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Autoras: Profa. Adriana Ribeiro Negrão Profa. Daniela Emilena Santiago Colaboradoras: Profa. Amarilis Tudella Profa. Angélica Carlini Trabalho e Sociabilidade Professoras conteudistas: Adriana Ribeiro Negrão / Daniela Emilena Santiago Adriana Ribeiro Negrão Possui graduação em Serviço Social (1997) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), especialização em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade Paulista (UNIP) e mestrado em Serviço Social, Políticas Sociais e Movimentos Sociais (2015) pela PUC-SP. Atualmente, é professora da UNIP, ministrando as seguintes disciplinas: Economia Política; Perspectivas Profissionais em Serviço Social; Trabalho e Sociabilidade; Classes e Movimentos Sociais; e Política Social no Brasil. Tem experiência nas áreas de educação e assistência social, com ênfase em programas de apoio à formação e permanência estudantil. Conselheira Titular do Conselho Estadual de Assistência Social de São Paulo. No terceiro setor, atuou em ONGs de abrangência nacional e internacional, nas áreas de planejamento e treinamento socioeducativo. Trabalha nas áreas de gestão e docência do ensino superior da UNIP. Daniela Emilena Santiago Graduada em Assistência Social pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e especialista em Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes pela Universidade de São Paulo (USP). Possui mestrado em Psicologia e também em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Assis/SP, e ainda cursa o doutorado em História na mesma universidade. Atualmente, é funcionária pública do município de Quatá/SP, atuando como assistente social na Secretaria Municipal de Promoção Social. É docente do curso de Serviço Social da UNIP, na modalidade EaD, e dos cursos de Psicologia e Pedagogia, campus Assis-SP. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) N385t Negrão, Adriana Ribeiro. Trabalho e sociabilidade / Adriana Ribeiro Negrão, Daniela Emilena Santiago. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 112 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Processo de valorização. 2. Industrialização. 3. Categoria do Trabalho. I. Santiago, Daniela Emilena. II. Título. CDU 331.88 U506.01 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Prof. Dr. Yugo Okida Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Vitor Andrade Ricardo Duarte Sumário Trabalho e Sociabilidade APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................8 Unidade I 1 SIGNIFICADO ONTOLÓGICO DO TRABALHO E DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA ....................9 1.1 Trabalho como categoria central na constituição do ser social nos mais variados contextos históricos ....................................................................................................................9 1.2 Globalização econômica, desenvolvimento capitalista e desemprego .......................... 18 1.3 Trabalho, teleologia e ser social ...................................................................................................... 29 2 PROCESSO DE TRABALHO E PROCESSO DE VALORIZAÇÃO ........................................................... 34 2.1 A produção de valor por meio do trabalho nas sociedades capitalistas ....................... 34 2.2 A produção da mais-valia no modo de produção capitalista ............................................ 37 3 ALIENAÇÃO E ESTRANHAMENTO .............................................................................................................. 41 4 TRABALHO PRODUTIVO E IMPRODUTIVO .............................................................................................. 45 Unidade II 5 O CONTEXTO DA INDUSTRIALIZAÇÃO CAPITALISTA E AS ALTERAÇÕES NA CONFIGURAÇÃO DO TRABALHO ................................................................................................................... 52 6 O CAPITALISMO MONOPOLISTA, A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E AS MUTAÇÕES NO TRABALHO .............................................................................................................................. 65 7 A REALIDADE BRASILEIRA NO CONTEXTO DA INDUSTRIALIZAÇÃO E NOS PROCESSOS DE REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA .................................................................................... 83 8 O SERVIÇO SOCIAL E SUA VINCULAÇÃO À CATEGORIA TRABALHO ........................................... 93 8.1 As concepções de Iamamoto e Lessa sobre a relação firmada entre serviço social e a categoria trabalho ................................................................................................... 93 8.2 CFESS-CRESS e a defesa do trabalho e o mercado de trabalho do assistente social na atualidade .............................................................................................................. 97 7 APRESENTAÇÃO Prezado aluno, esta disciplina nos convida a pensar em questões relacionadas ao trabalho. Para dar início ao que vamos abordar neste livro-texto, é essencial ler o excerto a seguir: “Trabalho precário, intermitente, é a antessala do desemprego”, diz Ricardo Antunes Sociólogo analisa o futuro do trabalho no Brasil e a nova massa superexplorada da era dos serviços digitais Ricardo Antunes é um dos maiores especialistas brasileiros no tema do mundo do trabalho. Atualmente, é professor de sociologia do trabalho na Universidade Estadual de Campinas. Em seu último livro, intitulado O privilégio da servidão, Antunes desenhou um quadro da situação da classe trabalhadora na história recente do Brasil, a partir do fim da ditadura militar. O estudo se concentra no que ele chama de “novo proletariado de serviços”, alavancado com o crescimento do trabalho digital, on-line e intermitente dos últimos anos. Em entrevista ao Brasil de Fato, o sociólogo falou sobre o futuro do trabalho, as características das relações trabalhistas no Brasil e os impactos da reforma trabalhista sobre esse cenário. “Se a classe trabalhadora, os movimentos sindicais, sociais e os partidos de esquerda não desenharem outro modo de vida, daqui a dez anos eu vou dizer ‘está muito pior’. Com o mundo da internet, todos podem ter um tipo de trabalho onde não tem mais limite de jornada, não tem mais dia e noite”, avalia o sociólogo. Antunes também deu pistas sobre as formas de resistência que os trabalhadores podem impor à retirada de direitos e à crescente proletarização marcada pela superexploração, que tem atingido não só os trabalhadores do fast-food, motoboys, trabalhadores de hotéis, trabalhadores dos hipermercados, mas também a categorias com maior renda média, como médicos e advogados. Por fim, o professor enfatizou que a recuperação de uma política de conciliação de classes não é mais um caminhoviável. “Na nossa ação, todo o oxigênio não pode estar voltado para a institucionalidade. Qual é a prioridade? Garantir representação parlamentar ou organizar a massa da classe trabalhadora?”, provocou. [...] (HERMANSON, 2019). O trecho destaca um dos maiores estudiosos contemporâneos do conceito de trabalho. O foco de sua explanação é discutir a orientação para as alterações que ocorrem na categoria trabalho e para as relações laborais a ela inerentes. Como sabemos, o trabalho é uma das principais atividades humanas, que condiciona a nossa subjetividade e garante nossa reprodução material. Por conseguinte, o assistente social precisa compreender e conhecer as mudanças na forma de organização do trabalho, uma vez que elas provocam alterações em sua demanda e também em seu mercado de trabalho. 8 Este livro-texto tem por objetivo acentuar elementos teóricos para ajudá-lo a fazer uma análise crítica do mundo do trabalho hoje, compreendendo aspectos objetivos e subjetivos que impactam o cotidiano de homens e mulheres que vivem nesse modelo de sociedade capitalista. Nesse contexto, no entanto, é basal ilustrar elementos acerca das diversas configurações que o trabalho assumiu ao longo dos séculos. Seguindo as Diretrizes Curriculares para o curso de Serviço Social, conforme a ABEPSS e o Plano de Ensino desta disciplina elaborado pela UNIP, recorremos à perspectiva materialista histórico-dialética. Essa perspectiva compreende que a constituição do trabalho está relacionada à forma como o homem atende às suas necessidades, nos mais variados contextos. Tais análises são vitais para consolidar o perfil do assistente social atual, colaborando com sua formação e sua criticidade. INTRODUÇÃO Atualmente, temos visto o surgimento de vários formatos de organização do trabalho. Há o trabalho formal, os prestadores de serviços e os empreendedores. Ou seja, há um rol de opções que os seres humanos têm adotado para atender às suas necessidades de sobrevivência nos mais variados contextos. Conhecer esses formatos de organização laboral é extremamente importante para a formação de qualidade dos assistentes sociais. Inicialmente, estudaremos a natureza ontológica do trabalho. Nesse instante, é essencial que você pense de uma forma ampla na relação que o homem estabeleceu com a natureza e com os demais homens e, ainda, na maneira como foi complexificando seus instrumentais de transformação da natureza e modificando a si próprio enquanto ser humano genérico. Serão destacadas informações a respeito das mudanças produzidas ao longo do desenvolvimento do gênero humano no processo produtivo e na categoria trabalho. Na sequência, vamos refletir como a classe capitalista a partir do advento da industrialização organizou o trabalho. Estudaremos a chamada reestruturação produtiva e seus impactos nos processos de trabalho e na vida dos trabalhadores. Então, vamos acentuar os desafios dos trabalhadores na contemporaneidade. Por fim, será destacada a relação firmada entre serviço social e a categoria trabalho. 