorganização do ano XI, ele foi designado para a classe de literatura com Andrieux, Fran- çois de Neufchâteau, Collin d’Harleville, Legou- vé, Arnault, Fontanes e outros contemporâneos ilustres. Para defender a causa dos padres não-jura- mentados, ele cooperou ativamente nos Annales religieuses, politiques e littéraires. entretanto, doravante prudente e circunspecto, ele se conten- tou em inserir nos anais apenas alguns artigos assinados, às vezes, com seu nome e, às vezes, com seu anagrama dracis. A publicação de uma folha concebida com esse espírito, não poderia AbAde SICARd 41 passar despercebida no diretório: um mandato do 18 fructidor ano V (5 de setembro de 1797) o inscreveu na lista dos jornalistas que deveriam ser deportados a Sinamari. Felizmente, ele evitou o golpe que o ameaçava refugiando-se no subúrbio Saint-Marceau. Lá, empregou mais de dois anos a compor sua Grammaire générale e seu Cours d’instruction d’un sourd-muet de naissance. Jean Massieu, quinto surdo-mudo de nascença na mesma família, ofereceu várias vezes a seu mestre dividir seus módicos honorários. “Meu pai não tem nada, repetia com seus ges- tos rápidos; sou eu que devo alimentá-lo, vesti-lo, tirá-lo da sorte cruel que o persegue.” O abade Sicard, cansado de definhar no seu re- tiro, e querendo retomar seus trabalhos favoritos procurou se limpar da acusação de ultramonta- nhismo que pesava sobre ele, apesar de que ape- nas apoiava as doutrinas de Port-Royal. Mas em vão proclamava sua submissão ao novo governo da França. Não podendo nada obter, ele se decidiu a con- signar, no L’ami des lois, folha publicada pelo ex-beneditino Paultier, membro do conselho dos Cinq-Cents, um repúdio formal do partido que ele havia tomado nos Annales Catholiques. esse AbAde SICARd42 protesto, junto com as súplicas de seus alunos para reaver seu mestre, e com os pedidos dos de- votados amigos para que ele fosse reintegrado em suas funções, fracassaram diante da inflexi- bilidade de um poder sombrio e da persistência do chamado Alhoy (1) a se manter em seu lugar. Apenas dois anos depois, após a revolução do 18 brumário (dia10 de Novembro, 1799), o abade de Sicard foi devolvido às suas funções. “Uma segunda lista de proscritos acabara de obter o benefício do retorno. Nela,escritores apa- reciam em grande número. MM de Fontanes, de La Harpe, Suard, Sicard, Michaud, Fiévée, etc., eram chamados de seu exílio ou autorizados a sair de seu retiro.” (Histoire du Consulat et de l’Empire, por M. Thiers, T. 1, livro II). O respeitável diretor foi assim reintegrado em 1801 pelo primeiro Cônsul, com Suard, Michaud, Fiévée, etc, no Institut de France, de onde o 18 fructidor o havia excluído, e ele se ocupou, quase imediatamente em criar casa de impressão utili- zada por vários de seus alunos. Os outros foram, (1) Ver, no final do volume, nota F, a circular do intruso aos pais dos surdos-mudos. AbAde SICARd 43 graças a ele, empregados em diversas adminis- trações públicas, e seus pais já idosos recebiam o fruto do seu trabalho diário. Os desejos dos surdos-mudos e seus amigos fo- ram realizados. eis a causa desta revolução ines- perada: durante o mês de dezembro deste ano, a Sra. bonaparte assistia, com o marido, à segunda re- presentação do drama do l’Abbé de l’Épée, por bouilly. No quinto ato, quando Monvel, encarregado do papel do venerável fundador, diz ao advogado Franval que há muito tempo ele estava separa- do de seus numerosos alunos, e que, sem dúvida, eles sofriam muito com sua ausência... Collin d’ Harleville se levanta com vários homens de le- tras, colocados em uma galeria em frente ao bal- cão de bonaparte, e todos exclamam: “Que o virtuoso Sicard, que geme nas cadeias, nos seja devolvido!” este grito de almas nobres é imediatamente repetido pela sala inteira e, logo no dia seguinte, o primeiro Cônsul, desejoso de atender a um pe- dido que fosse unânime, e cedendo às súplicas de Josephine, se deu conta das razões da prisão do sucessor do abade de l’Épée. AbAde SICARd44 Nesse dia, o estimável autor da peça recebia de Collind’Harleville um bilhete contendo não somente suas felicitações pelo sucesso bem me- recido de sua obra, mas ainda expressando sua certeza de que a felicidade