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TRABALHO E SOCIABILIDADE UNIDADE 2 - NATUREZA DO TRABALHO NAS SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS Juliene Tenorio e Marina Gondim Introdução Nesta unidade, vamos abordar sobre a natureza do trabalho nas sociedades pré-capitalistas, conteúdo importante para a formação em Serviço Social, por contribuir para a compreensão de como se apresenta a natureza do trabalho em diversos modos de produção existentes nas sociedades pré-capitalistas e entender a história de como o ser social se relaciona e se influencia com o trabalho ao longo dos tempos. Para começar a entender essa trajetória, pense o que você sabe sobre trabalho na sociedade atual. Vimos, na unidade anterior, que muitas pessoas o confundem como sinônimo de emprego. Mas como ele era desenvolvido antes desse formato como hoje o conhecemos? Que relação o trabalho teve ao longo da história com a forma como nos organizamos em sociedade e nos relacionamos? Você já leu ou aprendeu sobre isso? Pois, agora, você terá a oportunidade de conhecer como o trabalho existiu em sociedades que antecederam a sociedade capitalista, com destaque para os modos de produção comunal-primitivo, escravista, asiático e feudal, que, de acordo com Marx, refletem épocas progressivas de formação econômica e social. Para isso, você aprenderá o que é modo de produção, conforme a compreensão da teoria marxista, o que difere e no que se assemelha o trabalho em cada modo de produção pré-capitalista. Sendo um capítulo essencialmente histórico, chamamos sua atenção para a importância que a história tem para nós seres humanos. Na análise de Marilena Chauí, o conceito de modo de produção esclarece uma distinção que opera no tratamento dado por Marx à história: a distinção entre devir e desenvolvimento. O devir é a sucessão temporal dos modos de produção ou o movimento pelo qual os pressupostos de um novo modo de produção são condições sociais que foram postas pelo modo de produção anterior e serão repostas pelo o novo modo. O desenvolvimento é o movimento interno de um modo de produção para repor seu pressuposto, transformando-o em algo posto; refere-se, portanto, a uma forma histórica particular, ou melhor, é a história particular de um modo de produção. Vamos começar? Bom estudo! 2.1 Modo de produção comunal-primitivo, escravista, asiático e feudal Apesar de tão atual e fazer parte de nosso cotidiano, o trabalho como hoje o conhecemos não é o mesmo, não tem a mesma natureza, nem a mesma forma ao longo da história da humanidade. Você verá como o trabalho alterou e foi alterado em diferentes modos de produção existentes no período que antecedeu o capitalismo, se mantendo central para a forma como nos organizamos e nos relacionamos enquanto sociedade. Neste item, você aprenderá sobre a relação entre trabalho e modo de produção, o trabalho no modo de produção comunal-primitivo, escravista, asiático e feudal. 2.1.1 Trabalho e sua relação com modo de produção O modo de produção consiste em uma das principais categorias teóricas do marxismo, e de forma simples, pode ser compreendida como a articulação entre forças produtivas e relações de produção, sendo fundamental para que você entenda como o trabalho é executado ao longo da história e em diferentes modos de produção. Marx (2008) afirmou que no processo de produção social da vida homens e mulheres entram em determinadas relações de produção, que nem sempre dependem de sua vontade, mas que são necessárias, pois correspondem a etapa de desenvolvimento das forças produtivas materiais. Você entendeu o que ele afirmou? Marx está dizendo que, durante a produção social de sua vida, ou seja, da produção das condições de sobrevivência da humanidade estabelecemos relações de produção que são necessárias para que isso ocorra. Só que essas relações têm historicidade, elas ocorrem fazendo parte do desenvolvimento das forças produtivas materiais. Vejamos, então, o que são forças produtivas e relações de produção para facilitar o entendimento. Clique nos botões a seguir e veja que as forças produtivas consistem no conjunto dos seguintes elementos, conforme Netto e Braz (2011): Meios de trabalho Tudo que é utilizado para trabalhar - instrumentos, ferramentas, instalações. Objetos de trabalho Tudo sobre o que os humanos intervêm - matérias naturais. Os dois primeiros elementos, os