9 TRABALHO E SOCIABILIDADE Unidade I 1 SIGNIFICADO ONTOLÓGICO DO TRABALHO E DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA Neste capítulo, faremos um percurso pela categoria trabalho. Para tal, elencaremos informações sobre o desenvolvimento do trabalho nos diversos contextos históricos e sociais. Ainda vamos apresentar algumas colocações acerca do desenvolvimento do capitalismo frente à globalização, destacando informações sobre esse formato de organização do capital e o crescimento do desemprego. 1.1 Trabalho como categoria central na constituição do ser social nos mais variados contextos históricos O termo ontologia no pensamento filosófico contemporâneo faz menção a tudo que está relacionado aos conceitos de realidade, existência e natureza do ser humano. Assim, quando destacamos que há um significado ontológico do trabalho, queremos dizer que o trabalho determina a natureza de ser. Ou melhor, estudar a categoria trabalho, partindo do viés marxista, pressupõe compreendê-lo como algo essencial, que define o desenvolvimento e a constituição do ser social. Para isso, é importante conhecer as diversas formas por meio das quais o trabalho foi sendo constituído ao longo dos séculos, uma vez que isso define, substancialmente, o ser humano, bem como as relações sociais presentes em uma dada sociedade. Para a tradição marxista, as relações sociais organizam-se a partir da atividade econômica, cuja produção e circulação de bens garantem a satisfação das necessidades individuais ou coletivas de uma determinada sociedade. Há diversas formas pelas quais o ser humano busca atender a suas necessidades básicas. Por conseguinte, essas ações são nomeadas, dentro da perspectiva marxista, de trabalho. Assim, o trabalho é a forma por meio da qual o gênero humano vai conseguindo contemplar as suas necessidades. Marx nos indica que nas sociedades primitivas o trabalho advém do processo entre o homem e a natureza, em que o homem transforma a natureza e, ao transformá-la, transforma a si próprio e define sua relação com os outros homens. Essa manipulação aconteceu para que o homem conseguisse atender às suas necessidades (MARX, 1996). Outrossim, é necessário destacar que nas sociedades primitivas o homem vivia em grandes agrupamentos. Esses agrupamentos eram compostos de pessoas que se pertenciam e se defendiam. Segundo Engels (1988), o gênero humano passou por um longo processo de desenvolvimento; o homem começou a trabalhar em grupos, que facilitavam a caça e a atenção das necessidades mais básicas. Conforme Engels (1988), esses formatos de “organização” não são inatos, mas foram desenvolvidos pelos homens primitivos. Essa necessidade, do trabalho em grupo, digamos assim, foi fundamental para a especialização dos órgãos do sentido. Para o autor, a vivência em grupo requereu o desenvolvimento 10 Unidade I da fala, da audição e do psiquismo humano. Dessa forma, há uma importante consideração a ser feita e que você não pode se esquecer: o trabalho influencia substancialmente o desenvolvimento humano. Ele é considerado como o elemento basal de especialização das funções psíquicas superiores, como pensamento, linguagem e memória. Na maior parte desse período da história, o ser humano e os grandes agrupamentos sobreviviam da extração de elementos necessários a sua sobrevivência diretamente da natureza. Os grandes agrupamentos de que nos fala Engels (1988) eram nômades. Extraíam o que precisavam para sobreviver em uma região e, quando os recursos começavam a se esgotar, eles se direcionavam para outros espaços. Essa percepção de que era necessário explorar outros locais não foi algo desenvolvido prontamente no homem, mas sim algo que foi sendo construído de forma associada à especialização dos sentidos humanos. O autor nos diz, no entanto, que nem sempre todo o grupo mudava entre as regiões; antes, algumas pessoas se fixavam em determinadas regiões, iniciando um longo e demorado processo de delimitação da propriedade privada. Engels (1988) associa a fixação do homem na terra a sua capacidade de dominar a agricultura, ao controle do fogo e à consolidação da família monogâmica. Para o autor, isso aconteceu no período chamado por ele de civilização, momento equiparado à transição entre os povos primitivos e a Antiguidade. A condição desenvolvida pelo gênero humano por longos séculos de administrar a agricultura, controlar o fogo e utilizar minérios é apontada por Engels (1988) como um fator condicionante para a fixação do homem na terra. Ele destaca também a consolidação da família monogâmica como um fator extremamente relevante na fixação do homem na terra. Para o autor, os grandes agrupamentos requeriam o cuidado mútuo de muitas pessoas. Com as famílias monogâmicas, o que temos é a diminuição das pessoas que estariam sob a responsabilidade de um dado clã. Engels (1988) destaca que as famílias monogâmicas passam a ser construídas e estruturadas com base na moral sexual.Antes, nos grandes agrupamentos não tínhamos essa moral que refreava as relações sexuais. Nesse formato de família, de natureza heterossexual, a relação sexual passa a ser compreendida como algo entre homem e mulher e com a finalidade de procriação. No entanto, o autor também enfatiza que essa mudança no formato de organização familiar foi algo que demorou a se consolidar, ou seja, não foi algo que surgiu no gênero humano do dia para noite. A partir desse formato, a riqueza passou a ser transmitida segundo a herança (entre gerações). Dentre essas riquezas, temos a propriedade privada. O autor ainda evidencia que as primeiras propriedades foram fixadas a partir de lutas e confrontos entre os possíveis proprietários de terra, algo que, aliás, teria resultado no que Engels denominou como a primeira violência de grande proporção do gênero humano contra ele mesmo. Melhor dizendo, as primeiras ações violentas do gênero humano aconteceram entre os povos para fixar e defender a propriedade privada. Já autores como Hobbes, por exemplo, compreendem que o homem deve usar os meios que desejar para alcançar suas finalidades. Visando alcançar seus objetivos, o homem pode usar da violência, se for o caso. O homem deve usá-la para defender sua propriedade. Locke, por outro lado, entendia que o homem não possuía esse instinto agressivo e de defesa da sua posse, mas destacava que o direito à propriedade era algo natural. O direito natural compreenderia o direito sobre sua vida, sua liberdade e seus bens, incluindo a propriedade. A propriedade privada resultava para o autor da ação do homem 11 TRABALHO E SOCIABILIDADE sobre a natureza. Rousseau, por sua vez, entendia que a delimitação da propriedade privada estaria associada à demarcação de terras pelos homens como representativa da consolidação da desigualdade e da miséria humana. De toda forma, para Rousseau não existia uma posse natural, como indicado por Locke, mas sim a posse que era conquistada com violência. Pensando ainda nas diversas perspectivas sobre esse período do gênero humano, é interessante considerar o trabalho do historiador israelense Yuval Harari. Esse pensador contemporâneo nos indica que a apropriação da propriedade privada por parte do gênero humano teria acontecido no período de 9500 a 3000 a.C. O autor denomina esse período como revolução agrícola. Para ele, ela aconteceu quando o homem deixou a sua característica de caçador-coletor e passou a dominar a agricultura. Para Harari (2015), o domínio da agricultura está vinculado à habilidade humana de cultivar trigo, arroz, milho, batata e cevada, bem como à condição de criar animais como ovelhas e bois, por exemplo. Nessa fase, o homem abandonou a sua condição de extrator de riquezas em dadas regiões de forma nômade. O autor chega até a enfatizar que no contexto do nomadismo o gênero humano ia deixando um rastro de destruição dos recursos naturais por onde percorria. No entanto, o historiador ilustra que o homem também passou a ser domesticado e mudado nesse processo de fixação, diz que o homem aprendeu a viver nesse novo formato de sociedade. Harari (2015) escreveu um livro apresentando informações relevantes da passagem do ser humano sobre a terra. Pautou-se no conhecimento da história mas também da biologia, da antropologia e da filosofia. Suas indicações destacam que o desenvolvimento do gênero humano é embalado por três revoluções: a agrícola (que acentuamos), a cognitiva e a científica. Cada uma dessas revoluções demarcam mudanças específicas pelas quais passou o gênero humano em sua relação com o mundo. A revolução cognitiva está vinculada a novas formas de pensar e de se comunicar do gênero humano. Para o autor, é a revolução cognitiva que permite que o homem construa laços de cooperação, de solidariedade entre os homens. Essa partilha viabiliza a criação de culturas e padrões de comportamento que são socializados. Harari (2015) indica que a sobrevivência do gênero humano advém da capacidade que temos de estabelecer uma linguagem única, que nos une como povo. Essa “capacidade” de cooperar nos permite construir realidades subjetivas e intersubjetivas. Isso nos permite, segundo o autor, criar normas coletivas de vivência e de valores religiosos. A revolução científica, por outro lado, faz menção às mudanças e às inovações tecnológicas processadas no mundo a partir de meados de 1940. Para ele, essa mudança tem como marco a bomba atômica lançada como teste no Novo México pelos EUA. No que diz respeito à revolução agrícola, Harari (2015) nos indica que os assentamentos agrícolas desse período eram pequenos, com uma