de Sicard seria o com- plemento de seu triunfo. Um homem de uma certa idade, parecendo tí- mido e emocionado, pediu para falar com bouilly. era o próprio Sicard que acabara de sair de sua prisão. ele se atira nos braços de seu libertador com toda emoção do reconhecimento, anuncian- do-lhe que a própria Mme bonaparte deve apre- sentá-lo ao primeiro Cônsul, e que ele conta com sua poderosa intervenção para logo se achar no meio de seu rebanho amado. ele não perdeu a esperança. Logo depois, man- dava à bouilly a seguinte carta, que esse último olhava sempre como um de seus mais belos títu- los de amor público: Paris, 23 Nivose ano VIII. “Aproveite o seu triunfo, meu querido colega; estou, desde ontem, reintegrado nas minhas fun- ções. Não é permitido à sua modéstia tomar uma parte muito grande neste tipo de vitória. Foi sua história, que acham tão bonita, tão tocante, que AbAde SICARd 45 trouxe para mim o interesse público. eu prometi lhe avisar do dia de minha primeira sessão, que também será minha primeira entrevista com meus filhos, depois de vinte e oito meses. Bem! É depois de amanhã, 25, precisamente às dez horas. “Venha com Mme. Bouilly! Vocês merecem fi- gurar, um ao lado do outro numa sessão tão to- cante... Mas, de graça, cheguem antes das dez horas! Chamem-me à porta! eu quero vê-los an- tes da sessão: Quero beijar um dos meus mais queridos amigos e apertá-lo contra o meu cora- ção. essa felicidade vai me preparar para todas as outras, desta manhã feliz. “beijo você, esperando, com todo o meu co- ração. Adeus! Mil vezes adeus! A você, sem re- serva!” Os jovens surdos-mudos, por sua conta, tendo sabido a quem seu diretor devia sua liberdade, combinaram de modelar um belo busto do abade de l’Épée, em terracota. difícil imaginar a sur- presa e a emoção sentidas pelo nosso dramatur- go, recebendo de suas mãos esse tributo de sua gratidão filial. A seguir, Mme. Talma, que foi tão aplaudida AbAde SICARd46 no papel de aluno do abade de l’Épée veio dar a bouilly uma nova alegria, dizendo que ela estava encarregada de lhe oferecer, em nome de todos os surdos e mudos, seus companheiros, versos que expressavam os mais vivos sentimentos de que eram animados. O leitor nos perdoará, sem dúvida, por não po- dermos resistir ao prazer de mencionar uma ca- racterística de bouilly que é pessoal. Apresentado por Josephine ao chefe do poder executivo, ele recebeu elogios por seu duplo su- cesso. “eu lhe agradeço, diz ele com um sorriso de dentes claros que tornavam sua boca das mais ex- pressivas (termos de nosso amável orador), sua peça sobre o abade de l’Épée: você me deu o pra- zer de devolver Sicard aos seus alunos. “– e eu, general, diz bouilly, devo agradecer- -lhe bem mais ainda por ter me proporcionado, por esse ato de justiça, a mais honrosa alegria que um escritor pode experimentar.” Notamos no Clef du cabinet des souverains, uma carta de uma jovem surda-muda, Mlle Rey Lacroix, à Mme bonaparte. “Os surdos-mudos, escreve com uma simplici- dade encantadora, não têm Sicard há muitos me- ses. eu gosto muito dele, ele está no meu coração. AbAde SICARd 47 ele ensinou ao meu pai que me ensina todos os dias. “diga ao seu marido para devolver Sicard aos surdos-mudos! Vocês dois vão ser seus amigos como papai: eles vão orar a deus por vocês.” depois do 3 nivose, os jovens surdos-mudos tendo ido cumprimentar o primeiro Cônsul, seu respeitável mestre foi encarregado por ele de lhes transmitir sua resposta: “eu estou muito contente de ver os surdos-mu- dos de nascença, e é com prazer que eu recebo a expressão de seus sentimentos. diga a seus alu- nos, cidadão Sicard, que eu vou fazer tudo que for necessário para aumentar o seu bem-estar e para torná-los felizes.” ––––– AbAde SICARd48 CAPÍTULO VIII erros graves que escaparam ao autor de Cours d’instruction d’un sourd-muet de naissance. – Mais tarde, ele se retrata na sua Théorie des signes. – Prerrogativas da mímica natural, que bébian de- fende. – As diferenças entre a dactilologia e a mími- ca. – Observação cuidadosa do abade Sicard sobre a articulação. Reportemo-nos, de passagem, ao julgamento que Napoléon I fez, mais tarde, à linguagem de surdos- mudos: “Senhor abade, diz o futuro imperador a