meios e objetos de trabalho integram os meios de produção. E o terceiro elemento constitui a mais preciosa das forças produtivas, visto que são os seres humanos “[…] que, através do acúmulo de gerações, aperfeiçoam e inventam instrumentos de trabalho, descobrem novos objetos de trabalho, adquirem habilidades e conhecimentos” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 68). Vale lembrar sobre as mudanças que ocorreram quando homens e mulheres descobriram o fogo. O que produziram de instrumentos, desenvolveram técnicas e habilidades, repassaram e desenvolveram novos conhecimentos. Força de trabalho Energia humana empregada no processo de trabalho. Figura 1 - Forças produtivas contêm meios, objetos e força de trabalho. Fonte: Michaeljung, iStock, 2020. Como essas forças produtivas operam num marco de relações determinadas de caráter técnico e social, vinculadas às relações de produção. As relações técnicas de produção têm relação com o domínio que os produtores têm sobre os meios e o processo de trabalho que estão envolvidos, dependendo do grau de especialização do trabalho, das tecnologias empregadas, dentre outras. Já as relações sociais de produção são as determinadas pelo regime de propriedade dos meios de produção fundamentais, e subordinam as relações técnicas de produção (NETTO; BRAZ, 2011). Vejamos um exemplo. Nas comunidades primitivas, as relações sociais de produção eram de cooperação e ajuda mútua, pois a produção e o resultado da produção eram partilhados pelo grupo. Nesse caso, a propriedade dos meios de produção fundamental era coletiva. Não foi o caso do modo de produção escravista. Nele, existia um grupo de proprietários dos meios, objetos e da força de trabalho, que se apropriava do que era produzido por outro grupo, que era explorado, escravizado. Nesse caso, as relações sociais estabelecidas são de antagonismo e a propriedade dos meios de produção fundamentais privada. Em síntese, o modo de produção consiste na articulação entre as forças produtivas (formadas pelos meios, objetos e força de trabalho) e as relações de produção (técnicas e sociais). Mas é importante destacar aqui que ele não resulta de um processo harmonioso do desenvolvimento histórico-social, pelo contrário, nele integram contradições provocadas pelas diferenças de ritmos que podem existir entre as forças produtivas e as relações de produção, podendo resultar em sua substituição por outro modo de produção (NETTO; BRAZ, 2011). Por isso, você encontrará a seguir como o trabalho se desenvolveu em diferentes modos de produção. Marx (2008, p. 47) reforça que “[…] a totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se ergue uma superestrutura jurídica e política, e a qual correspondem determinadas formas da consciência social”. Isso significa que no modo de produção se encontra a estrutura: a base econômica da sociedade. Ela implica na existência da superestrutura, isto é, “[…] conjunto de instituições e de ideias com ela compatível” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 71), compreendendo fenômenos extraeconômicos, quais sejam as instâncias jurídico-políticas, ideologias ou formas de consciência social. Importante compreender que as relações entre estrutura e superestrutura mudam em cada modo de produção, sendo a estrutura determinante para a superestrutura. Figura 2 - A base econômica da sociedade define as instâncias jurídico-políticas. Fonte: Sebastian Duda, Shutterstock, 2020. Por exemplo, a estrutura (base econômica) do modo de produção escravista é muito diferente da estrutura do modo de produção feudal. Só que essas mudanças não se limitam à esfera econômica. A partir da alteração da base econômica, ou seja, da estrutura, todos os outros fenômenosque não são econômicos, como as leis, a organização do Estado, a forma de se organizar e pensar de uma sociedade, seus valores, aquilo que é considerado ético e o que não, dentre outros, são consequentemente alterados, sendo muito diferentes os que existiram no escravismo do feudalismo, por exemplo. Duas questões ainda são importantes a serem observadas com relação ao modo de produção. A primeira reside na relação entre as leis de desenvolvimento que regem a atividade econômica e a vida social, e as leis da natureza. Elas possuem em comum o fato de serem objetivas, ou seja, existem e atuam independente da nossa consciência e conhecimento