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Dados Internacionais de Catalogaçao da Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Perls, Frederick S. Ego, fome e agressão : uma revisão da teoria e do método de Freud / Frederick S. Perls ; tradução Georges D. J. Bloc Boris. - São Paulo : Summus, 2002. Título original: Ego, hunger and aggression : a revision of Freud’s theory and method ISBN 85-323-0754-X 1. Ego (Psicologia) 2. Freud, Sigmund, 1856-1939 3. Gestalt- terapia 4. Personalidade 5. Psicanálise 6. Psicoterapia I. Título. II. Título: Uma revisão da teoria e do método de Freud. 02-2719 CDD-150.1982 índices para catálogo sistemático: 1. Gestalt : Psicologia 150.1982 2. Psicologia da Gestalt 150.1982 Compre em lugar de fotocopiar. Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores e os convida a produzir mais sobre o tema; incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar outras obras sobre o assunto; e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros para a sua informação e o seu entretenimento. Cada real que você dá pela fotocópia não-autorizada de um livro financia um crime e ajuda a matar a produção intelectual em todo o mundo. Dados Internacionais de Catalogaçao da Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Perls, Frederick S. Ego, fome e agressão : uma revisão da teoria e do método de Freud / Frederick S. Perls ; tradução Georges D. J. Bloc Boris. - São Paulo : Summus, 2002. Título original: Ego, hunger and aggression : a revision of Freud’s theory and method ISBN 85-323-0754-X 1. Ego (Psicologia) 2. Freud, Sigmund, 1856-1939 3. Gestalt- terapia 4. Personalidade 5. Psicanálise 6. Psicoterapia I. Título. II. Título: Uma revisão da teoria e do método de Freud. 02-2719 CDD-150.1982 índices para catálogo sistemático: 1. Gestalt : Psicologia 150.1982 2. Psicologia da Gestalt 150.1982 Compre em lugar de fotocopiar. Cada real que você dá por um livro recompensa seus autores e os convida a produzir mais sobre o tema; incentiva seus editores a encomendar, traduzir e publicar outras obras sobre o assunto; e paga aos livreiros por estocar e levar até você livros para a sua informação e o seu entretenimento. Cada real que você dá pela fotocópia não-autorizada de um livro financia um crime e ajuda a matar a produção intelectual em todo o mundo. Frederick S. Perls Uma revisão da teoria e do método de Freud summus editorial Do original em língua inglesa EGO, HUNGER AND AGGRESSION Copyright © 1947 by F. S. Perls Todos os direitos reservados por Summus Editorial. Tradução: Georges D. J. Bloc Boris Revisão da tradução: Denise Maria Bolanho Revisão técnica: Lilian Meyer Frazão Capa: Ana Lima Editoração e Fotolitos: JOIN Bureau de Editoração summus editorial Departamento editorial: Rua Itapicuru, 613 - 7a andar 05006-000 - São Paulo - SP Fone: (11) 3872-3322 Fax: (11) 3872-7476 http://www.summus.com.br e-mail: summus@summus.com.br Atendimento ao consumidor: Summus Editorial Fone: (11) 3865-9890 Vendas por atacado: Fone: (11) 3873-8638 Fax: (11) 3873-7085 e-mail: vendas@summus.com.br Impresso no Brasil http://www.summus.com.br mailto:summus@summus.com.br mailto:vendas@summus.com.br Em memória de Max Wertheimer. O capitão Frederick Perls de uniforme do Corpo Médico do Exército Sul-Africano durante a Segunda Guerra Mundial. nr-- r — ̂/v<y©J3 _ v U „ . - yvltr*-^ r*> *| «-jnN». >'-®3 e~r- v-Wo « ^ °̂ > ^ O b "» t ^ ‘ ~ O » r - t 1~| V r^ -> - ra ̂ ' A . j -^o í O j . i SUMÁRIO* _ p l ^ W v - s p ^ 3 d ^ 5 - ^ > v < 5 w ' C X U * * V 3 & -» C » > j . | t v J . f c r C « M > O o o * ^ , — 3l~-~ fJ'<L̂ .' ^ *• <1 - r ) 1 J , > . ) « — ^ K ^ s i n j °^\ ' ®-1 ̂" \ r “ ( ' ^ ĉ Jr5 Apresentação à edição brasileira 9 Prefácio à edição brasileira. . 11 Sobre Fritz Perls e Ego, fome e agressão......................................... 19 Prefácio à edição do "The Gestalt Journal" 1992 ............................ 29 Prefácio à edição de 1969 da Rartdom House.................................. 35 Prefácio à edição de 1945 da Knox Publishing Company.................. 37 Intenção.......................................................................................... 39 Parte I — HOLISMO E PSICANAl ,INH (l Pensamento diferenciul..................... Cff Abordagem psicológica.................. 3 O organismo e seu ri|uilíbiio. 4 Realidade.............................................. 5 A resposta do organismo................. cg) Defesa......................................... O Bom e m au............... ......................... 8̂ Neurose.............................................. ( D Reorganização organísmiea........... 10 Psicanálise clássica.......................... 11 Tempo.............................................. 12 Passado e futuro ........................ 13 Passado e presente......................... . . . 43 . . . 58 .. . 66 . . . 75 . . . 82 . . . 88 . . . 93 . . . 104 . . . 120 . . . 131 . . . 144 . . . . 151 . . . . 156 Parte II — METABOLISMO MENTAL ~ Tís P e l23oN . r ' ' \) Instinto de fom e........................................................ 165 2 Resistências................................................................. 171 3 Retroflexão e civilização.......................................... 180 § ) Alimento mental....................................................... 184 5 Introjeção................................................................... 192 6 O complexo de fantoche............................................ 200 7J O ego como uma função do organismo.................. 205 8 / A cisão da personalidade......................................... 215 (g) Resistências sensomotoras....................................... 224 10 Projeção.............................................................. 230 11 O pseudometabolismo do caráter paranóico.......... 237 12 Complexo de megalomania-rejeição....................... 245 13 Resistências emocionais............................................ 251 Parte III — TERAPIA DE CONCENTRAÇÃO ' ^ ' 6> A técnica..................................................................... 263 (l) Concentração e neurastenia...................................... 266 © Concentração no ato de comer.................................. 272 4 Visualização............................................................... 283 5 Senso de realidade.................................................... 291 6 Silêncio in terio r......................................................... 298 7 Primeira pessoa do singular...................................... 303 8 Desfazendo retroflexões............................................ 308 9 Concentração corporal.............................................. 318 10 A assimilação de projeções...................................... 330 II) Desfazendo uma negação (constipação)................. 343 I .V ( onsciência constrangida de si mesmo.................... 350 I t O significado da insônia............................................ 357 I I Gagueira..................................................................... 362 15’ O esl ado de ansiedade.............................................. 367 16) I >1 Jekyll e Mr. H y d e .............................................. 370 Friedrich Salomon 1'rrls 377 Y* 7 v y r xa j r * r> P3V í A a í f e K ^ C í ¥ ^ p k 5' v -£ ^ < CA APRESENTAÇAO À EDIÇÃO BRASILEIRA Este livro foi escrito na África do Sul com base na experiência e nas insatisfações de Fritz Perls quando didata do Instituto Sul-Africa- no de Psicanálise, por ele fundado em 1935. Inicialmente Perls pensara em transformar suas discordâncias em contribuições à psicanálise da época. Com esse intuito apresentou, em 1936, um trabalho a respeito de resistências orais ao Congresso Internacional de Psicanálise realizado na Checoslováquia. Sua apre sentação, porém, não teve a receptividade esperada por ele peranteos colegas psicanalistas. Poucos anos depois, em 1942, e tendo por base o trabalho apresentado na Checoslováquia, Perls publicou este livro. Diferentemente do trabalho original. Ego, fome e agressão recebeu por parte da imprensa leiga e especializada excelentes críticas e comentários. Embora o marco de início da Gestalt terapia seja l(,,<l com fl publicação do livro Gestalt magia escrito por Perls, Hefferline e Go odman (traduzido e publicado no Brasil pela Summus Editorial) é em Ego, fome e agressão que podem ser encontradas as razões que afas taram Fritz Perls da psicanálise. Na contracapa da edição da Vintage Books de 1969 lê-se: Este livro desafia a teoria freudiana e a psicanálise a favor de um método terapêutico mais amplo que enfatiza uma abordagem prática e de contato humano na psiquiatria. Em termos leigos, através de exemplos concretos e casos clínicos, Perls explicita as bases da famosa Gestalt-terapia que ele de senvolveu. Insatisfeito com a ênfase ortodoxa colocada no inconsciente, nos 9 instintos e na função da repressão, o autor sugere que outros elementos da personalidade humana — o instinto de fome, a agressão biológica e a necessi dade de gratificação — foram subestimados. Sem esquecer de situar este livro no contexto dos anos 40 (e portanto levar em conta que a psicanálise à qual Fritz Perls se refere é bastante diferente da que conhecemos atualmente), convida mos o leitor a conhecer as primeiras idéias de Perls. Em consonância com sua própria teoria, Perls transformou insa tisfação em criação lançando as sementes do que posteriormente viria a se tornar uma nova e revolucionária abordagem psicoterapêutica — a Gestalt-terapia. Lilian Meyer Frazão Gestalt-terapeuta Abril/2002 10 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA AS VÁRIAS FACES DE "EGO, FOME E AGRESSÃO" Se quiser conhecer um povo e não puder viver com ele seu cotidiano, debruce-se sobre suas produções simbólicas ao longo dos tempos e chegará, com certeza, às suas idéias, a seus hábitos, a seu modus