organização simples. Ou seja, salienta que as primeiras ocupações de terra e a produção nessas terras foi algo bem simples e incipiente. Porém, foi essa fixação e produção na terra que permitiu ao homem o acúmulo de reservas de alimentos. Esse acúmulo de reservas de alimentos teria promovido o surgimento lento e gradual de cidades, reinos e impérios e teria orientado a política, as guerras, a arte e a filosofia. Interessante ressaltar que Harari (2015) destaca que a escassez dos alimentos, nessa fase, teria sido um dos principais motivadores das guerras entre os proprietários de terra. Ele acentua, entretanto, que já nesse período observamos que os proprietários de terra possuíam pessoas que trabalhavam em troca do alimento, e considera esse ato como análogo à escravidão. O autor ilustra que havia o trabalho para a manutenção das atividades ligadas à agricultura e aos animais, que passaram a ser mantidos no espaço privado. Assim, nota-se que Harari (2015) tem 12 Unidade I uma perspectiva bastante interessante de compreender esses processos, que também foram narrados por Engels (1988), mas de uma forma interdisciplinar. Entretanto, partindo de pressupostos de ambos os autores, é possível compreender aspectos interessantes da vida do gênero humano nesse período. Considerando nossos estudos sobre o trabalho, podemos pensar que o trabalho vivenciado nesse período é o mesmo trabalho que observamos na Idade Moderna? Ou melhor, o trabalho retratado na Antiguidade é o mesmo trabalho desempenhado em outros períodos de desenvolvimento do gênero humano? Para responder a essa pergunta, indicamos que a teoria marxista destaca que, naquele momento, atos ligados à sobrevivência eram considerados como trabalho. Contudo, não apresentavam a mesma configuração do trabalho humano em outros contextos, incluindo, sobretudo, a categoria trabalho na atualidade. Disso advém uma das colocações de extrema relevância do pensamento marxista: o trabalho é social, cultural e historicamente construído pelo gênero humano. Isso ainda traz outro importante aspecto do pensamento marxista: o trabalho advém das necessidades geradas ao gênero humano nos mais variados contextos. Observação Para a perspectiva marxista, o trabalho é construído historicamente e está vinculado às necessidades que são apresentadas ao longo dos anos pelo gênero humano. A Antiguidade é um período extremamente peculiar e específico de desenvolvimento do gênero humano. De acordo com Guarinello (2013), é convencionalmente aceito pela maioria dos historiadores que a Antiguidade corresponda aos anos 4000 a.C. a 476 d.C. O autor salienta que essa periodização histórica tem servido apenas como uma referência, ressaltando que há historiadores que defendem que além dos anos estimados para esse período precisamos considerar indicadores que demarcam o seu início e o seu fim. Nesse sentido, acentua que a Antiguidade teria início a partir da invenção da escrita e teria o seu declínio vinculado à queda do Império Romano no Ocidente. Retomaremos mais adiante o contexto da queda do Império Romano para que seja possível compreender a organização e a disposição desse período histórico. Na Antiguidade, houve o surgimento e a expansão de vários povos, e cada um deles apresentou particularidades que definiram sua organização econômica, política, social e religiosa.Destacam-se povos como os sumérios (Mesopotâmia), os egípcios, os persas, os gregos, os romanos, os hebreus, os fenícios, os celtas e os etruscos. Os persas foram conquistados por Alexandre, o Grande. Dentre esses povos, os romanos e os gregos se notabilizam porque fundaram grandes impérios, razão pela qual são considerados os grandes impulsionadores da formação das sociedades ocidentais. Em período análogo, mas com particularidades, tivemos na América a chamada era pré-colombiana; há outros tipos de agrupamentos expressos em populações como os astecas, os maias e os incas, por exemplo. Tudo indica, segundo Cotrim (2002), que esses povos, também chamados ameríndios, ocuparam determinadas regiões no Brasil. 13 TRABALHO E SOCIABILIDADE Guarinello (2013) ilustra que é na Antiguidade que temos a origem de algumas religiões que acabaram atraindo grandes públicos, a exemplo do cristianismo, do budismo e do judaísmo. De maneira conjunta, observamos a consolidação de regras e normas de conduta vinculadas às concepções religiosas. Por sua vez, muitas concepções religiosas acabam influenciando na organização econômica, política e social de determinadas regiões. Martins (1995) relata que, para romanos, egípcios e gregos, o trabalho manual era compreendido como algo pejorativo. Assim, algumas atividades que exigiam a força física dos trabalhadores eram apresentadas como sinônimos de vergonha, de humilhação. O trabalho intelectual, por outro lado, era enfatizado como algo bom, exemplo de uma situação social a ser “copiada”. O autor acentua que pensadores da época, como Platão, defendiam na Grécia Antiga que o trabalho era pejorativo. Outro pensador grego de destaque foi Protágoras. Porém, para ele, o trabalho era compreendido como algo de valor social e religioso, como um meio de expiação dos pecados, dos erros. Esse pensador compreendia ainda que, no caso do pobre, o trabalho era avaliado como bom. O pensamento de Platão, no entanto, era praticamente hegemônico, e o trabalho, sobretudo o braçal, era visto de forma muito negativa. Por conseguinte, essas sociedades eram essencialmente escravocratas. Os escravos deveriam se ocupar dos trabalhos tidos como humilhantes, aqueles que as pessoas de maior poder social não desejavam fazer. Os escravos provinham de povos dominados, sobretudo por meio de guerras. Eram feitos prisioneiros e subjugados pelo povo que vencia a guerra. O escravo, além de trabalhar em troca de sua subsistência, não podia participar da vida política, das festas religiosas, de atividades educacionais. Abreu e Almeida (2016) ilustram que os escravos recebiam a “remuneração” dos seus trabalhos em gêneros alimentícios. Para isso, eram submetidos a diversas situações degradantes. Os autores destacam que havia escravos do campo, da casa, ou seja, havia uma hierarquia entre os escravos, e os da casa eram os mais importantes. No entanto, todos os escravos não podiam casar e somente poderiam ser livres por meio da concessão de seus “donos”. Harari (2015) acentua que os primeiros anfiteatros romanos foram construídos com trabalho escravo e ressalta a desigualdade, pois os trabalhadores construíam algo do qual nunca iriam usufruir, pois era especialmente destinado às elites. Saiba mais Sabemos que toda representação fílmica é uma obra composta de elementos artísticos que nem sempre reproduzem a realidade. O filme a seguir, por outro lado, ilustra uma história com base na mitologia, ou seja, em essência uma visão diferenciada. É importante que você o assista e observe como esses elementos eram representados nas sociedades antigas. DEUSES do Egito. Direção: Alex Proyas. EUA: Summit Entertainment, 2016. 128 min. 14 Unidade I A Antiguidade não possuía ainda a noção de “emprego”, uma vez que não havia a contratação de trabalhadores. Havia artesãos, mas esses trabalhadores produziam e vendiam por meio do comércio da época. Esses trabalhadores não eram contratados nessa época com uma renda fixa. Outro segmento que também não era escravo era o de camponeses. Estes eram livres e tinham suas atividades econômicas ligadas à agricultura. Também não havia um salário, embora os camponeses não fossem considerados escravos por aquela sociedade (MARTINS, 1995). Martins (1995) retrata que o fim da Antiguidade decorreu de um processo denominado invasões bárbaras. De acordo com o autor, os bárbaros eram povos que viviam fora do território romano e que não falavam latim. Eram também chamados germânicos. O Império Romano, no entanto, buscando proteção de invasões, autorizou que os bárbaros residissem em dadas regiões do Império Romano e, em troca dessa concessão, os bárbaros defenderiam os territórios romanos de invasões de outros povos. Todavia, esse acordo entrou em declínio quando os povos bárbaros passaram a se contrapor a determinações de Roma, resultando até mesmo na deposição de Rômulo Augusto, último imperador romano. Foi por isso que houve o fim da chamada Antiguidade, como indicam vários historiadores, iniciando-se uma nova idade, a Medieval, também chamada por outros teóricos pelo termo Medievo, Idade Média. Na sociedade medieval (séculos V a XV), que substituiu a antiga, houve muitas mudanças com relação ao trabalho. Nesse período, a sociedade era assentada em uma organização composta de nobreza, clero e povo. A nobreza era constituída pelas castas mais elevadas; o clero, pela Igreja Católica; e o povo, pelos servos. Costa (2016) acentua que a produção econômica no começo do feudalismo estava predominantemente pautada na produção agrícola, mas que já no final desse regime haveria a constituição de uma sociedade pré-capitalista. Essa organização econômica, ou seja, essa forma como a sociedade organizava a sua produção e seu consumo, estava assentada em dois protagonistas básicos: senhores feudais e servos. Os primeiros eram os proprietários de terra, dos grandes feudos, onde se concentrava a maior parte da produção de alimentos que eram consumidos. Os servos eram os trabalhadores vinculados a esses espaços (ABREU; ALMEIDA, 2016; AMBONI, 2010). Amboni (2010) destaca que as relações de “trabalho” entre senhores feudais e servos era pautada no juramento e na fidelidade. Podemos compreender essa relação como um trabalho? Será que esses formatos de trabalho adotados na Idade Média ficaram limitados a tal período? É possível comparar esses formatos de organização