sobre elas, nos cabendo conhecer e utilizar em nosso benefício. Mas existem diferenças significativas que tornam as leis econômicas particulares quando comparadas às leis da natureza. Elas operam como tendências que podem ser travadas por outras leis ou intervenção consciente de seres humanos realizando a contratendência, assim como elas têm validade limitada, sendo marcadas por cada modo de produção (NETTO; BRAZ, 2011). A segunda questão consiste na possibilidade de transformação do modo de produção. Diante da contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, o modo de produção pode ser alterado. Um dos casos, por exemplo, que veremos a seguir, diz respeito ao fato de que a produção de excedente na comunidade primitiva foi um dos fatores que levou ao seu fim e à adoção de um novo modo de produção que foi o escravista (NETTO; BRAZ, 2011). Neste caso, ressaltamos que, mesmo sendo construído outro modo de produção, vestígios das formas passadas podem ser mantidas. Por isso, é comum usar a expressão formação econômico-social ou formação social para se referir à “[…] estrutura econômico-social específica de uma sociedade determinada, em que um modo de produção dominante pode coexistir com formas precedentes” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 73). VOCÊ QUER LER? O “Dicionário do Pensamento Marxista” (1988) é um guia sucinto para a compreensão dos conceitos básicos do marxismo, a partir de diferentes interpretações e posições críticas, e para o conhecimento dos pensadores e das escolas de pensamento cujas obras contribuíram para formar o corpo das ideias marxistas desde o tempo de Marx. Elementos do modo de produção escravista podem ainda existir, ainda que com menor importância ou força, no meio de produção feudal, por isso é importante conhecer as formações pré-capitalistas para identificar que elementos delas continuam presentes até hoje no modo de produção capitalista. 2.1.2 O trabalho nas comunidades primitivas Os primeiros seres humanos que habitaram a Terra viveram de forma muito diferente do que hoje conhecemos como civilização ou sociedade. Habitando as margens dos rios Nilo e do Eufrates, na Índia e China, se organizavam como uma comunidade primitiva, por cerca de 30 mil anos (NETTO; BRAZ, 2011). Quais características tinha essa comunidade, cujo regime social foi denominado de primitiva? Vejamos a resposta. A moradia era rudimentar, a alimentação obtida por meio do trabalho da coleta de vegetais e da caça, cujo consumo era imediato, predominava o nomadismo relacionado às necessidades de sobrevivência, os resultados de atividades eram partilhados por todos os integrantes. Dessa forma, imperava nas relações sociais de produção “[…] a igualdade resultante da carência generalizada e a distribuição praticamente equitativa do pouco que se produzia” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 68), havendo apenas a diferenciação das atividades entre homens e mulheres, onde eles caçavam, enquanto elas coletavam e preparavam os alimentos. Marx chama atenção de que a vida nômade é a primeira forma de sobrevivência, visto que a tribo ou comunidade se estabelece em lugares diferentes, aproveitando o que encontra da natureza em cada local e seguindo adiante em busca de novos locais. Portanto, “[…] a comunidade tribal, o grupo natural, não surge como consequência, mas como condição prévia da apropriação e uso conjuntos, temporários, do solo” (MARX, 1985, p. 66). Com a produção de instrumentos voltados para prover a alimentação, por meio da coleta e caça, da domesticação de animais e do surgimento da agricultura, essas comunidades foram alterando sua organização e as características mencionadas anteriormente. Vincularam-se a um território, aperfeiçoaram instrumentos de trabalho, começaram a entender do tempo (as estações do ano, o intervalo entre o tempo de semear e o tempo de colher), a usar as forças naturais, como a irrigação. Também passaram a ter tarefas agrícolas, como o pastoreio e o cultivo, criaram artesanato, a partir da fabricação de cerâmica, metal, rodas e tecidos, dentre outros. Figura 3 - Comunidade primitiva e a caça como estratégia de sobrevivência. Fonte: Lolloj, Shutterstock, 2020. A fixação e as modificações, pois, de comunidades originais foram resultado de condições externas, sejam elas climáticas, geográficas, físicas, dentre outras, mas também