vivendi. Enfim, terá os elementos de construção de sua his tória; isso porque uma obra, seja uma pintura, uma música ou um livro, sempre é uma condensação das experiências de seu autor, mer gulhado nas idéias circulantes ao seu redor, tecido cultural do qual faz parte permanentemente como ator social: seja como criador, como co-autor, como defensor, seja como crítico ferrenho, como aquele que faz a ruptura, como o que instaura o novo, ou o que inaugura a antinomia do código reinante. Engana-se aquele que supõe que o pensamento novo não foi gestado a partir das idéias circulantes, a partir do que se chamaria de velho, do já conhecido. Nenhuma produção humana, nenhuma idéia nasce do nada. Tudo isso para dizer da importância da tradução e da publicação de Ego, fome e agressão no Brasil pela Summus Editorial e tentar situá-la no contexto histórico-cultural do ano da graça de 2002. Seguindo essa linha de raciocínio, o nascimento de um livro é, em si mesmo, a apresentação das idéias de seu autor (emergente das idéias de sua época), que vêm a público para serem cotejadas no contexto dos saberes vigentes. Assim, um livro nunca c uma obra 11 hilla Realce fechada e acabada porque pode ser repensado por diferentes gerações de leitores, todos eles agentes e representantes de suas respectivas épocas, podendo condená-lo, resgatá-lo, louvá-lo, transpô-lo, acres- centar-lhe idéias outras etc., num contínuo dinâmico de transforma ções. E também podem não lê-lo. O pior que se pode fazer com um autor não é criticar seu pensamento: é ignorá-lo. Muitos livros envelhecem e morrem junto com seus autores. Outros, não. Renascem a cada nova edição e mantêm vivos seus autores por anos, séculos e milênios. Lembro Sócrates, Platão, Aris tóteles, da Grécia Clássica, cinco séculos antes de Cristo, e Dante Alighieri, poeta italiano do século XIII, e ainda Shakespeare, nos séculos XVI e XVII, cujas obras estão sempre se revigorando pela troca dialógica com seus leitores, fazendo-as testemunhas partici pantes contínuas da História. Nesse sentido, a publicação de Ego, fome e agressão em portu guês é renascimento para Fritz Perls, para seu pensamento, suas in terrogações e propostas terapêuticas, datadas neste livro no início dos anos 40. Ego, Hunger and Aggression é gestado sob a égide da Segunda Guerra Mundial, sendo publicado em 1942 em Durban, África do Sul, onde Fritz Perls se instalara para fugir dos horrores impostos aos judeus, como ele. Não nasce na língua-mãe de Fritz, o alemão, que, naquele momento, apontava para a perseguição e o horror produzidos pelos alemães nazistas: língua-mãe tomada madrasta. Ego, Hunger and Aggression nasce em inglês, idioma que acolhería as idéias de Perls doravante: mãe adotiva. Em 1947, Ego, Hunger and Aggression é editado em Londres. Por que Londres? Provavelmente o melhor lugar para pôr em circula ção o pensamento de Perls, que, naquele momento, ainda mantinha em seu livro o subtítulo A Revision of Freud’s Theory and Method. Londres era, no pós-guerra, o fórum privilegiado para o pensamento psicanalítico, contando com a presença de analistas renomados que vieram a constituir o sólido movimento da Escola Britânica de Psica nálise. Foi nesse ambiente efervescente, em que as idéias de Freud não constituíam uma hegemonia, que Perls esperava divulgar seu 12 posicionamento em relação à psicanálise e apresentar a seus pares a novidade de seu pensamento, isto é, a proposta da Terapia de Con centração, exposta na Parte III de seu livro. Na verdade, poder-se-ia pensar em Perls como mais um psicana lista que se desviava dos ensinamentos do mestre e propunha novos aportes à psicanálise, a partir de sua experiência clínica e mal-estar com aspectos da teoria. Lembro Otto Rank com o “trauma do nasci mento”, Sandor Ferenczi com a “técnica ativa”, Melanie Klein com a reinvenção da psicanálise com crianças e a criação de uma teoria que diferia de Freud em pontos fundamentais, como é a postulação da “posição esquizo-paranóide” e da “posição depressiva”. Entretanto, esses discípulos de Freud mantiveram-se dentro das fronteiras da ■ psicanálise. Fritz Perls as ultrapassa. A exemplo de Carl Gustav Jung ̂ cujo distanciamento do pensamento freudiano resulta na criação da Psicologia Analítica, Fritz Perls de fato inauguraria, mais tarde, uma nova abordagem psicoterápica, que viria a chamar de Gestalt-te- rapia. Ego, Hunger and Aggression testemunha vivamente essa transformação. Chega o ano de 1969. Ego, Hunger and Aggression é finalmente publicado nos Estados Unidos da América, país que recebeu Fritz no pós-guerra e foi o terreno fértil onde a Gestalt-terapia teve fran co desenvolvimento. jLpm ciso considerar que 18 anos antes, em 1951, Perls, juntamente com Paul Goodman e Ralph Heffer- line, publicara Gestalt Therapy, reconhecido pela comunidade gestáltica como sua obra mais importante, fundamental para a cons trução da identidade da Gestalt-terapia e para seu rompimento com a psicanálise. Pois bem: ainda em 1969, Gestalt Therapy é reeditado nos Estados Unidos (coincidência? Jogada de marketing?). Nessa reedição, Perls escreve uma apresentação na qual diz que a Gestalt terapia está alcançando a maioridade e reforça sua pertinência e a tu alidade como abordagem psicológica. Portanto, não causa estranhe/a o fato de a edição americana de Ego, Hunger inul Aggiessmn nao mais trazer o subtítulo A Revision oj Freud's Theory and Methad, que fazia parte das edições inglesa è sul africana e mantinha <> vfncu 13 Ô-A -CT iJŶ T o G T tf F =* n lo com a psicanálise. Aparece um novo subtítulo: The Beginning of_ Gestalt-Therapv. Mas o que Perls omitiu do leitor na folha de rostro do livro (o subtítulo que remetia a Freud), ele reconheceu na Introdução que escreveu especialmente para aquela edição americana: “Para o leitor de hoje, Ego, fome e agressão representa a transição da psicanálise ortodoxa para a abordagem gestáltica”.Perls, coerentemente, assu mia sua origem como psicanalista, apresentava ao público uma obra descrevendo as transformações de seu pensamento e de sua prática clínica e assinava sua criação: a abordagem gestáltica. E certo que o conteúdo do livro em si não fora alterado, mas sem dúvida sua existência e compreensão fenomenológicas tornar-se-iam singular mente outras, na medida em que mudaram o cenário histórico-social e a polissemia dos saberes psicológicos na qual Ego, Hunger and Aggression produziría novas significações. (Perls sabia disto: remeto o leitor à Introdução deste volume). Finalmente a edição brasileira! Ego, fome e agressão fala portu guês. Você já deve ter percebido que, neste texto, venho tentando mostrar que este é e não é o mesmo livro. Objetivamente, é o mesmo conteúdo. Subjetivamente, não. Explico: filio-me aos pensadores que sustentam que cada sociedade, em diferentes épocas, provê a seus atores sociais (sejam chamados de cidadãos, indivíduos ou sujeitos) lentes singulares para enxergarem o mundo e a si mesmos. Merleau- Ponty é radical ao afirmar a mútua constituição homem-mundo. As sim, essas lentes são formadas por valores éticos, saberes científicos, códigos de conduta, avanços tecnológicos, tradições culturais, inova ções artísticas, ideologias etc., além da poiesis, naturalmente. Tudo em contínuo processo, como diria Perls. A realidade não está imobi lizada, fora do sujeito. Estando em mútua constituição com ele, o mundo fenomenológico será o mundo dos significados humanos, sig- nificados que se transformalh na interação intersubjetiva e produzem novos sentidos para as mais variadas formas de expressão e de pro dução simbólica humanas. Essa ótica que aponta para uma espécie de hermenêutica histori- cizada permite a afirmação paradoxal de que uma obra é e não é a 14 /<^vO ■ 1 ------ - •O <SW- ■ ‘V o mesma ao longo dos tempos. Nessa direção, estou dizendo que quando um livro é publicado, as idéias do autor, sem perder sua autoria, serão irremediavelmente ressignificadas pelos leitores. E os leitores são, por sua vez, sujeitos singulares em constante signifi cação e ressignificação, imersos num mundo não de objetos, mas num mundo de sentidos. Isso posto, cabe agora refletir sobre a publicação de Ego, fome e agressão numa época em que idéias pós-modernas atravessam os saberes contemporâneos. A cultura contemporânea tece a trama da pluralidade e da interdisciplinaridade, produzindo a experiência do desmoronamento dos saberes isolados e supostamente auto-sufi cientes. A intelligentia parece se render ante as evidências de que as ciências humanas só podem aproximar-se da verdade do fenô meno humano se admitirem que guardam em si mesmas uma espé cie de precariedade, de fenda, que impede a generalização absoluta de qualquer explicação sobre ele. A solução estatística é desprezar um fenômeno que foge a certo nível de significância arbitrado. É como se aquele fenômeno não existisse, pois ele não é estatistica mente significativo. Ora, penso que é justamente o fenômeno que incomoda, que não tènTãfnda inclusão dentro da teoria, aquele que exige o esforço para a sua explicação. Não vale desprezá-lo. Se não cabe no modelo vigente, todavia permanece lá, existindo, não se deixando apagar e requerendo do cientista que o considere e que, humildemente, se debruce sobre ele a fim de dar-lhe um lugar plausível nas suas teorias. A pós modernidade diz respeito juslamenle .1 deseonstruçao dos saberes vigentes pelo abandono dos claustros que produzem igiiorân- cias arrogantes e ideologias narcfsicas a fim de que, reconligurados pela interface de outros saberes, pela discussão iiilerdÍM iplmai. pos sam vir a produzir de fato 0 novo pensamento. Sessenta anos são passados desde a primeira edição de Ego, Hunger and Aggression, em 1942, até a presente edição, () fas< í níõ cego inicialmente despertado cedeu lugar a um olhai mais maduro e exigente, agora mais atento e menos permeável à intro- .3̂ 15 jeção rápida do tecnicismo