laboral aos usados no Brasil Colônia por donos das capitanias hereditárias? Para refletir sobre isso, vamos retomar o que havíamos indicado a respeito do formato de “trabalho” usado nesse período. Os servos trabalhavam em um regime de quase escravidão, não tinham salários, e tinham que realizar todo tipo de trabalho. Um servo deveria servir a seu senhor até a sua morte. Por conta disso, nessa época o trabalho era compreendido como “[...] compulsório, sob regime de servidão, primordialmente campestre, constituído por dependência social e jurídica” (ABREU; ALMEIDA, 2016, p. 123). O senhor feudal, por seu lado, deveria garantir a subsistência do servo, e cabia a ele oferecer toda a proteção de que o servo necessitasse. Por isso, autores como Amboni (2010) e Abreu e Almeida (2016) compreendem que esse formato de trabalho era praticamente um regime de escravidão. Os autores ainda 15 TRABALHO E SOCIABILIDADE ilustram que as condições de subsistência eram precárias e nem sempre os servos tinham alimentação de qualidade, moradia e demais condições necessárias. Sem falar que eles eram expostos a extensas jornadas de trabalho, sem existir no período qualquer limitação nesse sentido. Todos os membros da família do servo (incluindo crianças) trabalhavam. Não havia qualquer auxílio para os servos ou para as pessoas pobres proveniente do Estado. Aliás, Abreu e Almeida (2016) relatam que somente em 1601, na Inglaterra, é que tivemos a primeira Lei de Amparo aos Pobres, segundo a qual era permitido o pagamento do auxílio aos mais pobres. Antes desse período, se o servo não tivesseauxílio do senhor feudal, também não seria contemplado pela proteção estatal. Esse formato de organização econômica e do trabalho era sustentado pelos parâmetros da religião católica, hegemônica na época. Abreu e Almeida (2016) destacam que a Igreja sancionava esse tipo de discurso, fortalecendo esse formato de organização como algo natural. Isso porque o senhor feudal não apenas orientava o comportamento dos servos, mas também dispunha sobre a vida em sociedade. Como possuíam os mesmos objetivos, a Igreja Católica e os senhores feudais se ajudavam. O que conseguiam por meio desse corporativismo? Ambos tinham poder político, econômico e a sujeição de uma classe, a classe pobre a seu comando. Também havia nessa época outros segmentos que circulavam pelos feudos, nomeados por Amboni (2010) como artesãos. Eles seriam trabalhadores já comuns na Antiguidade e que nesse regime também eram os responsáveis pela confecção de determinados itens. Via de regra, o artesão iria produzir na sua própria oficina ou residência. Ele comandava todo o processo de trabalho e poderia ser auxiliado por companheiros e aprendizes. Os companheiros poderiam ser pagos pelo trabalho à medida que os produtos fossem vendidos. Já os aprendizes eram crianças que eram entregues aos artesãos, também chamados mestres, para trabalhar nas oficinas. O salário era pago por meio da subsistência e da aprendizagem, ou seja, não recebiam salário. Outros profissionais como “[...] padeiros, carniceiros, alfaiates, ferreiros, oleiros ou picheleiros” também circulavam por esse espaço (AMBONI, 2010, p. 6). Fato é que esses profissionais, até meados do século XI, orientavam grande parte de sua produção para as necessidades dos senhores feudais. A partir desse período é que esses profissionais começam a ampliar as possibilidades de comércio, e a maioria acontecia nas pequenas cidades vinculadas aos feudos. Essas vendas ocorriam em feiras e em espaços públicos. Inicialmente, havia a troca de produtos; só depois, como ilustra Amboni (2010), é que houve a consolidação do dinheiro como moeda de troca. O autor ressalta, entretanto, que esse formato de comércio e de trabalho trouxe à tona as raízes necessárias para o estabelecimento das relações de compra e venda em uma sociedade, naquele momento, de natureza pré-capitalista. Nesse instante, que tal pensar no caminho que percorremos até aqui? Vimos que o trabalho estava ligado à maneira como a sociedade organizava a sua produção e o seu consumo. Assim, o gênero humano, por longos períodos, foi encontrando alternativas para atender a suas necessidades por meio de ação. Nos povos primitivos, a ação (ou o trabalho desenvolvido para a atenção das necessidades) era pautada na realização de atividades conjuntas. Não havia famílias nem propriedades privadas, mas sim grandes grupos de pertencimento, que se defendiam e buscavam sobreviver conjuntamente. Após um demorado processo pelo qual passou o gênero humano, nota-se que na Antiguidade e no feudalismo houve a predominância do trabalho escravo. Em ambos havia a troca, por parte de um segmento espoliado, 16 Unidade I de sua mão de obra e seu tempo livre por elementos ligados a sua subsistência. Claro que precisamos considerar as especificidades de cada período aqui citado, mas o que observamos é que em ambos os formatos a classe mais pobre sofreu, sendo espoliada por aquela que possuía os meios de produção. No entanto, de acordo com a tradição marxista, no capitalismo também temos situações de exploração de uma classe social sobre outra. Mas, antes de explicitarmos a compreensão marxista do desenvolvimento capitalista, precisamos dizer que tivemos, já na Idade Moderna (a partir do século XV), muitas alterações na forma de produção de bens de consumo para uma dada sociedade. Essas mudanças foram potencializadas em decorrência das transformações tecnológicas vivenciadas em todo o processo de produção. Com certeza você já conhece esse conjunto de fenômenos, os quais são denominados convencionalmente sob o termo Revolução Industrial. A Revolução Industrial teve início na Inglaterra e logo ganhou outros países, provocando alterações no processo de produção capitalista como um todo. Em tese, essas alterações visavam potencializar o processo produtivo, garantindo maior dinamismo e a ampliação do lucro. Conforme Abreu e Almeida (2016), as alterações provieram inicialmente da área têxtil. Os autores indicam que a inserção de máquinas a vapor foi importante nesse sentido, uma vez que potencializaram o processo de produção. Os autores ainda destacam que foi no mesmo período que houve o desenvolvimento da eletricidade, dos combustíveis, dos rádios e dos primeiros automóveis. Assim, com muitas descobertas, com o desenvolvimento de novas possibilidades de produção, esta deixou de ser essencialmente manual e passou a contar com o aporte da tecnologia. No que diz respeito ao trabalho em si, observamos que o trabalho escravo deixou de ser aceito como modalidade de inserção laboral. Então, nesse novo regime de produção, o trabalhador passou a ser livre. Livre, entretanto, para vender a sua força de trabalho. De tal forma, o trabalhador era “[...] obrigado a vender sua força de trabalho em troca de remuneração que lhe proporcionaria meio de subsistência” (ABREU; ALMEIDA, 2016, p. 124). A remuneração, também nomeada “salário”, consiste no pagamento do trabalhador pelos serviços prestados, salário esse com o qual o trabalhador deveria manter todas as suas necessidades. Abreu e Almeida (2016) acentuam que nessa fase de desenvolvimento do capitalismo os trabalhadores possuíam uma ampla jornada de trabalho, chegando a cumprir jornadas de até 18 horas por dia. Não havia descanso aos domingos, não havia garantias ou direitos trabalhistas. Mulheres e crianças também trabalhavam em jornadas extensas, e pior, recebiam salários muito menores do que o dos homens. Algumas crianças trabalhavam em troca de alimento, apesar de o trabalho escravo não ser mais aceito socialmente. No geral, as condições eram insalubres e os contratos eram praticamente vitalícios. Pela tradição marxista, compreendemos que no contexto de produção capitalista houve, basicamente, duas classes sociais: a burguesa e a proletária. A primeira detinha os meios de produção; a outra possuía apenas a força de trabalho. Para explicar melhor, citemos o exemplo de uma empresa de sapatos. Os proprietários da empresa eram os burgueses, pois detinham os meios de produção. Os trabalhadores (proletários) eram pessoas que vendiam a sua força de trabalho, pois era a única coisa que possuíam (MARX, 1996). 17 TRABALHO E SOCIABILIDADE Saiba mais Que tal conhecer um pouco mais sobre o desenvolvimento do capitalismo? O filme indicado a seguir é considerado um clássico, porque retrata exatamente o contexto de consolidação capitalista na França do século XIX. Apresentam-se aspectos ligados ao sindicalismo, com destaque para a exploração do trabalhador. GERMINAL. Direção: Claude Berri. Bélgica: Reen Productions, 1993. 