da constituição de seu caráter tribal que proporciona “[…] a apropriação das condições objetivas de vida, bem como da atividade que a reproduz e lhe dá expressão material, tornando-a objetiva (atividade de pastores, caçadores, agricultores etc.)” (MARX, 1985, p. 67). É a terra e sua intervenção nela que proporciona os meios e objetos de trabalho, como também a localização, a base da sociedade. Figura 4 - Comunidade primitiva e a criação de instrumentos e técnicas para sobrevivência. Fonte: Jannarong, Shutterstock, 2020. VOCÊ SABIA? Na Era do Clã, a estrutura social era de parentesco por linha feminina. Fato que se explica porque os casamentos de grupo eram prática comum; por isso, as crianças ignoravam quem eram os pais, mas sabiam quem eram as mães. Assim, o parentesco era exclusivamente por linha materna. A sociedade baseada neste sistema, dito matriarcal, durou vários milhares de anos. Este tipo de sociedade coincidiu, grosso modo, com os períodos Mesolítico e Neolítico Inferior e representou um estádio importante no desenvolvimento da Humanidade (MANFRED, 1977). Você percebeu como, por meio do trabalho, seres humanos na comunidade primitiva foram criando instrumentos, desenvolvendo técnicas, construindo e repassando conhecimento, desenvolvendo habilidades, alterando a forma de organização das comunidades, bem como a forma como se relacionavam? Homens e mulheres criam e reproduzem as condições para sua existência no cotidiano, por meio do trabalho. Hobsbawm (1985, p. 16) afirma que “[...] fazem isto atuando na natureza, tirando da natureza, apropriando-se dela (e, às vezes, transformando-a conscientemente) com este propósito”? É essa interação e relação entre seres humanos e natureza que produz a evolução social. Neste período, muito maior que o desenvolvimento de técnicas, instrumentos, formas de organização, uma transformação importante alterou a lógica da comunidade primitiva. Segundo Netto e Braz (2011, p. 69), foi a ação sobre a natureza que permitiu a produção de bens muito maior que as necessidades imediatas de sobrevivência, produziu o excedente econômico, “[…] a comunidade começava a produzir mais do que carecia para cobrir suas necessidades imediatas”. Que transformações isso traz? A penúria, a escassez, vivenciada pela comunidade primitiva começa a ser reduzida e surge a possibilidade de acumular os resultados do trabalho realizado gerando o seguinte, conforme clicando nos botões a seguir (NETTO; BRAZ, 2011): Maior divisão na distribuição do trabalho e a produção de bens que serão utilizados para troca com outras comunidades, dando início a mercadoria e ao comércio. Possibilidade de exploração do trabalho humano, dividindo a sociedade, na época, entre produtores de bens direitos dos que se apropriam dos bens excedentes. Perceba, então, que enquanto ser social, homens e mulheres desenvolvem, a partir da produção do excedente de bens e alimentos maior do que é necessário para se manter individual e coletivamente, a cooperação como uma divisão social do trabalho, ou seja, uma especialização dasfunções na comunidade, bem como ampliam “[…] as possibilidades adicionais de geração desse excedente” (HOBSWAM, 1985, p. 36) tornando possível a troca entre membros de uma mesma comunidade e entre diferentes comunidades. • • A partir da possibilidade de acumulação versus a alternativa de exploração efetivadas que justificam o fim da comunidade primitiva, visto não possuir mais os mesmos elementos iniciais de sua configuração como primitiva, sendo sucedida pelo modo de produção escravista. 2.1.3 O trabalho no modo de produção escravista Você viu no item anterior que a produção de excedente econômico representou o desenvolvimento das forças produtivas, da produtividade do trabalho, possibilitou a troca entre diferentes grupos humanos, a apropriação do excedente de quem passou a explorar os produtores diretos, assim como contribuiu com o fim da comunidade primitiva (NETTO; BRAZ, 2011). O modo de produção escravista foi implantado por volta de 3.000 anos antes de Cristo, configurando o Mundo Antigo e se mantendo até a queda do Império Romano. Com a produção do excedente se alterou radicalmente as relações sociais até então vigentes, tornou compensador escravizar outros seres humanos, visto que “[…] só vale a pena ter escravos se o seu proprietário puder extrair deles um produto excedente (ou