não fundamentado que se disseminou entre os desavisados. A publicação de Ego, fome e agressão no Brasil oferece a opor tunidade de ir às raízes da Gestalt-terapia. O livro é precioso para o empreendimento de investigações epistemológicas e para o entendi mento de como Perls articulou e sustentou seu arcabouço técnico e teórico-conceitual, baseado em sua experiência clínica. O trabalho de tradução é levado a cabo por Georges Boris. O tradutor é generoso ao oferecer informações importantes sobre poe tas, filósofos e escritores que Perls mencionou no texto original, mas deixou ao leitor a tarefa de esclarecer-se por si mesmo. Georges Boris, em inúmeras notas do tradutor, nos poupa desse trabalho. Re centemente, enquanto relia a tradução com vistas a escrever este texto, fui me dando conta de como Ego, fome e agressão despertava meu interesse, produzindo numerosas idéias, fossem elas para vibrar com sua genialidade na explicação da nova Terapia de Concentração, fossem para contestar a imprecisão de Fritz no trato com certos con ceitos psicanalíticos. Acho improvável um gestalt-terapeuta ler Ego, fome e agressão sem se sentir vivamente envolvido. O livro exige a atenção do leitor, que, com certeza, se beneficiará dele sobretudo se focalizar seu olhar particularmente nas passagens em que Fritz fala do lugar de autor do novo, isto é, quando ele propõe o novo paradig ma, quando justifica e fundamenta seu approach teórico. Este não é um livro para se aprender como teria sido a psicaná lise criticada por Perls. Nesse âmbito, Perls foi impreciso. No cenário pós-moderno de desconstrução e reconstrução de saberes, do pensa mento complexo, da pluralidade e interdisciplinaridade, gestalt-tera- peutas têm-se interessado por outros enfoques como a Psicologia Transpessoal, a Abordagem Centrada na Pessoa e o Psicodrama. À primeira vista, esse interesse não parece ser a prática deformada — já denunciada por I .aura Perls — do acoplamento tecnicista da Gestalt- terapia a alguma outra técnica. Hoje, muitos gestaltistas estão mais preocupados em não ser confundidos com repetidores incautos de técnicas. Cultivam a reflexão e o pensamento crítico. Abrem-se ao diálogo com outros estudiosos. Se o fazem com responsabilidade 16 poderão ser criativos e acrescentar sua marca à abordagem. Caberá à História julgar. Tenho percebido em vários estudiosos da Gestalt-terapia um in teresse pelo pensamento psicanalítico. A bibliografia citada em livros de gestaltistas reconhecidos internacionalmente, como Gary Yontef, Lynne Jacobs, Richard Hycner, £ o casal Serge e Anne Ginger, inclui vários títulos psicanalíticos. O interesse pela psica nálise não os tornou psicanalistas. No Brasil, nos idos de 1986 ou 1987, escutei Lilian Frazão tratar com consistência de aproximações possíveis entre a Gestalt-terapia e a Teoria das Relações Objetais. Suponho que muitos gestaltistas poderiam vir a se beneficiar em seu trabalho caso se interessassem também em conhecer a Psicolo gia do Self. Nos últimos 18 anos, tenho me beneficiado vivamente da perspectiva psicanalítica, da Mitologia, da Antropologia e de estudos sobre o imaginário e as narrativas, que me facilitam a escuta e a compreensão das histórias da clínica. Uma das heranças deixadas por Perls foi nunca ficar imobilizado no status quo, ousar fazer o que acreditava e atrever-se a ser cria tivo com responsabilidade. Ego, fome e agressão é testemunha e produto de sua ousadia em ultrapassar modelos, de seu pensa mento inquieto, intuitivo e inteligente, que se propunha a resolver suas interrogações teórico-clínicas, experimentando, observando, vivenciando e pensando. Perls punha-se inteiro naquilo que fazia. Às vezes, dizem os que com ele conviveram, constrangedoramente inteiro Não cabe julgar se isso foi bom ou ruim. Importa com preendei que I go , Ibiiw c agressão , juntamente com Gestalt-lera pia, lambem publuado no Itiasi! pela Smiimus Kditorial,são a parte mais consistente do legado de Perls para os que, como ele, além de sentir, ousam pensai Termino este texto com as palavras de Perls constantes da Introdução que ele escreveu paia um livro de I A Wínlei e citadas por M. Shepard na biografia ITitz Perls Lu Terapia Guestaltica mostrando o pensador sábio que, ciente da lalibilidade dos siste mas psicoterápicos, propõe o dialogo como alternativa a hostilidade, remete à escuta do outro e convida todos a respeitar a diferença 17 4 [...] no momento em que a psicanálise mesma era comumente menospreza da como teoria “excêntrica”, aprendi a não me assustar com zombarias. I Como pessoa que tentou levar contribuições à teoria psicanalítica, hoje ad mito, como admiti então, que a ciência da psicoterapia não é uma ciência fechada ou acabada. A divisão dos psicoterapeutas em “escolas” hostis entre si tem sido mais destrutiva para a jovem ciência da psicoterapia que a hostilidade inicial dos leigos; em sua batalha contra as outras, cada escola atuou como se tivesse todas as respostas e, em geral, ignorou os acertos de uma escola rival. A aplicação de epítetos se tomou um substituto do pensa mento independente, sangue vital de toda ciência. Os interesses da ciência (como os de quem acode ao científico à procura de ajuda) exigem que eu I seja sensível às idéias dos outros. As visões particulares, mal ou pouco 1 acertadamente formuladas, são dignas de estudo... (Perls apud Shepard, j 1977, p. 63). Maria Gercileni Campos de Araújo (Gercy)* Fortaleza, março de 2002 * Psicóloga, mestra o doutora cm Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo. Professora aposentada do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Introduloia da < íestalt Terapia no Ceará (1978-1979). Integrante do primeiro grupo nacional de gestall terapeutas. Iispecialista em Fundamentos Filosóficos da Psi cologia e da Psicanálise pela Universidade de Campinas-sp. 18 Ç f & (5-» SOBRE FRITZ PERLS E 'EGO, FOME E AGRESSÃO' Meu primeiro contato com Ego, fome e agressão ocorreu durante minha formação em Gestalt-terapia, no início dos anos 80, por intermédio de uma grande e sábia amiga, Gercy Campos, com quem aprendi a essência de muito do que aplico até hoje em minha prática fenomenológico-existencial. Ela me forne ceu a edição em espanhol do livro, o que me despertou grande interesse de buscar entender as origens da abordagem gestáltica. Posteriormente, consegui acesso à edição norte-americana, que me suscitou a idéia de traduzi-la para o português — seria meu trabalho de final de curso — já que a obra não existia em nossa língua. Isso favorecia o conhecimento de muitos que não dominam o inglês e o espanhol. Essa empreitada começou nessa época e é fruto de minhas preocupações com a consciência teórico-epistemológica da Gestalt-terapia. A publicação de Ego, fome e agressão no Brasil, além de mar car o centenário de nascimento de Frederick (Fritz) S. Perls (1893- 1993), fundamenta-se nas circunstâncias históricas e nas influências teóricas que levaram o criador da Gestalt-terapia à elaboração de sua primeira obra. I im 1920, aos 27 anos, Fritz graduou-se em medicina, interessandt» se por neuropsiquiatria. Nessa época, se identifica com o movimento da contracultura, integra-se à classe boêmia de Berlim e ao grupo “Bauhaus”, de artistas e políticos dissidentes. Nesse meio, tem seu pri meiro contato com a filosofia, por meio de Sigmund Priedlaender, 19 autor de Creative indifference, que muito o influenciou. Em sua autobiografia (In and Out the Garbage Pail’), Perls assim se refere a Friedlaender: “Meu primeiro encontro filosófico com o nada foi o nada em forma de zero. Descobri-o sob o nome de indiferença criativa, por meio de Sigmund Friedlaender. Reconheço três gurus na minha vida. O primeiro foi S. Fried laender, que se autodenominava neokantiano. Com ele aprendi o significado do equilíbrio, do centro-zero1 2 dos opostos. O segundo é Selig, nosso escultor e arquiteto do Instituto Esalen. 1 Meu último guru foi Mitzie, uma linda gata branca. Ela me ensinou a sabedoria do animal”, (p. 71) “Seu trabalho filosófico Creative indifference [Indiferença Criativa] teve tremendo impacto sobre mim. Como personalidade, ele foi o primeiro homem em cuja presença me senti humilde, cheio de veneração. Não havia lugar para a minha arrogância crônica”, (p. 95) “... Friedlaender trouxe um modo simples de orientação pri mária. Qualquer coisa se diferencia em opostos. Se somos captu rados por uma dessas forcas opostas, estamos numa cilada, ou pelo menos, desequilibrados. Se ficamos no nada do centro-zero^ estamos equilibrados e temos perspectiva. Mais tarde percebi que este é o equivalente ocidental do ensinamento de Lao-Tse”. (p. 96) Em 1926, aos 33 anos, Fritz é analisado por Karen Horney_e se transfere para Frankfurt, por mgestão da psicanalista, para continuar sua formação psicanalítica. Ali trabalha com Kurt Goldstein, no Ins tituto de Soldados Portadores de Fesões Cerebrais, sob a visão da psicologia da gestalt, vindo a compreender que a interferência em 1. Publicadn no Brasil pola Summus Editorial, sob o título de Escarafun- chando Fritz'. dentro e fora <la lata do lixo. 2. O termo consagrado é "ponto-zero”. Mantivemos, porém, a tradução ori ginal, uma vez que se traia de uma citação literal. (N. do E.) 20 um elemento não afeta apenas este elemento isoladamente, mas a totalidade, sentindo-se atraído pelos existencialistas (Buber, Tillich e outros). Num seminário de Goldstein, conhece Lore (Laura) Posner, com quem se casaria, em 1929, Podemos perceber a ligação de Fritz Perls com a psicanálise, ao lado de influências outras, como a psicologia da gestalt, a teoria organísmica e o existencialismo. Sua formação psicanalítica prosse gue até 1932, entre Frankfurt, Viena e Berlim. Em 1928, é analisado por Reich, de quem assimila os ensinamentos sobre a “couraça carac- tcrológica”. Desde a ascensão de Hitler, em 1931, Fritz vinha traba lhando nos movimentos de