170 min. Mas, e em nosso país, como foi organizado o trabalho? Abreu e Almeida (2016) relatam que por um longo período prevaleceu o trabalho escravo no Brasil. Somente a partir de meados de 1889 é que houve o surgimento de trabalhadores livres, o que coaduna com a libertação da escravidão. Os autores destacam que foi nesse momento que se iniciou a industrialização no país, com a inserção de maquinários e demais elementos que estimularam o desenvolvimento da produção de forma ágil. Houve ainda a inserção do carvão, da eletricidade e de outros aspectos que orientavam a produção de forma a garantir lucro. Com a industrialização e o aporte de novas tecnologias, o processo de trabalho ficou mais rápido e sem erros. Isso tornou o produto mais fácil de ser comercializado e diminuiu também os custos de produção. Hoje vivenciamos novas mutações em relação à categoria trabalho, as quais serão abordadas mais adiante. Como apresentamos uma sériede informações a respeito da questão do trabalho e dos meios de produção, é importante sistematizar o conteúdo estudado: Quadro 1 Antiguidade Idade Média Modernidade Brasil Trabalho Escravo em grande parte das sociedades Artesãos e outros profissionais Escravo no regime de servos Artesãos e outros profissionais Trabalho livre Trabalhador explorado Salário Escravo até meados de 1889 Assalariado a partir da industrialização Modo de produção Produção para subsistência Comércio pequeno Produção agrícola Feudal Produção agrícola Constituição dos pequenos comércios ao final do período Capitalismo Essencialmente agrícola até a abolição da escravatura Capitalismo a partir da industrialização Em linhas gerais, nota-se que o trabalho mudou ao longo dos séculos, e essas mudanças estão ligadas ao modo de produção adotado nas mais variadas sociedades. Contudo, para Marx, um fato básico é que o trabalho possui importância vital para o desenvolvimento do gênero humano. É o trabalho que condiciona a subjetividade do homem e especializa os seus sentidos cada vez mais. Obviamente que temos que relativizar as colocações de Marx, uma vez que muitos dos processos que vivemos hoje 18 Unidade I em relação ao trabalho não foram por ele conhecidos. No entanto, ao aprofundar o assunto, observa-se que a perspectiva marxista traz questões muito importantes e que para a nossa formação são vitais. Na seção a seguir, vamos ilustrar mais uma vez a perspectiva marxista sobre o trabalho, com foco no desenvolvimento do capitalismo globalizado. 1.2 Globalização econômica, desenvolvimento capitalista e desemprego A globalização econômica é um fenômeno inerente ao desenvolvimento capitalista. Aqui, nosso objeto de discussão é a vinculação dessa fase de desenvolvimento capitalista à ampliação do desemprego e do subemprego na sociedade contemporânea. Todavia, para compreender esse estágio de desenvolvimento capitalista, é vital voltar um pouco no tempo e identificar aspectos relacionados ao contexto de globalização da economia no mundo. Partimos assim da crise capitalista de 1929. Sobre a crise histórica do capitalismo, as pesquisas destacam que, no final da Primeira Guerra Mundial, a indústria dos EUA era responsável por quase 50% da produção mundial. O país criou um novo estilo de vida: o american way of life, caracterizado pelo grande aumento na aquisição de automóveis, eletrodomésticos e toda sorte de produtos industrializados (HOBSBAWM, 1995). Observação O termo american way of life ou estilo de vida americano faz menção à aquisição de bens de consumo duráveis, como carros, automóveis e demais itens correspondentes. Os países europeus, nesse período, voltaram a se organizar e a desenvolver sua estrutura produtiva pela redução de importações de produtos americanos. Em oposição, os EUA aceleraram o crescimento e o ritmo de produção industrial e agrícola. Países como Inglaterra, França e Alemanha modernizaram-se rapidamente e inovaram seus métodos industriais, colaborando para aumentar o desequilíbrio entre o excesso de mercadorias produzidas e o escasso poder aquisitivo dos consumidores. Configurava-se, assim, uma conjuntura econômica de superprodução capitalista. O chamado crack da Bolsa de Valores de Nova York ocorreu pela superprodução, com ápice no dia 29 de outubro de 1929. As ações das grandes empresas sofreram uma queda vertiginosa, perdendo quase todo seu valor financeiro, forçando-as a reduzir o ritmo de suas produções. Por essa razão, ocorreu um processo de demissão em massa que somou 15 milhões de desempregados. A crise de 1929 e a depressão subsequente geraram uma relativa desarticulação da economia mundial, que foi considerada uma das consequências mais significativas e que estimulou a abertura de novas possibilidades de desenvolvimento para os países da região que já tinham alcançado certo patamar. Esses países elaboraram projetos de desenvolvimento voltados para o mercado interno e para a industrialização via substituição de importações. 19 TRABALHO E SOCIABILIDADE Na fase do pós-guerra, os países apresentavam imensas dificuldades para reorganizar a economia, por exemplo, não havia na época estratégias voltadas para as exportações e para promover o desenvolvimento, devido ao enfrentamento de diversos obstáculos, em particular no tocante ao financiamento externo. Marcada pela Grande Depressão, a década de 1930 registrou a regressão das atividades econômicas em quase todos os países do mundo capitalista e o desemprego atingiu taxas elevadíssimas. Segundo Hobsbawm (1995), a queda acentuada dos preços dos produtos primários impactou as regiões menos desenvolvidas, que em muitos casos já enfrentavam problemas de superprodução desde a década anterior, e que também sofreram com a depressão. A queda acentuada dos fluxos de capital, de mercadorias e da força de trabalho rompeu com a tendência de contínua integração da economia mundial. De acordo com pesquisas apresentadas na International Money and the Macroeconomic Policies of Developing Countries (Fundo Internacional e as Políticas Econômicas dos Países em Desenvolvimento), de 16 a 19 de dezembro de 2002, em Muttukadu, Tamil Nadu, na Índia, observou-se na América Latina uma onda de moratórias das dívidas externas (MEDEIROS, 2002). Esse processo, denominado desarticulação da economia mundial, embora relativo, abriu espaço para a busca de saídas nacionais para a crise, obrigando a maioria dos governos e países a experimentar políticas alternativas às tradicionais da economia neoclássica. Na década de 1930, os Estados passaram a intervir cada vez mais na economia, procurando regular os mercados e estimular a atividade econômica. Criou-se um forte protecionismo por parte de um número crescente de países para combater as desvalorizações competitivas de moedas, os controles de câmbio e as importações, as restrições à livre circulação de capitais e de força de trabalho, o comércio bilateral e a crise mundial, direcionando as economias para o mercado interno, exportando mais e importando menos (HOBSBAWM, 1995). Os países adotaram diferentes estratégias de desenvolvimento, condicionadas pelos resultados das lutas e dos impasses políticos e sociais de cada um. No caso do Brasil, a Revolução de 1930 deslocou a burguesia cafeeira, rompeu com o bloco hegemônico e conferiu ao Estado maior autonomia para responder rapidamente à crise e para conduzir um projeto calcado na industrialização e no mercado interno, que amadureceu paulatinamente e ganhou contornos mais nítidos no Estado Novo. O cenário de transformações econômicas evidenciado a partir do Estado Novo marcou os anos seguintes com a adoção de várias medidas, entre as quais a legislação trabalhista, visando à regulação das relações entre capital e trabalho, a criação de inúmeros organismos de fomento e regulação de setores específicos da economia, a implantação da grande siderurgia e incipientes tentativas de planejamento econômico entre 1939 e 1943, por meio do Plano de Obras Públicas e do Reaparelhamento da Defesa Nacional e do Plano de Obras e Equipamentos, centrados na expansão da infraestrutura e na indústria de base, que buscava a racionalização do serviço público, referido na Constituição de 1937 e nas medidas protecionistas. Esse cenário de expansão e transformações econômicas, na realidade brasileira do Estado Novo, favorecia o surgimento de projetos nacionalistas e desenvolvimentistas que, sob a hegemonia dos 20 Unidade I EUA, participaram da reorganização da economia mundial com base em fortes economias nacionais e nos países desenvolvidos contribuíram para o florescimento do Estado de Bem-Estar Social. Conforme Hobsbawm (1995), foi dessa forma que o grande capital financeiro internacional, enfraquecido pela Depressão, teve que se adaptar à nova situação. Lembrete Harari (2015) destacou que o desenvolvimento do gênero humano deveria ser compreendido com base em três revoluções, a saber:agrícola, cognitiva e científica. Harari (2015) ilustra que esse período é compreendido como a fase da chamada revolução científica. Como salientamos, o autor destaca que esse processo teve início a partir da Revolução Industrial, mas se consolidou com a bomba atômica projetada no Novo México por parte dos EUA. Ele assevera que naquele momento o homem compreendeu que tinha possibilidade de até mesmo acabar com a história dos povos em virtude do conhecimento científico. Para o historiador, é nesse momento que é solidificada a importância do dinheiro; assim, as sociedades passaram a fazer uma construção subjetiva do dinheiro. Interessante acentuar que o autor chama a nossa atenção ao fato de que é também nesse período que houve a construção de uma dada subjetividade em relação ao capitalismo, que passou a ser apresentado como o dispositivo capaz de garantir o desenvolvimento econômico perpétuo, garantindo que a sociedade teria alcançado o seu estágio pleno de desenvolvimento e que não haveria mais nenhuma mazela social com que se relacionar. De toda forma, o autor indica que esse processo de industrialização esteve restrito a países que já possuíam dado desenvolvimento econômico. Observação A crise de 1929 é considerada o pior e o mais longo período de recessão econômica do século XX. Desse modo, o contexto de amplo desenvolvimento industrial não contemplava a América Latina até a segunda metade dos anos 1950, dado que os projetos voltados para a industrialização focavam o mercado interno, ainda que usufruindo do capital estrangeiro, que causava o endividamento das nações latinas. Esses projetos de desenvolvimento, que se associavam ao capital estrangeiro e/ou visavam à autonomia, proliferaram entre as décadas de 1930 e 1970 e desmoronaram, em sua maioria, a partir dos anos 1980. De acordo com Hobsbawm (1995), eram enormes as dificuldades para alcançar o desenvolvimento econômico, social, político e cultural. Houve