sobreproduto)” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 77). Figura 5 - Comunidade primitiva e exemplo de produção de excedentes agrícolas. Fonte: Roman Rvachov, Shutterstock, 2020. Existem registros de que grandes civilizações como Grécia, Egito, Roma, Pérsia, dentre outras, passaram a fazer uso do trabalho de escravos, sendo estes adquiridos por meio das guerras por domínio territorial, pagamento de dívidas ou mesmo a própria entrega de homens como alternativa de sobrevivência. Os tipos de trabalhos variavam de acordo com a organização e a cultura de cada civilização, assim como o tratamento dado a eles. Mas o principal é o fato que o crescimento e desenvolvimento dessas civilizações se deveu expressivamente ao uso do trabalho de homens, mulheres, crianças, seres humanos que foram desumanizados e escravizados (WILD, 2007). Marx (2008) destaca que como a força “trabalho humano” foi se tornando cada dia mais capaz de criar produtos acima da quantidade necessária para sustentar os/as produtores/as, a ambição estimulou a busca por novas “forças de trabalho”, sendo fornecida, principalmente, por meio das guerras, em que prisioneiros eram transformados em escravos. O resultado foi: aumento da produtividade do trabalho, produção de riqueza, ampliação do campo da produção, estabelecendo a primeira divisão do trabalho e a divisão da sociedade em duas classes principais: “[…] senhores e escravos, exploradores e explorados”(MARX, 2008, p. 7). Figura 6 - A produção de excedentes tornou compensador escravizar seres humanos. Fonte: Everett Historical, Shutterstock, 2020. É importante que você compreenda que ao produzirem os meios de vida, homens e mulheres produzem, ao mesmo tempo, sua vida material. Isso significa que o modo de produzir os meios de vida consiste na reprodução física dos indivíduos e na reprodução de determinado modo de vida, ou seja, “[…] determinado modo de produzir supõe, também, determinado de cooperação entre os agentes envolvidos, determinadas relações sociais estabelecidas no ato de produzir, as quais envolvem o cotidiano da vida em sociedade” (IAMAMOTO, 2013, p. 66). Dessa forma, o grau de desenvolvimento da divisão social do trabalho, enquanto expressão econômica do caráter social do trabalho, expressa também o grau de desenvolvimento das forças produtivas sociais do trabalho, gerando a propriedade do poder de dispor do trabalho de outros, o que no caso do escravismo significa dispor da vida de outros também, além do trabalho. Figura 7 - Organização da sociedade escravista. Fonte: Elaborada pelas autoras, 2020. É na divisão social do trabalho e na divisão de classes que residem a contradição entre o interesse particular e o interesse coletivo de todos os indivíduos que se relacionam. Os senhores, proprietários de terras e escravos, buscam unicamente seus interesses, sendo os escravos e qualquer outro sujeito meio para satisfação de suas necessidades individuais e egoístas. As relações sociais estabelecidas, neste formato de sociedade, se baseiam na dominação de um grupo por outro, sendo condicionada pela divisão social do trabalho (IAMAMOTO, 2013). Neste modo de produção, o excedente econômico tomou a forma de mercadoria, enquanto um objeto exterior, uma coisa que satisfaz necessidades humanas, sejam relacionadas à sobrevivência ou aos desejos (MARX, 2002). O que resultou no desenvolvimento do comércio, na criação do dinheiro, na atividade mercantil entre diferentes sociedades, na propriedade privada. Você imaginou como se configurava o trabalho nesse contexto? Ele era realizado sob forma de coerção aberta e o resultado produzido pelo escravo lhe era retirado mediante violência, real e potencial, por quem se denominava proprietário das terras, da produção, dos excedentes e dos escravos. CASO A reportagem “Trabalho escravo: fiscalização resgata 59 em cafezais de MG” (AGÊNCIA BRASIL, 2019) aborda a operação de fiscalização que resgatou 59 trabalhadores de condição de trabalho análogo ao escravo, no interior de Minas Gerais. A fiscalização foi feita em conjunto por auditores-fiscais do trabalho e agentes da Polícia Rodoviária Federal no período de 19 a 28 de agosto de 2019. Os trabalhadores encontrados estavam em cafezais nos municípios de Campos Altos e Santa Rosa da Serra e retiravam, de forma manual, o resto do café que havia ficado nas plantas, após colheita feita por