Si- card, que a pedido de seus alunos ele tinha liber- tado, pagando as dívidas que tinha contraído por eles, parece-me que estes infelizes têm apenas duas palavras na sua gramática: o substantivo e o adjetivo.” O grande homem tinha o espírito muito sutil, muito penetrante para não acrescentar, na gra- mática, o verbo, se ele tivesse tido tempo para pesquisar ainda mais a linguagem admirável usada diariamente por esta interessante parte da família humana. e, especialmente, se ele ti- vesse tido um mestre que soubesse transitar de forma mais segura, entre os tesouros que ela con- tém. Não é, de fato, o verbo que é a base da língua de sinais, uma vez que é uma língua de ação? Aproveitemos esta ocasião para dar uma olha- da na principal obra do abade Sicard, seu Cours d’instruction d’un sourd-muet de naissance, que foi mencionado anteriormente. Mas, concordan- do, de bom grado, que é uma espécie de curso de metafísica e de gramáticas experimentais, pró- prias à educação de todas as crianças, que nos seja permitido, em primeiro lugar, elevar-nos, como já o fizemos em mais de uma circunstância, e como não o deixaremos de fazer, contra duas ou três passagens do discurso preliminar que nos parecem tão absurdas quanto revoltantes para a espécie humana. “Quem é, diz o abade Sicard, esse surdo-mudo de nascença, considerado, em si mesmo, antes que qualquer educação tenha começado a ligá- -lo à grande família, da qual por sua forma exte- rior, ele faz parte? É um ser perfeitamente nulo na sociedade, um autômato vivo, uma estátua, tal comonos apresenta Charles Bonnet, e depois dele condillac; uma estátua à qual é preciso abrir um AbAde SICARd50 após outro e dirigir todos os sentidos, suplemen- tando aquele do qual ele é, infelizmente, privado. Limitado apenas aos movimentos físicos, ele não tem mesmo, antes que se tenha rasgado o enve- lope que esconde a sua razão, esse instinto segu- ro que dirige os animais destinados a ter apenas esse guia. “O surdo-mudo é somente, até então, uma es- pécie de máquina ambulante, cuja organização, quanto aos efeitos, é inferior à dos animais. “Quanto à moral, ela resulta e se combina de tantos elementos, todos colocados tão longe dele, que a gente bem pode se perguntar se ele nem mesmo suspeite de sua existência. ...................................................................... Tal é o surdo-mudo em seu estado natural; ei- -lo tal qual o hábito de observação, vivendo com ele, me levou a descrevê-lo! É deste triste e deplo- rável estado que é preciso retirá-lo antes de ten- tar fazer dele um trabalhador, um agricultor, um operário, um homem com qualquer profissão.” Que a imbecilidade rebaixe o surdo-mudo ile- trado à condição da besta mais estúpida, e impri- ma sobre sua fronte o estigma de uma máquina com figura humana, só nos resta dar de ombros; mas que semelhante asserção, saia da pena de AbAde SICARd 51 um responsável professor de surdos-mudos! É um paradoxo inqualificável, que provocou em nós, uma indignação tão legítima, que o mínimo que poderíamos esperar, seria fazer uma boa e pronta justiça com todas as folhas tão revoltantes dos exemplares, que nos caíram às mãos. Outrora, eu desenvolvi a ideia de que o surdo- -mudo no estado bruto, como o supõe o abade Si- card, é uma quimera. Não existe um surdo-mudo, de pelo menos dez anos, que, tendo vivido com os homens, não tenha aprendido alguma coisa com eles, não tenha emitido alguma ideia, não tenha, numa palavra, se comunicado, de uma maneira muito imperfeita, sem dúvida, mas comunicado com eles. O ser sobre o qual falamos, não existe, então, na realidade. depois, felizmente, o abade Sicard fez a corre- ção honorável de tal opinião na sua Théorie des signes pour servir d’introduction à l’étude des langues où le sens des mots, au lieu d’être defini, est mis en action, obra formada de dois volumes in-8º,um de 580, outro de 650 páginas. ...................................................................... “O surdo- mudo, diz ele, página 8 do volume Iº, não é infeliz; ele acrescenta às lições de seu mestre uma alma comunicativa, que, plena das AbAde SICARd52 ideias que os objetos exteriores, pelo ministério dos sentidos afetados, levam até ela, anima