diversas e diferentes tentativas dos países da América Latina, comprometendo a formação de uma sociedade capitalista global. O sucesso parcial da industrialização, assegurando índices significativos de crescimento e desenvolvimento tecnológico, com melhoria do nível de vida das populações, não garantiu o alcance 21 TRABALHO E SOCIABILIDADE de uma sociedade globalizada. Ao contrário, desencadeou grandes dificuldades para o enfrentamento dos graves problemas de desigualdade social e pobreza, demonstrando a incapacidade de essas nações completarem os processos de industrialização, que dependiam basicamente de financiamento interno, acumulação de capital e maior ação na economia. O excesso de intervenção estatal na economia preocupava as classes dominantes, ainda que considerando as necessidades de proteção para o setor industrial em forma de créditos para dar continuidade ao crescimento. Os capitalistas também ficavam atentos às mobilizações dos operários e suas intervenções na vida política, que volta e meia geravam momentos de crise e embates, especialmente nos casos em que essas mobilizações unificavam-se com ações populares, fragilizando, no entender das classes dominantes, os projetos nacionais de desenvolvimento. A década de 1950 marcou o fortalecimento dos grandes oligopólios e empreendimentos financeiros, o que na década de 1970 seria um dos fatores da crise da ordem econômica internacional estabelecida em Bretton Woods e da retomada do processo de internacionalização do capital, com forte expansão das empresas multinacionais em regiões de periferia. Quando a guerra aproximava-se do fim, a Conferência de Bretton Woods foi o ápice de dois anos e meio de planejamento da reconstrução pós-guerra pelos Tesouros dos EUA e do Reino Unido. Representantes estadunidenses analisaram com os colegas britânicos a constituição do que tinha faltado entre as duas guerras mundiais: um sistema internacional de pagamentos que permitisse que o comércio fosse efetuado sem o medo de desvalorizações monetárias repentinas ou flutuações selvagens das taxas de câmbio – problemas que praticamente paralisaram o capitalismo mundial durante a Grande Depressão (MAGNOLI, 2008). Essas transformações redesenharam a divisão internacional do trabalho e criaram novas questões para os projetos nacionais de desenvolvimento, que estavam com sérios problemas de financiamento interno e externo. A ideia baseava-se na entrada das empresas multinacionais para atuar nos mercados internos das nações, interferindo fortemente no crescimento da mão de obra barata e no esgotamento dos recursos naturais, em abundância na época. Conforme nos diz Magnoli (2008), a autonomia nacional passava a depender de como os projetos de desenvolvimento das nações se apropriavam de modo dependente desse capital estrangeiro. No Brasil, esse era o caso de Getúlio Vargas, que esperava industrializar o Brasil e garantir sua soberania, com papel de destaque na América Latina, contando para isso com apoio político, financeiro e tecnológico norte-americano. Nos anos 1960, observou-se a ampliação da produção e da capacidade produtiva em escala mundial, causada pela entrada de produtos japoneses e alemães no mercado mundial e também devido ao avanço das industrializações tardias em países periféricos. Observação O período de consolidação da globalização econômica também se caracteriza por ser um momento de grande organização da classe trabalhadora em todo o mundo. 22 Unidade I As lutas sindicais faziam pressão para manter os lucros nos mesmos patamares e forçavam a elevação dos salários, o que afetou inclusive a economia norte-americana, que também era pressionada pela elevação dos gastos decorrentes da Guerra do Vietnã, da Guerra Fria e dos investimentos sociais destinados a responder à onda de contestação social que varreu o país na segunda metade dos anos 1960. No mesmo período, décadas de 1960 e de 1970, observou-se crescente contestação social, caracterizada pela ascensão das forças de esquerda e dos movimentos sociais, que pareciam estar sendo tomados pelo nacionalismo, pelo fundamentalismo e pela esquerda, motivando a formação de uma cultura anticapitalista. Surgiram também, nessa época, movimentos em defesa de várias causas, como o feminista, o negro, o ambientalista e o ecológico, em contraponto a outros movimentos burocratizados tradicionais de esquerda. Dessa forma, para compreender a crise do padrão de acumulação desenvolvimentista e as novas estratégias de desenvolvimento e inserção na economia mundial, é necessário contextualizar a nova fase do capitalismo iniciada no final da década de 1970, chamada por Chesnais (1996, p. 43) “de mundialização do capital, compreendida como um aprofundamento do processo de internacionalização do capital, cujo traço principal é a hegemonia do capital financeiro”. Na visão de Antunes (2002, p. 27), essa crise capitalista do pós-1970 teve seis principais razões: Primeira: uma queda da taxa de lucro decorrente do aumento do preço da força de trabalho, conquistado principalmente pela intensificação das lutas sociais dos anos 1960. Segunda: o esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção. Terceira: a hipertrofia da esfera financeira, que ganhava relativa autonomia frente aos capitais produtivos. Quarta: a maior concentração de capitais graças às fusões entre as empresas monopolistas. Quinta: a crise do Welfare State (Estado de Bem-Estar Social) e de seus mecanismos de funcionamento, acarretando a crise fiscal do Estado capitalista e a necessidade de retração dos gastos públicos e sua transferência para o capital privado. Sexta: incremento acentuado das privatizações, tendência generalizada às desregulamentações e à flexibilização dos processos produtivos, dos mercados e da força de trabalho. 23 TRABALHO E SOCIABILIDADE Todas essas razões apontadas pelo autor consolidaram mundialmente o projeto de sociabilidade capitalista neoliberal, que pode ser entendido dialeticamente como resultadodo processo de reestruturação – e, portanto, de resposta à crise – do capital como relação social global. Os capitalistas individuais enfrentaram uma concorrência que exigiu mecanismos que não são essencialmente econômicos e técnicos (de reestruturação produtiva), envolvendo a criação de nova plataforma ou parque industrial e uma complexa estruturação política e ideológica capaz de transformar o comportamento de empresas e todo o conjunto da sociedade. Essa nova lógica de mercado, de divisão do capital, passou a condicionar as demais formas de movimentação econômica, configurações de dependência distintas das fases de desenvolvimento anteriores. Observou-se, nos anos 1980, intenso crescimento dos mercados de capitais, de câmbio e de títulos em escala global. Mais uma vez, a liderança dos EUA na constituição desse mercado financeiro, tornando o dólar uma moeda-chave desse mercado, e a transnacionalização do sistema financeiro constituem peça fundamental na sustentação do mercado financeiro global, marcada, por sua vez, pela instabilidade e pela rapidez de seus fluxos. Observação O capital financeiro é aquele expresso por meio de títulos e demais documentos que podem ser convertidos em dinheiro. Nessa modalidade não há produto físico, mas sim um serviço que é comercializado. Figuram como exemplos desses serviços os bancários, os oferecidos por seguradoras e também os de entretenimento. A financeirização do capital passou a ocorrer na busca de fundos, almejando-se resultados de curtíssimo prazo a qualquer preço, num processo especulativo que aumentou ainda mais nos momentos de grande liquidez na economia mundial, como no início da década de 1990. Algumas das formas de especulação desse capital financeiro ocorreram, por exemplo, com petróleo, commodities, ações, títulos, moedas e expansão imobiliária em diversos países. Commodities, que significa mercadoria, principalmente minérios e gêneros agrícolas, eram produzidas em larga escala e comercializadas em nível mundial. As commodities eram negociadas em bolsas de mercadorias; portanto, seus preços eram definidos em nível global pelo mercado internacional. O Brasil é um grande produtor e exportador de commodities (ANTUNES, 2002). Os países latino-americanos continuaram enfrentando intensas crises de endividamento externo e inflacionárias, com enormes dificuldades de se inserir na dinâmica dessa nova ordem; assim, abandonaram as estratégias desenvolvimentistas, passando a assumir as políticas recomendadas pelo chamado Consenso de Washington. 