máquinas. A fiscalização constatou que os resgatados não tinham a Carteira de Trabalho e Previdência Social assinada e não recebiam pelo trabalho nem o pagamento proporcional ao salário mínimo. Os trabalhadores também não recebiam equipamentos de proteção individual para realizar as atividades. Não havia água potável, local adequado para refeições e instalações sanitárias nas frentes de trabalho. Tal caso demonstra, como estudamos nesta unidade, que a relação entre proprietários de terras em que trabalhadores são feitos de escravos, infelizmente, não está totalmente superada na sociedade atual; que até hoje muitas pessoas são submetidas a condição subumana, sem direito a dispor da própria vida e da liberdade de ir e vir e receber pelo seu trabalho. Vale lembrar que o resgate desses trabalhadores/as, não pode se limitar à retirada física do local de trabalho, mas deve atender a um conjunto de medidas para cessar o dano causado à vítima, reparar os prejuízos no âmbito da relação trabalhista, física e emocional, bem como promover o acolhimento por órgãos de assistência social. Por fim, diante do que vimos até aqui, podemos perceber que com o término do comunismo primitivo e início do modo de produção escravista, o equilíbrio entre as forças produtivas e as relações sociais de produção cede lugar à contradição, já que começa a haver luta pela apropriação do excedente. Nessa luta, as forças produtivas se desenvolvem ao máximo e fazem explodir as relações sociais de produção. Portanto, é a partir do desenvolvimento da contradição e o desenvolvimento da luta de classes que se explica o devir temporal dos modos de produção. Sob essa perspectiva, podemos dizer que os modos de produção surgem historicamente quando se completam a contradição e a luta de classes do modo de produção anterior (CHAUÍ, 2007). 2.1.4 Modo de produção asiático Na Antiguidade, não existiu apenas o escravismo. No Extremo Oriente, predominava o modo de produção asiático, com destaque para Índia, China chegando às regiões Norte/Nordeste da África. Era formado por um poder político central forte, denominado de Estado, representado pelas figuras do Imperador, rei ou faraó, responsável pela construção de obras hidráulicas de grande porte, como drenagem, irrigação, dentre outros, mantendo o controle de terras e da agricultura (NETTO; BRAZ, 2011). O arranjo espacialdeste modo de produção é horizontal, através das atividades de fundo agrícola e pastoril, em que as marcas naturais determinam a organização do território, em função do fraco desenvolvimento das forças produtivas. Exemplo disso foram os grandes rios Nilo, no Egito, Tigres e Eufrates, na Mesopotâmia, Hoang Ho, na China, que direcionavam os fluxos e circuitos da produção e da organização da vida em sociedade. Além disso, pela relação da economia com a política e com a religião, os grandes rios possuíam ainda um certo paradigma celestial (WALDMAN, 1994). VOCÊ QUER VER? O filme Amistad (1997), dirigido por Steven Spielberg, é baseado em eventos reais que aconteceram a bordo do navio negreiro La Amistad. O drama mostra a luta de um grupo de africanos escravizados em território norte-americano. Um ótimo filme para conhecer as condições de captura e transporte de escravos africanos para trabalhos exploratórios na América. Vale salientar que o modo de produção asiático como modo de produção característico das milenares formas orientais de sociedade, bem como primeira forma mais geral de sociedade pós-comunidade primitiva, foi um dos alicerces para a concepção histórica de Marx. Marx costumava chamar, por vezes, de forma asiática e em outros momentos como forma oriental de produção. Na análise de Antunes (2007), para a Marx, o caminho para se compreender o modo oriental de produção estava em entender que na Ásia, a propriedade da terra era monopólio do Estado, restando às comunidades locais apenas a posse privada da terra e dos frutos por ela produzidos. Era uma posse a nível de aldeia comunal, e não propriamente individual. Discorre ainda que, do ponto de vista de Marx, nenhum indivíduo oriental, mesmo que membro da elite, poderia ser proprietário privado de fato, pois o “direito” de distribuição das riquezas nestas sociedades despóticas não derivava da “vontade popular”, quer dizer, de uma suposta “sociedade civil”, mas, sim, da vontade do próprio déspota, o qual dava ou retirava tais