resistência ao nazismo. Em abril deJÜ93Á é obrigado a fugir para a Holanda, onde encontra o psicanalista Karl I .andauer, continuando sua capacitação. Por indicação do biógrafo de Freud, Ernest Jones, muda-se para a África do Sul, onde funda o "Instituto Sul-Africano de Psicanálise”, em 1935. Em 1936, acontece o “Congresso Internacional de Psicanáli se”, na Tchecolosváquia. A expectativa de Fritz é grande e busca contribuir com a teoria psicanalítica proferindo uma palestra sobre “resistências orais”. A frustração também é grande: a palestra é severamente criticada, pois todas as resistências eram consideradas anais; o contato com Freud é breve e frio, e Reich mostra-se esquivo e mal-humorado, tendo dificuldade de reconhecê-lo. As repercus sões sobre Perls são inegáveis: é a partir dessa época que Fritz se afasta, cada vez mais, da psicanálise. Apesar de já ter iniciado um movimento de flexibilização de seu estilo psicoterápico, tornando- o mais cxperiencial e aberto (devido também à distância e ao iso- lamcntq cultural vivido na África do Sul), Perls jamais se libertou de sua ambiguidade (admiração/ressentimento) para com Freud e a psicanálise. Assim, Fritz amplia o trabalho do “Congresso”, inclui elementos úteis de sua prática com Reich e do pensamento existencial e, em 1940, conclui o manuscrito de Ego, hunger and aggression que, originalmente, tinha como subtítulo A revision o f Freud's theory and method (suprimido na edição norte-americana, de 1969), o que./, demonstra que, apesar da posição revisionista. Perls ainda se manti I nha inserto na perspectiva psicanalítica. O livro c publicado em 1942j em Durban (África do Sul); em 1947, na Inglaterra; e em 1969, nos EUA, quando esse subtítulo é retirado. A vinculação de Fritz à psica nálise, entretanto, durou pelo menos 15 anos, desde os anos 20. Ao se transferir para os EUA, em 1946, e, particularmente nos anos 60, Fritz se preocupou principalmenteem divulgar a Gestalt- terapia. Com a sua morte, em 1970, a tarefa de retomar a funda mentação teórica e epistemológica de sua criação passou a ser de seus seguidores. A publicação de Ego, fome e agressão em portu guês é, agora, mais um um passo decisivo no crescente papel que os gestalt-terapeutas brasileiros vêm desempenhando no desenvol vimento dessa fundamentação. * * * Ego, fome e agressão divide-se em três partes. Na Parte I, “Holismo e psicanálise”, em 13 capítulos, Perls adota um enfoque holístico-semântico. Critica a psicanálise por suifenfasena impor- tância do inconsciente e do instinto sexual, do passado e da causa lidade, das associações, da transferência e das repressões, bem como por subestimar ou depreciar as funções do ego e do instinto de fome (que seria mais básico do que o sexual), do presente e da intencionalidade, da concentração, das reações espontâneas e da retroflexão (questões posteriormente enfatizadas pela Gestalt-tera- pia). Portanto, Fritz evita a utilização de termos psicanalíticos que considera dúbios, como “libido” e “instinto de morte”. É nesta Parte I que Perls discute os pontos de ligação e de diferenciação entre a psicanálise e a futura Gestalt-terapia. No Capítulo I, “Pensamento diferencial”, Fritz descreve seu con tato com as obras de Freud e com a filosofia da “indiferença criativa”, de S. Friedlaender. Quanto a esta última, afirma em sua autobiografia (ver nota de rodapé anterior): “para mim a orientação da indiferença criativa é lúcida. Não tenho nada a acrescentar ao primeiro capítulo de Ego, Hunger and Aggression”. Destaca a afirmação de Freud de que o homem criou a filosofia, a cultura e a religião e a necessidade de uma análise de nossa existência a partir do homem e não de agentes externos: as descobertas de Freud confirmaram o postulado da ciência atual acerca da interdependência de observador e fatos 22 observados, e Freud criou o primeiro sistema de uma psicologia ge nuinamente estrutural. Entretanto, Fritz acredita que a psicanálise apresenta algumas incompletudes e defeitos3: o tratamento isolacionista dos fatos psíquicos do organismo; o emprego da psicologia linear de associação; e o descuido do fenômeno da diferenciação. Assim, nesta revisão da psicanálise, Fritz pretende substituir o conceito psicológico por um conceito organísmico e a psicologia da associação pela psico logia da gestalt. Afirma que o pensamento diferencial, baseado na “indiferença criativa”, de S. Friedlaender, apresenta semelhanças com a teoria dialética, sem suas implicações metafísicas, distinguindo a dia lética como conceito filosófico das regras úteis aplicadas pela filoso fia de Flegel e Marx. Fritz refere-se ao trabalho de Kurt Goldstein, que demonstrou a regressão da personalidade em soldados com le sões cerebrais. Perls afirma a diferença do pensamento diferencial em relação à lei de causa e efeito, considerando que a maior parte das pessoas aceita como respostas satisfatórias a seus “porquês” o uso de racionalização, justificativa, concordância, desculpas, identidade e objetivos, propondo a descrição — perguntar “como” — como mé todo fenomenológico, mais adequado à sua resolução. Este impor tante capítulo é encerrado com a afirmação de que a ciência tem ' demonstrado a existência de processos unificadores (í) e desunifica- dores (A), que atuam simultaneamente, sendo freqüentemente difícil isolar os opostos. Fritz exemplifica a distribuição das duas funções opostas nas relações humanas. Nos quatro capítulos seguintes (Capítulo II, “Abordagem psicoló gica”; Capítulo m, “O organismo e seu equilíbrio”, Capítulo IV, “Rea lidade"; e Capítulo v, “A resposta do organismo”) Fritz aplica a perspectiva holístico-semântica (ou pensamento diferencial) à com preensão do funcionamento psicológico do organismo, criticando as perspectivas isolacionista-mecanicista e paralelista psicofísica, e enfati za a perspectiva holística (ou teoria do duplo aspecto) para explicar a 3. Thérèse A. Tellegen, em Gestalt e Grupos: uma perspectiva sistêmica. publicado pela Summus Iklitorial, lembra que a leitura de Freud por parle de Feris data de uma época em que o coadoi da psicanálise eslava reíormulando seu pensamento. 23 totalidade corpo-alma-mente, de forma muito próxima à do mate- rialismo dialético. Discute a percepção da realidade a partir de neces sidades organísmicas, que geram interesses específicos (realidade subjetiva), tratando do fenômeno figura-fundo e da relação entre nossos interesses e nossas respostas (contato, seletividade e evita- ção), do ciclo de interdependência de organismo e ambiente, da auto- regulação organísmica e de suas perturbações e outras formas de ajustamento. Nos Capítulos VI (“Defesa”), v i l (“Bom e mau”), VIII (“Neu rose”) e IX (“Reorganização organísmica”), Perls diferencia agres são e aniquilação, discutindo as várias formas de defesa (evitação). Analisa o comportamento moral humano, destacando a importân cia da frustração temporária em nossa educação; trata dos meios de evitação do neurótico, classificando-os em modos de subtração, adição, ou mudanças e distorções. Baseado na perspectiva holísti- co-semântica, sugere modificações na técnica e no pensamento psicanalíticos, incluindo questões acerca do psiquismo e do corpo, por meio da análise e da síntese dialéticas, particularmente no que se refere à ansiedade. Os quatro últimos capítulos desta Parte I, os Capítulos X (“Psicanálise clássica”), XI (“Tempo”), XII (“Passado e futuro”) e XIII (“Passado e presente”), são dedicados ao desenvolvimento de críticas sistemáticas à psicanálise, e Fritz destaca a importância da inclusão da análise do instinto de fome e das funções egóicas. Esclarece as relações entre passado, presente e futuro e justifica sua famosa ênfase ao aqui-e-agora. . Na Parte II, “Metabolismo mental”, Fritz esboça uma teoria_d&__ personalidade a partir da psicanálise, da psicologia da gestalt.. da Teoria organísmica de Kurt Goldstein, da perspectiva holística de__̂ Smuts e de outras influências. Discute a assimilação mental como correlato da assimilação alimentar e analisa psicopatologicamente o caráter paranóide (13 capítulos). No Capítulo I (“Instinto de fome”), Fritz esboça uma teoria do desenvolvimento alimentar e dental como correlato do desenvolvi mento mental, por meio de seus estágios correspondentes: pré-natal, pré-dental (amamentação), incisivo (mordida dependente) e molar 24 (mordida e mastigação). Aqui, já anuncia os distúrbios de contato que podem ocorrer nestas fases. O Capítulo li, “Resistências”, é, provavelmente, desenvolvido do trabalho apresentado em 1936, no Congresso Internacional de Psica nálise. Assim, Perls disserta sobre as resistências, particularmente sobre as orais, e, em especial, acerca do nojo e da sua repressão como uma resistência à resistência. Discute várias formas de parasitismo, tratando da agressão como uma função da instinto de fome. Nos Capítulos III (“Retroflexão e civilização”), IV (“Alimento mental”) e v (“Introjeção”), Perls discute o papel fundamental da retroflexão no desenvolvimento de nossa civilização judaico-cristã, as conseqüências das perturbações da assimilação mental e as varia ções peculiares ao modo original de contato, a introjeção, e suas repercussões psicopatológicas. Nos três capítulos seguintes, Capítulos VI (“O complexo de fantoche”), VII (“O ego como uma função do organismo”) e VIII (“A cisão da personalidade”), Fritz propõe e discute um tipo de resistência oral, baseado numa confluência do bebê que mantém o indivíduo numa atitude infantil, dependente e dissimulada, tratan do também de noções básicas para a Gestalt-terapia, como os pro cessos de identificação e alienação, a concepção de fronteira e os distúrbios de contato na confluência e na retroflexão. Os cinco últimos capítulos da Parte II são relacionados entre si: no Capítulo IX (“Resistências sensomotoras”), Perls critica a perspec tivapsicanalítica acerca das resistências, fazendo