seu olhar, modifica os músculos do seu rosto e dá à sua fisionomia essa diversidade de traços e de nuances que servem para exprimir todos os seus pensamentos e todos os seus afetos. É, ainda, sua alma que comunica ao gesto todas as formas pró- prias a desenhar os objetos, é ela que, em seus olhos, descerra a raiva que ele gostaria, em vão, de dissimular e que os inflama, é ela que sulca sua testa quando está triste, que faz nascer o sor- riso em seus lábios e a expressão de ternura nos seus olhos lânguidos. Enfim, o surdo-mudo que chega da casa de seus pais, e que não recebeu ainda nenhuma lição, não é menos eloquente que o jovem ouvinte que, junto a um professor, acaba de aprender a arte de analisar o pensamento e de falar corretamente a língua que sua primeira alfabetizadora lhe faz conhecer todas as expres- sões, imprimindo nessas lições todo charme do amor materno.” deus queira que, com a lança de Aquiles, esse desacordo, ainda que tardio, tenha podido curar as feridas causadas no primeiro golpe! A Théorie des signes está bem longe de ter a forma do Cours d’instruction d’un sourd-muet de AbAde SICARd 53 naissance. entretanto, uma sociedade de sábios a proclamou como uma obra elementar absoluta- mente nova, indispensável ao ensino dos surdos- -mudos e, igualmente útil aos alunos de todas as classes e aos professores, e o Instituto lhe confe- riu um grande prêmio decenal de primeira classe, destinado à melhor obra de moral ou de educação. Tal era, a propósito do Cours d’instruction d’un sourd-muet, a opinião de um juiz muito com- petente, M. de Gérando, na sua grande obra: De l’Éducation des sourds-muets de naissance: “Quando percorremos esse livro, quase acre- ditamos ler um romance filosófico; ele assume a sua forma e nos oferece interesse; nesse livro achamos um traço de um romance de l’Arabe Thophaïl (o Filósofo autodidata), alguma coisa que parece emprestada dos quadros de buffon, da estátua de Condillac, do Émile de Rousseau. É uma alma ainda sonolenta que acorda, um espí- rito, ainda cego, que se abre para a luz, uma vida inteligente que, sob a direção do professor, come- ça a se desenvolver no meio de cenas variadas. É uma espécie de selvagem, estrangeiro aos nossos modos, que se iniciou às nossas ideias, aos nossos conhecimentos, ao mesmo tempo em que à nossa língua. O professor sabe propagar em cada um AbAde SICARd54 de seus progressos, em cada um dos exercícios pelos quais ele os obtém, o charme dessa espécie de drama. ele pinta com paixão as incertezas, as alegrias do mestre e do aluno; ele consegue, des- sa forma, destacar, num quadro animado, as de- finições, os procedimentos que pareciam os mais áridos de sua natureza; ele dá uma cara, uma fi- sionomia às noções mais abstratas. diríamos que o abade Sicard é o pintor das sínteses, o poeta da gramática. esta obra teve várias edições, o que não causa surpresa; pois os surdos-mudos não são os únicos aos quais ela pode ser útil.” Por outro lado, tanto faz que o abade Sicard te- nha se tornado familiar à mímica, esse principal meio de transmitir as ideias dos surdos-mudos. Ao contrário, ele apenas possuía o mecanismo dessa linguagem, sem recorrer ao que chamamos de sinais naturais e comuns. Todo o seu saber nesse gênero se limitava quase que exclusiva- mente ao emprego dos sinais ditos metódicos, fal- ta de ter vivido um pouco mais intimamente com seus alunos, para descobrir na sua linguagem ainda bruta e pouco desenvolvida, os germes de uma língua rica e expressiva. Às vezes o alfa- beto manual, e, mais ainda, a pena e o giz in- AbAde SICARd 55 tervinham nas suas demonstrações e em suas conversas. Ora, os sinais metódicos são uma espécie de nominação, por assim dizer material, não somen- te das palavras, mas das formas gramaticais que as modificam. Deu-se aos primeiros o nome de si- nais de nomenclatura, e aos segundos o de sinais gramaticais. As regras da linguagem de gestos diferem tão essencialmente das da língua falada, que se de- veria apenas retificar o que os gestos poderiam ter de defeituoso, de falso, liberando-os à total in- dependência de seu desenvolvimento, ou, ao me- nos, aperfeiçoando-os e os tornando capazes de suprir a todas as necessidades do espírito. Foi