benefícios conforme seus interesses, os quais se confundiam com os interesses do próprio Estado. Figura 8 - Importância dos rios para organização produtiva e da sociedade no modo de produção asiático. Fonte: Jose Ignacio Soto, Shutterstock, 2020. Waldman (1994) explica ainda que a base tributária do Estado eram as comunidades aldeãs interligadas a circuitos de apropriação do excedente econômico, repousando sobre elas o poder despótico do Estado, ou seja, de uma relação social tirana, opressora, arbitrária, autoritária do rei ou faraó sobre o povo. A relação entre campo e cidade aparece como uma unidade indiferenciada, ou seja, a cidade aparece apenas como um acampamento de príncipes, tendo os Templos e Palácios com seu esplendor, contrapartida do meio rural, onde o Estado se apropriava do excedente produzido pelo trabalho humano. Como analisamos no decorrer deste tópico, você não pode esquecer que do ponto de vista de Marx, a evolução histórica começaria com a comunidade primitiva, evoluiria para os modos de produção asiático, escravista e feudal, e no que se refere especificamente ao modo de produção asiático , de modo geral, é a primeira forma de evolução pós-comunidade primitiva. 2.1.5 Modo de produção feudal O modo de produção feudal ou feudalismo foi caracterizado pela atomização dos feudos em substituição à centralização imperial. Os feudos eram unidades econômico-sociais “[…] de base territorial de uma economia fundada no trato da terra” (NETTO; BRAZ, 2011, p. 78), pertencia a um nobre, chamado de senhor, que sujeitava os produtores diretos, chamados de servos. Nas palavras de Netto e Braz (2011, p. 78), “[…] a sociedade se polarizava entre os senhores e servos”, sendo a propriedade da terra o fundamento da estrutura social. Assim, a terra arável era dividida entre o senhor e o servo, em que este pagava os tributos e prestações pela ocupação da terra. Com uma condição diferente da dos escravos, ainda que duramente explorados pelas obrigações do trabalho, do pagamento dos tributos e dos dízimos recolhidos pela igreja, os servos possuíam instrumentos de trabalho e retiravam sustento do que produziam nas glebas e terras comunais. Além disso, havia compromissos mútuos entre servos e senhores, como, por exemplo, a proteção da vida do servo pelo senhor. Por outro lado, o que os servos produziam de excedente era expropriado por meio do monopólio da violência exercida pelos senhores (NETTO; BRAZ, 2011). VOCÊ O CONHECE? Friedrich Engels (1820-1895) foi um filósofo social e político alemão. Teve papel de destaque no desenvolvimento do marxismo. Colaborador e amigo de Karl Marx, ele completou os volumes II e III da obra "O Capital", que o autor não pôde concluir. Entre outras obras de Engels consideramos fundamental o livro: A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado (1884). Marx (1985) explica que a principal forma de propriedade, neste período, era a propriedade da terra ligada ao trabalho servil nela ou o trabalho individual com pequeno capital, sendo a organização dos dois determinada pelas restritas condições da produção: “[…] o cultivo da terra em pequena escala e primitivo, o tipo artesanal de indústria” (MARX, 1985, p. 118), havendo pouca divisão do trabalho. Cada região continha, em si mesma, o conflito da cidade com o campo e a divisão em estamentos era fortemente marcada; mas, além da diferenciação de príncipes, nobres, clérigos e camponeses, no cam- po, e dos mestres, jornaleiros, aprendizes e, cedo, também, a ralé de trabalhadores eventuais, nas cidades, não havia qualquer divisão importante. Na agricultura isso tornava-se difícil pelo sistema de cultivo por faixas, ao lado do qual surgira, como outro fator, a indústria caseira dos próprios camponeses. Na indústria não havia qualquer divisão de tra- balho dentro dos próprios ofícios e muito pouca entre estes. A separação de indústria e comércio já existia nas cidades mais antigas, nas mais novas apenas desenvolveu-se posteriormente, quando as cidades estabeleceram relações recíprocas. (MARX, 1985, p. 118) Observe que no modo de produção feudal, a forma como a sociedade se organizou, a forma como organizou a produção e as relações sociais de produção se alteram substancialmente quando comparada aos outros modos de produção apresentados nesta unidade, sendo o trabalho desenvolvido pelos servos e a produção excedente apropriada, por