24 Unidade I Essa expressão, Consenso de Washington, também conhecida como neoliberalismo, foi cunhada em 1989 pelo economista inglês John Williamson, ex-funcionário do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI), com intenção de indicar políticas adotadas pelos EUA em relação aos países da América Latina. Algumas de suas características, segundo Chesnais (1996), são: abertura da economia por meio da liberalização financeira e comercial e da eliminação de barreiras aos investimentos estrangeiros; amplas privatizações; redução de subsídios e gastos sociais por parte dos governos; desregulamentação do mercado de trabalho, para permitir novas formas de contratação que reduzissem os custos das empresas. Vinculavam-se ao Consenso de Washington algumas imposições referentes a negociações das dívidas externas dos países latino-americanos, por meio do modelo do FMI e do Banco Mundial, para todo o planeta. A ideia neoliberal baseia-se no funcionamento da economia com livre mercado, em que a presença do Estado inibe o setor privado e breca o desenvolvimento. Esse processo de globalização expandiu a tendência de abertura comercial e financeira das economias nacionais, numa onda de inovações tecnológicas, de reestruturação dos processos produtivos, de intensificação dos fluxos de capitais e de realocação espacial de inúmeros setores industriais para países periféricos, sobretudo para o Leste Asiático. A opção do modelo neoliberal de paralisar o setor industrial e estimular o setor primário de exportações de produtos agrícolas e minerais, com destaque para o papel da China nesse cenário, conduziu à retomada do crescimento e à criação de políticas sociais mais abrangentes. Surgiu, assim, um novo dinamismo para a acumulação de capital no Leste Asiático, enquanto o restante dos países com menor desenvolvimento passou por fases mais lentas de crescimento e crises sociais mais graves. Nessa época, eclodiu uma diversidade de ideologias e projetos políticos de como o Estado deveria responder aos ditames desse novo modelo de desenvolvimento capitalista. O processo de descentralização apareceu como uma estratégia em contraponto ao alto grau de rigidez e centralidade do modelo anterior. Os governos ficaram cada vez mais obrigados a equilibrar a coerência das grandes infraestruturas econômicas com as desigualdades regionais e a inserção de seus países na economia mundial, com investimentos tecnológicos de grande prazo. Para Harvey (2000), tem início uma urbanização com características de planejamento diferenciadas, baseada na metropolização, aqui no Brasil conhecida como municipalização, com conteúdo social, cultural e processos de vida cotidiana pautados em diversos padrões de sociabilidade de períodos históricos anteriores. As transformações somente permitem análises quando é possível decifrar estruturas institucionais, atores, determinadas estratégias locais e termos para tomada de decisões políticas. O curso de internacionalização do capital e a mundialização da produção motivaram governos locais a adotarem estratégias para maior participação de atores na vida urbana, com projetos de gestão e desenvolvimento de renda, com caráter de fortalecimento da economia regional por meio de incentivos fiscais e outros subsídios que marcaram a década de 1980. As funções do Estado ampliaram-se também para a implementação de programas ativos a fim de atrair investimentos privados para essas iniciativas locais, visando ao aumento do desempenho macroeconômico dessas localidades. 25 TRABALHO E SOCIABILIDADE Observação A reestruturação capitalista, associada à globalização e à retração estatal, provocou a elevação da precarização da vida como um todo, sobretudo para os segmentos pobres. Essa reestruturação elevou a níveis inimagináveis as taxas de desemprego, haja vista as novas formas de organização do processo de produção. Por sua vez, a classe trabalhadora vivenciou consequências profundas na cultura, na consciência de classe e nas formas de organização com o enfraquecimento dos sindicatos, que passaram a contribuir para a mudança da correlação de forças a favor da grande burguesia mundializada e para a hegemonia do capital financeiro. Devido à perda da capacidade de analisar concretamente as situações e de criar propostas consistentes, alguns representantes organizados da classe dos trabalhadores radicalizaram, causando a desorganização e o afastamento dos trabalhadores das esferas sindicais. O Estado de Bem-Estar Social dos países em desenvolvimento, que mantinha domínio sobre as grandes economias, sofreu desmontes, para que fosse possível sustentar a valorização do capital financeiro, em especial por meio da ampliação da dívida pública. Ressalta-se que, principalmente no pós-década de 1970, o capitalismo vinha tentando dar respostas a sua crise. Uma contradição interminável e imanente à lógica do capital o levou a passar por momentos de crise, segundo Marx (HOBSBAWM, 2003). O aumento do capital constante, obtido por meio do maquinário que substituiu a força de trabalho (capital variável), provocou a queda da taxa de lucro. E, para escapar da sempre presente tendência à crise (queda da taxa de lucro), o capital deu respostas por meio da reestruturação. Em outras palavras, o processo de reestruturação do capital foi nada mais do que uma ofensiva do capital para aumentar a produtividade do trabalho e atingir outros níveis de lucratividade.Em resposta a essa longa crise, o capitalismo internacionalizou a produção e os mercados, aprofundando o desenvolvimento desigual e combinado entre as nações, entre classes e grupos sociais e nas relações dialéticas entre imperialismo e dependência, promovendo “ajustes estruturais” por parte dos Estados nacionais. Segundo Antunes (2002), esses ajustes estimularam livremente a especulação do capital financeiro, sem regulamentações e com foco para assegurar a lucratividade dos grandes conglomerados multinacionais, o que exige um Estado forte. Tais ajustes fazem menção a um conjunto de condicionalidades econômicas, financeiras, políticas e ideológicas exigidas, propostas e requeridas pelas agências financeiras multilaterais, produzidas e ancoradas nas proposições dos países cêntricos do capitalismo mundial: EUA, Itália, Alemanha, Inglaterra, Canadá, França e Japão. O ajustamento estrutural ganhou força sistêmica, principalmente a partir do início dos anos 1980, período em que se agravou o endividamento externo dos países, sobretudo dos periféricos e endividados. Desse modo, o receituário de reformas condicionadas pelas instituições multilaterais (agentes destacados do capitalismo), como o Banco Mundial/Bird (Banco 26 Unidade I Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento), o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), para que houvesse anuência para a formalização de empréstimos em qualquer área, passou a exigir um conjunto de reformas: estatal, educacional, trabalhista, previdenciária, fiscal etc. (ANTUNES, 2002). Observação A globalização econômica confere a ideia de que temos uma economia que visa a um único interesse, um único objetivo. O termo globalização passava a se relacionar a um fenômeno econômico que apresentava a imagem de uma única economia, de um único interesse. Em seu nome, “a movimentação internacional dos capitais é liberada, o setor público produtivo é privatizado ou desmantelado e a política monetária prioriza a estabilidade dos preços em detrimento do crescimento econômico” (SINGER, 2000, p. 15). Esse processo chamado globalização econômica acentuou mais fortemente mecanismos ideológico-políticos e econômicos inovadores, adotados pelo capital para aumentar sua produção e manter o controle sobre a organização dos trabalhadores. A terceirização, a flexibilização, a informalidade, a busca por mão de obra barata e o controle de qualidade constituíram-se em novas estratégias para elevar o lucro e simultaneamente contribuíram para aumentar a precarização, a exploração do trabalho e do trabalhador brasileiro. Como já vimos, a flexibilização e a adoção de novos instrumentos de trabalho, como as tecnologias e a microinformática, dispensaram a mão de obra, especialmente a não qualificada, para esse novo cenário tecnológico e implementaram os mecanismos de aumento das exportações em vários setores. Essa agilidade e o aumento do volume de produção facilitaram de modo expressivo o atendimento das demandas externas. Lembrete Para Harvey (2000), a urbanização no Brasil é conhecida como municipalização, com conteúdo social, cultural e processos de vida cotidiana pautados em padrões de sociabilidade diversos de períodos históricos anteriores. Segundo Frigotto (2000, p. 43): [...] os grandes líderes da produção global, como é o caso da indústria automobilística, tradicionalmente desconcentrada, atualmente têm sua produção concentrada em apenas cinco fabricantes com cerca de 40% da produção mundial, demonstrando que os países que assumiram o controle da primeira fase da internacionalização do capital, entre 1450-1850, ainda mantêm a liderança da produção mundial. 27 TRABALHO E SOCIABILIDADE Tal análise reforça o caráter especulativo do capital, independentemente do tempo histórico e do contexto territorial em que se desenvolva. Segundo o autor, os investimentos realizados pelos grandes capitais rapidamente se fetichizaram (simbolicamente, ato de atribuir a indivíduos, partes do corpo e objetos propriedades de outros objetos e diferentes significados) para todos os contextos sociais nesse mundo globalizado e impactaram no desmonte das conquistas civilizatórias dos trabalhadores, nas relações sociais, alcançando seu ápice na “hegemonia do capital que rende juros – denominado por Marx capital fetiche – e obscurece o universo dos trabalhadores que produzem a riqueza e vivenciam a alienação como destituição, sofrimento e rebeldia” (ANTUNES, 2002, p. 34). A globalização recria e intensifica a questão social, que tem sua origem no modo de produção capitalista e, apesar das crises e das constantes transformações, mantém inalterada a sua base exploratória sobre o trabalhador, exigindo reinvenção nas formas de intervenção político-social, cultural e econômica nesse processo. Segundo Gorz (apud SINGER, 2000, p. 128), há registros de que mudanças ocorridas no mundo do trabalho “deixaram, há muito tempo, de fazer parte da liberdade do homem ou da sua identificação com sua atividade e passaram para o reino da necessidade”. Nessa reflexão, surgiu o neoproletário. Este desenvolve um trabalho que pertence ao aparelho de produção social, o qual o gerencia, determina suas formas de operacionalização e o mantém externo aos indivíduos com os quais se articula. Esse cenário globalizado criou a ilusão de que não existiriam mais trabalhadores, pois os computadores e os softwares dispensariam, em tese, a mão de obra. Sobre esse suposto fim do trabalho, Frigotto (2000, p. 295) afirma que: [...] o grau de extração da mais-valia continua voraz e o que se libera não é o tempo livre, mas tempo de desemprego, de trabalho precário e de aumento de sobrantes. Na tese do mercado autorregulado há consumidores soberanos que livremente tomam suas decisões otimizadas. Na perspectiva do pós-modernismo, no limite, cada um é sua teoria, é sua utopia, é seu projeto histórico. Ou seja, o trabalho não acabou, mas os postos de trabalho diminuíram consideravelmente. À época, ainda houve a adesão pelos Estados ao neoliberalismo. A classe pobre ficou espoliada, não tinha acesso a emprego e perdeu ainda a proteção social instituída pelo Estado. De tal maneira, vemos que as condições de vida se tornaram precárias, com o empobrecimento de grande parcela da população. Saiba mais Que tal refletirmos sobre os processos de exclusão do mercado de trabalho por meio de um filme que aborda o assunto? O CORTE. Direção: Costa-Gavras. França: K. G. Productions, 2004. 