destinado a um professor mais clarividen- te, mais judicioso, a bébian, retomar esse prin- cípio, colocado com tanta sabedoria pelo abade de l’Épée, que se deve ensinar a um surdo-mudo através de sua própria linguagem, ou seja, a lin- guagem dos gestos, como se ensina uma língua estrangeira a uma criança comum, com a ajuda de sua língua nacional. Ninguém podia melhor sentir quanto impor- tava, no entender dos progressos do aluno, res- peitar as leis do entendimento humano, estabe- AbAde SICARd56 lecendo as relações seja dos signos com as ideias, seja dos signos entre eles. Nos dias de hoje, parece reconhecido univer- salmente, ou falta pouco para isso, que, na aplica- ção desse princípio tão fecundo, a linguagem dos gestos e uma língua falada qualquer, não podem se prejudicar em nada, ainda que em aparência uma e outra não devam concordar, pelo menos na construção. esse tema teria que ser tratado mais longa- mente, mas, na nossa opinião, deve ser suficiente ter apenas lançado uma distinção entreos sinais metódicos e os sinais naturais no meio de uma simples nota que não comportaria, por outro lado, uma discussão árida. Além do mais, nós não saberíamos insistir o bastante para colocar no espírito de todos, que não se está seguro de chegar a um perfeito co- nhecimento da mímica a não ser pelo uso diário e por uma rara habilidade de descobrir tudo que se passa na alma dos surdos-mudos. O abade Sicard tirou a ideia de sua teoria do signos no Dictionnaire (1) que o seu célebre pre- decessor havia formulado, salvo algumas ligei- ras mudanças, a partir do Abrégé de Richelet, (1) ver no fim do volume a nota G. AbAde SICARd 57 corrigé par de Wailly, trabalho que a morte veio interromper no momento em que ele ia lançá-lo. Resolvido a prossegui-lo e imaginando-se pronto para aperfeiçoá-lo, ele dividiu sua nova obra em várias séries: os objetos físicos, os adjetivos, os nomes abstratos, etc. Tratava-se de ditar a palavra árvore, ele fa- zia ao seu aluno três sinais: o primeiro represen- tando um objeto enterrado na terra; o segundo, o crescimento e a elevação progressiva deste objeto; o terceiro, os galhos que nascem do tronco e que o vento agita. Se fosse a palavra professor, ele precisava: 1º os sinais de uma sala pública ou particular, de um colégio, de um liceu, de uma instituição; 2º os sinais da gramática, lógica, metafísica, línguas, aritmética, geografia, geometria, etc; 3º ele representava a ação de reunir pessoas jo- vens, de lhes falar e de lhes ensinar publicamente. Entretanto, um único sinal para nós é sufi- ciente, hoje em dia, para exprimir tão claramente quanto completamente todas essas ideias. Além do mais, não devemos nos munir de cora- gem e de paciência, se quisermos prosseguir até o fim a leitura de um livro tão volumoso e tão estressante? AbAde SICARd58 Antes de prosseguir, parece-nos apropriado es- tabelecer uma diferença entre os dois principais meios de comunicação em uso pelos surdos-mu- dos: a dactilologia e a mímica, que se vê frequen- temente confundidas pelo público. A dactilologia, criança da arte, é apenas o mo- delo fiel das letras do alfabeto de uma dada lín- gua, incompreensível àqueles que não conhecem essa língua, limitando-se a reproduzir essas le- tras uma a uma, tão exatamente quanto possível, com ajuda dos dedos. A mímica, ao contrário, é a admirável lingua- gem da natureza, comum a todos os homens, por- que não reproduz palavras, mas ideias, criada pela necessidade, a imaginação, o talento, e, gra- ças ao seu caráter de universalidade, compreen- dida por todos os povos. A mímica não é ainda essa linguagem primi- tiva da qual a criança se serve instintivamente antes e mesmo depois da eclosão do nascimen- to da sua razão; tornando-se, numa idade mais avançada, sem que os falantes o percebam, em suas conversações diárias, o auxiliar obrigatório das pessoas que brilham num púlpito, na tribuna política, na cátedra, na cena trágica, cômica ou mesmo lírica? Um balé, exatamente reproduzido, AbAde SICARd 59 não é, além disso, uma excelente lição de mímica? Nunca será demais repeti-lo, por mais que ten- temos descrever fielmente as diferentes posições e os diversos movimentos que a mão ou o braço é capaz