meio da violência (real ou potencial), por um grupo de pessoas que se colocam na posição de senhores. Netto e Braz (2011) ressaltam que os servos não aceitavam a exploração de seus senhores sem resistência. Muitas rebeliões camponesas marcaram este período, assim como as fugas. Por outro lado, pelo estímulo das Cruzadas, a estrutura social vai se complexificando quando os artesãos se organizam em corporações e os comerciantes/mercadores buscam mecanismos associativos, as chamadas ligas. Figura 9 - Condição servil dos camponeses no modo de produção feudal. Fonte: Maksud, Shutterstock, 2020. As Cruzadas consistiram em expedições militares realizadas pelas potências cristãs europeias, no período entre 1095 a 1291, como forma de combater o domínio islâmico na Terra Santa, reconquistar Jerusalém e pelos lugares por onde Jesus teria passado, mas também para ampliação de negócios, abrir novos mercados e obter lucro ao abastecer os exércitos que atravessavam a Europa a caminho do Oriente (MUNDO ESTRANHO, 2011). Assim como nos outros modos de produção, existiram fatos que influenciaram a erosão das bases deste modo de produção feudal. Ao estabelecer rotas comerciais para o Oriente, o comércio se desenvolveu, estimulou o consumo de mercadorias por troca de dinheiro pela nobreza, fomentou atividade comercial em regiões afastadas, estimulou a urbanização e criou cidades, favoreceu a crescente importância de comerciantes e mercadores como representantes da atividade mercantil movidos pelo objetivo do lucro, e criou relevância à riqueza mobiliária, que se traduzia pela acumulação de dinheiro. Como trazem Nettoe Braz (2011), foram dos grandes comerciantes nascidos no feudalismo que contribuiu com o surgimento, a partir do século XVI, da burguesia, “classe que derrotará a feudalidade”. Conclusão Chegamos ao final desta unidade, que abordou o tema a natureza do trabalho nas sociedades pré- capitalistas, oportunizando que você aprendesse sobre o trabalho, seu formato, a organização em diferentes modos de produção das sociedades pré-capitalistas. Nesta unidade, você teve a oportunidade de: compreender que o modo de produção compreende a articulação entre forças produtivas e relações de produção; entender que as forças produtivas consistem no conjunto dos seguintes elementos: meios de trabalho, objetos de trabalho e força de trabalho; aprender que nas comunidades primitivas as relações sociais de produção eram de cooperação e ajuda mútua, resultado da produção que eram partilhados pelo grupo; identificar que no modo de produção escravista os proprietários dos meios, objetos e da força de trabalho se apropriava do que era produzido por outro grupo, que trabalhava de forma explorada e escravizada; compreender que no modo oriental de produção a propriedade da terra era monopólio do Estado, restando às comunidades locais apenas a posse privada da terra e dos frutos por ela produzidos; aprender que o modo de produção feudal foi caracterizado pela atomização dos feudos em substituição à centralização imperial, que a economia fundada no trato da terra pertencia a um nobre, • • • • • • chamado de senhor, que sujeitava os produtores diretos, chamados de servos; apreender que as relações sociais estabelecidas na história são de antagonismo entre classes e se fundam nos modos de produção de cada período. • Bibliografia AGÊNCIA BRASIL. Trabalho escravo: fiscalização resgata 59 em cafezais de MG. Exame, São Paulo, 3 set. 2019. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/trabalho-escravo-fiscalizacao-resgata-59-em- cafezais-de-mg (https://exame.abril.com.br/brasil/trabalho-escravo-fiscalizacao-resgata-59-em-cafezais- de-mg). Acesso em: 26 dez. 2019. AMISTAD. Direção: Steven Spielberg. Roteiro: David Franzoni. Produção: Debbie Allen; Steven Spielberg; Colin Wilson. EUA, 1997, 155 min. ANTUNES, J. Marx e o último Engels: o modo de produção asiático e a origem do etapismo na teoria da história. In: COLÓQUIO INTERNACIONAL MARX ENGELS 5, 2007, Campinas. Anais eletrônicos [...], Campinas: Cemarx, IFCH, Unicamp, 2007. Disponível em: https://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt1/sessao3/Jair_ Antunes.pdf (https://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicacoes/gt1/sessao3/Jair _Antunes.pdf). Acesso em 26 dez. 2019. BOTTOMORE, T. (org.). 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