considerações e propostas quanto ao trabalho com o embaraço, a vergonha, o nojo, a escotomização, a hiperestesia, a dessensitivação etc., sugerindo a des crição fenomenológica como método básico para a sua resolução. No Capítulo X (“Projeção”), confronta as polaridades opostas do caráter paranóide, projeção e expressão, discutindo não apenas os casos de projeções sobre o meio, mas também as dirigidas para partes da personalidade, como a culpa, por exemplo. Propõe a existência de um fenômeno patológico do caráter paranóico, que consistiría, na verdade, um pseudometabolismo, composto de confluências, introje- ções e projeções (Capítulo XI, “O pseudometabolismo do caráter paranóico”). Continuando neste tema, Fritz discute a ocorrência de um círculo vicioso,.de. introjeção projeção, agravado nas neuroses 25 obsessivas {Capítulo XII, “Complexo de megalomania-rejeição”). Finalmente, no último capítulo desta Parte II (Capítulo XIII, “Resis tências emocionais”), Perls classifica as emoções em auto e alo- plásticas, completas e incompletas, unificadoras e desunificadoras, positivas e negativas, aprofundando-se sobre a resistência às emo ções, principalmente o ressentimento e os chamados “traidores do organismo”: a vergonha, o embaraço, o nojo, a autoconsciência de si mesmo ou timidez, e o medo. A Parte III tem a denominação original da Gestalt-terapia, “Tera pia de concentração’̂ e abrange as propostas técnicas de Fritz, basea das na substituição do método psicanalítico de associações livres por aquele que considera como o antídoto para a evitação: a concentração (16 capítulos). O Capítulo I, “A técnica”, discute a evolução da técni ca de concentração, a partir da psicanálise, definindo como meta a recuperação da “awareness”. O Capítulo II (“Concentração e neuras- tenia”) define concentração e faz sugestões de aplicação técnica à neurastenia. O Capítulo III (“Concentração no ato de comer”) trata dos hábitos alimentares; o Capítulo IV (“Visualização”) discute per cepção visual, imagens, devaneios e fantasias. O Capítulo v (“Senso de realidade”) trata da evitação do “estar plenamente presente”, enquanto o Capítulo VI (“Silêncio interior”) analisa a linguagem, a “intuição” e a “escuta” interior. No Capítulo VII (“Primeira pessoa do singular”), Perls discorre sobre a “despersonalização” e seu antídoto, a identificação. O Capítulo VIII (“Desfazendo retroflexões”) é dedica do à comparação da retroflexão com outras inibições (repressão, in- trojeção e projeção) e à discussão sobre seu antídoto, a agressão focalizada. O Capítulo IX (“Concentração corporal”) propõe exercí cios para vários sintomas e distúrbios somáticos, enquanto o Capítulo X (“A assimilação de projeções”) trata da projeção nas neuroses e nos sonhos, e de seus antídotos (“awareness”, identificação e assimila ção). O Capítulo XI (“Desfazendo uma negação [constipação]”) des vela os mecanismos negativos da “prisão de ventre”, e o Capítulo XII (“consciência constrangida de si mesmo”) diferencia timidez e “awa reness”. No Capítulo XIII, “O significado da insônia”, Fritz analisa a dificuldade de adormecer como “um sintoma de uma política de saú de de longo alcance do organismo a serviço do holismo” (p. 258); o tartamudeio)é discutido como uma interrupção ou auto-expressão 20 inadequada, noíCapítuIo XIV, “Gagueira”,\No Capítulo XV, “O estado de ansiedade”, Perls propõe a concentração na caixa torácica para a resolução deste problema. Finalmente, no Capítulo XVI (“Dr. Jekill e Mr. Hyde”), o criador da Gestalt-terapia fecha Ego, fome e agressão com o tema da concentração e do “ganho final” dos exercícios pro postos: o resgate do fluxo natural da formação figura-fundo. A importância de Ego, fome e agressão vai além da obra em si. Representa, ao mesmo tempo, o ponto de ligação e de identificação entre psicanálise e “terapia de concentração”, a futura Gestalt-terapia. Até meados dos anos 40, Fritz Perls ainda se incluía no escopo teóri co da psicanálise. Portanto, Ego, fome e agressão constitui a fronteira de contato entre estes dois referenciais. A noção de “fronteira de contato” significa um limite, uma sepa ração entre o antigo e o novo mas também é um espaço de contato e de diálogo. Para muitos de nós, gestaltistas, a psicanálise é ainda e apenas uma perspectiva a ser criticada e rejeitada; agimos, muitas vezes, emocionalmente ressentidos, como o próprio Fritz o fez, como se a psicanálise não tivesse nada a nos oferecer. Creio ter chegado o mo mento de rever nossas posições. O conhecimento científico não é único e acabado, e é um idealismo inútil pretender que qualquer filosofia, psicologia, ciência ou produção humana dê conta de toda uma reali dade. Este é um dado que j equer humildade científica e humana. Meu intuito, ao apresentar e traduzir Ego, fome e agressão, não se deveu apenas à pretensão de destacar as considerações de senvolvidas pelo criador da Gestalt-terapia, mas ao reconhecimento da necessidade do resgate histórico e epistemológico, bem como de uma abertura de perspectivas de desenvolvimento para suas propostas. Nesse sentido, não deixa de ser significativo que as obras de Perls mais consistentes teoricamente, Ego, fome e agres são e “Gestalt-terapia” tenham sido as últimas a serem publicadas em português. Acredito que o resgate de Ego, fome e agressão venha a con tribuir, e muito, com a retomada de um diálogo entre nós, com nossas origens e com novas possibilidades a construir. Fritz. Perls, 27 com Ego, fome e agressão abriu muitas trilhas: algumas ele desen volveu por meio de livros e de práticas posteriores; outras apenas esboçou o caminho, sem percorrê-lo; outras mais foram abandonadas ou rejeitadas ao longo do percurso; finalmente, algumas trilhas não foram mesmo tocadas. Este é um trabalho que, hoje, compete a nós: retomar, rever, modificar, acrescentar, criar e desenvolver as trilhas do criador da Gestalt-terapia. Boa leitura e bom trabalho a nós! Georges D. J. Bloc Boris* Fortaleza, jul./ago. de 1993 (revisto em março de 2002) * Psicólogo pela Universidade Federal do Ceará, psicoterapeuta fenome- nológico-existencial e supervisor em Gestalt-terapia. Mestre em Educação (1992) e doutor em Sociologia (2000) pela Universidade Federal do Ceará; e-mail: geoboris@uol.com.br. 2K mailto:geoboris@uol.com.br PREFÁCIO À EDIÇÃO DO TH E GESTALT JOURNAL" - 1 992 As sementes dos fundamentos teóricos da Gestalt-terapia são encontradas em Ego, fome e agressão, escrito dez anos depois de a teoria ter sido plenamente articulada por Perls, Hefferline e Goodman em Gestalt-terapia (que, no original, traz o subtítulo Excitação e crescimento na personalidade humana). Trata-se de uma leitura essencial para qualquer estudioso sério da Gestalt-terapia. Frederick Perls começou a trabalhar no manuscrito de Ego, fome e agressão após mudar-se para a Cidade do Cabo, na África do Sul, em 1934. Suas notas pessoais para uma parte não publicada da introdução para a edição de 1969 da Random House revelam que o projeto servia a dois propósitos: um era expressar suas “revisões” da teoria psicanalítica de Freud. O outro era desenvolver suas habili dades em inglês, língua que ele começou a aprender somente após deixar a Alemanha, sua terra natal. O manuscrito foi completado em 1941 e a Knox Publishing Company em Durban, África do Sul, concordou em publicá-lo. Jan Smuts, então primeiro-ministro da África do Sul e autor de Holism [Holismo], um livro que causou significativa impressão em Perls, aceitou escrever a introdução. Perls e Smuts haviam-se tornado ami gos depois que Perls, com sua esposa Lore, estabeleceu um instituto de treinamento em psicanálise na Cidade do Cabo. Contudo, a Segun da Guerra Mundial chegou ao continente africano e Smuts, envolvido com suas obrigações de primeiro ministro, jamais conseguiu escrever a introdução originalmente planejada. 29 A primeira edição surgiu em1942. Não tinha prefácio, introdu ção nem dedicatória. O livro começava com um capítulo chamado “Intenção”. Ao ser publicado, Ego, fome e agressão (com seu subtí tulo original: Uma revisão da teoria e do método de Freud), recebeu excelentes críticas na imprensa sul-africana. Na coluna “Medicus”, do Star and Cape Argus, a chamada era: “A psicanálise do senso comum” e o artigo dizia: “[...] grande prazer em fazer a resenha... Posso recomendar o livro não só a médicos e estudantes, mas tam bém ao público geral... O grande valor do livro consiste na sua revi são da psicanálise... Isto é psicanálise sadia... há algumas poucas coisas para se discordar, mas muito mais para elogiar”. No Natal Daily News a chamada era: “Livro da semana. O siste ma de Freud desafiado”. O crítico achou o livro “renovador”, um “tratado abrangente” e “não técnico demais”. No Sunday Times, o título era: “Hitler psicanalisado”. A crítica dizia: “Em um livro absorvente... o capitão Perls discute a psicologia do ditador alemão... Este livro, escrito por um psicólogo praticante, abre novos caminhos”. O Daily Mail dizia: “Fatores negligenciados por Freud... Não há nada no livro que esteja além do alcance da inteligência do leigo comum e são dados alguns conselhos bastante práticos... Você achará o dr. Perls estimulante”. O South African Opinion escolheu Ego, fome e agressão como “Livro do Mês”, afirmando: “[...] Sob muitos aspectos um livro inco- mum... deve ser-lhe concedida uma posição elevada na literatura psi cológica... um homem de inteligência extraordinária... talentos mentais inquestionáveis nas suas conclusões sagazes e práticas... em mais de uma ocasião surpreendentes pela sua audácia... o capítulo ‘Bom e mau’ é uma pequena obra-prima”. A manchete do Jewish Herald anunciava: “Médico abre novo caminho na Psicanálise”. A resenha de C. D. Keet dizia: “[...] uma revisão de longo alcance da teoria fundamental apresentada por Freud... um novo conceito de neurose... medidas práticas pelas quais a pessoa comum pode incrementar