de executar, não o conseguiremos. O pintor que destacasse de um modelo, cada um dos traços que o compõem, para fazê-los pas- sar isoladamente sob nossos olhos, não nos daria a menor ideia da fisionomia desse modelo. Aquele, então, que quer se iniciar seriamente nos segredos da mímica, só tem que se colocar em presença da natureza e apreender, por assim di- zer, as luzes que dela escapam. Que deixe, depois, falar toda a sua alma, se estiver inspirado! É as- sim e somente assim que sempre se consegue. Retornemos, ainda, por um momento ao Cours d’instruction d’un sourd-muet de naissance, que parece ter sido exaltado além de seu mérito. Talvez nosso exame ultrapassasse os limites deste modesto trabalho, se nós decidíssemos pas- sar na peneira esta liga estranha de graves erros, de divagações ousadas, de procedimentos mais ou menos engenhosos, e de análises mais ou menos profundas. Limitemo-nos a destacar as divisões AbAde SICARd60 que o autor assinalou nessa obra como meios de comunicação! Não coloca ele, com efeito, o décimo quinto meio de comunicação, o Tempo, divisão que se faz, noções sobre o sistema do mundo, antes do décimo sexto que trata dos advérbios? Não resul- ta daí que uma tal transposição fere a ordem na- tural da geração das ideias? Por outro lado, não se poderia negar sem in- justiça, que tal publicação não fosse um verda- deiro serviço prestado, nessa época, à causa dos pobres surdos-mudos, ainda que não preenchesse completamente a ideia que seu título pudesse ter dado de início. Ah! O que seria se o autor tivesse melhor sa- bido mostrar o caminho que deve seguir modes- tamente um pai ou uma mãe de família, um pro- fessor ou uma professora primária, e, sobretudo, se ele tivesse determinado de uma maneira mais racional seu ponto de partida e seu ponto de che- gada com seu jovem surdo-mudo? Tais procedi- mentos não valem a pena que o observador os tome como termo de comparação entre o surdo- mudo e a criança comum? A história da educação dos surdos-mudos seria história das faculdades morais e intelectuais. “Que espetáculo mais digno de toda a atenção do filósofo, observou Bébian, do que assistir, por AbAde SICARd 61 assim dizer, à eclosão da inteligência humana, do que ver surgir e se desenvolver esta faculdade que eleva o homem acima de tudo que o cerca e o coloca entre o céu e a terra! “Se o estabelecimento de uma língua univer- sal, acrescenta esse professor eminente, fosse uma coisa que se podesse esperar, a linguagem dos gestos me pareceria, como a Vossius e ao aba- de de l’Épée, o meio mais próprio de atingir este objetivo.” Vemos que nesse aspecto os modernos concor- dam com os antigos que, para grande espanto de seu século, haviam reconhecido do que a mímica era capaz, com a condição que ela fosse fiel, e que não passasse superficialmente por esta palavra de aparência vulgar. em face de tão respeitáveis autoridades, nós nos sentimos no direito de deplorar que alguns professores que não estudaram nada, e nada aprenderam na nossa especialidade, tomem dia- riamente um caminho falso, em vez de tomar a natureza por guia e por objetivo. Não é tempo de condenar em última instância sua pretensão, para não dizer, de jogar a torto e a direito crian- ças surdas-mudas nos bancos de jovens ouvintes- falantes para forçar os primeiros a receberem com os segundos as lições de uma articulação forçada? AbAde SICARd62 essa nunca foi a opinião de nossos grandes mestres. Não foi demonstrado por eles até a evi- dência, que a mímica é a pedra angular da arte de educar os surdos-mudos, enquanto que a arti- culação é para eles apenas um meio acessório e secundário? e ainda, esta última só deveria ser ensinada aos nossos irmãos e às nossas irmãs cujos órgãos tivessem uma certa aptidão para isso. “Senhores, disse um dia o abade Sicard, numa das aulas que dava na sua escola, eu percebo en- tre vocês uma pessoa transportada de admiração escutando um dos meus surdos-mudos pronun- ciar algumas palavras. bem! Se me fosse permi- tido pagar para uma semelhante tarefa, não sai- ria da casa um só aluno que não soubesse falar.” – De toda forma, pôde acrescentar, com o risco dele não ser compreendido e de não se compreen- der a si mesmo. ––––– AbAde