122 min. 28 Unidade I A produção mundial nessa escala foi fragmentada e acentuou a competição entre as grandes empresas e os líderes desse mercado globalizado, exigindo maiores investimentos, com o objetivo de manter ou adquirir lideranças tecnológicas e restringir as lideranças nos processos decisórios da produção mundial. Corporações oligopolizadas (diz respeito a oligopólio, ou seja, várias empresas se juntam para monopolizar determinado setor da economia; monopolizar quer dizer ter total controle sobre tal coisa) destacaram-se nesse cenário globalizado, como as de montagem de automóveis, de extração, refino e distribuição de petróleo e de comunicação, com seus investimentos espalhados pelos cinco continentes. Assim, concentraram a maioria dos estoques dos investimentos globais diretos e dos fluxos de pagamentos internacionais. Dessa forma, foram criados oligopólios, que iriam influir nas transformações da economia mundial para uma escala globalizada, conhecida também como mundialização do capital. Essas mudanças influíram ainda nas transições de governos e nas conformações das organizações dos Estados capitalistas. Sobre as origens e as formas de compreensão do Estado, é válido analisar as reflexões que Norberto Bobbio (1987) faz sob a perspectiva de Weber, ressaltando que é somente na civilização ocidental, com o capitalismo racional e os fenômenos culturais com certa universalidade, que se cria em valor e significado um Estado comouma “entidade política, com uma ‘Constituição’ racionalmente redigida, um Direito racionalmente ordenado e uma administração orientada por regras racionais, as leis, e administrado por funcionários especializados” (BOBBIO, 1987, p. 129). Tomando por base essa perspectiva weberiana, o Estado adquire um sentido estrito, como entidade política, com atributos desenvolvidos precariamente no Ocidente antes do século XVIII. Trata-se de um Estado em sentido lato, caracterizado como uma entidade de poder e/ou dominação presente em outros lugares e épocas. Em análises compartilhadas por Marx e Weber, que são de perspectivas opostas, o Estado é apresentado como antediluviano (que significa “antes do dilúvio”, referindo-se ao antigo dilúvio bíblico, usado para descrever qualquer coisa pré-histórica; o tempo antes de as civilizações deixarem registros históricos). A revolução capitalista consiste num processo de transformação histórica, porque as ações sociais deixaram de ser conduzidas pela tradição e pela religião para serem conduzidas pelo Estado e pela principal instituição econômica por este regulada – o mercado. A natureza do modo de desenvolvimento capitalista produziu um crescente interesse em novos mercados e em novas formas de acumulação do capital, independentemente das dimensões territoriais e políticas que o adotavam. Enfim, concluímos o estudo sobre a globalização econômica e os demais aspectos vinculados a esse fenômeno do grande capital. Agora, vamos orientar novamente nossas discussões para a questão do trabalho, observando os sentidos que foram conferidos a ele por Marx e por demais estudiosos nessa perspectiva. 29 TRABALHO E SOCIABILIDADE 1.3 Trabalho, teleologia e ser social Destacamos que a própria noção de trabalho foi mudando ao longo dos séculos e que essas mudanças sempre provocaram alterações na sociedade e, por consequência, nos seres humanos. Então, é preciso pensar os conceitos de teleologia e ser social aplicando-os à categoria trabalho. O que é teleologia? Teleologia faz menção à capacidade que o homem possui de modificar algo. Somente nós, seres humanos, podemos projetar mentalmente algo e executá-lo. Essa é nossa capacidade teleológica. Por exemplo, você quer fazer uma pintura e tem habilidade e conhecimentos para isso, ou seja, poderá fazê-lo. O animal, por outro lado, não tem essa capacidade de projeção, apesar de haver alguns animais que também transformam a natureza, como as abelhas e as aranhas. Mas então o que diferencia os homens das abelhas na construção de suas colmeias ou das próprias aranhas na elaboração cuidadosa de suas magníficas teias? Analise uma citação do próprio Marx: [...] O trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a natureza. [...] Não se trata aqui das primeiras formas instintivas, animais, de trabalho. [...] Pressupomos o trabalho numa forma que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural, o seu objetivo. [...] O processo de trabalho [...] é a atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer às necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, [...] comum a todas as suas formas sociais (apud NETTO, 1983, p. 149-153). Após a leitura atenta da citação anterior, podemos afirmar que o que diferencia os homens das aranhas ou das abelhas, conforme exemplificado pelo próprio Marx, é sua capacidade teleológica, ou seja, de primeiro planejar toda a execução de seu trabalho em sua mente e depois materializar aquilo que pensou. É isso que diferencia os homens dos animais. Os animais não conseguem projetar algo, mas o fazem pelo instinto; já nós conseguimos refletir, pensar sobre alguma coisa que desejamos realizar. 30 Unidade I Podemos, então, considerar que o trabalho tem uma dimensão objetiva e uma dimensão subjetiva. A dimensão objetiva ocorre quando a ação material do sujeito (homem) transforma a matéria natural (natureza). Já a dimensão subjetiva pode ser explicada porque se processa no âmbito do sujeito, a princípio prefigurada em sua mente. Ou seja, a dimensão subjetiva corresponde às mudanças psíquicas pelas quais o homem passa em sua ação, em sua intervenção. Netto e Braz (2012, p. 33) reforçam que: o trabalho implica, pois, um movimento indissociável em dois planos: num plano subjetivo (pois a prefiguração se processa no âmbito do sujeito) e num plano objetivo (que resulta na transformação material da natureza); assim, a realização do trabalho constitui uma objetivação do sujeito que o efetua. Quando o ser humano trabalha, no entanto, não é só a sua subjetividade que muda. Ele especializa todos os seus órgãos do sentido, aprimorando-os. Vejamos alguns exemplos. Quando estudamos os povos primitivos neste livro-texto, vimos que esses povos foram aprimorando a linguagem por conta da necessidade de trabalhar em grupo. Assim, podemos dizer que o trabalho influenciou substancialmente no desenvolvimento do ser humano, incluindo seus aspectos biológicos. Pensemos no contemporâneo: quantas coisas você aprendeu a partir de sua inserção em algum posto de trabalho ou mesmo em suas atividades de estágio! Ou seja, o trabalho modificou você, aprimorou suas habilidades. Por isso, entre outras questões, na teoria marxista o trabalho é essencial ao desenvolvimento do ser social. Lembrete Na Antiguidade, os povos primitivos se uniam por meio de grandes agrupamentos nos quais promoviam a defesa coletiva e a satisfação partilhada de demandas comuns, gerando a necessidade de trabalho, de ações conjuntas. Assim, pensar no trabalho como algo ligado à teleologia pressupõe, essencialmente, compreender a capacidade do gênero humano em projetar mentalmente algo que deseja realizar. Pressupõe ainda compreender que no trabalho temos a objetivação e a subjetivação. São processos que acontecem continuamente, de forma constante a partir da inserção do homem em atividades laborais. Seria, segundo Marx, o trabalho que constituiria o ser social. Mas, enfim, o que seria o chamado ser social na tradição marxista? É aquele que é capaz de viver em sociedade. Portanto, é na sociedade que o ser social encontra espaço para expressar seus diversos modos de existir em meio aos outros membros que a constituem. Esse processo de humanização dos homens faz com que o ser social seja a própria natureza historicamente transformada. Melhor dizendo, o ser social representa o longo estágio de desenvolvimento pelo qual passou o gênero humano. Por exemplo: nós, hoje, conseguimos escrever com facilidade em um caderno ou anotar um recado em um papel porque temos o domínio da escrita. No entanto, ao fazê-lo, estamos demonstrando nossa apropriação de todas as conquistas construídas historicamente pelo gênero humano. Ou seja, nossa escrita representa, essencialmente, a evolução do ser humano desde os primeiros pictogramas gravados nas cavernas até a escrita como a conhecemos hoje. 31 TRABALHO E SOCIABILIDADE Por conseguinte, quanto mais desenvolvida for uma sociedade, tanto mais desenvolvido e complexo será o ser social. Isto é, quanto mais complexas são as relações sociais constituídas, mais complexo é o ser social. Hoje sabemos manusear tablets, celulares complexos, computadores variados, um rol amplo de instrumentos tecnológicos. Esses dispositivos
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