grandemente a atividade e a força de seu ego executando alguns exercícios físicos relativamente sim ples... Tais exercícios são a abordagem mais próxima de um método prático de auto-ajuda psicoterapêutica que até hoje apareceu”. Ao mesmo tempo que o livro era publicado, Perls alistou-se no exército sul-africano, no qual serviu como capitão no corpo médico até o fimda guerra na Europa, em 1945. Estimulada pelas vendas significativas pura uma pequena editora sul-africana em tempo de guerra, a Knox Publishing Company de cidiu publicar uma nova edição, pedindo a Perls que redigisse um prefácio. Além de escrevc-lo, Perls dedicou a nova edição à memória de Max Wertheimer, que falecera em 1943. A segunda edição veio à luz em 1945. Depois da guerra, Perls e sua família imigraram para os Esta dos Unidos. Em 1947, George Allen and Unwin Ltd., uma editora em Londres, lançou ainda outra edição. Não está claro como George Allen and Unwin adquiriram o livro: se Perls os procurou, se foi procurado por eles, ou se a Knox serviu como intermediária. Não houve mudanças entre a edição da Knox de 1945 e a britânica de 1947, embora a datilografia e a tipologia tivessem sido comple- tumente refeitas. Dezenove anos depois, em 1966, a Orbit Graphics Arts, uma companhia sediada em São Francisco, publicou uma edição norte- americana. A tecnologia de impressão já consistia na época em foto- ojfset, um processo pelo qual se podia fazer uma chapa impressora fotografando uma página impressa, tomando desnecessário o uso de li lios metálicos e, dessa forma, reduzindo drasticamente os custos envolvidos na produção de um livro. Gerada utilizando essa tecnolo gia, relativamente nova na época, uma reprodução da edição de 1947 foi publicada pela Orbit Graphics Arts. No final da década de 1960, com a Gestalt-terapia atraindo um público cada vez maior, Perls assinou contrato com a Random House para mais uma edição de Ego, fome e agressão. Esta editora utilizou novamente foto-offset para produzir o livro, fotografando a edição de 1947. No entanto, trocaram o subtítulo original - Uma revisão da teoria e do método de Freud - par a Os primórdios da Gestalt-terapia, sem dúvida para estabelecer uma conexão entre o livro e a populari dade da Gestalt-terapia na mente dos compradores em potencial. Além disso, pediram a Perls que escrevesse uma nova introdução traçando o elo entre o livro e a Gestalt-terapia dos anos 60. O prefá cio original da edição de 1945 foi retirado, bem como uma breve 31 seção introdutória intitulada “Prescrição”. A dedicatória a Max Wer- theimer permaneceu. A Random House manteve a edição capadura vários anos, e depois mudou o livro para uma edição brochura sob o selo Vintage. As páginas de tefxto eram idênticas às da edição capa dura. A edição esgotou-se em 1990. Esta, portanto, é a edição definitiva de Ego, fome e agressão. Ela inclui, na seguinte ordem, o prefácio da edição de 1945 da Knox Publishing Company, a introdução da edição de 1969 da Random House, bem como a “Intenção” e a “Prescrição” da primeira edição. Para referência, confrontamos esta edição com a original de 1942 e com a de 1945. Embora houvesse algumas diferenças entre ambas, para nós ficou claro que eram apenas correções de erros tipográficos, sem modificações substanciais. Tem havido considerável discussão acerca da dedicatória origi nal de Ego, fome e agressão. Muitos argumentam, alguns em teses acadêmicas, que o livro era originalmente dedicado à esposa e asso ciada profissional de Perls, Lore (mais tarde “Laura”) Perls, sendo essa dedicatória posteriormente mudada. Em nenhum momento o livro foi dedicado a Lore Perls. Como o leitor poderá notar, a única dedicatória foi para Max Wertheimer. Perls deu crédito a Lore Perls na introdução da edição de 1945 (também incluída na de 1966, da ) Orbit Graphics Arts). Foi por insistência da Random House que essa dedicatória foi retirada da edição de 1969 e substituída por outra, I relacionando o livro com a Gestalt-terapia. Tomamos a liberdade de fazer diversas mudanças de estilo no texto. No original, “psychoanalysis” (psicanálise) aparecia como “psycho-analysis” (psico-análise). Retiramos o hífen. Além disso, optamos por trocar a grafia britânica pela norte-americana (como “colour” para “color”) e substituímos nomes britânicos por ameri canos (por exemplo, trocamos “lift” por “elevator” e “tram” por “trolley”). Reintroduzimos o subtítulo original, Uma revisão da teoria e do método de Freud. A capa desta edição americana é uma reprodução exata da sobrecapa da edição de 1947 da George Allen and Unwin Ltd. Todas as ilustrações foram fotografadas diretamente da edição de 1947. 32 Tenho uma dívida para com Molly Rawlc por sua substancial contribuição no preparo desta edição de Ego, fome e agressão. Muitas idéias que deram o formato definitivo do projeto originaram-se dela. Também desejo reconhecer a valiosa colaboração dc Milt Silver, que serviu como editor de texto do projeto. Seu “olho” para as nuanças entre o inglês britânico e o americano foi notável. Se houve algum erro na “modernização” e na “americanização” de Ego, fome e agressão, eu sou o responsável. Joe Wysong, Editor Highland, Nova York Outono, 1992 33 PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 1 969 DA RANDOM HOUSE Para o leitor de hoje, Ego, fome e agressão representa a transição da psicanálise ortodoxa para a abordagem gestáltica. Contém muitas idéias que, mesmo agora — após 20 anos — não encontraram seu caminho na psiquiatria moderna. Os conceitos de realidade aqui-e-agora, de organismo-como- um-todo e da dominância da necessidade mais urgente estão sendo aceitos. Contudo, o significado da agressão como força biológica, a relação entre agressão e assimilação, a natureza simbólica do ego, a atitude fóbica na neurose, a unidade organismo-meio estão longe de ser compreendidos. Na última década, a teoria da “awareness”1 tem sido amplamenteaceita e é praticada sob os nomes de treinamento de sensibilidade e grupos-T. O significado da expressão não-verbal espontânea (como movimentos das mãos e dos olhos, postura, voz etc.) tem sido reco nhecido. No contexto terapêutico, a ênfase começa a se deslocar da situação fóbica (chamada objetiva) do divã para o encontro de um terapeuta humano com, não um caso, mas outro ser humano. Estes são bons inícios, mas há ainda muito a fazer. A probabili dade de que a terapia individual e de longa duração possam, ambas, ser obsoletas ainda não se revelou para a vasta maioria de terapeutas e 1. Este termo não possui um equivalente adequado em português, tendo um sentido mais amplo do que “estar consciente de”; portanto, mantemos a expressão em inglês, que se refere a um processo que abrange o organismo como um todo. (N. do T.) 35 pacientes. Na verdade, grupos e workshops encontram crescente acei tação, mais por sua exeqüibilidade econômica do que por sua eficá cia. Contudo, a sessão individual deveria ser a exceção mais do que a regra. Talvez isto soe tão herético quanto a proposição que fiz algum tempo atrás: lidar com o comportamento fora do aqui-e-agora é uma perda de tempo. Grandes avanços têm sido feitos desde as descobertas monumentais de Freud. Para mencionar alguns importantes: a ênfase de Sullivan na auto-estima; o conceito de jogo de Beme; o feedback de Rogers2; e, especialmente, Reich trazendo à tona a psicologia das resistências. O desenvolvimento do sintoma, para o caráter e a terapia existencial, até o surgimento da psicologia humanista é muito promissor. Após escrever o manuscrito para Gestalt therapy, desenvolvi muitas idéias novas. Mais importante, eu finalmente consegui superar o impasse, o ponto de status quo no qual a terapia comum parece ficar presa. Sem perspectiva adequada, um terapeuta está perdido desde o início. O uso da melhor técnica ou do conceito mais enge nhoso não impedirá o paciente de compensar os esforços do terapeuta. Isso congela a terapia e impede a verdadeira maturação. Ego, fome e agressão facilitará a aquisição desta perspectiva. Como ela está baseada em polaridades e em focalização, o primeiro capítulo, embora de leitura difícil, é importante. Quanto ao restante, muito de seu material histórico está agora obsoleto, mas o significado da agressão deslocada é tão válido hoje quanto era quando escrevi este livro. Um retomo do poder de agressão da destruição de cidades e povos para a assimilação e o crescimento... uma consumação a ser sinceramente desejada... Extremamente improvável. Frederick S. Per Is 1969 2. Roger, no original. (N. do T.) PREFÁCIO À EDIÇÃO DE 1 945 DAj KNOX PUBLISHING COMPANY Este livro possui muitas falhas e insuficiências. Tenho plena consciência disso. Portanto, advirto ao leitor que espere encontrá-las, embora não possa desculpar-me pela presença delas. Se eu pudesse, lería escrito um livro melhor se eu já estivesse falando inglês por mais de uma década, tanto meu vocabulário quanto minhas formas de expressão teriam sido mais adequados. Um QI mais alto ter-me-ia possibilitado visualizar estruturas mais funda mentais e descobrir mais contradições em outras teorias, bem como na minha própria. Se eu tivesse tido de cinqüenta a cem anos mais de experiência, teria abarrotado o leitor com histórias de casos. E se eu possuísse uma memória melhor, e se não houvesse uma guerra, se... Atualmente existem muitas “psicologias”, e cada escola, ao menos em parte, tem razão. Mas, ai de nós!, cada escola também se jtthrrrdõhã da razão. O professor de psicologia tolerante, na maioria "cTõífcasoCtira as diferentes abordagens de seus respectivos casulos, discute-as, mostra sua preferência por uma ou duas delas, mas como faz pouco para integrá-las! Tenho procurado demonstrar que algo dessa natureza pode sim ser feito, construindo pontes sobre os espaços vazios; e minha espe rança é ser capaz de estimular centenas de outros psicólogos, psica nalistas, psiquiatras etc. a