SICARd 63 CAPÍTULO IX exercícios públicos dos surdos-mudos. Incrível entu- siasmo dos espectadores. O abade Sicard se conten- ta em falar em outros lugares de suas tentativas e de seus sucessos. – Procura-se persuadir a Napoleão 1º que o célebre professor não inventou nada para esses infelizes. esta insinuação é rejeitada numa carta do ilustre inventor à M. barbier, bibliotecário da dita Majestade. Resta-nos dizer uma palavra sobre um outro livro do abade Sicard: Les élémentsde grammaire générale appliquée à la langue française (1814, 1 vol.in-8º). existem poucos livros que tenham tido, desde seu início, tantas edições. La Grammaire généra- le do abade Sicard ocupava um lugar eminente, como livro clássico, nas prateleiras de todas as bibliotecas, e até nos mais modestos pensionatos de jovens moças. essas pobres inteligências, em vez de se lamentar de não compreendê-la, logo que elas a dominavam, acreditavam timidamen- te não dever se ocupar a não ser delas mesmas. Mas o olhar severo da razão não tardando a perceber a sábia obscuridade da obra, acaba por apreciá-la o no seu justo valor. entretanto, o que levou mais longe a glória do nome do nosso professor, foram seus exercícios mensais aos quais ele admitia um público nume- roso, mas onde se destacavam sobretudo homens eminentes de todo gênero. O pátio do estabele- cimento estava sempre cheio de transportes re- quintados. esses grupos sempre crescentes não atestavam, também, a curiosidade que os levava a contemplar os fenômenos vivos do demonstrador? A sala, no meio da qual se achava um grande quadro de Langlois, representando o abade com vários de seus alunos alunos dos dois sexos, fica- va lotada antes da hora indicada. Apenas atra- vessava a porta, os assistentes se levantavam em massa para saudar sua entrada. depois só se ouviam gritos prolongados de entusiasmo. Os jor- nais públicos se apressavam a repeti-los ao lon- ge, de sorte que o primeiro favor que os estran- geiros queriam, chegando à nossa capital, era de apreciar o que chamavam, a torto e a direito, as representações do abade Sicard, representações teatrais nas quais ele se comprazia em colocar constantemente em cena seu aluno Massieu. AbAde SICARd 65 Acharam por bem reprovar, no abade Sicard, uma arte prestigiosa, muito afastada do natural, uma profusão de imagens obtidas, às vezes, em prejuízo do simples bom senso, e ainda seu sota- que gascão que beirava o grotesco, sabia sempre cativar seu auditório generoso, graças sobretudo a esse interesse que se associa naturalmente a uma enfermidade qualquer. A complacência e o ingênuo entusiasmo com os quais ele expunha seus procedimentos e seus sucessos não deviam achar uma desculpa nos ho- noráveis motivos que o faziam agir? Não extraía, enfim, o prestígio da eloquência nos milagres que acreditavam ver operar sobre seus alunos? (1) O curso do abade Sicard era frequentado por seus explicadores, suas explicadoras, e as pesso- as jovens que se apressavam em recomendá-lo. Acontecia três vezes por semana, na terça-feira, na quinta e no sábado, ao meio-dia. Mme Laurine duler, explicadora falante da Institution des sourds-muets de Paris, depois di- retora da escola d’Arras, que não esquecia nada do que seu antigo mestre tinha tido ocasião de en- sinar nos seus cursos particulares sobre os sinais, (1) Ver no final do volume a nota H. AbAde SICARd66 contribuía para colocar em prática sua Théorie des signes. ele não era menos feliz em todas as reuniões, em todos os círculos onde ele era chamado. Um de seus amigos, M. billet, vice-presidente da co- missão administrativa da escola de surdos-mu- dos d’Arras, conta num jornal: o Benfeitor dos surdos-mudos e dos cegos (primeiro ano, abril de 1854), ligado intimamente com o abade Sicard, sempre o encontrava nos salões de M. daunou, seu protetor. “ele era, diz ele, o charme de nossas conver- sas e nós amávamos sobretudo, fazê-lo falar dos surdos-mudos. então, sua inteligência pegava fogo, ele se deixava elevar à altura desses gran- des príncipes dos quais ele amava se dizer o le- gislador, e não era raro vê-lo nos transportar aos campos da demonstração de seus procedi- mentos didáticos. Nós lhe perdoávamos, de bom grado, suas abstrações em favor de seu ardente amor por seus alunos e, logo depois, eu mesmo me sentia sempre levado a lhes querer e a lhes fazer bem.” entretanto, os triunfos do professor não es- tavam isentos de contradições. Não impediram de rebaixar, no espírito de Napoleão 1º, o mérito AbAde SICARd 67 que todo mundo parecia lhe reconhecer. É o que testemunha uma carta que o abade endereçou no dia 10 de setembro de 1805 a M. barbier, biblio- tecário de Sua Majestade imperial e do Conselho de estado. “eu lhe envio, Senhor, diz esse último, a obra do abade de l’Épée que devia lhe ter sido reme- tida ontem com as minhas. eu o anunciei à Sua Majestade destruindo as más impressões que tentaram insinuar, em minha conta.” eis a carta do abade Sicard: “O Imperador foi bom o suficiente para me fa- zer a paternal revelação do que lhe disseram de mim. esforçaram- se em lhe fazer acreditar que eu não tinha inventado nada na arte que eu pro- fesso, que o abade de l’Épée tinha descoberto tudo, tudo definido antes de mim. Acrescentaram que eu havia formado apenas um aluno, que eu havia mecanicamente levado a fazer provas forçadas. Sua Majestade não me repetiu essas palavras, mas não me foi difícil descobrir que lhe haviam dito. Estarei plenamente justificado, se vocês fo- rem bons o suficiente para ler l’Introduction de ma théorie des signes e para acompanhar o traba- lho do meu ilustre mestre, assim como algumas passagens do meu Cours d’instruction, entre os quais os capítulos 21, 22, 23, 24, 25 e 26. “deixo à sua extrema boa vontade, o cuidado AbAde SICARd68 de aproveitar os momentos preciosos que se apre- sentarão, de buscá-los mesmo, a fim de fazer pas- sar à alma de Sua Majestade as disposições favo- ráveis da sua a meu favor. “Acrescente a homenagem dessas mesmas obras, que você quiser ter a bondade de apresen- tar a Sua Majestade. Já é para mim um sucesso imenso pensar que elas serão integradas na sua coleção. “Creia, Senhor, na alta estima que me inspira, como a todo mundo, e ao devotamento particular com a qual eu tenho a honra de ser, seu, etc.” ––––– AbAde SICARd 69 CAPÍTULO X Visita do papa Pio VII à Instituição de surdos-mudos. O diretor lhe dirige um discurso, seguido da apre- sentação de seu método. – entre seus alunos bri- lham duas charmosas jovens surdas-mudas: uma, Mlle de Saint-Céran, cumprimenta Sua Santidade com uma alta e inteligível voz; a outra, Mlle Fanny Robert, o cumprimenta em italiano. – Na casa de impressão Le Clerc, os operários surdos-mudos de- positam aos pés do Soberano Pontífice um discurso latino que ele mesmo acabara de imprimir. – A se- guir ele percorre as oficinas, os dormitórios, etc. – Mlles Robert e Saint-Céran são levadas às Tuileries pelo abade Sicard. entre os soberanos da europa, admiradores do abade Sicard, citamos o papa Pio VII, Fran- cisco II, imperador da Àustria, e Alexandre 1º, imperador da Rússia. Seremos gratos de poder apresentar aqui uma reportagem histórica do que se passou na Insti- tuição dos surdos-mudos no dia em que Sua San- tidade se dignou a visitá-la. No sábado de 25 de fevereiro de 1805, o So- berano Pontífice se conduziu ao estabelecimento. Cinco cardeais, entre os quais estava o Monse- nhor arcebispo de Paris, um grande número de prelados romanos e de bispos franceses, de ecle- siásticos, de funcionários, as primeiras autorida- des, estrangeiros importantes acompanhavam Sua Santidade. O papa chegou às 11h com todo seu séquito, escoltado por um destacamento de granadeiros a cavalo, da guarda e de várias companhias de caçadores a pé. O Soberano Pontífice foi recebido na descida da viatura, por MM. brousse – desfaucherets, de Montgomerency, bonnefous e Sicard, adminis- tradores da casa. Antes de entrar na sala de exercícios, ele abençoou solenemente a capela da escola, onde se achava um grande número de pessoas que ele igualmente abençoou. Na saída desta cerimônia, o Santo-Padre foi conduzido, pelos membros da administração, à sala das sessões, no meio da qual se elevava uma cadeira em forma de trono, encimado por um dossel. Alunos surdos-mudos dos dois sexos sob a supervisão de seus explicadores e explicadoras, estavam agrupados separadamente
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