fazer o mesmo. Ao escrever este livro recebi muita ajuda, estímulos e encoraja mento de livros, amigos e professores; mas, sobretudo, de minha esposa, a dra. Lore Perls. Nossas discussões acerca dos problemas 37 abordados neste livro esclareceram muitos assuntos; e ela fez contri buições valiosas ao trabalho, como a descrição da atitude do dummy. Ao professor K. Goldstein devõ meu primeiro "contato com a psicologia da gestalt. Infelizmente, em 1926, quando trabalhava sob sua orientação no Instituto Neurológico de Frankfurt, eu ainda estava preocupado demais com a abordagem psicanalítica ortodoxa para as similar mais do que uma fração do que me era oferecido. Foi Wilhelm Reich quem pela primeira vez chamou minha aten ção para um aspecto importantíssimo da medicina psicossomática — a função do sistema motor como couraça. Finalmente, agradeço aos amigos a ajuda na superação de minhas dificuldades lingüísticas, e por me proporcionarem assistência técnica. Desde que escrevi os originais deste livro alguns anos atrás, mais trabalho prático tem justificado as teorias que apresento aqui. Mas estas teorias são apenas um início. No presente momento gstou envolvido em um trabalho de pesquisa sobre o mal* funcionamento do fenômeno figura- fundo nas psicoses em geral e na estrutura da esquizofrenia em particular. Ainda é cedo demais para dizer quais serão os resultados; parece que vai resultar em alguma coisa. Espero portanto que, num futuro naoTnuito distante, eu sejãcãpaz de lançar alguma luz sobre essa misteriosa doença. Assim, por enquanto, apresento este livro como uma contribuição à medicina organísmica (psicossomática). Um passo foi dado rumo à meta final — uma teoria integrada que cubra todo fenômeno físico e psíquico. Por mais distantes que estejamos dessa meta, agora sabemos que ela existe e pode ser alcançada por síntese e cooperação de todas as escolas existentes hoje. Tal síntese, porém, deve ser precedida de um expurgo impiedoso de todas as idéias meramente hipotéticas; em espe cial daquelas hipóteses que se tomaram convicções rígidas e estáticas e que, na mente de alguns, transformaram-se em realidade em vez de teorias elásticas e precisam ser continuamente examinadas. Estes originais foram escritos em 1941-1942. Muitas referências a agudas situações políticas e militares estarão obsoletas quando este livro estiver nas mãos dõ leitor, mas ainda serão relevantes dentro do seu contexto particular. Frederick S. Perls 134, Hospital Militar, África do Sul Dezembro de 1944 38 INTENÇÃO A psicanálise se fundamenta seguramente nas observações dos fatos da vida mental; e por essa razão sua superestrutura está ainda incompleta e sujeita a constante alteração. — Sigmund Freud O propósito deste livro é examinar algumas reações psicológicas e psicopatológicas do organismo humano em seu ambiente. A concepção central é a teoria de que o organismo se esforça pela manutenção de um equilíbrio que é continuamente alterado pelas suas necessidades, e recuperado por sua satisfação ou eliminação. As dificuldades que surgem entre o indivíduo e a sociedade . resultarão na produção de delinqüência e de neurose. A neurose é caracterizada por diversas formas de evitação, principalmente a evitação de contato. As relações entre indivíduo e sociedade, e entre grupos sociais, não podem ser compreendidas sem se considerar o problema da agressão. Na presente guerra1, não há palavra mais utilizada ou desprezada do que “agressão”. Inúmeros livros publicados não só condenam a agressão como tentam encontrar um tratamento para ela, mas nem a análise nem o significado da agressão foram suficientemcnle csclare 1. A Segunda Guerra Mundial. (N. do T.) 39 V fc U R p JE . cidos. Até mesmo Rauschning2 não chegou a analisar bases biológicas da agressão. Por outro lado, os tratamentos prescritos para a cura da agressão são sempre os mesmos velhos e ineficazes agentes reprêssT- võsTIdêãhsino e religião.Não aprendemos nada sobre a dinâmica da agressão., apesar da advertência de Freud de que energias reprimidas não só^Sesaparecem mas podem até se tornar mais perigosas e efetivas se mantidas ocultas. Quando decidi examinar a natureza da agressão, me convenci cada vez mais de que não havia nenhuma energia chamada agressão, que agressão era uma função biológica que em nossa época tornou-se um instrumento de insanidade coletiva. Considerando que com o uso dos instrumentos intelectuais holis- mo (concepção de campo) e semântica (o sentido do significado) nossa perspectiva teórica pode agora ser tremendamente desenvol vida, temo que em relação à agressão coletiva eu não esteja em condições de oferecer um tratamento prático. Em vez de ver a neurose e a agressão a partir de um ponto de vista puramente psicológico, a abordagem holístico-semântica revela uma série de deficiências até no mais desenvolvido dos métodos psicológicos: isto é, a psicanálise. A psicanálise acentua a importância do inconsciente e do instinto sexual, do passado e da causalidade, das associações, da transferência e das repressões, mas subestima ou até negligencia as funções do ego do instinto de fome, do presente e da intencionalidade, da concentra ção, as reações espontâneas e a retroflexão. Após as lacunas terem sido preenchidas, e termos psicanalíticos dúbios tais como libido, instinto de morte e outros serem examina dos, o mais vasto escopo do novo conceito será demonstrado na Parte II, que trata da assimilação mental e do caráter paranóide. A Parte III é destinada a dar instruções detalhadas sobre uma técnica terapêutica resultante da perspectiva teórica modificada. Como a evitação é considerada o sintoma central dos distúrbios nervosos, substituí o método de associações livres ou do fluxo de idéias pelo antídoto da evitação — a concentração. 2. Herman Rauschning, escritor e político alemão nascido em 1887, serviu no exército alemão na Primeira Guerra Mundial. Ingressou no Partido Nacional- Socialista alemão, mas rompeu com os nazistas em 1935, transferindo-se para os EUA em 1940, naturalizando-se norte-americano em 1948. (N. do T.) 40 Parte I HOLISMO E PSICANÁLISE ■ PENSAMENTO DIFERENCIAL A ânsia de saber tudo sobre si mesmo e sobre os demais homens tem motivado jovens intelectuais de todos os tempos a buscar os grandes filósofos para obter informações sobre a personalidade hu mana. Alguns alcançaram uma perspectiva satisfatória, mas muitos permaneceram insatisfeitos e desapontados encontrando bem pouco realismo na filosofia e na psicologia acadêmicas, ou sentindo-se infe riores e estúpidos, aparentemente incapazes de captar tais conceitos filosóficos e científicos complicados. Por um longo período de minha própria vida, pertenci ao grupo daqueles que, embora interessados, não podiam obter nenhum bene fício do estudo da filosofia e da psicologia acadêmicas, até conhecer as obras de Sigmund Freud, que estava então ainda completamente fora da ciência acadêmica, e a filosofia da “Indiferença Criativa” de S. Friedlaender. Freud demonstrou que o homem criou a filosofia, a cultura e a rehgião e que, para resolver os enigmas de nossa existência, temos de ter õ homem como ponto de referência e não agentes externos, como todas as religiões e muitos filósofos têm sustentado. A interdepen dência do observador e dos fatos observados, postulada pela ciência atual, tem sido totalmente confirmada pelas descobertas de Freud. Conseqüentemente, seu sistema, também, não deve ser considerado sem incluí-lo como criador. Dificilmente há uma esfera da atividade humana em que a pes quisa de Freud não tenha sido criativa, ou pelo menos estimulante. Para colocar ordem nas relações entre os muitos latos observados, ele 43 'O ) C -̂JO c '■> *>-<'Ccíjo®<yCX« ., - , t P~ '•''Ç-1' ~ZkH V3̂ -.v-..-- ■ ,̂.V̂ Ô -̂ P-̂ C-asO U 1 A**- desenvolveu uma série de teorias, que, juntas, formaram o primeiro sistema de uma psicologia genuinamente estrutural. Desde a época em que Freud criou seu sistema baseado em material inadequado, por um lado, e em certos complexos pessoais por outro, adquirimos tan tas compreensões científicas novas que podemos tentar reforçar a estrutura do sistema psicanalítico em que sua deficiência, e mesmo sua imperfeição, é mais óbvia: a) c) No tratamento dos fatos psicológicos como se eles exis tissem isolados do organismo. No uso da psicologia linear de associação como base para um sistema quadridimensional. ^ ) vvWj \̂, |<z Na negligência do fenômeno da diferenciação. Nesta revisão da psicanálise, pretendo: a) Substituir um conceito psicológico por um organísmico (1.8). b) Substituir a psicologia de associação pela psicologia da ges- talt (1.2). c) Aplicar o pensamento diferencial, baseado na “Indiferença Criativa” de S. Friedlaender. O pensamento diferencial apresenta uma semelhança com as teo rias dialéticas, mas sem suas implicações metafísicas. Portanto, tem a vantagem de poupar discussões acaloradas sobre o assunto (já que muitos leitores terão adquirido um entusiasmo a favor ou uma idio- sincrasia contra o método e a filosofia dialéticos) sem sacrificar o núcleo válido contido no modo dialético de pensar. O método dialético pode ser mal empregado, e freqiientemente tem sido: às vezes podemos até nos sentir inclinados a concordar com as observações de Kant no sentido de que a dialética é uma ars sophistica disputatoria, conversa fiada (Geschwaetzigkeit) — uma atitude, contudo, que não impediu que ele mesmo utilizasse o pensa mento dialético. Muito se tem a dizer contra o idealismo dialético de Hegel como uma tentativa filosófica de substituir Deus por outros con ceitos metafísicos. A transposição de Marx do método dialético do 44 - A o « /V \C £k <*'' £ ^ -* -^ 4 . - V A O - O u s A c ie /^ c jA ^ ^ v materialismo é um progresso, mas não uma solução. Sua mistura de pesquisa científica com pensamento mágico, da mesma forma, não atingiu o realismo dialético. Minha intenção é traçar uma distinção clara entre a dialética comcTum conceito filosófico e a utilidade de certas regras como as encontradas e aplicadas na filosofia de Hegel e Marx. Estas regras coincidem aproximadamente com o que nós poderiamos chamar de “pensamento diferencial”. Pessoalmente, sou da opinião de que em muitos casos este método é um meio apropriado para atingir uma nova compreensão científica, levando a resultados em que outros rmetódos intelectuais, por exemplo o pensamento em termos de causa j e efeito, fracassaram.______ _________ - Muitos leitores relutarão em acompanhar uma discussão bastante teórica como introdução de um livro que trata de problemas de psico logia prática. Mas precisam se familiarizar com certos conceitos bá sicos difundidos na totalidade deste livro. Embora a validade prática destas idéias só se tome evidente pela persistência em sua aplicação repetida, eles devem, desde o início, conhecer a sua estrutura geral. Este método tem uma vantagem adicional: anteriormente, se aceitava a idéia de que o cientista observa uma série de fatos e deles tira conclusões. Contudo, agora, chegamos à conclusão de que as obser vações de qualquer pessoa são ditadas por interesses específicos, por idéias preconcebidas e por uma atitude — freqüentemente incons ciente — que reúne e seleciona os fatos de acordo com ela. Em outras palavras: não existe a chamada ciência objetiva, e, como todo escritor tem algum ponto de vista subjetivo, todo livro deve depender da mentalidade do escritor. Em psicologia, mais do que em qualquer outra ciência, observador e fatos observados são inseparáveis. A orientação mais conclusiva deve ser obtida se pudermos encontrar um ponto a partir do qual o observador possa alcançar a visão mais abrangente e não distorcida. Acredito que tal ponto de vista tenha sido descoberto por S. Friedlaender. Em seu livro Creative indifference, Friedlaender apresenta a teoria de que todo evento está relacionadoa um ponto-/,ero, a partir do qual ocorre uma diferenciação em opostos. Esses opostos apresentam, em seu contexto específico, uma grande afinidade entre si. Permanecendo atentos no centro, podemos adquirir uma 45 habilidade criativa para ver ambos os lados de uma ocorrência e completar uma metade incompleta. Evitando uma perspectiva uni lateral, obtemos uma compreensão muito mais profunda da estru tura e da função do organismo. Poderiamos obter uma orientação preliminar a partir do se guinte exemplo: observando um grupo de seis seres vivos, um imbecil (i), um cidadão “normal” comum (n), um importante esta dista (e), uma tartaruga (t), um gato (g) e um cavalo de corrida (c), descobrimos imediatamente que eles se dividem em dois grupos — seres humanos e animais — e que, do infinito número de carac terísticas de seres vivos, cada grupo tem uma qualidade específica: (i), (n) e (e) apresentam graus variáveis de inteligência; (t), (g) e (c) graus variáveis de velocidade — “diferem” um do outro em inteligência ou velocidade. Se dividirmos mais ainda, poderemos facilmente estabelecer uma ordem: o QI (quociente de inteligência) de n será considerado maior do que o de i e o de e maior do que o de n, assim como a velocidade de g é maior do que a de t e a de c maior do que a de g (e > n > i; c > g > t). Podemos, agora, escolher mais animais e seres humanos — cada um deles um pouco diferente do seguinte nas características selecionadas. Podemos medir as diferenças, podemos até, com a ajuda do cálculo diferencial, preencher as lacunas, mas finalmente chegamos a um ponto em que os caminhos da matemática e da psicologia parecem se separar. A linguagem matemática não conhece “lento” e “rápido”, apenas “mais lento” e “mais rápido”, mas em psicologia lidamos com termos como “lento”, “rápido”, “estúpido”, ou “inteligente”. Esses termos são concebidos a partir de um ponto de vista “normal”, que é “in”-diferente a todos aqueles eventos que não nos impressio nam por serem fora do comum. Somos indiferentes a jtudo que é “não-diferenciado” a partir de nosso ponto de vista subjetivo. O Tmtêresse evocado em nós é “zero”. Este “zero” tem um significado duplo, o de um início e o de um centro. Nas contas das tribos primitivas e das crianças, zero é o início da seqüência 0, 1, 2, 3 etc. — em aritmética é o meio de um sistema mais/menos, é um ponto-zero com duas ramificações na direção de mais e de menos. Se aplicarmos as duas funções de zero 46 C*r*r\ ->-*=> -S Cí? .v í̂vA ̂ C. Ifx^A^íW? ■ “ I r'.’ -| s/s?1— aos nossos exemplos, poderemos criar duas seqüências ou dois siste mas. Se estabelecermos que (i) tem um Q1 de 50, (n) de 100 e (e) de 150, poderemos criar uma seqüência: 0, 50, 100, 150. Esta é uma ordem de inteligência crescente. Se, contudo, estabelecermos um Ql de 100 como normal, então, teremos um sistema mais/menos: - 50, 0, + 50, no qual os números indicam um grau de diferenciação a partir do ponto-zero (centro). Na realidade, há muitos sistemas em nosso organismo centradas em torno do ponto-zero de normalidade, saúde, indiferença etc. Cada * um destes sistemas se diferencia em dois opostos como mais/menos, hábil/estúpido, rápido/lento etc. Talvez o exemplo mais óbvio da esfera psicológica seja o sistema prazer/dor. Seu ponto-zero é — como será demonstrado mais tarde — o equilíbrio do organismo. Qualquer distúrbio deste equilíbrio é êxperienciado como doloroso, o retorno a ele como prazeroso. O médico está bem familiarizado com o ponto-zero metabólico (índi ce metabólico básico) que, embora obtido por meio de uma fórmula com plicada, tem o aspecto prático de normal = 0. Os desvios (metabolismo aumentado ou diminuído) são expressos em relação ao ponto-zero. O pensamento diferencial — a compreensão do funcionamento de tais sistemas — nos oferece um instrumento de precisão mental que não é nem extremamente difícil de compreender nem de utilizar. Restringirei a discussão a esses três pontos indispensáveis para a compreensão deste livro: opostos, pré-diferença (ponto-zero) e grau de diferenciação. ^ 3 ■ -y' ■. ■ f - r - J tf* k As Figuras la, lb e lc podem ser úteis no esclarecimento da minha concepção de pensamento diferencial, no que se refere às mi nhas idéias. Figura IA Suponhamos que A-B represente a superfície de uma porção de terra. Tomamos qualquer ponto como o ponto-zero, o ponto a pariir do qual se inicia a diferenciação. 47 Figura 1B Temos partes diferenciadas do terreno na cavidade (C) e seu monte (M) correspondente. A diferenciação é gradual e continua si multânea (em tempo) e exatamente no mesmo grau para cada lado (em espaço). Toda pazada de terra produz um déficit no terreno, que é amontoado como um excedente sobre o monte (polarização). Figura 1C A diferenciação está terminada. Todo o nível foi transformado em dois opostos, cavidade e monte. O pensamento em opostos é a quinta-essência da dialética. Opostos dentro do mesmo contexto estão mais estreitamente rela cionados entre si do que em relação a qualquer outra concepção^ No campo da cor pensamos em branco em conexão com preto, do que com verde ou rosa. Dia e noite, calor e frio, deTato, milhares de opostos são combinados na linguagem do dia-a-dia. Podemos até ir mais longe afirmando que nem “dia" nem “calor” existiríam, nem na realidade nem em palavras se não fossem contrastados com seus opostos “noite” c “frio”. Em vez de “awareness”, a indi ferença estéril prevalecería. Na terminologia da psicanálise, encon tramos réafização do desejo/frustração do desejo; sadismo/masoquismo; 48 consciente/inconsciente; princípio da realidade/princípio do prazer, e assim por diante.1 Freud percebeu e registrou como “uma de nossas descobertas mais surpreendentes” que um elemento no sonho manifesto ou recor dado que admite um oposto pode representar a si mesmo, seu oposto ou ambos ao mesmo tempo. Ele também chama nossa atenção para o fato de que nas mais antigas línguas conhecidas por nós, opostos como luz-escuridão, grande-pequeno, eram expressos pela mesma raiz de palavras (o chamado sentido antitético das palavras primárias). Quando fala das, estas eram diferenciadas em seus dois significados distintos pela entonação e por gestos e, quando escritas, eram diferenciadas pela adição de um determinativo, isto é, uma figura ou um sinal que não seriam expressos oralmente por sons. Para nossas duas palavras “alto” e “profundo”, o latim tem, apenas uma: altus, que simplesmente significa extensão no plano vertical; a situação ou o contexto determina se traduzimos esta palavra como “alto” ou “profundo”. Da mesma forma o latim sacer significa “tabu”, que na tradução é geralmente transcrito como “sagrado” ou “maldito1’. 1. Roget, em seu Thesaurus, avalia o quanto o mundo das palavras existe em opostos: “Com o propósito de exibir com maior distinção as relações entre palavras que expressam idéias opostas e correlativas, eu, sempre que o assunto admitia tal arranjo, as colocava em duas colunas paralelas na mesma página, de forma que cada grupo de expressão pudesse ser rapidamente contrastado com aqueles que ocupavam a coluna adjacente, formando suas antíteses”. E mais adiante, indicando que as oposições são ditadas não por palavras mas por seu contexto: “Freqüentemente acontece de a mesma palavra ter vários termos corre- lativos, de acordo com as diferentes relações em que é considerada. Assim, para a palavra ‘dar’ são opostos tanto ‘receber’ como ‘tomar’: a primeira correlação se refere às pessoas envolvidas na transferência, enquanto a última se relaciona ao modo de transferir. ‘Velho’ tem por opostos tanto ‘novo’ como ‘jovem’ de acordo com sua aplicação a coisas ou a seres vivos. ‘Ataque’ e ‘defesa’ são termos correlatos, assim como ‘ataque’ e ‘resistência’. ‘Resistência’ também tem ‘sub missão’ como seu correlativo. ‘Verdade’, em termos abstratos, e oposta a ‘erro’, mas o oposto de verdade comunicada é ‘falsidade’” etc. 49
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